24 maio 2017

Em memória de Baptista-Bastos (1934-2017)



Defendo a tese de que o jornalismo é uma disciplina superior da literatura e que a reportagem, a crónica e a entrevista são géneros literários.
A primeira reportagem da nossa História é a carta de Pêro Vaz de Caminha, com as novas do achamento do Brasil, que ele escreveu para D. Manuel I.


                            BAPTISTA-BASTOS


Jornalista, romancista e ensaísta, Armando Baptista Bastos nasceu no bairro da Ajuda, em Lisboa, a 27 de Fevereiro de 1934.
Estudou na Escola Industrial de Arte Aplicada António Arroyo (denominada, a partir de 1948, Escola de Artes Decorativas António Arroio) e aprendeu francês no pólo do Beco do Tijolo (junto ao miradouro de São Pedro de Alcântara) do Liceu Francês Charles Lepierre.
Na pré-adolescência, ao mesmo tempo que ganhava o gosto pela leitura, Baptista-Bastos foi aprendiz de diversos ofícios: tipógrafo, torneiro mecânico, marceneiro, empregado de drogaria, empregado de confeitaria. «O meu pai tinha livros. Havia as coisas do Zola, peças tradicionais numa família de anarquistas, de comunistas, de socialistas. E havia as bibliotecas públicas. Começo a despertar para a leitura por causa do "Mosquito". Não eram os quadradinhos, mas o que lá estava escrito. Havia um homem, Rofer, que anos depois conheci como revisor do "Diário Popular", Roberto Ferreira. As histórias que ele escrevia é que talvez me tivessem despertado. Quando deixámos a Ajuda, fomos para a Rua da Bombarda, junto ao Largo do Intendente. Havia ali a biblioteca da Escola 1 ou 2. Eu atravessava a Almirante Reis, ia para lá e um homem chamado Freitas era o bibliotecário. Deu-me o Emilio Salgari. Foi a grande descoberta. E entretanto trabalhava. Fui aprendiz de droguista, trabalhei uma semana numa confeitaria. Foi importante para o meu conhecimento do mundo do trabalho, onde o trabalho é muito violento. Ia aos sítios pedir emprego – com calções! Trabalhei numa marcenaria que fazia tampos para máquinas de costura, uma coisa pesadíssima. Um dia puseram-me um daqueles carros-de-mão cheio daqueles tampos e demorei muito tempo a chegar à oficina, que era ali na Penha de França. E a minha madrasta [Baptista-Bastos perdeu a mãe aos seis anos de idade], uma mulher extraordinária, andou em Lisboa à minha procura. Apanhou-me, estava eu já esfalfado, já noite, quase a chegar à oficina. Insultou o homem de tudo: "O senhor faz isto a um garoto!" Também fui aprendiz de torneiro mecânico. Queria ter dinheiro para o cinema e para queijo fresco.» [entrevista concedida a Alexandra Lucas Coelho, in "Público: suplemento Ípsilon", 26-Jun-2007]
Influenciado pelo pai, tipógrafo, acaba por abraçar o jornalismo. «O meu pai foi fundador de jornais – pertenceu à equipa inicial do "Diário Popular" e do "Diário Ilustrado" mas antes disso tinha trabalhado no jornal "A Voz" (monárquico e católico) – e terminou a vida no jornal "O Século", como tipógrafo e chefe das tipografias. Eu era órfão de mãe, o meu pai fizera 35 anos, não tinha onde deixar-me e levava-me para o trabalho, onde todos me tratavam com carinho. É a partir daí que germina a vocação de escrever. Com 14 anos, comecei a escrever na página infantil do "Diário Popular", dirigida pelo José de Lemos, que criava histórias para crianças de uma forma admirável e era um desenhador prodigioso, talvez o maior do segundo modernismo. Comecei em miúdo a escrever para miúdos, mas as minhas histórias possuíam uma conexão social, eram histórias de meninos dos bairros pobres, que se me impunham sem eu as procurar. Mais tarde descobri o porquê: terá sido a circunstância de eu ter vivido sempre em bairros populares e de ter uma relação muito sentimental com a pobreza e com a miséria. Ainda hoje, ao ver na televisão miúdos com fome e desempregados de 40 e 50 anos, digo-te, é uma coisa que me comove muito e que se acentuou com a idade... Eu acho que a idade desperta certas cordas sentimentais e uma atenção emocionada para essas coisas, para o sofrimento dos outros. Foi o João Paulo Guerra quem escreveu um dia que eu toda a vida tinha feito reportagens com lágrimas nos olhos. Penso que é verdade. A páginas tantas, tive a presunção de ser a voz daqueles que a não tinham. E tive a sorte de poder escrever isso de várias maneiras... Ainda há tempos – quando me homenagearam pelos meus 50 anos de actividade literária e jornalística – o Adelino Gomes, que tem uma série de recortes de reportagens minhas (nem eu as tenho!) leu uma que me emocionou até às lágrimas. E perante um auditório de 400 pessoas, ele disse uma coisa muito bonita: "A partir de uma certa altura, o Baptista-Bastos já não era o jornalista, era o jornalismo português!"». [entrevista concedida a Avelino Rodrigues, in http://perfildojornalista.eusou.com/].
