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22 março 2024

Luís Cília: "Se me Levam Águas" (Luís de Camões)


Fraga da Pena, na Mata da Margaraça, Serra do Açor
Fotografia extraída do site "Alma de Aventureiros"


Em maré de celebração camoniana neste quinquicentenário do nascimento do nosso Poeta-Maior (considerando que veio ao mundo em 1524, provavelmente a 23 de Janeiro), assinalamos este Dia Mundial da Água com um dos mais belos poemas já escritos em língua portuguesa tendo como motivo o precioso líquido: o vilancete em redondilha menor "Se me levam águas", na encantadora versão cantada por Luís Cília com música da sua autoria. Serve também para homenagear, ainda que muito singelamente, o categorizado compositor/intérprete neste ano que é o 60.º da edição do seu primeiro álbum, "Portugal-Angola: Chants de Lutte", que aconteceu em França, pela editora Le Chant du Monde, em finais de 1964. Boa escuta!

A propósito de Luís Cília, é oportuno referir que continua a ser criminosamente boicotado por quem gere a 'playlist' da Antena 1 (ou superintende a sua gestão, leia-se Nuno Galopim de Carvalho). A exclusão de nomes grandes da música portuguesa da referida lista nem seria especialmente grave se ela tivesse um peso residual no cômputo geral da programação musical, mas como acontece precisamente o inverso (não andaremos longe da verdade se apontarmos a cifra de 85 %) eles terão de estar lá representados. Caso contrário, torna-se legítimo questionar o financiamento público, seja pela contribuição do audiovisual seja por dotações do Orçamento do Estado. Mas gostaríamos de não ter de chegar aí porque preconizamos a existência de uma estação pública de rádio. Agora não pode (nem deve) é atraiçoar a sua nobre missão maltratando os valores maiores da nossa música (cantada na língua de Camões ou instrumental).



Se me Levam Águas



Poema (vilancete em redondilha menor): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 772-773)
Música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília* (in LP "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1", Moshé-Naïm, 1967; CD "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours", Moshé-Naïm/EMEN, 1996)


          MOTE ALHEIO

Se me levam águas,
nos olhos as levo.

          VOLTAS

Se de saudade
morrerei ou não,
meus olhos dirão
de mim a verdade.
Por eles me atrevo
a lançar as águas
que mostrem as mágoas
que nesta alma levo.

As águas que em vão
me fazem chorar,
se elas são do mar
estas de amor são.
Por elas relevo
todas minhas mágoas;
que, se força de águas
me leva, eu as levo.

Todas me entristecem,
todas são salgadas;
porém as choradas
doces me parecem.
Correi, doces águas,
que, se em vós me enlevo,
não doem as mágoas
que no peito levo.


Nota:
a lançar as águas – alcançar as águas.

* Luís Cília – voz e guitarra
Marc Vic – guitarra
François Rabbath – contrabaixo
Produção – Moshé Naïm
Gravado nos Studios Europa-Sonor, Paris
URL: http://www.luiscilia.com/
https://www.youtube.com/user/LeoMOV/videos
https://music.youtube.com/channel/UCqL_T8TPQ2ffVAKn-v4kN_A



Frontispício da 1.ª edição das "Rimas", de Luís de Camões, org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita (Lisboa, 1595).



Capa do LP "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1", de Luís Cília (Moshé-Naïm, 1967).
Fotografia – Ludwik Lewin.
Concepção – Henri Matchavariani.



Capa da antologia em CD "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours", de Luís Cília (Moshé-Naïm/EMEN, 1996).
Pintura (à esquerda) – Maria Helena Vieira da Silva.
Fotografia (à direita) – Alain Appéré.

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Outros artigos com poesia de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
Camões recitado e cantado (IV)
Camões recitado e cantado (V)
Camões recitado e cantado (VI)
Camões recitado e cantado (VII)
Camões recitado e cantado (VIII)
Camões recitado e cantado (IX)
Luís de Camões: "Os Lusíadas" (dois excertos), por Carlos Wallenstein

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Outros artigos com repertório interpretado por Luís Cília ou da sua autoria:
A infância e a música portuguesa
Em memória de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)
Celebrando Eugénio de Andrade
Camões recitado e cantado (V)
José Saramago: "Dia Não"
Adriano Correia de Oliveira: "Exílio" (Manuel Alegre)
Luís Cília: "Tango Poluído"
Luís Cília: "O Cavador" (Guerra Junqueiro) Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia

06 outubro 2024

Luís de Camões: "Perdigão perdeu a pena"


Perdiz-vermelha ou perdiz-comum (Alectoris rufa).
© Alexandre Rica Cardoso, 2019 (in https://www.avesdeportugal.info/aleruf/).


«Camões escreveu essas coisas porque lá por dentro dele era bem português e o seu estado de alma era o nosso. A pena de nós próprios. Isso tudo é a mesma coisa. O Camões tratou as palavras "destino" e "fado" como nunca mais ninguém tratará, assim eu penso. Há nele a mesma noção de destino, de fatalidade, de pena de si próprio. Fiquei toda contente quando descobri que ele dava a isto o mesmo sentido que lhe dá o povo que eu tinha ao pé da porta. Para mim, ele é o maior fadista português: sabia falar de fado como ninguém.»

              AMÁLIA RODRIGUES
              (em entrevista concedida a João Gonçalves,
              in jornal "Semanário", 27 Abr. 1985)


Completando-se o primeiro quarto de século sobre a morte de Amália no ano do quinto centenário do nascimento de Luís de Camões, que ela tanto admirava e com quem muito se identificava nesse estado de alma fadista, impunha-se, neste dia amaliano que é de saudade por excelência, fazer uma celebração conjunta. Ora como já apresentámos, no artigo "Camões recitado e cantado (II)", a totalidade dos seis poemas camonianos (canónicos) mais o apócrifo "Com que voz chorarei meu triste fado" a que Amália deu voz e foram publicados em disco, cinco com música de Alain Oulman e dois de Carlos Gonçalves, entendemos direccionar o foco da nossa atenção, na presente data, para um deles em particular: o vilancete em redondilha maior incipit "Perdigão perdeu a pena", que na edição discográfica – álbum "Cantigas numa Língua Antiga" (1977) – surge com o título simples de "Perdigão". Trata-se de um espécime da Lírica Camoniana em que está lapidarmente expresso o sentimento de desventura e fatalidade do genial vate (no caso, respeitante ao insucesso do Poeta – metaforicamente figurado num perdigão – nos seus esforços para alcançar o amor da amada – alta torre –, a qual se mostra sobranceiramente indiferente ao amador) que muito dizia a Amália e que a motivou a gravá-lo, num momento do seu percurso artístico – é oportuno referi-lo – ainda no rescaldo do PREC, durante o qual a colossal artista fora vítima de golpes baixos e acusada, por alguns indivíduos mais fanáticos e insolentes, de ter sido uma despudorada apoiante do Estado Novo. Talvez esses seus mesquinhos detractores nunca tivessem ouvido "Abandono (Fado Peniche)" [>> YouTube Music], "Senhora do Livramento" [>> YouTube Music], "Trova do Vento que Passa" [>> YouTube Music] e outro repertório sobre poesia de autores que estavam longe de serem simpatizantes do regime instituído por Salazar e mantido por Caetano (como Sidónio Muralha, Manuel Alegre e Ary dos Santos), e também talvez eles desconhecessem (ou quisessem ignorar) que Amália havia ajudado, com dinheiro, boa gente que, na clandestinidade, lutava contra a ditadura, e que ela mesma fora vigiada pela PIDE precisamente por suspeita de auxiliar antifascistas.
Aproveitamos o ensejo para deixar também, a seguir ao original amaliano, a versão (muito competente) que Katia Guerreiro gravou do mesmo "Perdigão" com música de Alain Oulman, e, a abrir a sequência, o registo recitado na voz do actor Carlos Wallenstein.
Votos de escuta prazenteira bafejada pelo enlevante estro camoniano!

