31 maio 2007

Antena 2: uma rádio afónica

Desde que o programa da manhã da Antena 2, agora com o nome (kitsch e aberrante!) de "Império dos Sentidos", foi infestado de palavreado oco e estéril, a minha assiduidade na sua audição passou a ser mais esparsa. Hoje, por acaso, foi um dos dias em que procurei a sintonia da rádio clássica portuguesa, mas julguei que me tinha enganado. A primeira impressão com que fiquei foi a de que estava a ouvir uma rádio pirata feita por curiosos e em tom de brincadeira. Mas não! Para meu espanto tratava-se mesmo a Antena 2! Quem fazia a locução era a pessoa do costume – Paulo Alves de Guerra – só que afónico. Ora, eu julgava que para se estar aos microfones de uma rádio, a condição básica e essencial era a voz estar em perfeitas condições de audição e percepção, isto para além de outras qualidades como a colocação, a dicção e o timbre. Julgava também que tanto os locutores que trabalham na rádio pública como a direcção de programas tivessem conhecimento dessa coisa elementar. Mas considerando o que se passou hoje essa minha suposição é capaz de ser muito optimista. Gostaria de deixar claro que não culpo Paulo Alves Guerra pela afonia: isso acontece a qualquer um. Mas confesso que esperava uma atitude diferente da sua parte, em vez de fazer figuras tristes e deploráveis. Se não estava em condições, a única decisão que devia tomar era comunicar aos seus superiores hierárquicos que não podia fazer a locução e pedir que o substituíssem até que melhorasse. Ao invés, fez de conta que não se passava nada, revelando não só falta de brio profissional como uma tremenda falta de respeito pelos ouvintes que são afinal quem lhe paga o salário. Para cúmulo, a direcção de programas também fez de conta que estava tudo normal. Se Paulo Alves Guerra não conhece os limites da decência e ética profissional, seria expectável que da parte da direcção de programas alguém pusesse cobro à situação, retirando-o de antena e entregando a locução a outrem. Mas não! Porque é que Rui Pêgo e João Almeida ficaram quedos e mudos? Será que ainda estavam a dormir? Ou se estavam já acordados, o que é que andavam a fazer?
Nem nos meus piores pesadelos, alguma vez sonhei que a rádio clássica viesse a chegar a este estado de degradação. Não há ninguém responsável que deite mão à Antena 2?

29 maio 2007

"Lugar ao Sul" sofre novo ataque

Em Setembro de 2005, o Sr. Rui Pêgo, então novel director de programas da Antena 1, ao mesmo tempo que amputava o programa "Lugar ao Sul" para metade do tempo de emissão, na manhã sábado, decidia, em jeito de compensação, criar uma edição nocturna, mais concretamente depois da meia-noite de segunda-feira. Como tive oportunidade de lhe comunicar, na ocasião, tal horário parecia-me algo adiantado pois sabia que muitos dos fiéis ouvintes faziam um grande sacrifício para não perderem o programa. Infelizmente, e como já se tornara hábito com os seus antecessores, o Sr. Rui Pêgo limitou-se a fazer orelhas moucas às reclamações que eu e outros ouvintes lhe fizemos chegar. E assim, o programa lá continuou e, ainda que com sacrifício do seu merecido sono, muitos ouvintes continuaram a ouvi-lo. Até ao dia de ontem, data em que deixa de constar na referida faixa horária sendo recambiando – pasme-se! – para depois da 1 hora da madrugada (de domingo para segunda-feira). A que ouvintes é que a actual direcção de programas quer chegar com tão estrambólico e inusitado horário? Aos condutores dos carros do lixo? Aos padeiros? Aos guardas-nocturnos? Com o devido respeito por aqueles profissionais e por quem exerce outras actividades durante a madrugada, não posso deixar de contestar a alteração agora efectuada por ser flagrantemente inadequada e falha de razoabilidade. Para atender ao público residual que ouve a Antena 1 depois da 1 hora da madrugada faz sentido privar muitos dos ouvintes que costumavam ouvir o "Lugar ao Sul" no horário anterior, já que o novo horário se torna de todo impraticável?
Por outro lado, quando o Sr. Rui Pêgo decide colocar – e muito bem – o programa "Escrita em Dia", às 23 horas, fazia toda a lógica que o "Lugar ao Sul" transitasse também para a mesma faixa horária. Mas não! É atirado para um buraco negro, dando a entender que se trata um programa malquisto e perfeitamente dispensável na grelha. Eu e muitos outros ouvintes que sabem apreciar o valoroso trabalho de Rafael Correia não podemos, de forma alguma, subscrever essa visão. Como tal, faço votos para que a direcção de programas tenha o bom senso de corrigir a infeliz decisão, e trate o programa de forma mais digna, não só em reconhecimento do emérito profissional que é Rafael Correia mas sobretudo pelo respeito que é devido aos ouvintes/contribuintes da rádio pública. Se a direcção de programas teimar em não atender as justas reclamações dos ouvintes, só espero que o Sr. Provedor do Ouvinte, José Nuno Martins, tenha em consideração tais procedimentos quando lhe for pedido um relatório sobre o exercício da actual direcção de programas. A não ser que para ele a palavra ‘independente’ não tenha o significado que vem nos dicionários!

26 maio 2007

"Novidades" na Antena 1

Leio em A Rádio em Portugal e não quero acreditar:
a Antena 1 vai fazer emissões matinais desde cafés emblemáticos Portugueses: Majestic, no Porto; Martinho da Arcada, em Lisboa; Café de Santa Cruz, em Coimbra, etc. Estes são alguns dos locais onde vai ser possível ver e ouvir, ao vivo, a Antena 1. Esta é a principal novidade do principal canal público de rádio. (Sublinhado meu)

Novidade??? Principal???

Mas não foi com as Direcções da Antena 1 nomeadas pela actual administração da RDP que acabaram (eram saloices, por certo!!!) este tipo de emissões a que a Antena 1 dos tempos de José Manuel Nunes sempre atribuiu um grau de prioridade e regularidade? Após quatro anos de play lists e enlatados é que os actuais responsáveis da RDP descobrem que é preciso voltar a colocar
a rádio pública mais próxima dos seus ouvintes?

A novidade consiste na repetição da itinerância do Sena Santos (07h00/10h00) e do Rui Dias José (17h00/19h00) pelas mesmas terras (e pelo mesmíssimos cafés!!!) que agora são anunciados. Bem há uma diferença de peso: na altura as emissões em Lisboa tiveram por cenário o café e a esplanada do "Nicola", agora fecham-se dentro do "Martinho da Arcada". Desta vez, para inovar, em Faro deve ser no "Aliança" ou no "Seu Café", em Évora no "Arcada", e, se fossem à Madeira, lá estariam o "Apolo". Novidades e criatividades de uma rádio que já não tem o Sena Santos, que despediu o Rui Dias José e... deu com ela a descobrir que há país para além dos muros da RTP.

Bem... vale mais tarde do que nunca... e o Director de Programas da RDP não poupa autocríticas em relação ao actual figurino da Rádio Pública:
«Queremos recuperar o contacto com as pessoas. A rádio é uma plataforma de difusão e de troca de ideias e isso tem que ser feito no exterior»,afirmou o director de programas da RDP, Rui Pêgo, num encontro com jornalistas. (citação "Lusa", a partir do site do "Sol").

Vai mais longe Rui Pego no reconhecimento do estado a que as coisas chegaram na Antena 1:
«A rádio tem estado fechada em si, fechada no estúdio. Queremos recuperar a mobilidade da rádio», reforçou o responsável, adiantando que a Antena 1 está a planear outras emissões especiais no exterior. (idem)

novidades... numa rádio que à força de querer copiar as "comerciais" até se esqueceu onde fica o país. E agora, apressadamente, pretende arrepiar caminho e assobiar para o lado como se nada tivesse acontecido.

O que é que estará a pensar disto tudo o anterior presidente do Conselho de Administração da RDP? Triste? Divertido? Ou tem mais que fazer e com que se preocupar?

19 maio 2007

"Ritornello" é mais um sintoma...

Na política de terra queimada em que se transformou a Rádio Pública, não admira a ninguém o que aconteceu a Jorge Rodrigues e ao seu Ritornello.

Gente que nem suspeitava o que era o Serviço Público é colocada à frente da RDP e em nome de números de audiência (sem qualquer validade científica, estatística ou, sequer, instrumental) vai imitar (mal) os modelos das privadas - as tais que têm de sobreviver com os dinheiros da publicidade e hoje (em muitos casos) asseguram tanto de Serviço Público como as da RDP. Só que não recebem nada por isso, nem têm direito a qualquer parcela do Imposto para o Audiovisual!

A Antena 2 está quase reduzida a este triste espectáculo. A Antena 1 nem sabe onde é que fica o país que a sustenta. Silenciados uns, intimidados outros, pressionados a sair mais alguns... Profissionais como Graça Vasconcelos ou Cardoso Pinto (quem não lembra aquela forma de dizer poesia) são empurrados para a antecipação da reforma. Rui Dias José, após dois anos sem trabalho, foi despedido por não cumprir horário de trabalho(!!!) e aguarda agora que o tribunal reconheça a sua razão.

Por isso é que eu digo que os protestos em situações destas não se podem ficar apenas pelas tais peticões electrónicas que embora subscritas por milhares são olímpicamente ignoradas (ver Petição 1 e Petição 2 - estão lá nomes que agora são do Governo e nada fizeram para evitar fosse o que fosse!).

É urgente lançar um debate sério acerca da utilidade, da necessidade e das funções da Rádio Pública e do destino a dar aos montantes que resultam do Imposto para o Audiovisual, cobrado no recibo da electricidade.

