10 junho 2023
Camões recitado e cantado (IX)
Mário Botas, "Camões", 1980, aguarela
O que primeiramente torna apetecível um disco antológico de Camões é o revelar aspectos principais da sua poesia, a que vulgarmente se não dá o devido lugar: a respiração e o tempo de respirar, a humanização das palavras através de tal virtuosismo, as potencialidades orais que nela se afirmam, para além dos cânones literários renascentistas.
Quando a uma actividade artística a época, a moda, as gerais condicionantes impõem regras estritas, o Artista tem de adestrar-se, exibir domínio e agilidade, ganhar uma certa forma de liberdade, que lhe permita, apesar dos espartilhos que lhe vestem, manifestar o que é seu pessoal — sem o que se confinará à mediocridade da correcção.
Assim com Camões, com a sua linguagem ordenada. Sábio da ciência possível na sua época, homem do seu tempo, acatou e obedeceu; mas criou permanentemente e descobriu; perito em fonética e no sortilégio das palavras, deixou uma orquestração verdadeira, partitura poética para respiração, ritmo, silêncio e voz.
O disco parece destinar-se a violar ou a proteger a intimidade; apresenta-se, portanto, adequado a servir a linguagem camoniana, inclusive as suas menos evidentes ou ocultas virtualidades.
Detesto aquela atitude que nos obriga a aproximar-nos dos clássicos em bicos de pés para não incomodar o «monstro» na pasmaceira e consagração em que jaz. Gosto dos clássicos vivos, insusceptíveis de certidão de óbito, convivendo com os seus iguais de séculos adiante, afirmando solidariedade nos problemas comuns, propondo tácita e segura compreensão para com aqueles que o tempo, entretanto, descobriu. Estes são os «meus» clássicos. Prefiro-os em encadernação simples ou em cartonagem popular, pois mal se convive com quem se nos apresenta entalado em capa doirada e em materiais nobilitantes. Expurgados de sumptuária, nus, ou quase, sem rebuços e sem distâncias. «Salte, Senhor Clássico — apetece bradar —, salte aqui para a nossa dança!» Convite que o clássico aceitará com gosto pois, se o for autenticamente, pertence a todos os tempos. Esta atitude, este convívio quase corporal, será, decerto, respeitador, em excesso, pois não se limita ao respeito literal e simplista; procura motivos de respeito profundo, para além das aparências e das formas, para além dos convencionalismos ou conveniências interpretativas, para além das opções divulgadas.
Trabalhoso respeito que obriga, por exemplo, a imaginar Camões, descontente com um verso, repeti-lo de cor vezes sem conta, em busca de identificar o defeito, obter a solução; já os transeuntes o notam e fazem chacota porque fala sozinho consigo, porque, em plena rua, imerso no seu mundo, apela para todos os dons, envia o destrambelhado verso à zona do subconsciente a fim de dormir, ser revisto e reparado; até que um dia, inesperadamente, surge a solução; e o verso eclode, musical e esplendoroso, no momento em que Camões seguia, olhando a rua sem a ver, na plataforma de um «eléctrico». Oh, desculpem...
Camões tem andado longe do convívio, afastado pelas cargas que a História depôs sobre os ombros do Poeta. Transformaram-no em símbolo. Distribuíram-lhe responsabilidades inumanas, sobretudo nos momentos de tristeza colectiva (que muitos têm sido, do seu tempo a esta parte). Ensinaram-no às crianças, atemorizando-as: «quem não souber Camões reprova no exame». Reduziram-no a estátua de bronze, coroada pelos loiros da glória, mas medonha, atrabiliária.
Aqui, nesta Antologia, vamos à procura do Camões que, sem abdicar de quem é, mais apeteça à nossa convivência dos seus contemporâneos de quatro séculos depois.
Não é, portanto, critério, em sentido restrito, o que esta Antologia tem por motivo condutor. Escolha de poemas como se joga um jogo: chamei para a liça, dentro das limitações de tempo que um disco impõe, aqueles poemas que a experiência de conviver me sugere como susceptíveis de boa convivência com os meus contemporâneos. Cada um deles, no entanto, é válido por si: tirei-os, parece-me, de entre os mais perfeitos e significativos que Camões nos legou.
