25 dezembro 2016

António Gedeão: "Dia de Natal", por Afonso Dias



Nesta data, e estando a comemorar-se o 110.º aniversário do nascimento de António Gedeão, é de toda a oportunidade apresentarmos o poema "Dia de Natal", magnificamente recitado por Afonso Dias. O texto veio a lume em 1961, há cinquenta e cinco anos, mas continua bem actual pela denúncia que nele é feita, em tom de fina ironia, da hipocrisia e da alienação consumista (especialmente censurável quando o que se compra são produtos que simbolizam o oposto do espírito natalício, como é o caso dos objectos bélicos).
Sendo esta a época do ano em que se costuma formular desejos, aqui fica um: que quem administra/dirige a Antena 1 não tarde mais a colmatar a lacuna (que persiste desde 2003) de um apontamento diário de poesia! Um espaço que dê aos ouvintes, em particular os menos dados à leitura, a oportunidade de comungarem da grande poesia de autores lusófonos (e de não lusófonos, desde que bem traduzida), na voz de reputados recitadores.



DIA DE NATAL



Poema de António Gedeão (in "Máquina de Fogo", Coimbra, 1961; "Poemas Escolhidos: Antologia Organizada pelo Autor", Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997 – p. 43-47)
Recitado por Afonso Dias* (in CD "Cantando Espalharey", vol. II, Edere, 2002)


Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros — coitadinhos — nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra — louvado seja o Senhor! — o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.


* Pesquisa e produção – Afonso Dias e André Dias
Gravado no Estúdio InforArte, Chinicato, Lagos
Técnicos de som – Fernando Guerreiro e Joaquim Guerreiro
URL: https://pt-pt.facebook.com/afonso.dias.31
http://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Dias
https://www.youtube.com/channel/UCBxa3Hbv4cYrrnTO-QvwXrw/videos



Capa do CD "Cantando Espalharey", vol. II, de Afonso Dias (Edere, 2002)


Nota: Outro poema alusivo ao Natal, escrito e dito por Miguel Torga, pode ser ouvido neste blogue:
Miguel Torga: "Natal"