18 maio 2007

"Ritornello": um programa barbaramente assassinado

O programa "Ritornello", que Jorge Rodrigues vinha realizando e apresentando na Antena 2, desde há onze anos, acaba de ser barbaramente assassinado pela administração da Rádio e Televisão de Portugal, em conluio com a direcção de programas. Preferia ter-me enganado, mas a verdade é que as inquietações que eu próprio manifestei em 10 de Janeiro de 2007 faziam todo o sentido: o modo como Jorge Rodrigues e o seu programa vinham sendo tratados por Rui Pêgo e pelo seu adjunto João Almeida prenunciava o pior. E o pior acabou mesmo por acontecer: a vil extinção de um programa modelar e a criminosa irradiação do emérito profissional de rádio que dá pelo nome de Jorge Rodrigues. Há vários meses que venho chamando a atenção para a vaga de mediocridade que submergiu a Antena 2, mas parece que ninguém me deu ouvidos. Os resultados estão à vista: a Antena 2 oferece neste momento um dos piores serviços de que há memória.
Como contribuinte do serviço público de rádio, não podia deixar de contestar a infeliz decisão agora tomada e de manifestar o meu veemente protesto por, enquanto ouvinte, me terem retirado a possibilidade de fruir de programas realizados por Jorge Rodrigues, um profissional de alto gabarito – insisto em afirmá-lo. Ao ouvir-se o vulgar e banal programa que ocupa agora o lugar do "Ritornello" torna-se bem evidente a falta que Jorge Rodrigues nos vai fazer. Pela parte que me toca, na faixa horária 18-19 horas, a Antena 2 deixará de ser uma das minhas opções auditivas, tal como já deixara de ser entre as 19 e as 20 horas. Neste caso, não tanto pelo formato do programa mas sobretudo pelo confrangedor serviço de locução dos aprendizes a quem foi confiada a apresentação. Resta-me fazer votos para que não dispensem também os serviços de Joel Costa e de Paulo Rato. Afinal de contas, já não falta muito para que a terra fique totalmente queimada, para gáudio dos Liliputianos que não descansam enquanto não se virem livres de todos os que têm uns bons palmos acima da sua estatura rasteira.

Nota: Está a decorrer uma
petição para que o "Ritornello" seja reposto. Quem apreciava o trabalho de Jorge Rodrigues não pode deixar de assinar!