À secção infantil do "Diário Popular", segue-se o semanário "Cartaz" para o qual escreve reportagens sobre casas assombradas e, pouco depois, muda-se para a prestigiada revista "O Século Ilustrado", na qual vem a assinar uma coluna de crítica, "Comentário de Cinema", evidenciando um estilo jornalístico inovador, polémico e polemizante. «O "Cartaz" era um jornalzinho semanal de um grupo de amigos feito na tipografia do "Diário Popular". (Faziam-se jornais com muito pouco dinheiro, naquela altura... e ganhava-se também muito pouco). O chefe de redacção era um jornalista chamado Armindo Blanco, que nos anos 40/50 era um grande talento, um grande crítico cinematográfico. Pois eu comecei a fazer aí umas reportagens sobre casas mal-assombradas – tinha para aí os meus 17 anos, a picar os 18 – e as minhas casas mal-assombradas tiveram uma certa repercussão na época, até que a Censura começou a cortar, vá-se lá saber porquê (vejo hoje que as casas mal-assombradas no fundo podiam ser uma metáfora do Portugal daquele tempo). Aquilo começou a chatear-me. O Armindo Blanco já tinha saído para o grupo "Século" dos Pereira da Rosa, e é nessa altura que recebo um convite para trabalhar, como colaborador, na revista "O Século Ilustrado", de que o Redondo Júnior era chefe de redacção. Estava lá todos os dias mas recebia à peça. Eu aí começo também a fazer um determinado tipo de reportagem social, tanto quanto era possível fazer na época [inícios da década de 50]. Depois, o Armindo Blanco vai para o Brasil e eu substituo-o nos comentários de cinema, enquanto o Redondo Júnior escrevia sobre teatro. Aquilo que eu fazia não era nada uma crítica de cinema, aquilo era uma tribuna política. Estava-se em pleno McCarthismo, a perseguição aos cineastas americanos e isso servia-me de pretexto para discretear sobre a inexistência de democracia nos Estados Unidos.» [ibidem]
A notoriedade que esse trabalho lhe dá abre-lhe as portas do próprio jornal "O Século", que era comummente considerado a grande universidade do jornalismo em Portugal, e aí vem a adquirir elevado traquejo no mister de jornalista. «Em 1952, sou chamado pelo chefe de redacção do jornal "O Século", o Acúrcio Pereira, figura lendária do jornalismo. Eu nunca tinha entrado na redacção do jornal, mesmo trabalhando no mesmo edifício. Aquilo metia respeito, uma catedral do jornalismo (como lhe chamou o Zambujal). Então, o Acúrcio diz-me que o sr. Rosa e o sr. dr. Guilherme – era assim que se falava do velho magnata João Pereira da Rosa e do filho que lhe sucedeu como director – enfim, eles queriam-me na redacção do jornal. E pela primeira vez fui jornalista do quadro, com a categoria de redactor. Os Pereira da Rosa respeitavam o meu trabalho e entendiam-me, mesmo sabendo que eu era contra o regime e eles eram a favor. Aquilo era outra gente, hoje já não há patrões assim. [...] Eu fui muito bem acolhido n' "O Século". Toda a gente gostava de mim, de esquerda, de direita... Aliás, a redacção d' "O Século" era muito curiosa, porque tinha de tudo, era uma autêntica democracia. Tinha fascistas, monárquicos, comunistas, socialistas, anarquistas. A malta convivia admiravelmente. O Acúrcio nem sequer permitia qualquer quezília por motivos de ordem política – e as pessoas respeitavam isso. A gente saía dali às 3 ou 4 da manhã, de maneira que a redacção era inundada, digamos assim, pelas grandes figuras do teatro e do fado. Eu recordo-me de ver lá o Villaret, que era muito amigo do Acúrcio Pereira, chegava e começava a recitar para a redacção; recordo-me, por exemplo de um cantador de fados, o Filipe Pinto, que ia lá com os guitarristas... E depois a gente mandava vir as ceias do "Arroz Doce", um restaurante ali perto. Levavam-nos lá um bacalhau com grelos e um vinho tinto e a gente estava ali até às tantas a conversar... [...] Deixavam-me trabalhar com a liberdade possível. Fui várias vezes ao estrangeiro em reportagem internacional, e fiz reportagem por todo o país. Acabei por ser expulso em 1960, porque me envolvi na "Revolta da Sé".» [ibidem]
Baptista-Bastos conta-nos qual era o seu papel na revolução e os termos em que veio a ser demitido do jornal, volvido mais de um ano: «Tinha 24 anos quando fui inscrever-me na campanha do Delgado em 1958, ali na Avenida da Liberdade. Foi aí que conheci o grande arquitecto Cassiano Branco, estava lá à porta da sede, todo careca, um homem temível. Eu era um miúdo desenvolto e ele gostou de mim e entusiasmou-me. A campanha deu no que deu... e, no começo de 59 sou convidado pelo Urbano Tavares Rodrigues – hoje já se pode dizer – a participar num golpe de Estado em preparação e que tinha todas as condições para triunfar – garantia ele – porque estavam envolvidos largos sectores do Exército, dos católicos e da sociedade civil. Lá