Oxalá que esta Antologia possa contribuir para uma actual aprendizagem do Poeta.
No mínimo, terá utilidade. A poesia animada pela fala ganha extensas motivações. Os alunos das escolas podem senti-la fora da frieza dos compêndios; a audição oferece novos planos de empatia, crítica e integração estilística e epocal. Os portugueses que não são estudantes (profissionais), mas que se deixam mover por certas curiosidades, poderão usá-la para os ajudar a determinar por que motivo Camões lhes chega na figura de génio por excelência.
CARLOS WALLENSTEIN (texto
publicado no álbum "Camões: Antologia",
Série 'Disco Falado', Guilda da Música/
Sassetti, 1973)
Continuando a divulgação do CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", de Fernando Serafim e Filipe de Sousa, apresentamos hoje mais sete espécimes: "Aquela triste e leda madrugada", Op. 112, e "Seis Sonetos de Camões", Op. 215. Os registos recitados, conforme o texto supra sugere, extraímo-los do álbum "Camões: Antologia", do actor e dramaturgo Carlos Wallenstein, originalmente publicado há cinquenta anos, pela Sassetti, sob o selo Guilda da Música, na série 'Disco Falado'. Escolhemos três sonetos (os que coincidem com os cantados por Fernando Serafim), mais três redondilhas e uma écloga que intercalámos, tanto quanto possível em harmonia temática, com os espécimes musicados/cantados, estes segundo a ordenação estabelecida por Fernando Lopes-Graça. Esperamos que a audição seja prazenteira e proveitosa. E boa celebração camoniana!
No que à rádio pública diz respeito, cumpre-nos enaltecer o realizador Germano Campos pelo louvável cuidado que teve ao consagrar boa parte da edição de hoje do seu "Café Plaza" ao nosso Poeta-Maior, com a transmissão de excertos do documentário sobre "Os Lusíadas" da série "Grandes Livros" (RTP-2, 2009), com guião de Arlindo Horta e locução de Diogo Infante, intercalados com poesia, recitada ou cantada, nas vozes de Luís Caetano, Coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra, Amália Rodrigues, Simone de Oliveira, José Afonso, Eunice Muñoz, Carlos Mendes, Camané e António Pinto Basto [>> RTP-Play].
Nada mais de poesia camoniana lográmos apanhar ao longo desde Dia de Camões na Antena 2, nem nas irmãs Antenas 1 e 3, andando a escrutinar as respectivas emissões – miséria confrangedora que denota e comprova a boçalidade e a falta de sentido de serviço público dos locatários das direcções de programas daqueles canais. Vistas bem as coisas, a culpa maior nem é deles mas dos administradores que os colocaram em lugares para os quais não possuem adequada e necessária aptidão. Enfim, um exemplo entre tantos neste desventurado país onde a mediocridade consegue sobrepor-se ao mérito!...
Aquela triste e leda madrugada
Poema (soneto) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 12)
Recitado por Carlos Wallenstein (in LP "Camões: Antologia", Série 'Disco Falado', Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Série 'Palavras', Strauss, 2002)
Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade,
quero que seja sempre celebrada.
Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se de uma outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.
Ela só viu as lágrimas em fio,
que de uns e de outros olhos derivadas,
juntando-se, formaram largo rio.
Ela ouviu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio
e dar descanso às almas condenadas.
Notas:
triste e leda madrugada – "triste" por se tratar da despedida dos dois amantes; "leda" (alegre) porque de todas as madrugadas nasce um novo dia;
marchetada – vivamente colorida, matizada de tonalidades luminosas;
vontade – coração.
Aquela triste e leda madrugada
Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 12)
Música: Fernando Lopes-Graça ("Aquela triste e leda madrugada", Op. 112, LG 209, 1959)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)
Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade,
quero que seja sempre celebrada.
Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando à terra claridade,
viu apartar-se de ũa outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.
Ela só viu as lágrimas em fio,
que duns e doutros olhos derivadas,
juntando-se, formaram largo rio.
Ela ouviu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio
e dar descanso às almas condenadas.
* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano
Écloga VIII
Poema (écloga) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 606-608)
Recitado por Carlos Wallenstein (in LP "Camões: Antologia", Série 'Disco Falado', Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Série 'Palavras', Strauss, 2002)
(Piscatória)
SERENO
Arde por Galateia branca e loura,
Sereno, pescador pobre, forçado
duma estrela, que quer à míngua moura.
Os outros pescadores têm lançado
no Tejo as redes; ele só fazia
este queixume ao vento descuidado:
«Quando virá, formosa Ninfa, um dia
em que te possa dar a conta estreita
desta doudice triste e vã porfia?
Não vês que me foge a alma e que me enjeita,
buscando em um só riso dessa boca,
nos teus olhos azuis, mansa colheita?
Se ao teu esp'rito alguma mágoa toca,
se de Amor fica nele uma pègada,
que te vai, Galateia, nesta troca?
Dar-te-ei minha alma; lá ma tens roubada;
não ta demandarei; dá-me por ela
uma só volta de olhos descuidada.
Se muito te parece, e minha estrela
não consentir ventura tão ditosa,
dou-te as asas do Amor perdidas nela.
Que mais te posso dar, Ninfa formosa,
inda que o mar de aljôfar me cobrira
toda esta praia leda e graciosa?
Amansam-se ondas, quebra o vento a ira;
minha tormenta só nunca sossega;
o meu peito arde em vão, em vão suspira.
Anda no romper d'alva a névoa cega
sobre os montes da Arrábida viçosos,
enquanto o solar raio lhes não chega.
Eu, vendo aparecer outros formosos
raios, que a graça e cor ao céu roubaram;
se os olhos cegos vi, vejo saudosos.
Quantas vezes as ondas se encresparam
com meus suspiros! Quantas com meu pranto
as fiz parar de mágoa e me escutaram!
Se na força da dor, a voz levanto,
e ao som do remo, que a água vai ferindo,
perante a Lua meu cuidado canto,
os maviosos delfins me estão ouvindo;
a noite sossegada; o mar calado.
Tu só foges de ouvir-me e te vás rindo.
Estranhas, porventura, o mar cercado
da fraca rede, a barca ao vento solta,
e um pobre pescador aqui lançado?
Antes que o Sol no céu cerre uma volta
se pode melhorar minha ventura,
como a outros sucede, na água envolta.
Igual preço não é da formosura
de ouro a areia, que o rico Tejo espraia,
mas um amor que para sempre dura.
Vejam teus olhos, bela Ninfa, a praia;
verás teu nome na mimosa areia.
Nunca sobre ele o mar com fúria saia!
Vento algum até agora o não salteia;
três dias há que escrito aqui o deixou
Amor, e o veda a toda a força alheia.
Ele com suas mãos próprio ajudou
a escolher estas conchas, afirmando
que o sol para ti só as matizou.
Um ramo te colhi de coral brando;
antes que o ar lhe desse, parecia
o que de tua boca estou cuidando.
Ditoso se o soubesse inda algum dia!
Alegres campos, verdes arvoredos
Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 20)
Música: Fernando Lopes-Graça (1.ª peça de "Seis Sonetos de Camões", Op. 215, LG 237, 1979)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)
Alegres campos, verdes arvoredos,
claras e frescas águas de cristal,
que em vós os debuxais ao natural,
discorrendo da altura dos rochedos;
silvestres montes, ásperos penedos,
compostos em concerto desigual;
sabei que, sem licença de meu mal,
já não podeis fazer meus olhos ledos.
E, pois me já não vedes como vistes,
não me alegrem verduras deleitosas,
nem águas que correndo alegres vêm.
Semearei em vós lembranças tristes,
regando-vos com lágrimas saudosas,
e nascerão saudades de meu bem.