E de que modo tem a Antena 1 evocado Amália neste 6 de Outubro, o 25.º após a sua partida para a eternidade?
Assinalamos a edição especial do programa "Gramofone", de João Carlos Callixto, que teve como convidado Frederico Santiago, o curador das novas edições (com muitos inéditos) do espólio fonográfico amaliano à guarda das Edições Valentim de Carvalho [>> RTP-Play]. E está também anunciado que a emissão do programa "Alma Lusa" (depois do noticiário da meia-noite), com realização de Edgar Canelas, será igualmente consagrada a Amália, «ora em palavras ditas na primeira pessoa ora através de memórias do seu biógrafo, Vítor Pavão dos Santos» (cf. https://antena1.rtp.pt/antena1/amalia-25-anos-depois/).
Registamos estas iniciativas com agrado, mas não podemos deixar de apontar o dedo acusador à direcção de programas da Antena 1, na pessoa de Nuno Galopim de Carvalho, pelo silenciamento na 'playlist', ao longo do ano, da obra discográfica de Amália, que não é uma artista qualquer – convém ter isto sempre bem presente – mas tão-só a maior intérprete vocal portuguesa (popular), provavelmente de todos os tempos, indubitavelmente a maior desde que foi inventado o registo sonoro. E não estamos a pedir que passem os espécimes mais conhecidos do vulgo, mas que haja a preocupação de pegar em repertório menos divulgado, porque é também (e sobretudo) para isso que existe o serviço público de radiodifusão.



Perdigão perdeu a pena



Poema (vilancete em redondilha maior) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Estêvão Lopes, Lisboa, 1598; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 805)
Recitado por Carlos Wallenstein* (in LP "Camões: Antologia", Série 'Disco Falado', Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Série 'Palavras', Strauss, 2002)




          MOTE ALHEIO

Perdigão perdeu a pena,
não há mal que lhe não venha.

          VOLTAS

Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.

Quis voar a uma alta torre,
mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha.


* Carlos Wallenstein – voz

Selecção de textos/poemas – Carlos Wallenstein
Direcção literária – Alberto Ferreira
Assistente de produção – Carmen Santos
Produção – Sassetti
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa
Captação de som e montagem – Moreno Pinto
Remasterização – Jorge d'Avillez (Strauss Studio, Lisboa)
URL: http://www.cinept.ubi.pt/pt/pessoa/2143690279/Carlos+Wallenstein
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/perfil-carlos-wallenstein/
https://music.youtube.com/channel/UCAB5mYWk4Z9tVkwp-RrXdgQ



Perdigão



Poema: Luís de Camões (ligeiramente adaptado) [texto original >> acima]
Música: Alain Oulman
Intérprete: Amália Rodrigues* (in LP "Cantigas numa Língua Antiga", Columbia/VC, 1977, reed. EMI-VC, 1992, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)




[instrumental]

Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.
Perdigão perdeu a pena.

[instrumental]

Quis voar a uma alta torre
mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha. | bis
Perdigão perdeu a pena.          |


* Amália Rodrigues – voz
José Fontes Rocha – guitarra portuguesa
Martinho d'Assunção – viola

Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Engenheiro de som – Hugo Ribeiro
Montagem digital (edição em CD) – Fernando Paulo
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2007
URL: https://amaliarodrigues.pt/pt/amalia/
https://www.museudofado.pt/index.php/fado/personalidade/amalia-rodrigues
https://centenarioamaliarodrigues.pt/
https://www.youtube.com/c/amaliarodriguesofficial
https://music.youtube.com/channel/UCF_E888KGi1ko8nk9Pus_2g



Perdigão



Poema: Luís de Camões (ligeiramente adaptado) [texto original >> no topo]
Música: Alain Oulman
Intérprete: Katia Guerreiro* (in CD "Nas Mãos do Fado", Ocarina, 2003)




[instrumental]

Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.
Perdigão perdeu a pena.

[instrumental]

Quis voar a uma alta torre
mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha. | bis
Perdigão perdeu a pena.          |


* Katia Guerreiro – voz
Paulo Valentim – guitarra portuguesa
João Veiga – guitarra clássica
Rodrigo Serrão – contrabaixo

Produção executiva – Joaquim Balas
Gravado e masterizado por António Cordeiro, no Estúdio d'Aldeia, Cacém, de Agosto a Outubro de 2003
Misturado por Katia Guerreiro e António Cordeiro
URL: https://katiaguerreiro.pt/
https://www.museudofado.pt/index.php/fado/personalidade/katia-guerreiro
https://www.facebook.com/katiaguerreiro.official/
https://www.youtube.com/@KatiaGuerreiroFado
https://music.youtube.com/channel/UCk8hihYmq_eb4SPXenCGqnA





Capa e contracapa do LP "Cantigas numa Língua Antiga", de Amália Rodrigues (Columbia/VC, 1977)
Concepção – Manuel Correia
Fotografias – Augusto Cabrita



Capa do LP "Camões: Antologia", de Carlos Wallenstein (Série 'Disco Falado', Guilda da Música/Sassetti, 1973)
Concepção – Soares Rocha



Capa da reedição em CD do álbum "Camões: Antologia", de Carlos Wallenstein (Série 'Palavras', Strauss, 2002)
Retrato de Camões – Soares Rocha
Grafismo – João P. Cachenha



Capa do CD "Nas Mãos do Fado", de Katia Guerreiro (Ocarina, 2003)
Fotografia – Rui Ochôa
Grafismo – Ivone Ralha.

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Outros artigos com poesia e/ou teatro de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
Camões recitado e cantado (IV)
Camões recitado e cantado (V)
Camões recitado e cantado (VI)
Camões recitado e cantado (VII)
Camões recitado e cantado (VIII)
Camões recitado e cantado (IX)
Luís de Camões: "Os Lusíadas" (dois excertos), por Carlos Wallenstein
Luís Cília: "Se me Levam Águas" (Luís de Camões)
Teatro camoniano em versão radiofónica
Camões por Carmen Dolores
José Mário Branco: "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades"
Camões recitado e cantado (X)
Camões evocado por Sophia
Luís de Camões: "Endechas a Bárbara Escrava"

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Outros artigos com repertório de Amália em voz própria:
Ser Poeta
Celebrando Vinicius de Moraes
Camões recitado e cantado (II)
Amália Rodrigues: "Primavera" (David Mourão-Ferreira)
Amália Rodrigues: "Abril" (Manuel Alegre)
Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia

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Artigos com canções de tributo a Amália:
Amália: dez anos de saudade
«Do João Braga para a Amália»

10 junho 2021

Camões recitado e cantado (VII)


© Maria Madrinha, 23 Jun. 2007 (https://www.flickr.com/photos/ametista/594153507/)
Estátua de Luís de Camões, em bronze, adjacente ao Jardim do Horto dedicado ao Poeta, na vila ribatejana de Constância. Concebida pelo escultor Lagoa Henriques, foi inaugurada a 6 de Junho de 1981, pelo então presidente da República António Ramalho Eanes.


«Vindo de lá [da China] se foi perder na costa de Sião [Tailândia], onde se salvaram todos despidos e o Camões por dita escapou com as suas "Lusíadas", como ele diz nelas, e ali se afogou ũa moça china muito fermosa com que vinha embarcado e muito obrigado, e em terra fez sonetos à sua morte em que entrou aquele que diz: "Alma minha gentil, que te partiste...» [excerto do manuscrito da "Década VIII", atribuído a Diogo do Couto, c.1542-1616].

"Alma minha gentil, que te partiste": um dos mais conhecidos espécimes da Lírica camoniana e também um dos poemas mais belos e pungentes que alguém, em qualquer lugar, alguma vez escreveu a pessoa bem-amada que já não se conta no número dos vivos. Dirigido a uma rapariga oriental, provavelmente chinesa, chamada Dinamene (assim surge designada noutro soneto), que perecera num naufrágio ocorrido, presume-se, ao largo da foz do rio Mekong, o soneto tem como sujeito um homem, o poeta Camões, porque sabemos que foi ele o autor. No entanto, o sexo ou género do sujeito (o mesmo acontecendo com o do objecto) não está inequivocamente expresso nos versos, pelo que podem ser apropriados, com toda a legitimidade, por uma mulher para evocar um saudoso ente querido, trate-se ele de homem, mulher ou transgénero.
Já aqui apresentámos este admirável soneto por duas vozes masculinas – João Villaret [cf. Camões recitado e cantado] e Luís Cília [cf. Camões recitado e cantado (V)] – e por uma feminina – Amália Rodrigues [cf. Camões recitado e cantado (II)]. Nesta revisitação que lhe fazemos, em exclusivo, todas as vozes (três) são femininas – Carmen Dolores, Simone de Oliveira e Elsa Saque – e em abordagens muito distintas entre si: a primeira, recitada; a segunda, cantada em linguagem de fado (sobre melodia de Alfredo Marceneiro); e a terceira, cantada em registo lírico (com música de Fernando Lopes-Graça). Dedicamos esta singela celebração camoniana a todas as pessoas que já passaram pela desoladora experiência de ver partir uma "alma gentil".