vou eu... Qual era a minha função? Abrir as portas d' "O Século" aos revolucionários e preparar um artigo para a vitória, o artigo de fundo do jornal, que tinha por título um cacófato: "O triunfo da Revolução sem sangue". (Ainda tive muitos anos o original, depois perdi-o, deve estar aí, não sei onde...) Estava tudo previsto para 12 de Março desse ano de 1959. A certa altura da noite, devia chegar o Urbano com os seus amigos, para tomar conta do jornal, eu iria falar com os tipógrafos, estava tudo aparentemente preparado... Mas o golpe falhou. Acabei por ser denunciado por uma das três pessoas que tentara aliciar na redacção (não digo o nome, porque já morreu e essas coisas eu perdoei, enfim...). E passado um ano, vejam bem, cai-me em cima o Carmo e a Trindade: no dia 10 de Abril de 1960, estava a substituir n' "O Século Ilustrado" o Redondo Júnior que tinha ido aos Estados Unidos, saí para ir beber um café na Brasileira e, quando volto, estava tudo à minha procura e uma telefonista chamada Madalena disse-me: "Olhe que os patrões estão reunidos e estão à sua espera!". Eu não fazia a mínima ideia do que era... sou chamado, vejo aquela gente toda com cara de caso, os patrões, com excepção do velho João Pereira da Rosa, enfim, os Pereira da Rosa todos, o Guilherme e o Carlos Alberto, os tios e o sobrinho. E depois perguntam-me: "Então você esteve metido numa coisa destas?" E eu: "Sim, quer dizer, eu não concordo com esta política portuguesa, com a Censura, eu tenho viajado pelo estrangeiro, lá fora gosto daquilo... e tal... e quando volto a Portugal sinto uma angústia terrível e então..." Nisto, o Carlos Alberto Pereira da Rosa, que era um homem admirável, cuja memória eu venero e respeito, acho até que era meu amigo, quis dar-me uma 'abébia' diante dos outros, que estavam todos em silêncio: "Bem, isso já se passou praticamente há um ano! Em idênticas circunstâncias o que é que você faria hoje?" E eu: "Faria exactamente o mesmo!". E ele, pesaroso, estendendo-me a mão: "Tenho muita honra em apertar-lhe a mão, você portou-se como um homem, tenho muita pena mas tenho de o despedir, e muito obrigado por ter trabalhado n' "O Século". Assim...» [ibidem]
A justificação dada à polícia política para o despedimento seria, no entanto, outra. «Felizmente não fui preso. Por uma circunstância que só agora conto, pela primeira vez, acho eu: quando a PIDE foi ao "Século" perguntar aos patrões porque é que eu tinha sido corrido (porque eles suspeitavam que havia qualquer coisa), o Carlos Alberto, o Guilherme Pereira da Rosa e o Henrique Pavão disseram: "Foi por uma causa interna, é que ele publicou umas coisas sobre o Fidel Castro". E a verdade é que n' "O Século Ilustrado" tinha saído uma série de fotografias com o Fidel Castro a ler "L'Esprit des Lois" de Montesquieu e... bem, eu tinha mandado aquilo para as máquinas sem ir à Censura. E eles arranjaram esse pretexto. Mas a PIDE andava atrás de mim e eu, que estava habituado à cervejaria "Ribadouro" todas as noites, deixei de frequentar lugares públicos e isolei-me. Até que um dia o Fernando Curado Ribeiro, velho companheiro das noitadas no "Ribadouro", está a conversar comigo na casa dele, "Espera aí um bocadinho!", apaga as luzes todas, chama-me à janela: "Estás a ver aquele carro, lá em baixo? Está todas as noites à tua espera". Durante uns tempos andei a saltar por quartos alugados e depois o Fernando Lopes, este que é realizador de cinema, indicou-me um quarto na Avenida de Roma, num andar que pertencia a uma tia dele. E pronto, foi assim... com alguns anos de desemprego.» [ibidem]
Nesse tempo de semi-clandestinidade, o ganha-pão de Baptista-Bastos é a tradução de livros, e pondera seriamente emigrar, até que recebe um convite de todo inesperado: ser redactor de notícias na RTP. «Vivia a traduzir livros. E um dia o Fernando Lopes disse-me que havia uma pessoa que queria falar comigo. Fomos almoçar ao Parque Mayer e aparece o Manuel Figueira, que eu não conhecia de todo. Era o director de Informação da televisão. E diz-me assim: "Nós sabemos que você se prepara ou se preparou para sair do país. Mas você não quer ficar? Olhe lá, você quer fazer os noticiários da televisão neste período das férias?" Como não podia receber o vencimento em meu nome, arranjou-se um pseudónimo. Na RTP, eu era o Manuel Trindade. E lá fui fazer as notícias internacionais: pegava na "Visnews", eles mandavam os 'dop-sheets' em inglês e eu traduzia aquilo com um cronómetro na mão. E fiz uns testes que correspondiam mais ou menos às características vocais de cada um dos locutores que leriam a minha prosa. Criei com todos uma grande simpatia: com o Fialho [Fialho Gouveia], com o Gomes Ferreira, com o Henrique Mendes, com o Manuel Caetano (que era irmão do Marcelo Caetano). Depois acabou aquilo tudo, o Manuel Figueira foi afastado...» [ibidem]