17 maio 2007

Galeria da Música Portuguesa: Janita Salomé



João Eduardo Salomé Vieira nasceu na vila alentejana de Redondo, a 17 de Maio de 1947. Filho de José Vieira, ourives, relojoeiro e marceneiro, e de Sofia Salomé, doméstica, Janita, como ficará afectuosamente conhecido, é o mais novo de cinco irmãos todos eles herdeiros de uma forte tradição musical familiar. A mãe, excelente cantora, e o pai, que tocava bandolim e cantava o fado de Coimbra, incutiram nos filhos o gosto pela música, a tal ponto que todos eles passariam, amadora ou profissionalmente, por carreiras musicais (Vitorino será o que alcançará maior notoriedade).
Apesar de cantar desde os 9 anos de idade, a veia artística de Janita só é verdadeiramente assumida aos 16 anos ao ingressar, como baterista e vocalista, no conjunto Planície, um grupo de baile constituído pelos seus dois irmãos mais velhos Zezinho e Baíco (Manuel), e ainda Evaristo Carrajeta, Abílio Delca, Magalhães e Manuel Monarca.
Em 1965, aos 18 anos de idade, Janita ruma a Lisboa para trabalhar como funcionário judicial no Tribunal da Boa Hora e, passados dois anos, é recrutado para o serviço militar sendo mobilizado para a guerra colonial em Moçambique. «Na cidade de Tete havia serviços recreativos do exército que promoviam espectáculos e procuravam entre os militares quem mostrasse as suas artes, e eu participei num espectáculo desses. Cantei um poema de Manuel Alegre, "As Mãos", e logo a seguir mandaram-me prender». Mas acabou por não ficar detido: «Quem me safou foi um cabo enfermeiro que conhecia bem o comandante da região operacional...».
No regresso de África, em 1972, fixa-se no Redondo, para trabalhar como ajudante de notário e passa a integrar os Vagabundos do Ritmo, um grupo de baile que se dedica a tocar versões de êxitos românticos da altura e de nomes estrangeiros como Bee Gees e Beatles. Ainda sem um caminho musical definido, será depois do 25 de Abril de 1974 que Janita encontrará o seu rumo ao encontrar-se José Afonso que o inspira a investigar e a trabalhar a tradição musical popular. Durante dois anos participa como acompanhante do autor de "Grândola, Vila Morena" em numerosos espectáculos, comícios e sessões de esclarecimento. Em 1976, participa como cantador e alto em "Semear Salsa ao Reguinho", o primeiro álbum do irmão Vitorino com quem continuará sempre a colaborar quer em discos quer em actuações ao vivo.
Em 1977, funda com Vitorino e os outros irmãos um grupo que se dedica a perpetuar a tradição do cante alentejano, os Cantadores de Redondo, cuja actividade se mantém até aos dias de hoje. Gravam o disco etnográfico "O Cante da Terra", editado em 1978. Em 1980, dá-se nova revolução na vida de Janita: abandona o emprego na função pública e profissionaliza-se como músico. Motivo: um convite de José Afonso para integrar o grupo que o acompanhava em palco, substituindo Henri Tabot nas guitarras (Júlio Pereira e Guilherme Inês são os outros músicos de Zeca). No mesmo ano, grava o seu primeiro disco em nome próprio, "Melro", para a Orfeu, com a supervisão técnica de Moreno Pinto e Jorge Barata. Incluindo um tema da sua autoria ("Alvorada em Abril") e outro de Vitorino ("Homens do Largo"), o disco é composto de duas partes distintas: uma dedicada à música de matriz alentejana e outra, numa inesperada opção, a fados de Coimbra (de António Menano, Francisco Menano e António de Sousa), cujo gosto lhe fora incutido pelo pai na juventude. Realce também para o tema "Poema para Florbela", em que Janita musica e canta um poema de Manuel da Fonseca, também ele um alentejano de gema. Com direcção musical de José Afonso, Vitorino e Janita Salomé, o álbum tem a participação instrumental de Pedro Caldeira Cabral (guitarra portuguesa, campaniça e viola), Sílvio Pleno (clarinetes), Luís Caldeira Cabral (flautas), Vitorino, Carlos e Janita Salomé (adufes e trancanholas). Nos fados de Coimbra, os acompanhadores foram Octávio Sérgio (guitarra), Durval Moreirinhas e Fernando Alvim (violas). Lançado em plena explosão do rock português, o álbum passa relativamente despercebido: Janita ainda é olhado como «o irmão do Vitorino».
Faz digressões no estrangeiro com José Afonso, Pedro Caldeira Cabral e Vitorino, e participa, em 1981, nos álbuns "Cavaquinho" e "Fados de Coimbra e Outras Canções", respectivamente de Júlio Pereira e José Afonso. E será justamente nesse ano, em Paris, quando acompanhava José Afonso, que tudo se torna claro. Janita assiste, deslumbrado, a um concerto de um grupo de Marrocos e aí nasce a sua paixão pela música árabe. Encontra finalmente a estrela que norteará a sua música: a procura dos laços que unem a tradição popular alentejana com a música tradicional magrebina, numa meritória tentativa de trazer à tona os vestígios deixados na nossa música pelos Árabes durante os séculos em que permaneceram na Península Ibérica, mais concretamente no território que hoje constitui o sul de Portugal. Em Fevereiro de 1982, faz a primeira viagem ao Norte de Africa, a que se seguirão outras. Janita conta: «Em Marrocos descobri o ancestral do Alentejo, de alguma forma, na fisionomia daquela gente, na maneira de estar, na gastronomia e deixei-me envolver e trouxe comigo tudo isso, toda essa experiência – aprendi inclusive a tocar todos aqueles instrumentos, aprendi muitas técnicas com músicos, camponeses magrebinos». E assim nasce o LP "A Cantar ao Sol", gravado por António Pinheiro da Silva para a Valentim de Carvalho, nos Estúdios de Paço d’Arcos. Lançado em Dezembro de 1983, este segundo álbum de Janita tem uma repercussão bem superior à do disco de 1980. Com produção de João Gil (na altura, músico do grupo Trovante) e composições do próprio Janita Salomé, nos temas de autor, o trabalho conta com a participação instrumental de Júlio Pereira (violas acústicas, braguesas, ovation), Pedro Caldeira Cabral (alaúde, ghaita), Sérgio Mestre (flauta), José Manuel Marreiros (piano), Carlos Zíngaro (violino) e Janita Salomé (percussões). Era desejo de Janita associar ao trabalho músicos de Casablanca, que conhecera nas suas viagens, mas devido a questões orçamentais isso acabou por não se concretizar. Além dos temas tradicionais ("Extravagante", "Pavão", "S. João" e "Saias") fazem parte do alinhamento: "Tardes de Casablanca" (poema de Hipólito Clemente), "Cantar ao Sol" (poema de João Manuel Pinheiro), "Não É Fácil o Amor" (poema de Luís Andrade Pignatelli à vide em baixo), "Quando Chegou a Lua Cheia" (poema de Janita Salomé), e "Na Palestina" (instrumental com vocalizos). A apresentação do trabalho dá-se num espectáculo realizado na Aula Magna que esgota a lotação. O álbum é considerado um dos melhores trabalhos da música popular portuguesa do ano e vale a Janita Salomé três prémios: Se7e de Ouro (atribuído pelo Jornal Se7e) na categoria de música popular/tradicional e Prémio Revelação das revistas "Música & Som" e "Nova Gente".
Em 1985, e dando continuidade à exploração das raízes árabes, Janita grava o álbum "Lavrar em Teu Peito", para EMI-Valentim de Carvalho, sob a supervisão técnica de António Pinheiro da Silva. Novamente com produção de João Gil e composições de Janita Salomé, o disco conta ainda com as participações de José Peixoto (arranjos, viola, alaúde, caixa de arroz), Júlio Pereira (violas), Paulo Curado (flauta), Pedro Caldeira Cabral (charamela, lira e flauta indiana, viola campaniça), Rui Júnior (maraca e prato), Fernando Júdice (contrabaixo), José Manuel Marreiros (piano), e ainda os irmãos Vitorino e Carlos Salomé. Janita, por seu lado, toca diversos instrumentos árabes de percussão – bendir, taarija e darabuka. Os poemas são de Luís Andrade Pignatelli ("Como se fosses de linho doce...", "O que ficou no ar parado..."), Hipólito Clemente ("Árvores no Deserto"), José Bebiano ("O Poder"), António José Forte ("Poema") e Al-Mu’tamid ("A uma escrava que lhe ocultou o Sol"), insigne poeta do séc. XI, nascido em Beja, e considerado um dos maiores vultos culturais do Al-Andaluz. O poema de Al-Mu’tamid foi retirado do livro "Portugal na Espanha Árabe", do historiador António Borges Coelho, uma importante fonte de inspiração do cantor. O álbum integra também uma versão do tema "Mulher da Erva", de José Afonso, e ainda de "E Alegre se Fez Triste" (com poema de Manuel Alegre), primeiramente cantado por Adriano Correia de oliveira, prematuramente desaparecido em 1982. Do alinhamento fazem ainda parte dois temas populares alentejanos ("Moda da Lavoura" e "Saias") e "Conta-me contos, ama…", um belíssimo tema a capella sobre poema de Fernando Pessoa, composto para a peça "O Esfinge Gorda", de Mário Viegas. Curiosamente, o grande actor também participa no álbum recitando o poema "O Poder", de José Bebiano. Em entrevista a Fernando Sobral (Diário de Notícias, 15.10.1985), Janita chama a atenção para a importância do legado árabe na nossa tradição oral: «Há toda uma cultura de transmissão oral que vai ficando e que chega até nós. Na fúria da reconquista cristã tudo o que pertencesse aos Mouros era destruído e queimado. Eram os Infiéis. Mas alguma coisa ficou. Para além da cultura registada, fabricada, havia uma cultura anónima, popular, que foi ficando. E os árabes legaram-nos uma cultura muito rica que não tem sido reconhecida, mesmo ao nível do ensino. Espero que este meu álbum, "Lavrar em Teu Peito", contribua um pouco para que esta situação se inverta.»
Em 1985, Janita é um dos principais colaboradores, como cantor e instrumentista (darbuka e adufe), na gravação do álbum "Galinhas do Mato", de José Afonso, que devido à doença já não conseguiu cantar todos os temas. "Moda do Entrudo", "Tarkovsky" e "Alegria da Criação" são os temas a que Janita empresta a sua inconfundível voz.
Em 1987, grava "Olho de Fogo", o seu quarto álbum a solo, editado pela Transmédia. Com produção e direcção musical de José Mário Branco e a colaboração de José Peixoto e João Lucas nos arranjos, Janita canta poemas da sua autoria ("Azul Branco", "Quando a luz fechou os olhos"), de Luís Andrade Pignatelli ("Os Amantes", "Cantata"), José Bebiano ("Poema") e continua a resgatar a poesia do Al-Andaluz: Ibn Sara ("Estrela Cadente", "O Zéfiro e a Chuva") e Al-Mu’tamid ("Ao Passar Junto da Vide"). Integram também o alinhamento duas versões de temas tradicionais ("Senhora do Almortão" e "Saias do Freixo em Gibraltar"). Entre os instrumentistas, além de Janita Salomé (bendir, darbuka, adufe) e José Mário Branco (harpa sequenciada, sintetizador, timbalão) contam-se João Lucas (piano, sintetizadores), José Peixoto (guitarra acústica, baixo, harpa sequenciada, piano-marimba), Irene Lima (violoncelo), Carlos Zíngaro (violino), Fernando Flores (contrabaixo), António Serafim (oboé), Paulo Curado (flauta, sax soprano e tenor), Tomás Pimentel (trompete, flugelhorn), José Martins (percussões), entre outros. Nas vozes colaboraram os irmãos Vitorino e Carlos Salomé e as filhas de Janita, Marta e Catarina Salomé. De assinalar também o arranjo da compositora Constança Capdeville em "Senhora do Almortão", tema tradicional da Beira Baixa, a região de Portugal que, segundo os etnomusicólogos, melhor conseguiu conservar a influência árabe (adufes, por exemplo). A apresentação pública do disco terá lugar na Aula Magna (Lisboa) e no Teatro Carlos Alberto (Porto). O álbum vale ao cantor o Troféu Nova Gente para o melhor intérprete masculino de música ligeira. No tocante a actuações no estrangeiro, realce para a participação no Printemps de Bourges (França), numa noite ibérica, e ainda quatro concertos em Madrid.
A ruptura com a Valentim de Carvalho, por iniciativa do artista, tem como consequência um interregno de quatro anos na edição de discos. Durante esse período, de 1987 a 91, e embora continue a dar concertos a solo ou ao lado de Vitorino, Janita explorará uma nova modalidade artística, o teatro, quer compondo música para algumas produções, quer surgindo inclusive como actor do grupo A Barraca, desempenhando o papel do cigano Miguel, na peça "Margarida do Monte", de Marcelino Mesquita. Para esta encenação de Hélder da Costa, Janita musica também dois temas, "Cante Cigano" e "Margarida no Convento" (posteriormente incluídos no álbum "Lua Extravagante"). Uma experiência que, em boa verdade, revisitou depois de ter deixado a sua marca na banda sonora do filme "A Moura Encantada" (1985), com realização de Manuel Costa e Silva e argumento de António Borges Coelho, bem como no documentário "O Pão e o Vinho" (1981), realizado por Ricardo Costa, em que participou como actor.
Em 1991, Janita regressa aos estúdios para gravar "A Cantar à Lua", para a Edisom, um álbum exclusivamente dedicado ao fado de Coimbra. Após a exploração das pontes com a cultura árabe, um mergulho na memória pessoal através da canção coimbrã dos anos 20 e 30, que aprendera com o pai. Acompanhado nas guitarras por António Brojo e António Portugal, dois guitarristas históricos de Coimbra, e nas violas por Luís Filipe Ferreira e Humberto Matias, Janita Salomé interpreta clássicos como "Crucificado" (Fortunato Roma da Fonseca / Edmundo de Bettencourt), "Canção do Alentejo" (Popular / Edmundo de Bettencourt), "Fado dos Passarinhos" (Francisco Menano / António Menano), "Fado de Anto" (António Nobre / Francisco Menano), "Samaritana" (Álvaro Leal / Edmundo de Bettencourt) e "Fado das Fogueiras" (Augusto Gil / Francisco Menano).
No mesmo ano, sai o álbum "Lua Extravagante", onde Janita surge ao lado de Vitorino, Carlos Salomé e Filipa Pais, num projecto vocacionado para o cruzamento da música tradicional portuguesa com a urbana. Além dos temas "Cante Cigano" e "Margarida no Convento", inicialmente compostos para a peça "Margarida do Monte", Janita contribui para o disco com um inédito, "A Bela do Castelo Sem Portas", escrevendo a letra e a música. O grupo dará um concerto em Lovaina, Bélgica, que será transmitido pela rádio pública daquele país. Sobre este belo disco escreveu Fernando Magalhães (Público, 11.12.1991): «Música lunar. Da noite e das marés da voz, Vitorino, Janita e Carlos Salomé, e Filipa Pais cantam o lado nostálgico do ser português. É um disco de canto sofrido, de doridas harmonias. É também a prova de que é possível, em Portugal, fazer discos que voltam as costas à moda e ao efémero. Em "Lua Extravagante" não há canções que pisquem o olho à salada radiofónica. Há somente, e não é pouco, a dignidade do canto e da música vivida por dentro. A transmissão de experiências que dizem da maneira como costumávamos ser. Cruzam-se vivências da cidade (Lisboa, sempre presente, até nos antigos azulejos da cervejaria Trindade, que a capa, belíssima retrata) e do campo. As palavras do povo encontram-se com as do poeta Pessoa, no fado e na distância. Em frente, o escuro da noite e a ilusão do mar.»