A Antena 1, neste 10 de Junho, voltou a olhar para a obra do nosso Poeta maior como um cão quando passa por vinha vindimada. Quer dizer: ignorou-a, pura e simplesmente. Perguntamos: daria assim tanto trabalho pegar em quinze poemas de Camões, uns recitados e outros cantados, e difundi-los ao longo do dia, ao ritmo de um por hora? E era também muito complicado reprogramar a 'playlist', de modo a que oferta musical fosse somente cantada em português? Lamentavelmente, a inércia e o desleixo sobrepuseram-se, uma vez mais, ao dever de prestar serviço público. Vergonhoso!



Alma minha gentil, que te partiste



Poema (soneto) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 9)
Recitado por Carmen Dolores* (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003)


Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida, descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na Terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.


* Carmen Dolores – voz
Produção – Dito e Feito
Gravado nos Estúdios Goya, Lisboa, em Dezembro de 2002
URL: http://cvc.instituto-camoes.pt/teatro-em-portugal-pessoas/carmen-dolores-dp6.html
https://visao.pt/jornaldeletras/2021-02-19-a-autobiografia-de-carmen-dolores/
https://espalhafactos.com/2014/12/30/boca-de-cena-4-carmen-dolores/
https://revistas.rcaap.pt/sdc/article/view/12691/9790
https://www.dn.pt/cultura/gostava-de-ter-feito-revista-mas-nunca-me-convidaram-8707527.html/
https://antena2.rtp.pt/em-antena/cultura/carmen-dolores/
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/entrevista-a-carmen-dolores-3/
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/entrevista-a-carmen-dolores/
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/search?query=carmen+dolores



Alma Minha Gentil, que te Partiste



Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 9)
Música: Alfredo Duarte "Marceneiro" (Fado CUF)
Intérprete: Simone de Oliveira* (in LP "Mulher, Guitarra", Philips/Poygram, 1984, reed. Universal, 2003)




Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida, descontente,
repousa lá no Céu eternamente,      | bis
e viva eu cá na Terra sempre triste. |

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente  | bis
que já nos olhos meus tão puro viste.    |

E se vires que pode merecer-te
alguma coisa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.


* Simone de Oliveira – voz
Martinho da Assunção – viola
Vital da Assunção – viola
Arménio de Melo – guitarra portuguesa
Fernando Correia Martins – viola baixo

Arranjos e direcção musical – Martinho da Assunção
Produção – Carlos do Carmo
Gravado no Angel Studio 1, Lisboa, em Outubro de 1983, por Rui Novais
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Simone_de_Oliveira
https://giradiscos.me/2019/09/28/a-discografia-de-simone-de-oliveira/
https://www.youtube.com/channel/UC8_4OqfgRzWxv-dbOZTqWlg



Alma minha gentil, que te partiste



Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 9)
Música: Fernando Lopes-Graça (2.ª peça de "Três Sonetos de Camões", Op. 27, LG 168, 1939)
Intérpretes: Elsa Saque* & Nuno Vieira de Almeida (in 2CD "Fernando Lopes-Graça e os Poetas": CD 1, Tradisom, 2006)




Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida, descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na Terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.


* Elsa Saque – voz (soprano)
Nuno Vieira de Almeida – piano

Assistente musical – Fernando Serafim
Supervisão artística – Nuno Vieira de Almeida
Técnico de piano – Manuel Patrão
Coordenação executiva – José Moças / Tradisom
Gravado no Salão do Conservatório Nacional de Lisboa, nos dias 2 a 6 de Junho de 2006
Técnico de gravação – José Fortes
Edição e masterização – José Fortes
URL: https://www.facebook.com/Elsa-Saque-Soprano-553289944782411/
https://www.meloteca.com/portfolio-item/elsa-saque/
https://www.youtube.com/channel/UCIWY-MNsP3G6In7yu4rgCdg
https://www.youtube.com/channel/UCuafekhGZb5t_8H6n-a1U8A



Capa do CD "Poemas da Minha Vida", de Carmen Dolores (Dito e Feito, 2003)
Design gráfico – João Nuno Represas



Capa do LP "Mulher, Guitarra", de Simone de Oliveira (Philips/Poygram, 1984)
Fotografia – Chico Graça



Capa do duplo CD "Fernando Lopes-Graça e os Poetas", de Elsa Saque & Nuno Vieira de Almeida (Tradisom, 2006)
Design e concepção gráfica – Henrique Silva ('Bibito')
Fotografias – Inácio Ludgero

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Outros artigos com poesia de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
Camões recitado e cantado (IV)
Camões recitado e cantado (V)
Camões recitado e cantado (VI)

10 junho 2020

Camões recitado e cantado (VI)


Estátua de Luís de Camões, em bronze, sita na praça com o mesmo nome, em Lisboa. Concebida pelo escultor Victor Bastos, foi inaugurada pelo rei D. Luís, a 9 de Outubro de 1867.


Se alguém tomasse a iniciativa de fazer um inquérito de rua em Portugal, pedindo aos transeuntes que dissessem o primeiro verso que lhes viesse à cabeça, os dois mais citados seriam muito provavelmente os camonianos «As armas e os barões assinalados» e «Amor é (um) fogo que arde sem se ver». O soneto cujo incipit é este verso já foi apresentado neste blogue, recitado por João Villaret [cf. Camões recitado e cantado] e por Eunice Munõz [cf. Camões recitado e cantado (II)], mas a estância primeira d' "Os Lusíadas" ainda não. Surgiu hoje a oportunidade de colmatarmos essa lacuna e de celebrarmos as primeiras estrofes da Proposição do monumental poema épico, mediante a apresentação de três registos: o primeiro recitado (por Afonso Dias), o segundo cantado (por António Pinto Basto, com música de José Cid) e o terceiro também cantado (por José Mário Branco, com música dele próprio e uma melodia popular). No último, o saudoso cantautor não se restringe ao cultivo da poesia do genial vate, antes utiliza-a como o mais elevado referencial da literatura de língua portuguesa e o ponto de partida para denunciar a tresloucada 'reforma' ortográfica que em meados dos anos 80 se estava a cozinhar e que estipulava a abolição total dos acentos gráficos. Os mixordeiros e os politiqueiros da língua recuaram nesse ponto, em parte, mas não desistiram de aprovar a bo(u)rrada que é o AO90, cujos efeitos perniciosos são hoje bem notórios em Portugal, não só na escrita como na pronúncia de muitas palavras. «As palavras estão em crise», como bem assertivamente escreveu e cantou José Mário Branco, pelo que a inclusão da sua "Arrocachula" nesta celebração camoniana se afigura inteiramente pertinente.

Apesar do incómodo e do desconforto, andámos hoje com a Antena 1 'debaixo de ouvido'. Em primeiro lugar, registamos com agrado o surgimento – finalmente! – de um apontamento de poesia, chamado "Palavra de Ordem" [>> RTP-Play]: tivemos o ensejo de ouvir, em momentos diferentes, um poema de Eugénio de Andrade, dito por Beatriz Batarda, e outro de Alexandre O'Neill, na voz de Rui Morisson. E também nos foi grato notar a ausência, na 'playlist', do corriqueiro lixo sonoro anglo-saxão (mau grado subsistir ainda muita escória endógena), mas duvidamos que tal situação seja para durar. O que nos deixou assaz desgostosos foi não nos 'sair na rifa' um naco, por pequeno que fosse, da poesia de Camões, na forma cantada ou recitada. Como é possível tal desconsideração àquele que mais alto alevantou a Língua Portuguesa, no dia que o País escolheu para o celebrar, pela rádio do próprio Estado?



Os Lusíadas: Canto I (estrofes 1.ª e 2.ª)



Versos de Luís de Camões (in "Os Lusíadas", Lisboa, 1572; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 1121)
Recitados por Afonso Dias* (in CD "Cantando Espalharey: Vol. I", Edere, 2001)


As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.


* Afonso Dias – voz
Pesquisa e produção – Afonso Dias e André Dias
Gravado no Estúdio InforArte, Chinicato, Lagos
Técnicos de som – Fernando Guerreiro e Joaquim Guerreiro



As Armas e os Barões Assinalados



Versos: Luís de Camões (estrofes 1.ª, 2.ª, 3.ª e 6.ª do Canto I d' "Os Lusíadas", Lisboa, 1572; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 1121-1122) [texto integral em "Jornal de Poesia"]
Música: José Cid
Intérprete: António Pinto Basto (in LP/CD "Camões, as Descobertas... e Nós", de José Cid* e Amigos, Mercury/Polygram, 1992)




As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
E em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

E vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade,
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
(Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Pera do mundo a Deus dar parte grande);

As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana...