Nessa fase da sua vida, Baptista-Bastos escreveu também textos para documentários realizados por Fernando Lopes ("Cidade das Sete Colinas", "Os Namorados de Lisboa", "Este Século Em Que Vivemos") e por Baptista Rosa ("O Forcado", 1965, com fotografia de Augusto Cabrita e música de Miles Davis – "Scketchs of Spain").
Em Fevereiro de 1962, vai com Fernando Lopes para a Ericeira, a fim de fazer, durante um mês, a adaptação para cinema do romance "Domingo à Tarde", de Fernando Namora. É nesse retiro que escreve o seu primeiro livro de ficção, o romance "O Secreto Adeus". «Em 1959 e 1962 publiquei dois ensaios: "O Cinema na Polémica do Tempo" e "O Filme e o Realismo". A seguir é que descobri a ficção. Eu estava desempregado, não podia trabalhar nos jornais, por ter sido despedido d' "O Século", como já disse. Estava próximo do Fernando Lopes e o Baptista Rosa convidou-nos para fazer a adaptação cinematográfica de "Domingo à Tarde", do Fernando Namora. Eu já tinha trabalhado no cinema com o Lopes e, mais tarde, haveríamos de fazer o "Belarmino" [1964]. Como eu dizia, o Baptista Rosa contratou-nos aos dois e instalou-nos na Ericeira, por um mês, para escrever o guião. Acabámos por fazer aquilo em dez dias e eu resolvi aproveitar os vinte dias que restavam para escrever um livro. De regresso a Lisboa, mostrei o original ao meu querido amigo Carlos de Oliveira e ele não esteve com meias-medidas: "Você vai publicar isto imediatamente!". Assim nasceu "O Secreto Adeus", livro de denúncia do jornalismo que se praticava na época, com uma trama agressiva, a que não faltava o sexo e a aventura e aquele romantismo do jornalista na noite lisboeta. O nosso "Domingo à Tarde" ficou na gaveta (mais tarde o António de Macedo fez o filme com outro guião) mas "O Secreto Adeus" teve um êxito fulgurante, já fez quase uma dezena de edições e ainda hoje é lido, sobretudo pelas camadas jovens.» [ibidem]
Impedido de continuar a trabalhar na RTP, por ordem expressa do director do Secretariado Nacional de Informação, César Moreira Baptista («Esse senhor é um contumaz adversário do regime.»), Baptista-Bastos fica mais uma vez desempregado, passando sazonalmente pela redacção da agência France Press, em Lisboa.
Em meados de 1963, ingressa no jornal "República". Em finais de Março de 1964, desloca-se ao Brasil, como secretário do actor Raul Solnado, que tinha sido contratado pela TV Rio (antecessora da TV Record). A sua chegada coincide com o golpe militar que depôs o presidente João Goulart, e as notícias que envia para aquele vespertino não passam no crivo da Censura.
Em 1965, é admitido noutro vespertino, o "Diário Popular", ao qual permanecerá ligado até 1988. Neste jornal, vem a publicar, no dizer de Afonso Praça, «algumas das mais originais e fascinantes reportagens, entrevistas e crónicas da Imprensa portuguesa da segunda metade do século». «Quando cheguei ao "Diário Popular", o Brás Medeiros [patrão e estratega do jornal] pôs-me logo à vontade: "Eu sei como que é que o senhor pensa, sei onde é que esteve metido e vou dizer-lhe uma coisa: os patrões nunca lhe vão cortar uma linha – mas se a Censura cortar, isso é um problema seu e da Censura.". E foi assim mesmo. E nesta aventura do "Diário Popular" passei eu 23 anos! Viajei por mais de trinta países, escrevi sobre tudo e em todos os géneros, desde as notícias do dia aos artigos de fundo. Uma vez, em 1968, mandaram-me em serviço à Alemanha Ocidental, eu aproveitei e dei um saltinho à RDA comunista, clandestinamente. De regresso, achei que devia contar-lhes. E o Brás Medeiros: "Já escreveu?". Ele disse isto com uma severidade no olhar que eu sabia interpretar. Nunca tinha pensado falar da RDA, mas fui a correr e escrevi a reportagem, mandei-a para a tipografia e ele enviou o artigo para a Censura. Eles retiveram as provas uma data de tempo, até que um dia entra ele na redacção e pergunta: "As palavras do Bastos? Ainda não vieram? Há quanto tempo estão lá?". Quando lhe disseram que o meu artigo já estava demorado dez dias, ele agarrou no telefone, ligou para o coronel Galvão, que era um dos grandes da Censura, e disse: "Eu mandei o Baptista-Bastos à RDA, mandei-o escrever a reportagem, eu li a reportagem dele, é uma reportagem rigorosa e, se as provas não estiveram cá dentro de duas horas, amanhã mete artigo de fundo, porque eu digo ao Prof. Martinho Nobre de Melo que quem mandou escrever o artigo fui eu, quem manda na minha casa sou eu!". Um quarto de hora depois estavam lá as provas, aprovadas. Hoje em dia já não há histórias destas, já ninguém faz isto por ninguém. E também é o retrato da época em que havia uma relação muito estreita entre o patrão e o jornalista. E isso verificou-se em vários jornais, tem piada, no "Jornal do Comércio" do Fausto Lopes de Carvalho, n' "O Século" dos Pereira da Rosa, no "Diário de Lisboa" dos Ruella Ramos.» [ibidem]