Notas:
debuxais – retratais, reproduzis a imagem;
ledos – alegres.
* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano
Babel e Sião
Poema (trova em redondilha maior) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 712-713) (excerto - estrofes 5.ª a 8.ª) [texto integral em: Camões recitado e cantado (V)]
Recitado por Carlos Wallenstein (in LP "Camões: Antologia", Série 'Disco Falado', Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Série 'Palavras', Strauss, 2002)
Bem são rios estas águas,
com que banho este papel;
bem parece esta cruel
variedade de mágoas
a confusão de Babel.
Como homem que, por exemplo
dos transes em que se achou,
depois que a guerra deixou,
pelas paredes do templo
suas armas pendurou:
Assim, depois que assentei
que tudo o tempo gastava,
da tristeza que tomei,
nos salgueiros pendurei
os órgãos com que cantava.
Aquele instrumento ledo
deixei da vida passada,
dizendo: — «Música amada,
deixo-vos neste arvoredo
à memória consagrada.
Frauta minha que, tangendo,
os montes fazíeis vir
para onde estáveis, correndo;
e as águas, que iam descendo,
tornavam logo a subir,
jamais vos não ouvirão
os tigres, que se amansavam;
e as ovelhas, que pastavam,
das ervas se fartarão
que por vos ouvir deixavam.
Já não fareis docemente
em rosas tornar abrolhos
na ribeira florescente;
nem poreis freio à corrente,
e mais, se for dos meus olhos.
Não movereis a espessura,
nem podereis já trazer
atrás vós a fonte pura,
pois não pudestes mover
desconcertos da ventura.»
Notas:
Babel – refere-se o Poeta à torre de Babel que os homens, que então falavam uma só língua, pretendiam construir. Javé, para frustrar-lhes os intentos, confundiu-lhes as línguas e dispersou-os pela face da Terra (Génesis, 11, 1-9);
assentei – tive por certo;
da tristeza – por causa da tristeza;
órgãos – harpas. Cf. Salmo 136, v. 2, in salicibus in medio eius suspendimus organa nostra: «pendurámos as nossas harpas nos salgueiros que estão no meio da cidade»;
espessura – floresta;
mover – evitar, arredar;
ventura – destino.
Na ribeira de Eufrates assentando
Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Dom António Álvares da Cunha, Lisboa, 1668; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 83)
Música: Fernando Lopes-Graça (2.ª peça de "Seis Sonetos de Camões", Op. 215, LG 237, 1979)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)
Na ribeira de Eufrates assentado,
discorrendo me achei pela memória
aquele breve bem, aquela glória,
que em ti, doce Sião, tinha passado.
Da causa de meus males perguntado
me foi: «Como não cantas a história
de teu passado bem, e da vitória
que sempre de teu mal hás alcançado?
Não sabes que, a quem canta, se lhe esquece
o mal, inda que grave e rigoroso?
Canta, pois, e não chores dessa sorte».
Respondi com suspiros: «Quando cresce
a muita saudade, o piedoso
remédio é não cantar senão a Morte».
* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano
A uma Senhora que rezava por umas contas
Poema (trova em redondilha maior) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 736-737)
Recitado por Carlos Wallenstein (in LP "Camões: Antologia", Série 'Disco Falado', Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Série 'Palavras', Strauss, 2002)
Peço-vos que me digais:
as orações que rezastes,
se são pelos que matastes,
se por vós, que assim matais.
Se são por vós, são perdidas;
que qual será a oração
que seja satisfação,
Senhora, de tantas vidas?
Que se vedes quantos vêm
a só vida vos pedir,
como vos há Deus de ouvir,
se vós não ouvis ninguém?
Não podeis ser perdoada
com mãos a matar tão prontas,
que, se numa trazeis contas,
na outra trazeis espada.
Se dizeis que encomendando
os que matastes andais,
se rezais por quem matais,
para que matais, rezando?
Que, se na força do orar,
levantais as mãos aos Céus,
não as ergueis para Deus,
erguei-las para matar.