Em 1992, Janita participa num espectáculo na exposição mundial de Sevilha, a convite da comissão portuguesa, mas na sequência de sugestão dos organizadores espanhóis.
Em 1994, com o álbum "Raiano" (Farol Música), agora sob a produção de Fernando Júdice (viola baixo dos Trovante), Janita Salomé retoma o percurso de cruzamento das tradições populares portuguesas e andaluzas, tendo como pano de fundo a marcada influência árabe no sul peninsular. «As nossas raízes passam muito pela presença dos povos na Península Ibérica. Eles deixaram muitas marcas da sua cultura e eu, neste percurso, deixei-me fascinar pela história e tenho continuado a procurar as nossas origens através da cultura árabe». Exceptuando o tema tradicional "Extravagante", todas as músicas foram compostas por Janita Salomé que também assina a letra do tema "Do Outro Lado da Fronteira", nome que faz inteiramente jus ao título do disco. Nos restantes temas do alinhamento, Janita canta a poesia de Natália Correia ("Credo"), Carlos Mota de Oliveira ("Poema oferecido a meus amigos"), Herberto Hélder ("Ninguém tem mais peso que o seu canto"), Manuel Alegre ("Tão Pouco e Tanto", "Ciganos", "Utopia") e Manuel da Fonseca ("Poente"). Com a colaboração de Mário Delgado nos arranjos, no elenco de instrumentistas contam-se o próprio Janita Salomé (bendir, darabuka, taarija), Dudas (guitarra de 12 cordas, guitarra clássica, alaúde), Mário Delgado (guitarra de 12 cordas, guitarra clássica, guitarra eléctrica), José Peixoto (guitarra clássica), Paulo Jorge Santos (guitarra portuguesa), João Falcato (piano, sintetizador), Luís Branco (violino), Carlos Barreto (contrabaixo), Filipe Valentim (teclados), Paulo Jorge Ferreira (baixo eléctrico), Vasco Gil (acordeão, sintetizador), Filipa Pais (voz), Paulo Curado (flautas, saxofone soprano), Alexandre Frazão (bateria), José Salgueiro (percussões) e Carlos Guerreiro (ponteiras). Este disco valerá a Janita Salomé o Prémio Blitz 94 para Melhor Voz Masculina.
Em 1996, Janita junta a sua voz às de Pedro Barroso e Manuel Freire no tema "Cantos de Oxalá", incluído no álbum "Cantos d’Oxalá", de Pedro Barroso.
Em 1997, participa no duplo álbum "Voz & Guitarra" (Farol Música), com os temas "Os Homens do Largo" e "Não É Fácil o Amor", acompanhado à guitarra clássica, respectivamente por Pedro Jóia e Mário Delgado. Participa também no álbum de Miguel Medina, "Três Estórias à Lareira" (Farol Música, 1997), cantando dois temas: "Tema do Marinheiro" e "Tema de Fernão de Magalhães".
No ano seguinte, Janita é um dos convidados especiais do grupo Frei Fado d’El Rei, na gravação do álbum "Encanto da Lua": toca bendir e faz os vocalizos do tema "Perdido em Miragem".
Janita Salomé que cumpriu o serviço militar em Moçambique, é um dos participantes no disco "Canções Proibidas: o Cancioneiro do Niassa" (EMI-VC, 1999), com as canções de campo da guerra colonial, projecto idealizado por João Maria Pinto e onde pontificam também Rui Veloso, Carlos do Carmo e Paulo de Carvalho, entre outros. Janita dá voz a dois temas: "O Fado do Miliciano" e "Erva lá na Picada", este último em parceria com João Maria Pinto. Integra também o projecto colectivo "Músicas de Sol e Lua", ao lado de Sérgio Godinho, Vitorino, Filipa Pais e Rão Kyao, cuja apresentado pública tem lugar em Bona, no Festival da Lusofonia, a 11 de Julho de 1999. Também na Alemanha, Janita integra, juntamente com Vitorino, o espectáculo de coros alentejanos que inaugura a Exposição Mundial de Hanôver, em 2000.
No mesmo ano, e ao fim de seis anos sem lançar discos, Janita regressa com o álbum colectivo "Vozes do Sul", um trabalho de celebração do cante alentejano, nas suas diferentes formas, inteiramente composto por modas tradicionais tais como "Ao Romper da Bela Aurora", "Na Rama do Alecrim", "Menina Florentina", "Cavaleiro Real", "Eu Hei-de Amar uma Pedra" e "Meu Alentejo Querido". Concebido e produzido por Janita Salomé, o disco conta com as colaborações de grupos corais e etnográficos como Grupo da Casa do Povo de Serpa, Cantadores de Redondo, Os Camponeses de Pias e As Camponesas de Castro Verde. Participam também o tocador de viola campaniça Manuel Bento, Bárbara Lagido, Catarina e Marta Salomé (filhas de Janita), Patrícia Salomé (sobrinha), Filipa Pais e Vitorino, e ainda Carlos Guerreiro (sanfona), Jens Thomas (piano), Mário Delgado (guitarra acústica, viola), Carlos Bica (contrabaixo) e músicos dos Corvos, entre outros. O disco estava pronto desde 1998 mas só saiu em 2000 porque não foi fácil arranjar editora. A edição foi da Capella, uma etiqueta ligada aos estúdios Audiopro. O álbum é distinguido, no ano seguinte, com o Prémio José Afonso, atribuído ao melhor álbum de música de inspiração popular portuguesa, o que também serve para mostrar que a maioria das editoras em Portugal estão interessadas em tudo, menos em apostar na música de qualidade.
Em 2001, Janita participa no disco "Canções de Embalar" (MVM Records), organizado por Nuno Rodrigues, onde interpreta o tema "Matita" em parceria com Sara Tavares; e faz os vocalizos do tema "Mouro Amor", para o álbum "Feito à Mão", do brasileiro Rodrigo Lessa. Dois anos depois, e a convite de Sebastião Antunes, do grupo Quadrilha, participará também no tema "Mértola", incluído no CD "A Cor da Vontade" (Vachier & Associados, 2003).
Em Maio de 2003, Janita regressa finalmente aos discos em nome próprio, com um álbum soberbo intitulado "Tão Pouco e Tanto", editado pela Capella, onde inclui seis regravações ("Tardes de Casablanca", "A uma escrava que lhe ocultou o Sol", "Senhora do Almortão", "Cante Cigano", "O Zéfiro e a Chuva" e "Não É Fácil o Amor") e cinco temas inéditos. São eles: "Paisagem com Homem" (poema de Manuel Alegre), "União Europeia (Adeus cal)" (poema de Carlos Mota de Oliveira), "Cerejeira das Cerejas Pretas Miúdas" (poema de Carlos Mota de Oliveira), "Fala do Amor Alentejano" (poema de Hélia Correia) e "Sinal de Ti" (poema de Sophia de Mello Breyner Andresen). Todas as composições são da autoria de Janita Salomé e na prestação instrumental contam-se o próprio Janita Salomé (bendir, daadô, taarija), Pedro Jóia (guitarra acústica, alaúde), José Peixoto (guitarra acústica, guitarra clássica portuguesa), Mário Delgado (guitarra acústica), Ricardo Rocha (guitarra portuguesa), Paulo Jorge Ferreira (baixo eléctrico), Paulo Curado (flautas, saxofone soprano), Denys Stetsenko (violino), Lúcio Studer Ferreira (viola d’arco), Nelson Ferreira (violoncelo), João Luís Lobo e Vicky (percussões), entre outros. Nota ainda para a participação especial de José Mário Branco, no arranjo do tema "O Zéfiro e a Chuva", e de Dulce Pontes que faz dueto com Janita no tema "Senhora do Almortão". Das muitas versões que já se fizeram deste conhecido tema tradicional, incluindo as de José Afonso, esta é provavelmente a mais bem conseguida. Aliás, o disco é, no seu conjunto, uma verdadeira obra-prima, uma referência obrigatória da música portuguesa. Efectivamente, trata-se de um trabalho que, com maior depuração e aprimoramento, retoma o cruzamento das linguagens meridionais presentes nos seus discos mais emblemáticos e que estava suspenso desde o álbum "Raiano". «Fascina-me a história e a cultura mediterrânica, o cruzar e o sobrepor de civilizações, a riqueza cultural que se acumulou neste espaço singular, a maneira de ser e de estar dos povos mediterrânicos, que se expressa desde a música à gastronomia e ao vinho. Mantenho uma forte ligação ao cantar cigano, ao cante alentejano, ao flamenco, de certa forma também ao fado. Acredito que há um fio condutor que une todas essas formas de cantar e de sentir a música. É esse universo que me fascina e que julgo estar reproduzido neste trabalho.» (Diário de Notícias, 21.06.2003).
O CD é altamente elogiado pela crítica especializada e entra na lista dos melhores discos do ano. Em Março de 2004, Janita Salomé apresenta-o no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém: uma noite inesquecível com convidados especiais como Jorge Palma, Vitorino e Pedro Jóia.
No âmbito das comemorações dos 30 anos da Revolução dos Cravos, em Abril de 2004, a EMI-VC lança o álbum "Utopia", integrando canções de José Afonso, cantadas por Janita Salomé e Vitorino, em dois concertos no Centro Cultural de Belém, dados seis anos antes, em Fevereiro de 1998. Neste tributo a Zeca Afonso, a par de temas mais conhecidos como "Canção de Embalar", "A Morte saiu à Rua" ou "Canto Moço" foram também incluídos, e propositadamente, temas menos divulgados como "Os Eunucos", "Carta a Miguel Djéjé" ou "Rio Largo de Profundis".
Em 2006, Janita Salomé é um dos convidados especiais da Brigada Victor Jara para participar no álbum "Ceia Louca": canta o "Romance de Dona Mariana", um dos mais belos romances tradicionais do Algarve.
Em Março de 2007, sai o CD "Vinho dos Amantes" (ed. Som Livre), novo trabalho de originais que concretiza uma ideia conceptual: celebrar o néctar dos deuses tendo como ponto de partida a grande poesia portuguesa e mundial. Janita explica esta sua opção temática: «A ode ao vinho tem sentido num país vinícola como Portugal, tendo nós o vinho com uma presença tão forte na nossa cultura. Não sou pioneiro, provavelmente outros músicos e outros compositores já o fizeram. Mas de outra maneira, porque as formas podem ser tão variadas como diversa é a poesia e a literatura sobre o vinho». Mas adverte: «A embriaguez que se exalta é a da amizade, do amor e dos prazeres da vida, mas com conhecimento e inteligência».
O universo musical de "Vinho dos amantes" extravasa os ambientes alentejanos e arábico-andaluzes: «Afastei-me, um pouco, da matriz mediterrânea. Mas resolvi percorrer outros caminhos, outras experimentações. Considero que é uma sonoridade mais explicitamente portuguesa. Por outro lado, procurei fazer melodias mais acessíveis, com uma estrutura de canção. Há algumas sonoridades que até a mim me surpreenderam, como o tema de abertura, "Maçãs de Zagora", com um ambiente de blues [arranjo de Mário Delgado]. Gosto imenso de blues e até considero que é do melhor que a América tem...». E acrescenta: «Experimentei também uma sonoridade pop, mas não rock, que está bem patente na parte final do último tema ["Caminho III"]. Foram muitos anos a ouvir os discos dos Pink Floyd.» (Jornal de Notícias, 13.03.2007).
Além de um poema da sua autoria ("Escadinhas do Alto"), Janita canta a poesia de Carlos Mota de Oliveira ("Maçãs de Zagora"), do chinês Li Bai ("A Estrela do Vinho"), de Charles Baudelaire ("Embriagai-vos", "O Vinho dos Amantes"), Anacreonte ("Fragmentos"), Hélia Correia ("No Banquete", "Ode ao Vinho"), António Aleixo, Francisco Hélder Pimenta e populares anónimos ("Quadras"), José Jorge Letria ("O Mapa Errante") e Camilo Pessanha ("Caminho III"). Todas as composições são da autoria de Janita Salomé que também toca guitarra clássica e percussões. No elenco de instrumentistas contam-se Mário Delgado (guitarra de 12 cordas, guitarra eléctrica, kalimba), Ni Ferreirinhas (guitarra clássica), Ruben Alves (piano, acordeão), João Paulo Esteves da Silva (piano), Ricardo Dias (guitarra portuguesa), Fernando Abreu (guitarra clássica), Amadeu Magalhães (viola braguesa), Luís Cunha (violino), Daniel Salomé (clarinete), Yuri Daniel (contrabaixo, baixo eléctrico), Jacinto Santos (tuba), Vicki (bateria, percussões), Vitorino (acordeão) e músicos da Brigada Victor Jara. Carlos Mota de Oliveira, um dos poetas que Janita mais tem cantado, também colabora activamente no disco recitando o poema de Baudelaire "Embriagai-vos". Referência ainda às participações especiais de Jorge Palma, Rui Veloso e José Carvalho que ao lado de Vitorino e Janita Salomé formam o coro dos amantes do vinho, que canta "No Banquete". Trata-se de um belo trabalho discográfico, mas infelizmente muito pouco divulgado na rádio, a qual sonega a nossa melhor música, aquela que se pode sorver como um bom vinho, e insiste em promover massivamente as zurrapas musicais, seja as vindas de fora seja as produzidas cá dentro. A este propósito diz-nos o próprio Janita: «Ouve-se muito mais a tendência anglo-americana, o pop-rock, ou então músicas cantadas em português, mas com essas mesmas raízes. Esta situação é profundamente injusta porque a música portuguesa tem qualidade e tem diversidade tal que lhe permite ser mais divulgada e dada a conhecer aos jovens.»
Compositor e intérprete de excepção, Janita Salomé é detentor de uma voz ímpar (potente, vibrante, melismática), que muitos consideram a melhor voz masculina portuguesa. Sem cedências à facilidade e a modas efémeras, a sua obra revela uma inegável coerência artística e, embora não sendo vasta, constitui um dos mais ricos e originais contributos para o património discográfico português. Diz o músico: «a minha obra não é extensa mas é intensa». E a somar a isso, a ele se deve igualmente o contributo pioneiro na exploração das raízes árabes da música portuguesa, que abriu caminho a outros, de que Eduardo Ramos talvez seja o melhor exemplo. Estas razões deviam ser mais do que suficientes para que o músico/cantor se encontrasse entre as figuras da nossa música mais estimadas e acarinhadas no seu próprio país. Todavia, e apesar de aclamado pela crítica avalizada, o artista conta-se entre os nomes que mais têm sofrido às mãos dos fazedores de playlists das principais rádios portuguesas, incluindo a estação pública. No caso concreto da Antena 1, a sua deliberada exclusão dos alinhamentos de continuidade e espaços musicais (já só passa no programa "Lugar ao Sul"), além de injusta e inadequada para um artista de mérito reconhecido e inquestionável, constitui acima de tudo um acto de incultura, que assume particular gravidade porque praticado numa entidade que vive de dinheiros públicos.