Baptista-Bastos pertenceu, também, aos corpos redactoriais de outros jornais e revistas: "O Diário", "Europeu", "Almanaque", "Seara Nova", "Gazeta Musical e de Todas as Artes", "Época" e "Sábado".
Foi um dos fundadores do semanário "O Ponto", que teve existência efémera (inícios dos anos 80), no qual publicou uma série de oitenta entrevistas que assinalaram uma renovação naquele género jornalístico e marcaram a época, posteriormente coligidas no volume "O Homem em Ponto" (1984).
Em 1999, no âmbito das comemorações do 25.º aniversário da Revolução dos Cravos, a direcção do "Público" convidou-o a realizar dezasseis entrevistas, subordinadas ao tópico "Onde É Que Você Estava no 25 de Abril?", as quais desencadearam alguma polémica e constituíram um assinalável êxito jornalístico. Doze dessas entrevistas (com Álvaro Guerra, Carlos Brito, D. Januário Torgal Ferreira, Emídio Rangel, Fernando de Velasco, Hermínio da Palma Inácio, João Coito, Joshua Ruah, general Kaúlza de Arriaga, Manuel de Mello, padre Mário de Oliveira e Pedro Feytor Pinto) foram inseridas num CD-ROM (que teve uma tiragem de 55 mil exemplares), distribuído juntamente com a edição de 25 de Abril de 1999 daquele matutino.
Na mesma ocasião, a convite da direcção do "Diário de Notícias", Baptista-Bastos teve também a seu cargo o enquadramento do capítulo "O Efémero", da edição especial "O Milénio", iniciativa do mesmo jornal.
Como cronista e crítico, colaborou nos mais diversos órgãos da imprensa diária ou periódica: "Jornal de Notícias", "A Bola", "Tempo Livre", "JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias", "Expresso", "Jornal do Fundão", "Correio do Minho", "Diário Económico", "Diário de Notícias", "Jornal de Negócios" e "Correio da Manhã".
A crónica radiofónica também não lhe escapou, tendo lido aos microfones da Antena 1 e da Rádio Comercial as suas sempre avisadas reflexões sobre casos e episódios da vida pública portuguesa. Na TSF - Rádio Jornal, foi o primeiro comentador da popular rubrica "Crónicas de Escárnio e Maldizer". Antes, em 1970, a convite de Carlos Cruz, gravara um EP com quatro crónicas, musicalmente ilustradas por António Victorino d'Almeida, que foi apreendido pela PIDE.
Em 1990, Baptista-Bastos foi um dos entrevistadores do Prof. Agostinho da Silva, na memorável série "Conversas Vadias" (RTP-1) e, a partir de Novembro de 1996 até Janeiro de 1998, manteve nas noites da SIC o programa "Conversas Secretas", no qual entrevistou uma vasta galeria de pessoas célebres (e menos célebres) oriundas dos mais variados sectores da sociedade portuguesa. Retomou a realização de entrevistas para o canal SIC-Notícias, no programa "Cara-a-Cara", de Janeiro a Agosto de 2001.
No campo da ficção, após o já referido "O Secreto Adeus", publicou os seguintes romances: "O Passo da Serpente" (1965); "Cão Velho entre Flores" (1974), «obra das mais fortes e belas da literatura portuguesa deste século», nas palavras de Urbano Tavares Rodrigues; "Viagem de um Pai e de um Filho pelas Ruas da Amargura" (1981), que Óscar Lopes considerava «o livro dos livros novelísticos da sua geração, senão de toda a literatura portuguesa de aquém 1950»; "Elegia para um Caixão Vazio" (1984), "A Colina de Cristal" (1987), galardoado com o Prémio Literário Município de Lisboa e com Prémio P.E.N. Clube Português de Narrativa; "Um Homem Parado no Inverno" (1991); "O Cavalo a Tinta-da-China" (1995); "No Interior da Tua Ausência" (2002), agraciado com o Prémio da Crítica do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários; e "As Bicicletas em Setembro" (2007).
Baptista-Bastos está traduzido em checo, búlgaro, russo, alemão, castelhano e francês.
Muitas das suas crónicas e entrevistas estão publicadas em livro. Um desses títulos, "As Palavras dos Outros" (1969), é considerado «um clássico» e «uma referência obrigatória na profissão», na opinião de dois dos seus pares, Adelino Gomes e Fernando Dacosta, respectivamente, tendo sido recomendado como «leitura indispensável» no I Curso de Jornalismo organizado pelo sindicato da classe.
Entre os numerosos prémios que recebeu, na qualidade de jornalista ou de ficcionista, contam-se: Prémio Feira do Livro (1966), Prémio Artur Portela da Casa da Imprensa (1978), Prémio Nacional de Reportagem/Prémio Gazeta do Clube de Jornalistas (1985), Prémio Casa da Imprensa (1986), Prémio "O Melhor Jornalista do Ano" (1980 e 1983), Prémio Porto de Lisboa (1988), Prémio Gazeta de Mérito do Clube de Jornalistas (2004), Prémio de Crónica João Carreira Bom da Sociedade de Língua Portuguesa (2006) e Prémio Alberto Pimentel do Clube Literário do Porto (2006).