* António Pinto Basto – voz
Músicos participantes:
Pedro Caldeira Cabral – guitarra portuguesa
Francisco Martins – viola de 12 cordas solo baixo
Francisco Cardoso – bateria e percussões
José Cid – sintetizadores, cítara indiana e coros
João Veiga – viola acústica
José Luís Nobre Costa – guitarra portuguesa

Arranjos e produção – José Cid
Gravado e misturado em casa de José Cid, Mogofores, Anadia
Engenheiros de som – Vítor Moreira e Jorge Barata
Montagem digital – Jorge Hipólito



Arrocachula



Versos: Luís de Camões (1.ª estrofe d' "Os Lusíadas") e José Mário Branco
Música: José Mário Branco e Popular
Intérprete: José Mário Branco* (in LP "A Noite", de José Mário Branco, UPAV, 1985, reed. Schiu!/Transmédia, 1987, EMI-VC, 1996, Warner Music Portugal, 2017)




As armas e os barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram.
[bis]

[instrumental]

O problema é que agora já conheçu
Todas as regrâs
Do novo jogu

E verdade verdadinhâ
Já não é fácil
Ser-se musicu

São as mesmíssimas palavrâs
Só os assentus
É que mudarão

O agudo é exdruxulu
E o exdruxulu
Agora é gra

Ai, as palavras estão em crise
E não é só pelo que elas querem dizer [bis]
Ai, as palavras têm raízes
Que começam no som que eles estão a perder [bis]

La larai laraio
La larai laraio
La larai laraio

[instrumental]

Arrocachula, arrocachula
Arrocachula na espinal-medula
[10x]

[instrumental]

O problema é que agora já conheçu
Todas as regrâs
Do novo jogu

E verdade verdadinhâ
Já não é fácil
Ser-se musicu

São as mesmíssimas palavrâs
Só os assentus
É que mudarão

O agudo é exdruxulu
E o exdruxulu
Agora é gra

Não faz sentido que as palavras
Percam música na música que aparecer [bis]
Ai, o sentido que é perdido
É o ouvido que as palavras estão a perder [bis]

La larai laraio
La larai laraio
La larai laraio

[instrumental / coro]


* Viola eléctrica – Rui Veloso
Viola "raspada" e voz – José Mário Branco
Roland JX-8P – António Emiliano
Bateria – Henry Sousa
Baixo – Paulo Jorge
Trompete – Tomás Pimentel
Saxofone tenor – Rui Cardoso
Trombone – José Oliveira
Clarinete – Artur Moreira
Pífaro – José Pedro Calado
Violino "rabecado" – Luís Cunha
Viola acústica, viola braguesa e cavaquinhos – Júlio Pereira
Bombos e caixas – Rui Júnior e José Mário Branco
Ferrinhos – Rui Júnior
Coro – Formiga, Isabel Campelo, Madalena Leal, Graça e Necas Moreira, Rui Vaz e Gustavo Sequeira
Coro do refrão – Rui Veloso e José Mário Branco
Arranjo de metais – Tomás Pimentel e José Mário Branco

Arranjos e direcção musical – José Mário Branco
Produção artística – Manuela de Freitas, José Manuel Fortes, Trindade Santos e José Mário Branco
Produção executiva – Carlos Batista
Gravado no Angel Studio II, Lisboa, de 8 a 22 de Abril de 1985
Captação de som – José Manuel Fortes
Misturas – José Manuel Fortes e José Mário Branco
Transferência e remasterização para CD (edição de 1996) – José Manuel Fortes



Frontispício da 1.ª edição d' "Os Lusíadas", de Luís de Camões (Impressos em Lisboa: em casa de Antonio Gõçaluez Impressor, 1572)



Capa do CD "Cantando Espalharey: Vol. I", de Afonso Dias (Edere, 2001)
Concepção – Tiago Silva



Capa do CD "Camões, as Descobertas... e Nós", de José Cid e Amigos (Mercury/Polygram, 1992)
Ilustração – Miguel Levy
Design – Álvaro Reis



Capa do LP "A Noite", de José Mário Branco (UPAV, 1985)
Fotografia – Luiz Carvalho
Concepção – Artur Henriques

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Outros artigos com poesia de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
Camões recitado e cantado (IV)
Camões recitado e cantado (V)

25 abril 2024

José Mário Branco: "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades"


«Esta ilustração foi publicada na capa do "Diário de Notícias", no aniversário da Revolução dos Cravos de 2020, quando vigorava o confinamento nacional por causa da COVID-19. As pessoas foram convidadas a recortar o desenho e a colá-lo nas janelas ou noutras superfícies à sua escolha. Como o desenho se tornou algo viral e as pessoas pareciam gostar dele, contactei a Galeria de Arte Urbana de Lisboa (GAU), instituição que gere a arte pública na cidade, e propus doar a imagem, para ser transformada em mural. Foi facultado um muro perto da entrada leste da movimentada estação ferroviária de Sete Rios. O artista de rua Raps aceitou o desafio de pintá-lo e eu fiquei muito satisfeito com o resultado. Quando se fazia a pintura, as pessoas paravam e agradeciam-nos. Um senhor mais velho disse que o seu dia terminaria com um sorriso. Era tudo o que precisávamos de ouvir.» [André Carrilho, in https://andrecarrilho.myportfolio.com/].


O regime ditatorial que vigorou em Portugal entre 28 de Maio de 1926 e 25 de Abril de 1974 teve, no início, mau grado a resistência dos republicanos, dos anarquistas e dos comunistas, um substancial apoio popular por ter posto termo à continuada instabilidade política e social que caracterizou a Primeira República, sobretudo depois da traumatizante participação na Primeira Grande Guerra. O salazarismo que até teve a virtude, se assim nos é permitido afirmar, de manter o país fora da colossal hecatombe que foi a Segunda Guerra Mundial, ainda que sem evitar o feroz racionamento dos bens de primeira necessidade que afectou sobretudo os mais desfavorecidos, viu crescer a contestação no pós-guerra, em resultado da repressão e da perseguição a quem pugnava por eleições livres («tão livres como na livre Inglaterra», conforme havia anunciado, hipocritamente, Salazar) – contestação essa que se acentuou e alastrou consideravelmente a partir das fraudulentas eleições presidenciais de 1958. A perda do Estado Português da Índia, invadido pelas tropas de Nehru, a 18 de Dezembro de 1961, e a exauriente (de vidas humanas e de recursos económicos) Guerra Colonial em África acabariam por levar o regime, que assentava numa ideologia arreigadamente colonialista, a um beco sem saída. O Estado Novo era, na década de 1960 e nos inícios da seguinte, um anacronismo histórico. Os tempos haviam mudado e a vontade de mudança também cresceu na sociedade, mas o regime continuava, cegamente, a trilhar o caminho que inevitavelmente iria conduzir ao seu fim. E o fim aconteceu quando, inicialmente motivado por uma questão corporativa ligada precisamente à Guerra Colonial, um movimento militar protagonizado por oficiais intermédios (capitães, na sua maioria), seguindo um plano proficientemente gizado pelo major Otelo Saraiva de Carvalho, foi levado a cabo, com sucesso, no dia 25 de Abril de 1974. Nesse sucesso foi fundamental a adesão do povo que, apesar das recomendações assinadas pelo denominado Movimento das Forças Armadas comunicadas, via rádio, de se recolher em casa, veio para a rua em apoio aos militares libertadores e dando largas à sua incontida e esfuziante alegria. O golpe militar transformou-se assim em Revolução, a Revolução dos Cravos, que alguns observadores estrangeiros consideraram a primeira revolução política romântica, apesar de algum sangue ter sido derramado (as cinco mortes ocorridas na Rua António Maria Cardoso – quatro civis criminosamente alvejados, a metralhadora, pela PIDE/DGS, e um agente de baixa categoria daquela polícia torcionária baleado pelas costas, por um militar, quando tentava fugir). Estava derrubada a mais velha e caquéctica ditadura da Europa Ocidental no século XX, e aberto o caminho para a concretização das legítimas aspirações do povo português à liberdade, à paz e à justiça social. Volvidos cinquenta anos é precisamente na justiça social – outro nome para a igualdade e a fraternidade que, não por acaso, José Afonso menciona na "Grândola" – que a Revolução de Abril ainda está por cumprir. No que concerne à distribuição da riqueza, por exemplo, têm sido significativos os retrocessos em relação ao que se havia alcançado após o derrube do Estado Novo. É verdade que há meio século a vida da generalidade da população era ainda pior do que hoje, mas tal argumento não colhe junto daqueles que não possuem a memória viva/vivida do tempo da ditadura. O termo de comparação que têm – e inteiramente legítimo, de resto – é o da realidade dos países mais desenvolvidos, onde muitos procuram (e encontram) as condições de vida e dignidade que o seu país lhes nega. E não é de estranhar que um avultado número (centenas de milhares) desses esquecidos e injustiçados pela democracia acabem por ser receptivos às promessas higienizantes e salvíficas apresentadas por forças partidárias que denunciam – não raramente com razão – as iniquidades prevalecentes no sistema vigente, o qual resiste em debelar, quiçá por ter sido capturado por interesses instalados que tudo fazem para se manterem incólumes e, se possível, até incrementarem a sua situação de privilégio à custa do bem-comum. Seria avisado que os agentes políticos que se arrogam de democráticos (afinal, sempre foram eleitos em sufrágio livre e universal, não é verdade?, apesar da elevada abstenção e dos votos brancos e nulos), mas cuja praxis, na realidade, mina os alicerces da democracia ao protegerem (e até favorecerem) os interesses de uma casta de privilegiados, em prejuízo de muitos, atentassem nas sábias e lapidares palavras que Camões grafou no soneto "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades". Há cinquenta anos, a ditadura caiu porque as vontades mudaram, mas nada nos garante que o pretensamente melhor de todos os regimes políticos conhecidos resista, a médio prazo, às novas vontades de mudança geradas por insatisfação e desconfiança. Os tempos que aí vêm prenunciam-se sombrios para as democracias e só as que forem efectivamente democráticas, ou seja, as denodadamente empenhadas na promoção do bem-estar do povo, não serão (grandemente) molestadas.
Aqui fica, pois, o referido poema de Camões, admiravelmente adaptado e interpretado por José Mário Branco, esperando que a sua mensagem seja tomada em devida conta por aqueles que têm responsabilidades acrescidas em zelar pela saúde da democracia, a fim de que ela consiga resistir (melhor) às investidas de agentes adversos. Oxalá!