E quando os olhos cerrais
toda enlevada na fé,
cerram-se os de quem vos vê
para nunca verem mais.
Pois se assim forem tratados
os que vos vêem quando orais,
essas horas que rezais
são as horas dos finados.
Pois logo, se sois servida
que tantos mortos não sejam,
não rezeis onde vos vejam,
ou vede para dar vida.
Ou, se quereis escusar
estes males que causastes,
ressuscitai quem matastes,
não tereis por quem rezar.
Eu cantarei de amor tão docemente
Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 4)
Música: Fernando Lopes-Graça (3.ª peça de "Seis Sonetos de Camões", Op. 215, LG 237, 1979)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)
Eu cantarei de amor tão docemente,
por uns termos em si tão concertados,
que dois mil acidentes namorados
faça sentir ao peito que não sente.
Farei que Amor a todos avivente,
pintando mil segredos delicados,
brandas iras, suspiros magoados,
temerosa ousadia e pena ausente.
Também, Senhora, do desprezo honesto
de vossa vista branda e rigorosa,
contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém, para cantar de vosso gesto
a composição alta e milagrosa
aqui falta saber, engenho e arte.
Notas:
dois mil – muitíssimos, inúmeros;
brandas iras – iras amorosas.
* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano
O dia em que nasci moura e pereça
Poema (soneto) de Luís de Camões (do conjunto de poemas recolhidos por Luís Franco Correia, entre 1557 e 1589, in "Rimas", org. João António de Lemos Pereira de Lacerda, 2.º visconde de Juromenha, Lisboa, 1861; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 171)
Recitado por Carlos Wallenstein (in LP "Camões: Antologia", Série 'Disco Falado', Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Série 'Palavras', Strauss, 2002)
O dia em que nasci moura e pereça,
não o queira jamais o tempo dar;
não torne mais ao mundo e, se tornar,
eclipse nesse passo o Sol padeça.
A luz lhe falte, o Sol se lhe escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
a mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
as lágrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
que este dia deitou ao mundo a vida
mais desgraçada que jamais se viu!
Nota:
moura – morra.
O dia em que nasci moura e pereça
Poema (soneto): Luís de Camões (do conjunto de poemas recolhidos por Luís Franco Correia, entre 1557 e 1589, in "Rimas", org. João António de Lemos Pereira de Lacerda, 2.º visconde de Juromenha, Lisboa, 1861; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 171)
Música: Fernando Lopes-Graça (4.ª peça de "Seis Sonetos de Camões", Op. 215, LG 237, 1979)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)
O dia em que nasci moura e pereça,
não o queira jamais o tempo dar;
não torne mais ao mundo e, se tornar,
eclipse nesse passo o Sol padeça.
A luz lhe falte, o Sol se lhe escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
a mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
as lágrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
que este dia deitou ao mundo a vida
mais desgraçada que jamais se viu!
* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano
Ao desconcerto do Mundo
Poema (esparsa em redondilha maior) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Estêvão Lopes, Lisboa, 1598; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 801)
Recitado por Carlos Wallenstein (in LP "Camões: Antologia", Série 'Disco Falado', Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Série 'Palavras', Strauss, 2002)
Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
assim que, só para mim
anda o mundo concertado.
Quanta incerta esperança, quanto engano!
Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Manuel de Faria e Sousa, Lisboa, 1685; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 138)
Música: Fernando Lopes-Graça (5.ª peça de "Seis Sonetos de Camões", Op. 215, LG 237, 1979)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)
Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos,
pois todos vão fazer seus fundamentos
só no mesmo em que está seu próprio dano!
Na incerta vida estribam de um humano;
dão crédito a palavras que são ventos;
choram depois as horas e os momentos
que riram com mais gosto em todo o ano.
Não haja em aparências confianças;
entendei que o viver é de emprestado;
que o de que vive o mundo são mudanças.
Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
somente amando aquelas esperanças
que duram para sempre com o amado.
* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano
Cá nesta Babilónia, donde mana
Poema (soneto) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Domingos Fernandes, Lisboa, 1616; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 62)
Recitado por Carlos Wallenstein* (in LP "Camões: Antologia", Série 'Disco Falado', Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Série 'Palavras', Strauss, 2002)
Cá nesta Babilónia, donde mana
matéria a quanto mal o mundo cria;
cá, donde o puro Amor não tem valia,
que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
cá, donde o mal se afina, o bem se dana,
e pode mais que a honra a tirania;
cá, donde a errada e cega Monarquia
cuida que um nome vão a Deus engana;
cá, neste labirinto, onde a nobreza,
o valor e o saber pedindo vão
às portas da cobiça e da vileza;
cá, neste escuro caos de confusão,
cumprindo o curso estou da Natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!
Notas:
mana – sai, brota;
matéria – riquezas;
o puro Amor – o verdadeiro amor espiritual;
Mãe – Vénus, símbolo da luxúria;
Sião – Jerusalém celeste (Céu, Paraíso).
* Carlos Wallenstein – voz
Selecção de textos/poemas – Carlos Wallenstein
Direcção literária – Alberto Ferreira
Assistente de produção – Carmen Santos
Produção – Sassetti
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa
Captação de som e montagem – Moreno Pinto
Remasterização – Jorge d'Avillez (Strauss Studio, Lisboa)
URL: http://www.cinept.ubi.pt/pt/pessoa/2143690279/Carlos+Wallenstein
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/perfil-carlos-wallenstein/
https://music.youtube.com/channel/UCAB5mYWk4Z9tVkwp-RrXdgQ
Cá nesta Babilónia, donde mana
Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Domingos Fernandes, Lisboa, 1616; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 62)
Música: Fernando Lopes-Graça (6.ª peça de "Seis Sonetos de Camões", Op. 215, LG 237, 1979)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)
Cá nesta Babilónia, donde mana
matéria a quanto mal o mundo cria;
cá, onde o puro Amor não tem valia,
que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
cá, onde o mal se afina e o bem se dana,
e pode mais que a honra a tirania;
cá, onde a errada e cega Monarquia
cuida que um nome vão a Deus engana;
cá, neste labirinto, onde a nobreza,
com esforço e saber pedindo vão
às portas da cobiça e da vileza;
cá, neste escuro caos de confusão,
cumprindo o curso estou da Natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!
* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano
Supervisão artística – Fernando Lopes-Graça
Direcção musical – Jorge Costa Pinto
Produção – Secretaria de Estado da Cultura (Direcção-Geral de Acção Cultural)
Gravado nos Estúdios Jorsom, Lisboa, nos dias 12, 13 e 15 de Dezembro de 1983
Técnico de som – João Magalhães
Remasterização digital – Fernando Abrantes (Strauss Studio, Lisboa)
URL: https://www.meloteca.com/portfolio-item/fernando-serafim/
https://www.facebook.com/FernandoSerafimMusic
https://www.meloteca.com/portfolio-item/filipe-de-sousa/
Frontispício da 1.ª edição das "Rimas", de Luís de Camões, org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita (Lisboa, 1595)
Capa do LP "Camões: Antologia", de Carlos Wallenstein (Série 'Disco Falado', Guilda da Música/Sassetti, 1973)
Concepção – Soares Rocha
Capa da reedição em CD do álbum "Camões: Antologia", de Carlos Wallenstein (Série 'Palavras', Strauss, 2002)
Retrato de Camões – Soares Rocha
Grafismo – João P. Cachenha (Breathe)
Capa do CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", de Fernando Serafim e Filipe de Sousa (PortugalSom/Strauss, 1995)
Pintura de Andrea Mantegna (c.1474) retratando Bárbara Gonzaga, filha de Ludovico III Gonzaga, Marquês de Mântua, e de sua esposa Bárbara de Brandemburgo (pormenor de um fresco existente na Camera degli Sposi, no torreão nordeste do Castelo de S. Jorge, em Mântua)
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