BIBLIOGRAFIA ACTIVA:

Ensaio, crónicas e entrevistas:
- O Cinema na Polémica do Tempo (ensaio), Lisboa: Gomes & Rodrigues, Lda., 1959
- O Filme e o Realismo (ensaio), Lisboa: Arcádia, 1962; Porto: Nova Crítica, 1979
- As Palavras dos Outros (crónicas, reportagens e entrevistas), Mem Martins-Sintra: Publicações Europa-América, 1969; Lisboa: Círculo de Leitores, 2000
- O Sinal do Tempo (4 crónicas lidas), música de António Victorino d'Almeida, Lisboa: Zip-Zip, 1970 [EP]
- Cidade Diária (crónicas), Editorial Futura, 1972
- Capitão de Médio Curso (crónicas), Lisboa: Editorial Caminho, 1977
- O Homem em Ponto: Entrevistas, Lisboa: Relógio d'Água, 1984
- O Nome das Ruas (monografia), em colaboração com António Borges Coelho, fot. José Antunes, Lisboa: Câmara Municipal / Livros Horizonte, 1993
- José Saramago: Aproximação a um Retrato (biografia), Lisboa: Publicações Dom Quixote / Sociedade Portuguesa de Autores, 1996
- Fado Falado (26 entrevistas), pref. José Saramago, fot. José Santos, Alfragide-Amadora: Ediclube, 1999
- Onde É Que Você Estava no 25 de Abril? (12 entrevistas), Lisboa: Público, 1999 [CD-ROM]
- Retratos para Aquilino (monografia), textos de Mário Soares, José Saramago, Vasco Graça Moura, José Manuel Mendes, António de Almeida Santos, Eduardo Lourenço, Luísa Costa Gomes, Urbano Tavares Rodrigues, Baptista-Bastos, Jorge Reis e Luiz Francisco Rebello; desenhos por José Rodrigues, Alberto Péssimo, Fernando Lanhas, Maria Keil, João Abel Manta, Fernando de Azevedo, Armando Alves, Jorge Pinheiro, José Emídio e Rogério Ribeiro. Paredes de Coura / Porto: Câmara Municipal de Paredes de Coura / Cooperativa Árvore, 2000
- Lisboa Contada pelos Dedos (crónicas), Lisboa: Montepio Geral, 2001; Lisboa: Círculo de Leitores, 2006 [Grande Prémio de Crónica da Associação Portuguesa de Escritores, 2003]
- A Cara da Gente: Prazeres, Devaneios, Invenções e Passeatas (crónicas), Cruz Quebrada-Oeiras: Oficina do Livro, 2008
- Tempo de Combate (crónicas), Lisboa: Edições Parsifal, 2014