Discografia:

- O Cante da Terra (LP, Orfeu, 1978) (com o Grupo de Cantadores do Redondo)
- Melro (LP, Orfeu, 1980; CD, Movieplay, 1993)
- A Cantar ao Sol (LP, EMI-VC, 1983; CD, EMI-VC, 1995)
- Lavrar em Teu Peito (LP, EMI-VC, 1985; CD, EMI-VC, 2001)
- Olho de Fogo (LP, Schiu!/Transmédia, 1987)
- A Cantar à Lua (CD, Edisom, 1991)
- Lua Extravagante (CD, EMI-VC, 1991) (com Vitorino, Carlos Salomé e Filipa Pais)
- Raiano (CD, Farol, 1994)
- Vozes do Sul (CD, Capella, 2000)
- Tão Pouco e Tanto (CD, Capella, 2003)
- Utopia (CD, EMI-VC, 2004) (com Vitorino, gravado ao vivo no CCB em Fevereiro de 1998)
- Vinho dos Amantes (CD, Som Livre, 2007)


Fontes:
- Site oficial de Janita Salomé (http://janita.salome.googlepages.com/)
- Blogue de Janita Salomé (http://janitasalome.blogspot.com/)
- Enciclopédia da Música Ligeira Portuguesa, dir. Luís Pinheiro de Almeida e João Pinheiro de Almeida, Círculo de Leitores, 1998
- Literatura inclusa na discografia de Janita Salomé


Propostas para a 'playlist' da RDP-Antena 1 (e Antena 3):
(por ordem alfabética)

- A Estrela do Vinho (in "Vinho dos Amantes")
- A uma escrava que lhe ocultou o Sol (in "Lavrar em Teu Peito"; Tão Pouco e Tanto)
- Alegria da Criação (in "Galinhas do Mato", de José Afonso)
- Ao Romper da Bela Aurora (in "Vozes do Sul")
- Árvores no Deserto (in "Lavrar em Teu Peito")
- Caminho III (in "Vinho dos Amantes")
- Cantar ao Sol (in "A Cantar ao Sol")
- Cante Cigano (in "Tão Pouco e Tanto")
- Cantiga dos camponeses (in "Vozes do Sul")
- Cerejeira das Cerejas Pretas Miúdas (in "Tão Pouco e Tanto")
- Ciganos (in "Raiano")
- Como se fosses de linho doce... (in "Lavrar em Teu Peito")
- Conta-me contos, ama… (in "Lavrar em Teu Peito")
- Credo (in "Raiano")
- E Alegre se Fez Triste (in "Lavrar em Teu Peito")
- Extravagante (in "A Cantar ao Sol"; "Raiano")
- Fala do Amor Alentejano (in "Tão Pouco e Tanto")
- Fragmentos (in "Vinho dos Amantes")
- Homens do Largo (in "Melro"; "Voz & Guitarra")
- Maçãs de Zagora (in "Vinho dos Amantes")
- Moda do Entrudo (in "Galinhas do Mato", de José Afonso)
- Mouro Amor (in "Feito à Mão", de Rodrigo Lessa)
- Mulher da Erva (in "Lavrar em Teu Peito")
- Não É Fácil o Amor (in "A Cantar ao Sol"; "Voz & Guitarra"; Tão Pouco e Tanto)
- Ninguém tem mais peso que o seu canto (in "Raiano")
- No Banquete (in "Vinho dos Amantes")
- O Poder (in "Lavrar em Teu Peito")
- O Zéfiro e a Chuva (in "Tão Pouco e Tanto")
- Pavão (in "A Cantar ao Sol")
- Perdido em Miragem (in "Encanto da Lua", de Frei Fado d’El Rei)
- Poema oferecido a meus amigos (in "Raiano")
- Poema para Florbela (in "Melro")
- Poente (in "Raiano")
- Quadras (in "Vinho dos Amantes")
- Saias (Alto Alentejo) (in "Lavrar em Teu Peito")
- Saias (Beira Baixa) (in "A Cantar ao Sol")
- Saias do Freixo (in "Melro")
- Senhora do Almortão (in "Tão Pouco e Tanto")
- Tardes de Casablanca (in "A Cantar ao Sol"; "Tão Pouco e Tanto")
- Tarkovsky (in "Galinhas do Mato", de José Afonso)
- União Europeia (Adeus cal) (in "Tão Pouco e Tanto")
- Utopia (in "Raiano")



Não É Fácil o Amor



Letra: Luís de Andrade (Pignatelli)
Música e voz: Janita Salomé


Não é fácil o amor, melhor seria
Arrancar um braço, fazê-lo voar,
Dar a volta ao mundo, abraçar
Todo o mundo, fazer da alegria

O pão nosso de cada dia, não copiar
Os gestos do amor, matar a melancolia
Que há no amor, querer a vontade fria
Ser cego, surdo, mudo, não sujeitar

O amor, o destino de cada um não ter
Destino nenhum, ser a própria imagem
Do amor, pôr o coração ao largo, não sofrer

Os males do amor, não vacilar, ter a coragem
De enfrentar a razão de ser da própria dor
Porque o amor é triste, não é fácil o amor


(in "Tão Pouco e Tanto", 2003)

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Outros artistas desta galeria:
José Afonso
Adriano Correia de Oliveira
Carlos Paredes
Luiz Goes
Pedro Barroso

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Textos sobre música portuguesa:
Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2007
Grandes discos da música portuguesa: editados em 2007

08 maio 2007

Galeria da Música Portuguesa: Luiz Goes



A sua obra é um monumento humano. É obra moça. Não exibe velhices precoces, é fruto de uma personalidade riquíssima, de uma sensibilidade invulgar e de uma visão plural da vida. – É através de ti, da tua voz, das tuas interpretações, dos teus poemas, que Coimbra ultrapassa os limites da cidade, vai mais longe. Vai ao encontro de quem sonha, do homem só, adquire sangue novo. Os labirintos da nossa alma profunda percorrem as suas canções. São pedaços de nós, de Portugal, de uma paisagem física e humana que visceralmente somos.

