27 novembro 2014

O canto alentejano é património da Humanidade



O canto alentejano, ou simplesmente cante, foi hoje reconhecido pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade. Motivo de regozijo para as pessoas, com o antropólogo Paulo Lima à cabeça, que organizaram o processo de candidatura e o apresentaram àquela agência da ONU, sediada em Paris. Motivo de júbilo e de orgulho também para Portugal ao ver uma das suas expressões musicais mais genuínas receber tão prestigiosa distinção.
E como tem ido a divulgação do canto alentejano na rádio portuguesa? Nas privadas de âmbito nacional nada existe e na estação pública vejo apenas a rubrica "Cantos da Casa", de Armando Carvalhêda, que de vez em quando dá a ouvir cinco modas durante uma semana (uma por dia). É claramente insuficiente e com a agravante de a transmissão ser em horários em que a maioria das pessoas está a dormir (05:55) ou a trabalhar (14:55), logo sem a disponibilidade mental e a atenção que o cante requer (não se devendo esquecer as pessoas que exercem funções não compatíveis com a escuta de rádio, que não são poucas). A culpa do miserabilismo da rádio estatal no que ao cante diz respeito não pode, evidentemente, ser assacada a Armando Carvalhêda, pois o seu exíguo apontamento tem de abranger toda a música tradicional portuguesa e os horários de transmissão não são sua responsabilidade. As contas têm de ser pedidas a Rui Pêgo (director de programas) e a António Luís Marinho (director-geral de conteúdos) pelo desprezo e marginalização a que têm votado a música popular portuguesa (a tradicional e a de autor naquela inspirada). A este propósito, convém lembrar que foram eles mesmos que, de forma prepotente e afrontosa, decidiram suprimir da grelha da Antena 1 o programa que, desde que começou no dealbar dos anos 80, sempre acarinhou o cante. E não só o cante – também as outras modalidades da tradição oral alentejana: as modas acompanhadas à viola campaniça, o canto ao despique conhecido como "baldão" e as saias do Alto Alentejo, sem esquecer a poesia dita. Referimo-nos, como era fácil de intuir, ao maravilhoso "Lugar ao Sul", de Mestre Rafael Correia. Veículo de divulgação da cultura tradicional portuguesa, de todo o território continental e insular, se bem que com maior incidência no Algarve e na grande planície transtagana, o programa tornou-se ele mesmo património – porque de todo insubstituível e porque o seu vasto arquivo é um precioso e inestimável repositório da nossa memória popular. Importa pois resgatá-la às teias de aranha e trazê-la para a luz do éter (cf. É preciso resgatar a memória do "Lugar ao Sul").
À laia de ilustração do cante (porque mais importante do que discorrer sobre dele é ouvi-lo), aqui se apresenta a moda "Alentejo, Alentejo", pelo Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa. A letra principia com a célebre quadra da terra («Eu sou devedor à terra, / A terra me está devendo; / A terra paga-me em vida, / Eu pago à terra em morrendo.»), que esteve em destaque em, pelo menos, uma emissão do "Lugar ao Sul". Foi aí, aliás, que o escrevente destas linhas tomou contacto com ela e lhe ficou indelevelmente gravada na mente.
Nesta gravação, a força que emana das vozes em uníssono – um uníssono vibrante e arrebatador – é tal que nos põe em pele de galinha e nos deixa os olhos marejados. Um portento! O cante da margem esquerda no seu máximo esplendor!
Fica, desde já, manifestada a intenção de voltarmos ao canto alentejano para o celebrar mais amplamente e, desse modo, rendermos a devida homenagem a uma boa plêiade de grupos corais (masculinos, femininos e mistos).



Alentejo, Alentejo



Letra e música: Popular
Intérprete: Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa* (in CD "Serpa de Guadalupe", Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, 2000)


Eu sou devedor à terra,
A terra me está devendo;
A terra paga-me em vida,
Eu pago à terra em morrendo.

Alentejo, Alentejo,
Terra sagrada do pão!
Hei-de ir ao Alentejo,
Mesmo que seja no Verão,

Ver o doirado do trigo
Na imensa solidão.
Alentejo, Alentejo,
Terra sagrada do pão!


* Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa:
Carlos Carrasco, Carlos Paraíba, Domingos Rijo, Francisco Torrão, João Manuel, João Neca, Luís Ferreira, Luís Neves, Mário Apolinário, Vicente Cachopo, José Gonçalves, Manuel Mamede, António Gato, Carlos Fava, José da Graça, João Martins, António Lourenço, António Evaristo, José António, José Filipe, José Maria, Matias Galego, Domingos Camões, Hélder Ferreira, Leonel Patrício
Direcção – Francisco Torrão
Gravado na Casa do Povo de Serpa, a 27 de Fevereiro de 2000
Técnico de som – Rui Guerreiro (MG Estúdio), assistido por Luís Melgueira
Misturado no MG Estúdio, Beja
URL: http://www.cm-serpa.pt/artigos.asp?id=1146
http://www.luardameianoite.pt/bd/cd/info/info28.html
http://www.joraga.net/gruposcorais/pags00/097SerpaCasaPovo.htm



Capa do CD "Serpa de Guadalupe", do Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa (2000)