30 setembro 2016

'Playlist' da Antena 1: uma vergonha nacional (II)



Quem tem sintonizado a Antena 1, com alguma assiduidade, sabe que a respectiva lista de difusão musical, vulgo 'playlist', nunca foi um modelo de virtudes. Ainda assim, terá de se reconhecer que desde 2010, e durante meia-dúzia de anos, enquanto José Mariño teve a seu cargo a escolha da música para a tal lista, o trinómio "variedade – abrangência – qualidade", defendido pelos provedores José Nuno Martins, Adelino Gomes e Mário Figueiredo, não foi propriamente ignorado. Deu-se mais atenção ao fado e até o repertório dos cantautores e a música tradicional/folk tinham alguma representatividade, se bem que muito aquém da desejável numa rádio pública e generalista, logo com particulares obrigações na divulgação consistente do que de melhor se faz e fez em Portugal em matéria de música popular (ou não erudita, se se preferir).
Há alguns meses, Rui Pêgo resolveu voltar a entregar a 'playlist' a um tal Ricardo Soares (o antecessor de José Mariño) e as mudanças – para pior, bem entendido – não se fizeram esperar. Tudo o que não era pop e hip-hop foi atirado às urtigas, ao mesmo tempo que foi introduzida uma quantidade desmesurada de pop anglo-americana, a maioria da qual de baixíssimo quilate. Perguntamos: acaso foi a Antena 1 fundada e é suportada pelos cidadãos e empresas de Portugal (consumidores de electricidade) para funcionar como uma rádio temática de pop e hip-hop? Não! Esse é um figurino aberrantemente desajustado e de todo inadmissível no canal generalista da estação pública. E por duas grandes ordens de razões: primeira, pelo peso esmagador que a dita 'playlist' tem no cômputo geral da programação musical (seguramente mais de 90%); segunda, por violar flagrantemente o princípio da liberdade, inerente a uma democracia – a liberdade de todos os artistas talentosos, independentemente da área em que se inserem, de fazerem chegar ao público a música que criaram e a liberdade de os ouvintes poderem escolher o que mais lhes convém de entre a muita música de qualidade, nos mais diversos géneros e estilos, que se produz em Portugal e – se quisermos ser mais abrangentes – no mundo onde se fala a língua portuguesa. O segregacionismo cultural (no caso, musical) e o condicionamento do gosto são próprios de regimes totalitários e jamais se poderão tolerar no Portugal livre e democrático (eu quero acreditar que vivemos num país livre e que o vocábulo "democracia" seja algo mais do que um elemento decorativo no texto constitucional).
Os cidadãos e ouvintes da Antena 1 não enjeitam a obrigação legalmente estipulada de manterem com o seu dinheiro (a chamada contribuição do audiovisual) um serviço público de rádio porque entendem que a sua existência é fundamental para garantir a transmissão cultural e respectiva fruição. O que não podem é aceitar que a entidade a quem cabe prestar tal serviço, em vez de os servir verdadeiramente, tornando-os mais cultos e amantes do belo, os imbecilize e trate como asnos.


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