Poesia:
- Caminho e Outros Poemas (poesia), Lisboa: Edição do autor [Tipografia Gráfica Boa Nova], 1951

Ficção:
- O Secreto Adeus (romance), Lisboa: Portugália Editora, 1963; Porto: Edições Asa, 2001
- O Passo da Serpente (romance), Lisboa: Prelo, 1965; Porto: Edições Asa, 2001
- Cão Velho entre Flores (romance), Lisboa: Editorial Futura, 1974; Alfragide-Amadora: Oficina do Livro, 2011
- Viagem de um Pai e de um Filho pelas Ruas da Amargura (romance), Lisboa: Forja, 1981; Cruz Quebrada-Oeiras: Oficina do Livro, 2008
- Elegia para um Caixão Vazio (romance), Lisboa: O Jornal, 1984; Alfragide-Amadora: Oficina do Livro, 2009
- A Colina de Cristal (romance), Lisboa: O Jornal, 1987; Porto: Edições Asa, 2000 [Prémio Literário Município de Lisboa, 1987, e Prémio P.E.N. Clube Português de Narrativa, 1988]
- Um Homem Parado no Inverno (romance), Lisboa: O Jornal, 1991; Porto: Edições Asa, 2001
- O Cavalo a Tinta-da-China (romance), Lisboa: Temas da Actualidade, 1995; Cruz Quebrada-Oeiras: Oficina do Livro, 2008
- No Interior da Tua Ausência (romance), Porto: Edições Asa, 2002; Lisboa: Círculo de Leitores, 2004 [Prémio da Crítica do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários, 2003]
- As Bicicletas em Setembro (romance), Porto: Edições Asa, 2007; Alfragide-Amadora: Oficina do Livro, 2010
- A Bolsa da Avó Palhaça (novela autobiográfica), ilustr. Mónica Cid, Cruz Quebrada-Oeiras: Oficina do Livro, 2007


BIBLIOGRAFIA PASSIVA:
- Letria, José Jorge. Conversas com Letras: Entrevistas com Escritores, Lisboa: O Escritor, 1994
- Marinho, Maria de Fátima. O Romance Histórico em Portugal, Porto: Campo das Letras, 1999
- Teles, Viriato. Contas à Vida: Histórias do Tempo Que Passa, Lisboa: Sete Caminhos, 2005 (http://www.viriatoteles.com/web/livros/contas-a-vida/239-baptista-bastos)