Na Antena 1, tem sido possível ouvir, por estes dias, canções de José Mário Branco e de outros categorizados cantautores portugueses. Suspeitamos que seja sol de pouca dura e que as respectivas discografias não demorem a ser metidas na gaveta dos intocáveis por quem gere a 'playlist'...



Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades



Poema: Luís de Camões (adaptado) [texto original >> abaixo]
Adaptação e refrão: José Mário Branco
Música: Jean Sommer
Intérprete: José Mário Branco* (in LP "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", Guilda da Música/Sassetti, 1971, reed. UPAV, 1991, EMI-VC, 1996, Parlophone/Warner Music Portugal, 2018)




[instrumental]

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre...
tomando sempre novas qualidades.

      E se todo o mundo é composto de mudança,
      troquemos-lhe as voltas,
      que inda o dia é uma criança!


[instrumental]

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem...
e do bem, se algum houve, as saudades.

      E se todo o mundo é composto de mudança,
      troquemos-lhe as voltas,
      que inda o dia é uma criança!


[instrumental]

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, em mim, converte em choro o doce canto.
e, em mim, converte...
e, em mim, converte em choro o doce canto.

      E se todo o mundo é composto de mudança,
      troquemos-lhe as voltas,
      que inda o dia é uma criança!


[instrumental]

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.
que não se muda...
que não se muda já como soía,

      E se todo o mundo é composto de mudança,
      troquemos-lhe as voltas,
      que inda o dia é uma criança!


[instrumental]


Nota: «A ideia para esta canção surgiu quando José Mário Branco, durante o seu tempo de exílio em França, releu o soneto "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", de Luís de Camões. Nessa ocasião, pediu ao seu amigo e músico Jean Sommer para utilizar a música de uma canção sua, "La Nouvelle Génération", e assim surgiu a canção "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", à qual foi apenas acrescentado o refrão "E se todo o mundo é composto de mudança/ troquemos-lhe as voltas, que inda o dia é uma criança."» [in https://arquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/].

* José Mário Branco – voz solo, viola acústica de base, e coros
Jean Sommer – viola
Willy Lockwoode – contrabaixo
Daniel Lalloux – timbales e pratos
Jacqueline Ritchie – flauta de bisel
Sérgio Godinho – coros
Jorge Constante Pereira – piano

Arranjos e direcção musical – José Mário Branco
Gravado no Strawberry Studio, de Michel Magne, em Château d'Hérouville (França), em Fevereiro de 1971
Engenheiro de som – Gilles Sallé
Masterização digital (edição de 1996) – José Fortes
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_M%C3%A1rio_Branco
https://arquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/
https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/posts/725849500857765/
https://expresso.pt/cultura/2019-11-19-O-momento-antes-de-disparar-a-seta-a-entrevista-de-Jose-Mario-Branco
https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/jose-mario-branco-a-eterna-inquietacao
https://www.nit.pt/cultura/musica/morte-lenda-momentos-marcantes-vida-jose-mario-branco
https://www.esquerda.net/topics/dossier-303-jose-mario-branco-voz-da-inquietacao
https://www.publico.pt/jose-mario-branco
https://www.youtube.com/channel/UChQPBSV5W6kL-jw1Tp08g_w
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=jose+mario+branco



Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

(Luís de Camões, in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 29)


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, em mim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.


Notas:
qualidades – aspectos;
soía – costumava.



Capa do LP "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", de José Mário Branco (Guilda da Música/Sassetti, 1971)
Concepção – José Rodrigues

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Outros artigos com canções ou poemas alusivos à Revolução dos Cravos ou à Liberdade:
Contrabando: "Verdade ou Mentira?"
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde": "Grândola, Vila Morena"
Miguel Torga: "Flor da Liberdade"
Natália Correia: "Rascunho de uma Epístola", por Ilda Feteira
Carlos do Carmo: "O Madrugar de um Sonho"
Amália Rodrigues: "Abril" (Manuel Alegre)
Manuel Alegre: "País de Abril", por Mário Viegas
Manuel Freire: "Livre" (Carlos de Oliveira)
Vitorino: "O Capitão dos Tanques"
Teresa Salgueiro: "Liberdade"

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Outros artigos com repertório interpretado por José Mário Branco ou da sua autoria:
A infância e a música portuguesa
Celebrando Natália Correia
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
José Mário Branco: "Zeca (Carta a José Afonso)"
Gina Branco: "Cantiga do Leite" (José Mário Branco)
Camões recitado e cantado (VI)
José Mário Branco: "Do Que um Homem É Capaz"

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Outros artigos com poesia e/ou teatro de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
Camões recitado e cantado (IV)
Camões recitado e cantado (V)
Camões recitado e cantado (VI)
Camões recitado e cantado (VII)
Camões recitado e cantado (VIII)
Camões recitado e cantado (IX)
Luís de Camões: "Os Lusíadas" (dois excertos), por Carlos Wallenstein
Luís Cília: "Se me Levam Águas" (Luís de Camões)
Teatro camoniano em versão radiofónica
Camões por Carmen Dolores

27 novembro 2024

Camões musicado por Fernando Lopes-Graça (obras corais 'a cappella')




Obras corais a cappella de Fernando Lopes-Graça

Por: Sérgio Azevedo (compositor e docente)



Tivesse Fernando Lopes-Graça escolhido as belas letras, ao invés da música, e teria decerto feito igual e brilhante carreira: foi jornalista (fundou o jornal A Acção, em Tomar), crítico (de música, cinema, teatro e bailado) tradutor (de Rousseau, Thomas Mann, Romain Rolland, Andor Foldes e outros), musicólogo, ensaísta, e pedagogo, e em todas estas diferentes facetas fez original e esmerado uso da língua-mãe. Homem cultíssimo, colabora com Tomás Borba no Dicionário de Música, que revê e amplia, e corresponde-se com Vianna da Motta e outras doutas personalidades do mundo português de então, e a sua obra epistolar demonstra, de igual modo, o cuidado e amor por aquela que, como diria Fernando Pessoa, era também — para além da música, sua religião — a sua pátria: a língua portuguesa.
E é a língua portuguesa, e os tratos de polé que esta sofre às mãos de músicos de escassa formação musical e literária, como Ruy Coelho) que mais preocupa Lopes-Graça quando este se debruça sobre o problema de como compor música sobre textos portugueses. A prosódia difícil da nossa língua impele-o a reflectir sobre a melhor maneira de solucionar os diversos obstáculos que o português apresenta. Parte da solução encontra-se nas melodias populares portuguesas, com a sua imaginação prosódica e as suas aliterações e assonâncias irregulares mas belas. Pois Lopes-Graça procura, não a perfeição pedante de uma prosódia académica, correcta e fria, mas a naturalidade, humor e calor humano da prosódia que o povo, na sua ingenuidade, inventa, infalivelmente correcta de um ponto de vista artístico, senão mesmo perfeita nos contextos em que é usada. E se Lopes-Graça não vai buscar exemplos demasiado concretos à prosódia de um Stravinski, de um Janacek ou de um Bartók, tal deve-se apenas ao facto de cada língua ser única, e o que vale para uma, torna-se inútil noutra.
Mas ouçamos o compositor (in A Música Portuguesa e os Seus Problemas II, ed. Cosmos, 1976, artigo "A língua portuguesa e a música", pp. 54-56):

«...A acentuação multiforme do português, as subtilezas de quantidade silábica que apresenta, a sua enervante desarticulação (que grande escritor espanhol disse ser o português uma espécie de "castelhano sem osso"?), o característico smorzando das suas terminações — tudo isto são aspectos notáveis do idioma a que se me afigura não ter a generalidade dos nossos músicos prestado a devida atenção, nem haverem cabalmente enformado por enquanto a prosódia das suas produções vocais...»