                 CARLOS CARRANCA, 4 de Julho de 1998


LUIZ GOES, de seu nome completo Luiz Fernando de Sousa Pires de Goes, nasceu em Coimbra a 5 de Janeiro de 1933. Em Coimbra porque seu pai, chefe da Caixa Geral de Depósitos no Porto, foi um dia em trabalho de inspecção à delegação local daquele banco e a mãe, que tinha aí família, convenceu-o a mudarem-se. Luiz nasce numa espécie de berço musical, crescendo a ouvir o seu tio Armando Goes (uma das vozes mais distintivas da Coimbra dos anos 20), frequentemente acompanhado pelo pai à guitarra e a mãe ao piano. Não admira então que cedo se tenha iniciado nas cantorias, conhecendo uma auspiciosa estreia pública aos 14 anos de idade, numa festa do Liceu D. João III (actual Escola Secundaria José Falcão). Aí canta "Feiticeira", fado-serenata da autoria de Ângelo de Araújo, celebrizado por Alberto Ribeiro no filme "Capas Negras" (1947), repudiado pela Academia e interdito no país durante anos. Luiz é então considerado uma espécie de "menino prodígio" e tem a honra de ser acompanhado em festas e reuniões de convívio de antigos estudantes, por Artur Paredes, Afonso de Sousa e até Francisco Menano, irmão mais velho de António Menano. Entre os seus colegas de liceu e cúmplices das cantigas estão o guitarrista António Portugal e José Afonso que, como ele, virão a integrar o grupo liderado pelo guitarrista António Brojo. Em 1952, o grupo é convidado para gravação de oito discos de 78 rotações. Dois deles têm a voz de Luiz Goes, que ingressara no curso de Medicina dois anos antes. São registos históricos, na medida em que desde os anos 20 com a chamada geração de ouro da música coimbrã – a que integrou nomes tão marcantes como Edmundo de Bettencourt, António Menano, Lucas Junot, José Paradela de Oliveira, Almeida D’Eça e Artur Paredes – não houvera mais edições discográficas de canção de Coimbra. No início dos anos 50, regista-se em Coimbra uma renovação da cultura e da praxe académica, enquanto o círculo musical que gravita em torno de António Brojo retoma a tradição de fazer serenatas semanais aos microfones da Emissora Nacional. Daí decorre o convite da Alvorada, editora sediada no Porto, para gravar as novas revelações da música de Coimbra (Luiz Goes, José Afonso, Fernando Rolim, António Portugal), cujas sessões de gravação decorrem nos próprios estúdios da delegação local da Emissora Nacional. Luiz Goes canta quatro fados – "Dobadoira", "Rezas à Noite (Ave Maria)", "Minha Barca" e "Soneto" –, sendo os dois últimos da sua autoria (letra e música). O acompanhamento instrumental é de António Brojo, António Portugal (guitarras), Aurélio Reis e Mário de Castro (violas).
Luiz Goes fala assim do seu início de vida artística: «Cantores clássicos tinha eu na família. O Armando Goes, meu tio, um grande cantor e através dele conheci todos os outros da sua geração. O Artur Paredes, por exemplo, acompanhou-me tinha eu nove anos de idade. Tinha o conhecimento directo dessas individualidades, era essa a minha vantagem. Enquanto que para os meus colegas os cantores dos anos 20 eram figuras míticas, para mim eram figuras íntimas. Senti o peso dessas referências, claro, quando gravei pela primeira vez. Mas também me sentia livre porque a minha vocação, segundo se dizia na altura, era para a música erudita. Estive, aliás, no Instituto de Música de Coimbra, onde fui ensinado pela professora Arminda Correia, que depois veio para o Conservatório de Lisboa. Andei a aprender solfejo, porque os fados de Coimbra conhecia eu de cor e salteado. Mas sentia necessidade de fazer algo inovador, porque repetir o passado não valia a pena. Durante muito tempo para se cantar o fado de Coimbra tinha se ser à maneira do Menano com voz fininha e por aí adiante. Eu quis aproveitar o que estava feito para introduzir uma forma mais livre da canção coimbrã».
Luiz Goes nos seus tempos de estudante, integra o Orfeão Académico, onde é solista do naipe de barítonos, e o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), dirigido pelo Professor Paulo Quintela. Colabora também com outros organismos académicos, em especial com a Tuna Académica. Em Coimbra, e para além do grupo de António Brojo, é acompanhado (ainda no liceu) por Manuel Mora à guitarra e por Manuel Costa Brás (futuro militar de Abril e ministro da Administração Interna), à viola. Depois, e até 1958, será ainda acompanhado pelas guitarras de Fernando Xavier, Jorge Godinho, Dário Cruz, David Leandro Ribeiro e José Niza, e pelas violas de Aurélio Reis, Mário de Castro, Manuel Pepe e Levi Baptista.
Em 1954, Luiz Goes estreia-se na televisão, no Canal 7 da TV Paulista, quando o Orfeão Académico é convidado a participar nas comemorações do 4.º Centenário da Cidade de São Paulo. Luiz Goes será também um dos cantores a actuar na primeira serenata de Coimbra transmitida em directo pela RTP, em 1957, de um olival junto dos Estúdios do Lumiar e com realização de Ruy Ferrão (filho de Raul Ferrão, compositor da celebérrima "Coimbra"). Futuramente, Luiz Goes será um dos artistas portugueses mais requisitados para actuações em televisões estrangeiras (Espanha, França, Suécia, Áustria, Estados Unidos da América, Brasil, África do Sul, etc.), e para participação em espectáculos de grande dimensão cultural (Universidade de Georgetown - Washington; Congresso de Cultura da Língua Portuguesa; aniversário das Nações Unidas - Genebra; homenagem a Beethoven - Viena; etc.).
Em 1956, Luiz Goes grava mais três temas – "Graça de Deus", "Carta (Soneto) " e "Fado da Despedida" – incluídos em tantos EP de "Fados e Guitarradas de Coimbra" (editados pela Alvorada), tendo como acompanhadores António Portugal, Jorge Godinho (guitarras), Manuel Pepe e Levi Batista (violas).
Em Março de 1957, Luiz Goes dá voz ao histórico registo do Coimbra Quintet, primeiramente editado com o título "Serenata de Coimbra" e, posteriormente, "Fados de Coimbra". A iniciativa parte do professor Mário Silva, anos antes excluído do corpo docente da universidade pela sua conhecida oposição ao regime de Salazar e que fora convidado para assumir o cargo de administrador da divisão portuguesa da editora Philips. Mário Silva propõe a gravação de um álbum de música de matriz coimbrã e a escolha recai sobre o grupo de António Portugal que, além do próprio, era composto por Jorge Godinho (guitarras), Manuel Pepe e Levi Batista (violas). A voz solista inicialmente escolhida é a de Fernando Machado Soares, mas uma indisponibilidades deste leva que seja Luiz Goes, que vinha acompanhando a preparação do disco e contribuído com alguns arranjos, a escolha natural para ocupar o lugar. O registo é efectuado em Madrid, nos Teatro do Príncipe Real, e vem a ser escolhido para representar Portugal numa colecção de músicas do mundo que a Philips então comercializa. O álbum conhece inúmeras edições e uma multiplicidade de capas diferentes, consagrando-se como um êxito internacional (é, ainda hoje, o disco de música de Coimbra mais vendido em todo o mundo). Curiosamente, só dois anos depois de gravado é que o disco chega a Portugal, onde se torna um clássico instantâneo. Do álbum fazem parte fados tão conhecidos como "Fado Hilário" (Augusto Hilário), "Fado do Estudante" (Vicente Arnoso / Fernando Machado Soares) e "Serra d’Arga" (popular). A propósito deste álbum lendário, Luiz Goes diz-nos: «Não é um trabalho só meu. Mas é um disco em que tenho a parte principal, porque sou o homem que dá a voz a todos os temas, tirando quatro guitarradas necessárias para compor o ramalhete. Mais tarde aparece a Philips a dizer que queria que o disco ficasse só em meu nome. Mas eu disse-lhes: "Ao menos ponham lá o nome do António Portugal, que é o homem da guitarra". E assim foi feito. Foi um disco que causou um grande impacto. Tecnicamente é muito mais evoluído que aqueles que foram gravados nos anos 20. Depois houve uma colheita de temas populares feita com muito critério e com uma tendência muito marcada para trazer canções populares para o meio urbano. É um disco em que a voz é posta ao serviço da cultura e não da pieguice. Para mim foi o primeiro disco moderno que se gravou de música coimbrã».
Em 1958, Luiz Goes termina a licenciatura em Medicina, e muda-se para Lisboa onde passa a exercer a especialidade de estomatologia. Casa-se e nasce o primeiro filho mas esse primeiro casamento, no entanto, não será muito duradouro. Em 1963, o cantor é chamado para o serviço militar, sendo mobilizado para a Guiné-Bissau onde, até 1965, desempenha as funções de alferes-médico numa das frentes da guerra colonial. Quando regressa a Lisboa já não é forçosamente o mesmo homem. Luiz Goes explica: «A experiência militar foi enriquecedora ao máximo – o conhecimento do ser humano tem muitas vezes de se fazer na frente de combate. Depois, quando voltei, estava preocupado com outros assuntos que não os da música. Não tinha casa própria, estava a viver com familiares e, embora não fosse pobre, não tinha tranquilidade para fazer a vida artística.»
Em 1967, e pondo fim a uma pausa de dez anos, Luiz Goes grava o seu primeiro álbum em nome próprio, intitulado "Coimbra de Ontem e de Hoje" para a Valentim de Carvalho e editado com o selo Columbia. A gravação decorre em Março de 1967 nos Estúdios de Paço d’Arcos pelo técnico Hugo Ribeiro e as condições são extraordinárias, uma vez que nos ensaios é possível contar com a presença e as opiniões autorizadas de Armando Goes, Edmundo de Bettencourt, Artur e Carlos Paredes, Fernando Alvim... Em suma, a nata dos veteranos do fado de Coimbra. Luiz Goes canta poemas seus, de Armando Goes, Edmundo de Bettencourt, António Botto, Carlos Figueiredo, Leonel Neves e Fausto José, sendo as composições assinadas por João Bagão, Luiz Goes, Armando Goes, Carlos Figueiredo e D. José Paes de Almeida e Silva. No acompanhamento instrumental participam João Bagão, Aires Máximo de Aguilar (guitarras), António Toscano e Fernando Neto Mateus da Silva (violas), em todos os temas, excepto "Balada da Distância", "No Calvário", "Canção da Infância" e "Balada do Mar", cujo acompanhamento é de João Figueiredo Gomes (viola), que nos três últimos temas faz parceria com Carlos Paredes (guitarra). Note-se que Carlos Paredes não se limita a ser um mero acompanhador, ao estilo clássico, e faz a sua guitarra entrar em diálogo, quase de igual para igual, com a voz de Luiz Goes.
A origem do trabalho esteve em João Bagão, exímio executante da guitarra de Coimbra, que havia composto uma colecção de músicas especialmente idealizadas para a voz abaritonada de Luiz Goes e o encontro entre ambos dar-se-ia por intermédio de António Toscano. Este, no preâmbulo ao livro "Luiz Goes de Ontem e de Hoje" (Edição Universitária, 1998), confessa: «Guardo um secreto orgulho de ter sido eu a aproximar o Goes do Bagão (...). Colega na Faculdade de Ciências de meu irmão, que mo apresentou (...), sabedor que o Goes voltava da Guiné, onde serviu como médico, falou-me em nos encontrarmos com ele.» E é assim que Luiz Goes, nos ensaios, se começa a aperceber que nesse círculo liderado por João Bagão, onde também pontificava Leonel Neves (autor de letras interpretadas por vozes tão ilustres como Amália Rodrigues e Maria Teresa de Noronha), se respira o clima criativo que sempre procurara em Coimbra. Luiz Goes lembra: «O álbum de 1967 é um disco de maturidade, de alguém que tem outra experiência de vida. Um disco de um tipo magoado por dentro e por fora. Para mais com a percepção que muita coisa tinha de mudar em Portugal e com a necessidade de o transmitir. É também um disco onde metade dos temas se chamam baladas, uma designação que emprego quando tenho a certeza de que não estou a cantar fado. São temas que correspondem a uma maior liberdade de expressão, porque o fado é muito limitativo. As baladas são, afinal, apenas canções. Poderá perguntar-se: mas o que há aí de coimbrão? É a mesma coisa que apanhar um comboio em França, ver um tipo ao fim da carruagem, e mesmo sem falar com ele ter a certeza que é português.»
A "Balada do Mar" (letra e música de Luiz Goes) que remata o alinhamento do disco, prenuncia um das temáticas dominantes no álbum seguinte, precisamente intitulado "Canções do Mar e da Vida", gravado em Julho de 1969, também por Hugo Ribeiro, nos Estúdios de Paço d’Arcos.
Fruto da colaboração com João Bagão e o seu grupo, este não é contudo um disco sobre a Natureza, pelo menos no sentido estrito, mas antes um grito de alma contra a situação do país. Um álbum anoitecido que transpira agonia e desilusão, ao mesmo que implícita, mas decididamente, questiona o regime então vigente. Exemplo disso é "Canção do Regresso", de feição autobiográfica, em que é denunciada a guerra colonial e ao mesmo tempo a situação que os ex-combatentes vinham encontrar no rectângulo europeu: «Volto, de mãos vazias, / sem ter nada do que quis. / P’ra morrer bastam dois palmos / de terra no meu país! / Pobre de quem regressa / ao jardim e acha um deserto; / já perdeu o que está longe, / já não tem o que está perto!». Luiz Goes contextualiza assim a génese do disco: «Enquanto que o mar em Lisboa é concreto, está ali aos nossos pés, o mar coimbrão é uma ausência – uma divagação esotérica. É um mar imaginário, que para mim funciona como libertação. Essa obsessão com o mar articula-se, por outro lado, com o protesto político. Conheci pessoas como o José Manuel Tengarrinha ou o Rogério Paulo, pessoas que militavam no mesmo campo de ideias que nós. Todo esse convívio produzia em mim a necessidade objectiva de dizer certas coisas, embora eu não quisesse propriamente dizer o mais explícito. Sentia-me suficientemente livre para não estar veiculado a coisíssima nenhuma em termos de forças políticas. De resto, "Canções do Mar e da Vida" inclui também canções de amor. Porque o lirismo é outra forma de libertação. O lirismo é uma faceta que nunca reneguei – somos portugueses, ainda por cima.» As letras saíram do punho de Luiz Goes, Afonso de Sousa, Edmundo de Bettencourt e Leonel Neves, que se tornará o autor fundamental do repertório do cantor. As composições são autoria de Luiz Goes, João Bagão, Afonso de Sousa, António Toscano e Armando Goes e no acompanhamento instrumental mantém-se o elenco do disco anterior, com excepção de Carlos Paredes. Fazem parte do álbum temas tão belos como "Balada Para Ninguém", "Canção do Regresso", "Dia Perdido", "Asas Brancas", "Cântico de Um Pescador", "Boneca de Trapo", "Cantiga de Vagabundo", "Alegria" e "Homem Só, Meu Irmão", que se tornará a sua balada mais emblemática (Tu, que andas em busca da verdade / e só encontras falsidade em cada sentimento / inventa, inventa amigo uma canção / que dure para além deste momento).