Qual foi a atitude da rádio pública quando se soube da morte de Baptista-Bastos?
Logo no dia do falecimento (9 de Maio), a Antena 2 recuperou duas entrevistas: uma feita por João Almeida, em 2008, para o programa "Quinta Essência" [>> RTP-Play], e outra realizada por Luís Caetano, em 2014, a propósito do lançamento do livro de crónicas "Tempo de Combate", para o programa "A Ronda da Noite" [>> RTP-Play]. O meu aplauso!
E a Antena 1? Naquele dia, não acompanhei a emissão e, por isso, não posso testemunhar se o insigne jornalista e escritor foi, ou não, homenageado. E digo "homenageado" porque tal pressupõe algo mais do que dar a notícia do falecimento e anunciar o local onde vai decorrer o velório. Se a Antena 1 transmitiu algum programa em memória de Baptista-Bastos (por exemplo, uma entrevista), procedeu adequadamente; se o não fez, foi negligente e isso tem a reprovação dos ouvintes/contribuintes. Caso tenha havido programa, tal não dispensa, como é bom de ver, que se resgate do arquivo histórico as melhores crónicas que o emérito jornalista leu na mesma Antena 1, a fim de serem transmitidas ao ritmo de uma por dia, durante umas boas semanas. Fica a sugestão, na esperança de que não caia em saco roto!
Pela nossa parte, é com imenso orgulho que apresentamos o registo da interessantíssima entrevista que Baptista-Bastos concedeu a outro grande dos seus pares, Carlos Pinto Coelho, para o programa de rádio "Agora... Acontece!", emitido em Fevereiro de 2001.
Este tributo ficaria incompleto se não se pudesse apreciar a arte de entrevistar do próprio Baptista-Bastos, de viva voz. À falta de gravação radiofónica, deixamos o vídeo da "Conversa Vadia" com o Prof. Agostinho da Silva. Um regalo!


"Agora... Acontece!" N.º 117, de 26 Fev. 2001



Baptista-Bastos entrevistado por Carlos Pinto Coelho [a partir de 2':52'']



Baptista-Bastos entrevistando o Prof. Agostinho da Silva (Ep. 5 das "Conversas Vadias", RTP-1, 1990)



Capa da primeira edição do livro "As Palavras dos Outros" (Colecção "Prisma", Publicações Europa-América, 1969)



Capa da primeira edição do romance "Cão Velho entre Flores" (Editorial Futura, 1974)
Reprodução parcial do quadro inacabado "Die Braut" ("A Noiva"), 1917, de Gustav Klimt.
(http://www.klimt.com/en/gallery/late-works/klimt-die-braut-unvollendet-1917.ihtml)



Capa da primeira edição do romance "Viagem de um Pai e de um Filho pelas Ruas da Amargura" (Forja, 1981)

13 maio 2017

Antena 1: uma emissora católica e apostólica? (II)



A exemplo do que se passou em Maio de 2010, aquando da visita de Bento XVI, a programação normal da Antena 1 foi totalmente elidida e substituída pela cobertura, ao milímetro e ao segundo, de todos os acontecimentos (e não acontecimentos) respeitantes à viagem que o papa Francisco acabou de fazer a Fátima. Creio que foi o próprio Jorge Bergoglio quem afirmou que vinha a Fátima como peregrino. Portanto, não se tratou de uma visita oficial do chefe de Estado do Vaticano a outro estado, no caso Portugal. Ora, sendo uma viagem de cariz estritamente apostólico, a rádio pública devia ter mais pudor e recato, em obediência ao seu estatuto de entidade laica, na cobertura do evento, cingindo-se ao que tivesse valor informativo real e objectivo para a generalidade dos cidadãos (nos intercalares noticiosos). Ao cobrir de modo intensivo, exaustivo e obsessivo tudo que era de índole meramente religiosa, designadamente as cerimónias litúrgicas na Cova da Iria, a Antena 1 comportou-se como se fosse a Rádio Renascença e isso merece o veemente repúdio de quem preza o livre-pensamento e não quer ser catequizado, como é o caso do escrevente destas linhas. E digo isto perfeitamente à vontade pois, apesar de ser agnóstico, até simpatizo com o homem que o colégio cardinalício elegeu (talvez por engano) para suceder a Joseph Ratzinger no trono pontifício.
A circunstância da maioria da população portuguesa ser (culturalmente) católica não valida a opção de quem manda na Antena 1. O Estado Português e todas as entidades da sua esfera não devem envolver-se nos assuntos da fé, porque se o fizerem, colocando-se ao lado de uma determinada confissão, estão inevitavelmente a dar a entender de que aquela é que é a verdadeira e a autêntica. Concomitantemente, os que professam outros credos e os que não têm credo algum recebem o estigma implícito de ímpios e degenerados mentais. A fé religiosa (ou a não-fé assumida em total liberdade de consciência) é do foro íntimo de cada um e jamais se poderá admitir que o Estado (que representa todos) tome partido por alguma.


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