«...É certo que a canção popular não pode servir de modelo, de paradigma prosódico, para a canção culta; mas não seria mau que esta por vezes aceitasse os "ilogismos" da prosódia que aquela amiúde apresenta, verdadeiros achados que só aparentemente são deslizes ou incorrecções devidos à incultura e ao simplismo do povo, o qual nisso, como em tantas outras coisas, revela com frequência verdadeira sensibilidade e gosto artístico.
Uma prosódia disciplinada e esteticamente eficiente é condição indispensável para que os próprios cantores se sintam à vontade na interpretação de um texto poético-musical; ela é um adjuvante técnico que lhes facilita não só o trabalho de respiração e articulação, como a tarefa de dar ao desenho melódico a necessária clareza...»

Também, pelo que atrás foi dito, se pode esperar da produção vocal e coral de Fernando Lopes-Graça, não só a prosódia (exceptuando-se, naturalmente, as harmonizações de melodias populares, já prosodiadas pelos músicos populares, que as criaram), mas também, e dadas as dimensões enormes desta produção (163 opus, só ultrapassados pelas quase 300 peças individuais para piano solo), a magnífica mundividência no que toca à escolha dos poetas e escritores: simplesmente, quase não existe nome grande da nossa história literária, antiga e recente, que Lopes-Graça não tenha posto em música.
Ouvir as canções para canto e piano, e as obras corais, com ou sem instrumentos, é conhecer a quase totalidade da melhor poesia portuguesa de seis séculos, incluindo a destinada às crianças: Gil Vicente, Luís Vaz de Camões, Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner Andresen, Matilde Rosa Araújo, José Gomes Ferreira, Gomes Leal, António Nobre, João José Cochofel, Eugénio de Andrade, Afonso Duarte, António Botto, Fernando Pessoa, Antero de Quental, Adolfo Casais Monteiro, José Régio, Carlos Queiroz, Carlos de Oliveira, Teixeira de Pascoaes, Raul Brandão, Bernardim Ribeiro, Aquilino Ribeiro, Bocage, Florbela Espanca, Ivo Machado, José Saramago, Camilo Pessanha, Fiama Hasse Pais Brandão, Sá de Miranda, Vitorino Nemésio, Almeida Garrett, Mário Cesariny de Vasconcelos, António Nobre, Guerra Junqueiro, Eugénio de Castro... enfim, a lista ainda continua. Destes, Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade e Luís Vaz de Camões ganharam emérito destaque, pela quantidade e qualidade dos ciclos que lhes foram dedicados.
Mas, se as obras para canto e piano (o lied) padecem, pela sua carga histórica, de uma costela mais aristocrática e intimista (mesmo quando se trata de simples harmonizações do folclore de vários países), já as obras para coro a cappella (como as 228 canções dos 24 cadernos das Regionais), ou coro e instrumentos (como os 8 volumes das Heróicas), maioritariamente baseadas em melodias populares portuguesas e respectivos textos, e destinadas em grande parte, a corais amadores que pululavam (e pululam, felizmente!) nas colectividades e terreolas por este país fora, representam a proximidade com o povo. Não o povo idílico e imaginado à distância por realezas arcádicas e burguesias entediadas, mas o povo real, de carne e osso, a cheirar ao suor honesto de quem trabalhou arduamente a jorna de sol a sol.
É para este povo que canta, e gosta de ouvir cantar, que Lopes-Graça escreve o enorme corpus de obras para coro a cappella, e é à frente de inúmeros grupos corais amadores (com estaque, e claro, para o Coro da Academia dos Amadores de Música, coro que, renovado, ainda labuta, sob a direcção competentíssima do maestro José Robert) que leva a sua música para o Alentejo, o Minho, o Algarve, para Trás-os-Montes, as Beiras e a Estremadura. São ainda as Heróicas que os detidos, políticos e não só, entoam em segredo nas prisões infectas do Aljube, de Alpiarça, Peniche, Caxias, e até no Tarrafal cabo-verdiano. Os coros serão, para Lopes-Graça, o meio de contacto com a realidade musical, a sua sobrevivência como artista numa altura em que a maior parte da sua música de concerto está proibida; uma verdadeira filosofia artística, de vida, e de cidadania, que Lopes-Graça coloca ao serviço da cultura do seu povo.
Também a poesia espanhola (país a cuja música tanto ficou a dever) tentou Lopes-Graça: António Machado e Lorca, e a poesia e música dos judeus sefarditas (judeus de origem espanhola, expulsos pelos Reis Católicos em diáspora para o Oriente), embora no campo da poesia estrangeira (exceptuando-se, para além destes dois nomes, os vários ciclos de melodias populares de vários países, como a França, Inglaterra, Brasil, Grécia, Rússia, Checoslováquia, Hungria) o compositor se tenha limitado a Ronsard e a Tagore, o que seria de esperar, se atentarmos na riqueza inesgotável da poesia portuguesa, horizonte por demasiado vasto, nem sequer ao alcance das forças criativas ciclópicas de um Fernando Lopes-Graça.
A experiência continuada de Lopes-Graça como compositor e regente coral fez com que o seu conhecimento das possibilidades da voz humana, sozinha e em conjunto, se tornasse absoluto. Nunca propriamente "fáceis" de cantar, as obras corais de Lopes-Graça para coros amadores estão porém ao alcance de quem as queira trabalhar com seriedade. Nem simplismos, nem complicações impossíveis, mas simplicidade com constante desafio. Já as obras mais exigentes têm de ser interpretadas por coros com maior nível de preparação, sem que possam ser consideradas impossíveis. Talvez seja esse cuidado e erudição do compositor, no que toca à voz, que faz com que a maior parte, senão todas as obras corais de Lopes-Graça (incluindo o monumental e difícil Requiem), tenha vindo a ser cantada, e bem, por bons agrupamentos amadores, sendo o Coro Gulbenkian uma excepção, por se tratar de um grupo profissional, no qual todos os membros detêm amplos conhecimentos musicais (do solfejo à teoria), e cantam regularmente as maiores obras do repertório coral e coral sinfónico internacional.
Todas as questões, relativas à prosódia, à vocalidade, à beleza dos textos e ao uso das lições do folclore, e a maneira como Lopes-Graça as resolveu, são notórias nas obras escolhidas para este CD, com uma excepção: não foram cantadas peças baseadas em melodias populares, mas unicamente obras originais, quer sobre textos tradicionais — em português e castelhano — quer sobre textos de poetas portugueses. Também a dificuldade e complexidade de quase todas as colocam longe do alcance de um coro amador.
[...]
As Quatro Redondilhas de Camões, escritas entre 1951 e 1953, para a combinação de vozes femininas a 4 partes (SSAA), mostram, uma vez mais, a excelsa mestria de Lopes-Graça no tratamento do coro, e a influência comovida dos compositores portugueses e espanhóis de Quinhentos e Seiscentos.
A redondilha é o nome dado, desde o século XVI às estrofes com versos de cinco ou sete sílabas, respectivamente "redondilha menor" e "redondilha maior". Esta forma — de origem castelhana — foi muito usada pelos poetas que integram o Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, e, claro, por Camões. Começa, normalmente, por um mote, que é depois desenvolvido ou glosado.
Com o seu uso exclusivo das vozes femininas, as Quatro Redondilhas fazem um contraste (propositado) com as Canções de Marinheiros, estas escritas unicamente para vozes masculinas. A última das redondilhas, Verdes são os campos, é um dos poemas mais conhecidos da lírica de Camões. Claramente influenciada por Dante e Petrarca, é esta caracterizada por um bucolismo generoso e um neoplatonismo por vezes pessimista. A lírica camoniana, aliás, foca quase sempre o amor, os desenganos e desconcertos do mundo, e a mudança inexorável que a passagem do tempo provoca em tudo o que ao Homem e à Natureza diz respeito.
[...]
As Três Líricas Castelhanas de Camões, compostas entre 1954 e 1955, para coro misto SATB [soprano, alto/contralto, tenor, baixo], integram-se, mais uma vez, nas peças corais de Lopes-Graça que mostram a influência da antiga música portuguesa, com as suas cadências ornamentadas e os seus acordes puros, sem a terceira. As secções solistas de De vuestros ojos centellas (a peça mais curta e rápida, que lembra os ligeiros vilancicos) emulam mesmo os pregões do Retablo de Maese Pedro, de Falla, proximidade natural, dada a afinidade destes textos com o universo espanhol.
[...]