Dando sequência lógica ao álbum anterior, segue-se o LP "Canções de Amor e de Esperança", gravado em Dezembro de 1971, mais uma vez por Hugo Ribeiro, nos Estúdios de Paço d’Arcos. As letras são todas da autoria de Leonel Neves (oito) e de Luiz Goes (quatro) e as composições são assinadas por Luiz Goes, João Figueiredo Gomes, António Toscano, António Andias e Durval Moreirinhas. O acompanhamento instrumental é de António Andias (guitarra), Durval Moreirinhas, António Toscano e João Figueiredo Gomes (violas). No alinhamento deste magnífico álbum, quiçá o melhor da sua discografia, figuram baladas tão sublimes e intemporais como "Cantiga Para Quem Sonha" (vide letra abaixo), "Poema Para Um Menino", "Canção Para Quem Vier", "Sangue Novo", "É Preciso Acreditar", "Canção Quase de Embalar", "Mensagem do Mar", "Balada do Rei Vadio" e "Uma Lenda do Levante". Como não é raro suceder com discos de êxito, o maior sucesso da carreira de Luiz Goes é gravado em estado de graça, sem muitos preparativos nem muitas horas de estúdio. Na verdade, o material do disco ficou pronto em duas sessões nocturnas de três horas cada. Todos os temas ao primeiro ‘take’, só repetidos por uma questão de precaução. O disco marca também o início da colaboração com António Andias, na sequência de uma zanga havida com João Bagão. O trabalho de Luiz Goes com João Bagão implicava, muitas vezes, cedências do cantor face ao guitarrista. Com António Andias, a sintonia é perfeita e Luiz Goes torna-se mais dono da sua música. Aliás, o cantor não se limita a substituir um guitarrista por outro já que decide dispensar a guitarra portuguesa em toda a face A do LP. O cantor fala dessa opção: «Era preciso demonstrar que a guitarra portuguesa não é imperativa numa canção de matriz coimbrã. A viola é só por si um suporte perfeitamente válido. No fundo sou um fiel infiel. A minha infidelidade à música coimbrã respeita apenas à ortodoxia. Mas nunca quis destruir a música de Coimbra. Quis fazer uma revolução por dentro. Dar o meu contributo para que ela atingisse uma determinada dimensão, sem infringir a sua essência.»
Esta revolução estilística acaba por ser o resultado natural do aprofundamento do idealismo já manifestado no álbum precedente. Luiz Goes mantém-se a uma prudente distância da militância política que se radicalizara entre os seus antigos companheiros de Coimbra. É o próprio cantor quem nos esclarece sobre o seu posicionamento: «Tivemos trajectos de vida completamente diferentes. Enquanto o Zeca Afonso e o Adriano Correia de Oliveira se mantiveram em Coimbra alguns anos e ainda viveram a época dos motins académicos, eu em 1958 já estava em Lisboa. O Almeida Santos dizia-me, no outro dia, que se eu tivesse vivido essa época em Coimbra não teria acabado o curso. É bem provável que tenha razão. Depois a minha maturação em Lisboa foi diferente e sempre foi muito difícil arregimentarem-me! Por isso, depois do 25 de Abril, já em plena democracia ou a caminho dela, quando não se sabia qual a modalidade de democracia para a qual o país se encaminhava, cantava-se o Luiz Goes. Isto é significativo. Quer dizer que eu não era agarrado a este ou àquele partido, embora no fundo sempre acreditasse no socialismo democrático.»
Em 1973, a Valentim de Carvalho edita uma compilação temática (reeditada em CD pela EMI-VC, em 1992) reunindo temas de Carlos Paredes, José Afonso e Luiz Goes. Os quatro temas de Luiz Goes foram retirados do álbum "Canções do Mar e da Vida", e são: "Alegria", "Homem Só, Meu Irmão ", "Boneca de Trapo" e "Canção do Regresso".
Depois de um interregno de doze anos sem registos discográficos, em 1983 Luiz Goes grava o LP "Canções Para Quase Todos", a partir de poemas seus, de Leonel Neves, Miguel Torga e Edmundo de Bettencourt. As composições são da autoria de Luiz Goes, João Bagão, João Figueiredo Gomes, António Toscano e Durval Moreirinhas e o acompanhamento é feito por João Bagão, Aires Máximo de Aguilar (guitarras), João Figueiredo Gomes, António Toscano e Durval Moreirinhas (violas). O álbum tem a produção de Mário Martins e é gravado nos Estúdios de Paço d’Arcos, de novo pelo reputado Hugo Ribeiro. Outro trabalho com a marca magistral de Luiz Goes onde pontificam temas tão belos como "Canção para Quase Todos", "Viagem de Acaso", "Balada dos Meus Amores", "Teu Corpo", "Canção de Todos os Dias", "Requiem pelos Meus Irmãos", "Última Canção de Amor", "Desencontro" e "Regresso da Pesca".
O cantor dá as suas razões para tão longo hiato na sua discografia, sobretudo depois da Revolução de 1974: «Nessa altura já não se sentia tanta urgência em dizer coisas. Eu gravei sempre muito pouco. Depois fui sempre arrastado por outros na parte prática e o grupo que me motivava desfez-se. Comecei a não encontrar aquilo que eu precisava que fosse feito. Depois nunca vivi só da música – quem me dera a mim! Se estivesse em Coimbra talvez tivesse sido mais fácil, porque entretanto surgiu uma plêiade de instrumentistas notabilíssimos». Embora Luiz Goes não o diga, houve outros razões mais dramáticas para um tão longo período sem discos: na verdade, o cantor teve graves problemas de saúde, mais concretamente crises de asma que, por mais de uma vez, o deixam à beira da morte. Até que no início dos anos 80 recupera, reconcilia-se com João Bagão e reconstitui o grupo de instrumentistas que o acompanharam no final da década de 60. "Canções Para Quase Todos" é o retrato desse período de sofrimento e da sua superação. É o próprio cantor que confessa: «Houve ali uma necessidade íntima de fazer coisas outra vez. A vida foi andando e eu não pude deixar de traduzir as minhas próprias decepções. No fundo considero-me um humanista. Sempre tive uma grande preocupação com a vida dos outros. Estou sempre com medo de prejudicar, de pisar alguém. Aí está outro motivo porque não gravei mais. Comecei a pensar: "Se vou gravar com este, então não gravo com aquele" e arrependia-me. Ainda hoje sinto o mesmo.»
Talvez sejam estas as razões que ajudem a explicar que depois do álbum "Canções Para Quase Todos", e durante mais de duas décadas, Luiz Goes não tenha editado nenhum trabalho em nome próprio e apenas gravado temas avulsos para diversas edições discográficas: "Dobadoira" e "Fado da Despedida" para o LP "Tempo(s) de Coimbra" (Movimagens/EMI-VC, 1984); "O Meu Menino" (Popular / Fernando Machado Soares) para o LP "De Coimbra Para a UNICEF" (Videofono, 1985); "Toada Para Uma Cidade" (letra e música de Jorge Cravo) para o CD "Folha a Folha" (Numérica, 1999), de Jorge Cravo e o Grupo Presença de Coimbra.
Nos anos 90, Luiz Goes declara: «Gostava de gravar mais uma coisa ou outra. Agora que estou prestes a reformar-me da carreira médica, vou ter mais tempo para a música. Mas também é verdade que tenho sido tratado de forma tão fraterna e elogiosa que me pergunto o que posso mais fazer. Não quero estragar o está feito».
Em 2002, assinalando os 50 anos da primeira gravação de Luiz Goes, a EMI-Valentim de Carvalho, reúne a obra integral numa cuidada edição intitulada "Canções Para Quem Vier", constituída por quatro CD e um livro com diversos textos e as letras do seu magnífico repertório. De um desses textos respigo as palavras sábias e justas do professor Carlos Carranca: «A sua obra é um monumento humano. É obra moça. Não exibe velhices precoces, é fruto de uma personalidade riquíssima, de uma sensibilidade invulgar e de uma visão plural da vida. – É através de ti, da tua voz, das tuas interpretações, dos teus poemas, que Coimbra ultrapassa os limites da cidade, vai mais longe. Vai ao encontro de quem sonha, do homem só, adquire sangue novo. Chega mais longe porque tu lhe insuflaste a tua própria vida, lhe deste a tua inteligência e a tua criatividade inacessíveis aos que de Coimbra se contentam em imitar o estilo, a exibir erudição, a contabilizar louvores. Luiz Goes não só canta, como escreve sobre nós, e fá-lo apaixonadamente. Os labirintos da nossa alma profunda percorrem as suas canções. São pedaços de nós, de Portugal, de uma paisagem física e humana que visceralmente somos. Em Luiz Goes habitam as múltiplas influências do trovador inquieto e intemporal, do poeta, do respeitador da tradição, no que ela possui de essencial, rejeitando exibicionismos vocais, poéticos saudosíssimos serôdios e intransigências reaccionárias. Luiz Goes é um cantor da Saudade. Mas de uma saudade que nos faz compreender que todos nós comparticipamos num ser universal.» (excerto da comunicação "Luiz Goes: de ontem, de hoje e de sempre", proferida pelo professor universitário e poeta Carlos Carranca, a 4 de Julho de 1998, aquando da cerimónia de entrega da Medalha de Ouro de Coimbra a Luiz Goes).
E será, finalmente, em 2005 que Luiz Goes virá a gravar um novo álbum, regressando à sua Coimbra de sempre, concretizando um projecto do compositor e guitarrista João Moura («A voz de Goes estava no meu subconsciente desde o início deste projecto»). Com o título "Coimbra: Espírito e Raiz", a edição é composta por CD e DVD, e ainda um livrinho intitulado "Coimbra do Meu Tempo" que, além de um texto do próprio Luiz Goes e dos poemas cantados, inclui também um conjunto de fotografias (a preto e branco) da autoria de Mário Afonso, o primeiro presidente da secção de fado da Associação Académica de Coimbra. O CD integra 13 temas: sete da autoria de João Moura (música) e Carlos Carranca (letras), três de Luiz Goes, Edmundo de Bettencourt e José Santos; e mais três composições para guitarra e flauta, da autoria de João Moura e Abel Gonçalves, sendo uma delas um tributo a Carlos Paredes. Sobre este trabalho escreveu José Henriques Dias (Professor da Univ. Nova de Lisboa e do Instituto Superior Miguel Torga): «Uma guitarra e uma voz. A guitarra de João Moura, a voz de Luiz Goes. A música de matriz coimbrã, na mais alta expressão, está de volta na raiz e no espírito, profundamente renovada, tocada pelo sopro do génio. Rei Midas que aurifica onde a sua voz ressoa, sentida de um sentir que é irrepetível, onde os anos suportam pela sensibilidade a memória do seu esplendor de outros tempos, Luiz Goes surge a cantar versos de Carlos Carranca e também versos seus e de José Santos num novo objecto de culto que deve ser ouvido, lido e visto para se voltar a sentir a música coimbrã no que pode ter de universalidade. Se os versos de Carlos Carranca, escritos sobre a música, têm a simplicidade que os torna cantáveis sem perda de substância poética, as composições de João Moura acordam em nós ecos da intemporalidade só possível onde a inovação acrescenta e restaura a harmonia apelativa de uma Coimbra que, mais que um lugar, é algo que anda por dentro de nós, nos habita para nos fazer em cada instante reviver, não o passado morto, mas uma espécie de magia que não se explica por palavras, que só entende quem a viveu nos verdes anos e que assalta os afectos de quem nela não viveu.»
Em 18 de Outubro de 2005, Luiz Goes é distinguido com o Prémio Fado de Coimbra, atribuído pela Fundação Amália Rodrigues. A maior fadista portuguesa, lá no assento etéreo onde repousa, terá certamente esboçado um sorriso de contentamento, conhecida que era a profunda admiração e estima que devotava a Luiz Goes, certamente consciente de que ele era o seu equivalente na canção de matriz coimbrã.
No dia 25 de Novembro de 2006, no Casino do Estoril, é prestada uma Homenagem Nacional a Luiz Goes, num espectáculo apresentado por Sansão Coelho. No evento, promovido pela Associação de Antigos Estudantes de Coimbra em Lisboa, estiveram presentes Carlos Encarnação (Presidente da Câmara Municipal de Coimbra), António de Almeida Santos (Sócio Honorário n.º 1 da Associação de Antigos Orfeonistas e Presidente da Assembleia Geral da Associação anfitriã), e ainda os representantes de várias Associações de Antigos Estudantes do país e até da Guiné-Bissau, onde o cantor prestou serviço militar.
A discografia de Luiz Goes não é vasta, mas a rara qualidade e beleza da sua voz aliada a poemas que se contam entre os mais belos da língua portuguesa, fazem dele uma das figuras cimeiras da música portuguesa de todos os tempos. António Toscano, amigo e acompanhador do cantor nos álbuns gravados para a Valentim de Carvalho, define assim a voz e a arte de Luiz Goes: «O que um leigo em música mas com alguma sensibilidade pode dizer é que se trata de uma voz portentosa: cheia, poderosa, de forte acento abaritonado mas de enorme amplitude, com plasticidade e timbre raros, que permite ao Goes alcançar com a maior naturalidade, interpretações de qualidade e brilho inimitáveis, a que também não são estranhas a inteligência dos poemas e das circunstâncias e a emotividade que lhe é própria.» Citando o professor José Henriques Dias: «Com Amália e Carlos Paredes, Luiz Goes está na galeria dos grandes intérpretes do século XX, expressões maiores do ser português.»
Contudo, e apesar desta evidência, o cantor tem sido vítima de um generalizado "esquecimento" na rádio portuguesa, a que não escapa a estatal RDP. Efectivamente, a aparição de Luiz Goes na Antena 1 tem-se restringido, e mesmo assim muito esporadicamente, à rubrica "Alma Lusa" e aos programas "Vozes da Lusofonia" e "Lugar ao Sul". O álbum de 2005, por exemplo, foi completamente ignorado. Por que motivo um intérprete desta envergadura está ausente dos alinhamentos de continuidade e espaços musicais da rádio do Estado? Tal dever-se-á à estreita mundividência cultural dos novos responsáveis pela selecção musical ou haverá um propósito premeditado na sua ocultação? Independentemente da razão, trata-se de uma lacuna imperdoável na rádio pública que urge colmatar, porque não é aceitável que numa lista 878 de canções (cifra apontada por Rui Pêgo) não haja, pelo menos, uma das belíssimas baladas de Luiz Goes, e em contrapartida outros nomes de menor valia sejam contemplados com vários temas. Com este texto, de que enviarei cópia à direcção de programas e ao Provedor do Ouvinte, deixará de poder ser invocada uma alegada desatenção ou um suposto esquecimento para o criminoso silenciamento de que Luiz Goes vem sendo vítima na rádio de todos nós.