[Texto respigado do caderno do álbum "Fernando Lopes-Graça: Música Coral", do Coro Gulbenkian, dir. Jorge Matta, PortugalSom/Numérica, 2008]


Estando em curso as comemorações do quinquicentenário do nascimento de Luís de Camões, que foi um dos três poetas eruditos que Fernando Lopes-Graça mais musicou (os outros dois foram Fernando Pessoa e Eugénio de Andrade), o trintenário da morte do ilustre compositor, que hoje se assinala, afigurou-se-nos um óptimo pretexto para uma celebração conjunta. Ora, como já apresentámos os sonetos (Op. 27 / Op. 112 / Op. 215 / Op. 231), cantados pelo tenor Fernando Serafim, acompanhado ao piano por Filipe de Sousa, na série "Camões recitado e cantado", achámos por bem focarmo-nos, na presente ocasião, em obras corais a cappella, mais concretamente nas "Quatro Redondilhas", Op. 76, pelo Coro Gulbenkian, sob a regência de Jorge Matta, e nas "Três Líricas Castelhanas", Op. 96, pelo Coro de Câmara de Lisboa, dirigido por Teresita Gutierrez Marques. Sete trechos da lapidar poesia de Camões admiravelmente servida pela primorosa música de Lopes-Graça que não podem deixar de encantar quem cultiva a música coral e susceptíveis de cativar os ouvidos menos habituados a este género de repertório. Boa audição!

Na actual grelha da Antena 2 há uma chusma de rubricas e rubriquinhas, boa parte das quais de reduzida ou ínfima relevância cultural (algumas delas mais não são que enxúndias para entorpecer os neurónios), mas não existe uma – uma sequer – consagrada à canção erudita portuguesa, seja por intérpretes solistas seja por coros, que é um património vasto e substancialmente rico (e não fosse Portugal um país de grandes poetas e de inspirados compositores que muito os dignificaram!). Só a produção de Fernando Lopes-Graça nesse domínio, abarcando o avultado acervo das suas hamonizações de canções regionais, daria para manter uma rubrica, com periodicidade de segunda a sexta-feira, durante mais de um ano. E este ano do trintenário da morte, bem poderia ser o do início dessa tão necessária rubrica. Assim a direcção de programas da Antena 2 tenha a clarividência de agir em conformidade.

E na presente data, o que fez o canal mais cultural da estação pública de rádio em memória de Fernando Lopes-Graça? Demo-nos conta de que no programa do início da manhã, Paulo Alves Guerra evocou o insigne compositor transmitindo algumas das suas peças, designadamente as "Variações sobre um Tema Popular Português", Op. 1, tocadas pelo pianista Artur Pizarro [>> YouTube Music]. No espaço do início da noite, "Baile de Máscaras", o seu animador, João Rodrigues Pedro, também teve o louvável cuidado de assinalar a efeméride, dando a ouvir duas secções ('Intermezzo' e 'Fandango') do "Divertimento", Op. 107, pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, sob a direcção de Bruno Borralhinho [>> YouTube Music]. Não acompanhámos os espaços musicais do final da manhã ("Boulevard") e da tarde ("Vibrato"), mas mesmo admitindo que neles foi possível ouvir algo da vastíssima obra de Fernando Lopes-Graça, mais podia e devia a Antena 2 fazer, no turno da noite, resgatando do arquivo histórico um documentário biográfico, e/ou um programa de autor sobre o compositor e/ou uma entrevista. Nada disso aconteceu, deploravelmente, e aí a responsabilidade é inteirinha da direcção de programas que, uma vez mais, pecou por omissão.



Se Helena apartar



Poema (vilancete em redondilha menor): Luís de Camões (in "Rimas", org. Estêvão Lopes, Lisboa, 1598; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – 806-807)
Música: Fernando Lopes-Graça (1.ª peça do ciclo "Quatro Redondilhas de Camões", Op. 76, LG 22, 1951-53)
Intérprete: Coro Gulbenkian*, dir. Jorge Matta (in CD "Fernando Lopes-Graça: Música Coral", PortugalSom/Numérica, 2008)


          MOTE

Se Helena apartar
do campo seus olhos,
nascerão abrolhos.

          VOLTAS

A verdura amena,
gados, que pasceis,
sabei que a deveis
aos olhos de Helena.
Os ventos serena,
faz flores de abrolhos
o ar de seus olhos.

Faz serras floridas,
faz claras as fontes:
se isto faz nos montes,
que fará nas vidas?
Trá-las suspendidas,
como ervas em molhos,
na luz dos seus olhos.

Os corações prende
com graça inumana;
de cada pestana
uma alma lhe pende.
Amor se lhe rende
e, posto em geolhos,
pasma nos seus olhos.


Notas:
abrolhos – plantas herbáceas, de fruto espinhoso, que crescem nos terrenos incultos da região mediterrânica;
pasceis – pastais;
inumana – sobre-humana, divina;
Amor – Eros/Cupido (deus do amor);
geolhos – joelhos.



Falso cavaleiro ingrato



Poema (cantiga em redondilha maior): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 777-778)
Música: Fernando Lopes-Graça (2.ª peça do ciclo "Quatro Redondilhas de Camões", Op. 76, LG 22, 1951-53)
Intérprete: Coro Gulbenkian*, dir. Jorge Matta (in CD "Fernando Lopes-Graça: Música Coral", PortugalSom/Numérica, 2008)


          CANTIGA VELHA

Falso cavaleiro ingrato,
            enganais-me;
vós dizeis que vos eu mato,
        e vós matais-me.

          VOLTAS

Costumadas artes são
para enganar inocências,
piadosas aparências
sobre isento coração.
Eu vos amo, e vós, ingrato,
              magoais-me,
dizendo que vos eu mato,
        e vós matais-me.

Vede agora qual de nós
anda mais perto do fim,
que a justiça faz-se em mim
e o pregão diz que sois vós.
Quando mais verdade trato,
              levantais-me
que vos desamo e vos mato,
        e vós matais-me.



Tende-me mão nele



Poema (vilancete em redondilha menor): Luís de Camões (in "Rimas", org. Estêvão Lopes, Lisboa, 1598; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 810-811)
Música: Fernando Lopes-Graça (3.ª peça do ciclo "Quatro Redondilhas de Camões", Op. 76, LG 22, 1951-53)
Intérprete: Coro Gulbenkian*, dir. Jorge Matta (in CD "Fernando Lopes-Graça: Música Coral", PortugalSom/Numérica, 2008)


          MOTE ALHEIO

Tende-me mão nele,
que um real me deve.

          VOLTAS

C'um real de amor
dous de confiança
e três de esperança
me foge o tredor.
Falso desamor
se encerra naquele
que um real me deve.

Pediu-mo emprestado,
não lhe quis penhor;
é mau pagador,
tendo-me aferrado.
C'um cordel atado
ao Tronco se leve,
que um real me deve.

Por esta travessa
se vai acolhendo;
ei-lo vai correndo,
fugindo a grã pressa.
Nesta mão e nessa
o falso se atreve,
que um real me deve.

Comprou-me amor
sem lhe fazer preço:
eu não lhe mereço
dar-me desfavor.
Dá-me tanta dor
que ando após ele
pelo que me deve.

Eu de cá bradando,
ele vai fugindo;
ele sempre rindo,
eu sempre chorando.
De quando em quando
no amor se atreve,
como que não deve.

A falar verdade,
ele já pagou;
mas inda ficou
devendo ametade.
Minha liberdade
é a que me deve;
só nela se atreve.