Discografia:

- Fados de Coimbra - 2 vols. (78 rpm, Melodia/Alvorada, 1952, ed. 1953)
- Fados e Guitarradas de Coimbra (3EP, Alvorada, 1956) (colectivos)
- Serenata de Coimbra (LP, Philips, 1957); Fados de Coimbra (CD, Polygram, 199?)
- Coimbra de Ontem e de Hoje (LP, Columbia/Valentim de Carvalho, 1967; CD, EMI-VC, 1995)
- Canções do Mar e da Vida (LP, Columbia/Valentim de Carvalho, 1969; CD, EMI-VC, 1995)
- Canções de Amor e de Esperança (LP, Columbia/Valentim de Carvalho, 1972; CD, EMI-VC, 1995)
- Carlos Paredes/José Afonso/Luiz Goes (LP, Columbia/Valentim de Carvalho, 1973; CD, EMI-VC, 1992) (compilação colectiva)
- Canções Para Quase Todos (LP, EMI-VC, 1983; CD, EMI-VC, 2001)
- O Melhor de Luiz Goes (CD, EMI-VC, 1989) (compilação)
- Homem Só, Meu Irmão (CD, EMI-VC, 1996) (compilação)
- Canções Para Quem Vier: Integral 1952-2002 (4CD, EMI-VC, 2002)
- Coimbra: Espírito e Raiz (CD/DVD, Coimbra XXI, 2005)


Fontes:
- Literatura inclusa na discografia de Luiz Goes
- Enciclopédia da Música Ligeira Portuguesa, dir. Luís Pinheiro de Almeida e João Pinheiro de Almeida, Círculo de Leitores, 1998
- Página http://ccarranca.blogspot.com/2006/09/matriz-coimbr-que-outra-msica-jos.html


Propostas para a 'playlist' da RDP-Antena 1 (e Antena 3):
(por ordem alfabética)

- Asas Brancas (in "Canções do Mar e da Vida")
- Balada da Distância (in "Coimbra de Ontem e de Hoje")
- Balada do Mar (in "Coimbra de Ontem e de Hoje")
- Balada do Rei Vadio (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Balada dos Meus Amores (in "Canções Para Quase Todos")
- Balada para Ninguém (in "Canções do Mar e da Vida")
- Boneca de Trapo (in "Canções do Mar e da Vida")
- Canção da Infância (in "Coimbra de Ontem e de Hoje")
- Canção de Todos os Dias (in "Canções Para Quase Todos")
- Canção do Regresso (in "Canções do Mar e da Vida")
- Canção Pagã (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Canção para Quase Todos (in "Canções Para Quase Todos")
- Canção para Quem Vier (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Canção Quase de Embalar (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Cântico de Um Pescador (in "Canções do Mar e da Vida")
- Cantiga de Vagabundo (in "Canções do Mar e da Vida")
- Cantiga para Quem Sonha (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Chamo-te Niña (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Desencontro (in "Canções Para Quase Todos")
- Dia Perdido (in "Canções do Mar e da Vida")
- É Preciso Acreditar (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Homem Só, Meu Irmão (in "Canções do Mar e da Vida")
- Mensagem do Mar (in "Canções de Amor e de Esperança")
- No Calvário (in "Coimbra de Ontem e de Hoje")
- Poema para Um Menino (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Regresso da Pesca (in "Canções Para Quase Todos")
- Requiem pelos Meus Irmãos (in "Canções Para Quase Todos")
- Sangue Novo (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Teu Corpo (in "Canções Para Quase Todos")
- Trova da Vila da Feira (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Última Canção de Amor (in "Canções Para Quase Todos")
- Uma Lenda do Levante (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Viagem de Acaso (in "Canções Para Quase Todos")



Cantiga para Quem Sonha



Letra: Leonel Neves
Música: João Figueiredo Gomes
Voz: Luiz Goes
Violas: António Toscano e João Figueiredo Gomes


Tu, que tens dez réis de esperança e de amor,
Grita bem alto que queres viver!
Compra pão e vinho, mas rouba uma flor!
Tudo o que é belo não é de vender.

Não vendem ondas do mar,
Nem brisa ou estrelas,
Sol ou lua cheia.
Não vendem moças de amar,
Nem certas janelas
Em dunas de areia.

Canta, canta como uma ave ou um rio!
Dá o teu braço aos que querem sonhar!
Quem trouxer mãos livres ou um assobio,
Nem é preciso que saiba cantar.

Tu, que crês num mundo maior e melhor,
Grita bem alto que o céu está aqui!
Tu, que vês irmãos, só irmãos, em redor,
Crê que esse mundo começa por ti!

Traz uma viola, um poema,
Um passo de dança,
Um sonho maduro.
Canta glosando este tema:
Em cada criança
Há um homem puro.

Canta, canta como uma ave ou um rio!
Dá o teu braço aos que querem sonhar!
Quem trouxer mãos livres ou um assobio,
Nem é preciso que saiba cantar.

Canta, canta como uma ave ou um rio!
Dá o teu braço aos que querem sonhar!
Quem trouxer mãos livres ou um assobio,
Nem é preciso que saiba cantar.


(in "Canções de Amor e de Esperança", 1972)

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Outros artistas desta galeria:
José Afonso
Adriano Correia de Oliveira
Carlos Paredes
Janita Salomé
Pedro Barroso

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Textos sobre música portuguesa:
Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2007
Grandes discos da música portuguesa: editados em 2007