Verdes são os campos



Poema (cantiga em redondilha menor): Luís de Camões (in "Rimas", org. Estêvão Lopes, Lisboa, 1598; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 807-808)
Música: Fernando Lopes-Graça (4.ª peça do ciclo "Quatro Redondilhas de Camões", Op. 76, LG 22, 1951-53)
Intérprete: Coro Gulbenkian*, dir. Jorge Matta (in CD "Fernando Lopes-Graça: Música Coral", PortugalSom/Numérica, 2008)


          MOTE ALHEIO

Verdes são os campos,
de cor de limão:
assim são os olhos
do meu coração.

          VOLTAS

Campo, que te estendes
com verdura bela;
ovelhas, que nela
vosso pasto tendes,
de ervas vos mantendes
que traz o Verão,
e eu das lembranças
do meu coração.

Gados, que pasceis,
co contentamento,
vosso mantimento
não no entendeis:
isso que comeis
não são ervas, não:
são graças dos olhos
do meu coração.


* Coro Gulbenkian (naipes femininos):
Sopranos – Clara Coelho (solista em "Tende-me mão nele"), Graziela Lé (solista em "Tende-me mão nele"), Marisa Figueira (solista em "Tende-me mão nele"), Mónica Santos (solista em "Se Helena apartar"), Rosa Caldeira (solista em "Se Helena apartar" e "Verdes são os campos")
Susana Duarte (solista em "Verdes são os campos"), Teresa Azevedo, Verónica Silva
Contraltos – Catarina Saraiva, Inês Martins, Mafalda Borges Coelho, Manon Marques (solista em "Tende-me mão nele"), Michelle Rollin (solista em "Falso cavaleiro ingrato" e "Tende-me mão nele"), Patrícia Mendes (solista em "Se Helena apartar"), Tânia Valente (solista em "Tende-me mão nele")
Direcção – Jorge Matta

Produção musical – Sérgio Fontão
Produção – PortugalSom - Ministário da Cultura / Direcção-Geral das Artes
Gravado no Grande Auditório da sede da Fundação Gulbenkian, Lisboa, por Numérica, Lda.
Gravação, editing e misturas – João Nuno Silva
URL: https://gulbenkian.pt/musica/coro-e-orquestra/coro-gulbenkian/
https://www.meloteca.com/portfolio-item/coro-gulbenkian/
https://www.facebook.com/gulbenkianmusica/
https://music.youtube.com/channel/UCE3UnGOGRWjEj93WPvMzadw



Ojos, herido me habéis



Poema (vilancete em redondilha maior): Luís de Camões (in "Rimas", org. Dom António Álvares da Cunha, Lisboa, 1668; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 839)
Música: Fernando Lopes-Graça (1.ª peça do ciclo "Três Líricas Castelhanas de Camões", Op. 96, LG 25, 1954-55)
Intérprete: Coro de Câmara de Lisboa*, dir. Teresita Gutierrez Marques (in CD "Música Coral Portuguesa do Século XX", Numérica, 1999)


          MOTE

Ojos, herido me habéis,
acabad ya de matarme;
mas muerto, volvé á mirarme
porque me resucitéis.

          VOLTAS

Pues me distéis tal herida
con gana de darme muerte,
el morir me es dulce suerte,
pues con morir me dais vida.
¿Ojos, qué os detenéis?
Acabad ya de matarme;
mas muerto, volvé á mirarme,
porque me resucitéis.

La llaga cierto ya es mía,
aunque, ojos, vos no queráis;
mas si la muerte me dais,
el morir me es alegría.
Así, digo que acabéis,
ojos, de matarme;
mas muerto, volvé á mirarme,
porque me resucitéis.



De vuestros ojos centellas



Poema (vilancete em redondilha maior): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 779-780)
Música: Fernando Lopes-Graça (2.ª peça do ciclo "Três Líricas Castelhanas de Camões", Op. 96, LG 25, 1954-55)
Intérprete: Coro de Câmara de Lisboa*, dir. Teresita Gutierrez Marques (in CD "Música Coral Portuguesa do Século XX", Numérica, 1999)


          MOTE ALHEIO

De vuestros ojos centellas
que encienden pechos de hielo,
suben por el aire al cielo
y en llegando son estrellas.

          VOLTAS

Falsos loores os dan,
que esas centellas tan raras
no son nel cielo más claras
que en los ojos donde están.
Porque cuando miro en ellas
lo cómo alumbran al suelo
no sé qué serán nel cielo,
mas sé qué acá son estrellas.

Ni se puede presumir
que al cielo suban, Señora;
que la lumbre que en vos mora,
no tiene más que subir.
Mas pienso que dan querellas
a Dios nel octavo cielo,
porque son acá en el suelo
dos tan hermosas estrellas.



¿Do la mi ventura



Poema (vilancete em redondilha maior): Luís de Camões (in "Rimas", org. Domingos Fernandes, Lisboa, 1616; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 816-817)
Música: Fernando Lopes-Graça (1.ª peça do ciclo "Três Líricas Castelhanas de Camões", Op. 96, LG 25, 1954-55)
Intérprete: Coro de Câmara de Lisboa*, dir. Teresita Gutierrez Marques (in CD "Música Coral Portuguesa do Século XX", Numérica, 1999)


          MOTE

¿Do la mi ventura,
que no veo alguna?

          VOLTAS

Sepa quien padece,
que en la sepultura
se esconde ventura
de quien la merece.
Allá me parece
que quiere fortuna
que yo halle alguna.

Naciendo mezquino,
dolor fué mi cama;
tristeza fué el ama,
cuidado el padrino.
Vistióse el destino
negra vestidura,
huyó la ventura.

No se halló tormento
que allí no se hallase;
ni bien que pasase
sino como viento.
¡Oh qué nacimiento,
que luego en la cuna
me siguió Fortuna!

Esta dicha mía
que siempre busqué,
buscándola hallé
que no la hallaría;
que quien nace en día
de estrella tan dura,
nunca halla ventura.

No puso mi estrella
más ventura en min:
así vive en fin
quien nace sin ella;
quéjome que atura
vida tan escura.


* Coro de Câmara de Lisboa:
Sopranos – Jael Martins, Lucina Silva, Mafalda Nascimento, Matilde de Castro, Susana de Oliveira, Teresa Cordeiro
Contraltos – Ana Ferro, Isabel Torres, Luzia Rocha, Marta Gregório, Sílvia Fontão
Tenores – Aníbal Coutinho, Carlos Quintelas, José Pereira, Pedro Marques, Sérgio Fontão, Vítor Gonçalves
Baixos – António Marques, João Camacho, Jorge Leal, Marcelo Tusto, Pedro Figueira, Pedro Pires
Direcção – Teresita Gutierrez Marques

Produção – Teresita Gutierrez Marques, António Marques, Jorge Leal, Sérgio Fontão
Gravado na Igreja Anglicana de S. Jorge, Lisboa, em 1998
URL: https://corodecamaradelisboa.com/
https://www.meloteca.com/portfolio-item/coro-de-camara-de-lisboa/
https://www.facebook.com/corodecamaradelisboa/
https://www.youtube.com/@corodecamaradelisboa
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=coro+camara+lisboa



Capa do CD "Fernando Lopes-Graça: Música Coral", do Coro Gulbenkian, dir. Jorge Matta (PortugalSom/Numérica, 2008)
Concepção gráfica – Jorge Colombo



Capa do CD "Música Coral Portuguesa do Século XX", do Coro de Câmara de Lisboa, dir. Teresita Gutierrez Marques (Numérica, 1999)

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Outros artigos com canções musicadas ou harmonizadas por Fernando Lopes-Graça:
Música portuguesa de Natal
A infância e a música portuguesa
A vitória do azeite
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Celebrando Eugénio de Andrade
Camões recitado e cantado (VII)
Canções portuguesas de Natal harmonizadas/musicadas por Fernando Lopes-Graça
Camões recitado e cantado (VIII)
Eugénio de Andrade e Fernando Lopes-Graça: "Aquela Nuvem e Outras"
Camões recitado e cantado (IX)
Camões recitado e cantado (X)

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Outros artigos com poesia e/ou teatro de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
Camões recitado e cantado (IV)
Camões recitado e cantado (V)
Camões recitado e cantado (VI)
Camões recitado e cantado (VII)
Camões recitado e cantado (VIII)
Camões recitado e cantado (IX)
Luís de Camões: "Os Lusíadas" (dois excertos), por Carlos Wallenstein
Luís Cília: "Se me Levam Águas" (Luís de Camões)
Teatro camoniano em versão radiofónica
Camões por Carmen Dolores
José Mário Branco: "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades"
Camões recitado e cantado (X)
Camões evocado por Sophia
Luís de Camões: "Endechas a Bárbara Escrava"
Luís de Camões: "Perdigão perdeu a pena"