28 outubro 2008

Informação ou publicidade encapotada?



De há longa data que tinha por hábito ouvir o noticiário das 8:00 da Antena 1, mas devido à crescente "tabloidização" da informação da rádio pública e da irritante promiscuidade entre informação e entretenimento (futebol e não só) dentro dos espaços noticiosos, tenho de confessar que essa assiduidade deixou de existir. Com efeito, nos últimos tempos, mal o irreverente e salutar "Portugalex" fecha portas, o meu instinto de autodefesa impele-me a procurar outra sintonia para tomar conhecimento das primeiras novas do dia – ora a RR, ora o RCP –, estações onde, apesar de tudo, existe um maior rigor, ponderação e bom senso na selecção e tratamento dos assuntos da actualidade. Ontem, porém, talvez por alguma inércia própria do pós-fim-de-semana lá continuei na Antena 1, embora ciente de que as probabilidades de que alguma coisa não me iria agradar seriam muito elevadas. E a verdade é que não me enganei. Antes de mais, tenho de dizer que não aprecio mesmo nada o estilo apressado e atabalhoado da papa-sílabas Eduarda Maio, que migrou (porquê?) da "Antena Aberta" para os noticiários. Bem, mas o motivo da minha reclamação é outro e de natureza menos formal e mais substantiva. Refiro-me à colocação, e com honra de destaque de abertura, de uma notícia a dar conta de um disco novo da cantora jamaicana Grace Jones, de título genérico "Hurricane", que alegadamente vem pôr fim a uma pausa de vinte anos sem gravar (o que nem é de todo verdade pois o anterior disco de originais, "Bulletproof Heart", data de 1989, o que dá 19 anos). Pergunta óbvia: terá este evento uma relevância cultural assim tão grande a ponto de merecer o destaque que teve no noticiário de maior audiência do canal generalista da rádio pública? E terá tal notícia revestido um indiscutível interesse para a generalidade dos ouvintes da Antena 1? Não me parece e é facilmente constatável que houve um claro exagero e desproporcionalidade na opção do editor, no caso Eduarda Maio. E digo isto sem o menor acinte contra a cantora (modelo e actriz) Grace Jones pois até aprecio alguns temas do seu repertório, designadamente a versão do clássico de Edith Piaf, "La Vie en Rose", e "I've Seen That Face Before (Libertango)", com música composta por Astor Piazzolla, que faz parte da banda sonora do filme "Frenético" ("Frantic", 1988), de Roman Polanski. Acresce que o novo disco nem é nada de excepcional e muito provavelmente vai decepcionar muitos dos apreciadores/fãs da artista, pelo que a notícia e o realce que lhe foi dado assumem um carácter ainda mais extravagante e descabido numa rádio generalista (a minha opinião seria diferente se estivéssemos a falar do canal MTV, por exemplo).
E o caso até nem é inédito, pelos menos desde que João Barreiros assumiu a direcção de informação da RDP: se bem me lembro, a Madonna e outras figuras da pop internacional também já tiveram honras de abertura nos noticiários da Antena 1. E aqui vamos bater inevitavelmente em vários pontos que deveriam merecer a atenção e reflexão de quem tutela e tem por responsabilidade avaliar o serviço prestado pela estação pública. Primeiro ponto: a inaceitável promiscuidade entre informação e entretenimento (futebol, desportos motorizados, música pop, espectáculos circenses, promoção a filmes comerciais, etc.); segundo ponto: a falta de um critério sério e rigoroso de filtragem do que é informação e do que não passa de marketing (no caso da Grace Jones, a referência ao facto, ainda que inexacto, de já não lançar álbuns de originais há vinte anos, não é certamente inocente); terceiro ponto: o flagrante desequilíbrio no tratamento que é dado nos noticiários (e outros espaços de informação) à música pop anglo-americana em prejuízo da música portuguesa. Quantos e quais os álbuns de produção nacional, editados no ano corrente (para não ir mais longe), que já mereceram, na Antena 1, o mesmo destaque que foi dado ao disco da Grace Jones? A título de exemplo, aproveito para apontar (por ordem alfabética dos intérpretes) alguns trabalhos que mereciam, no mínimo, idêntico tratamento: "Solo", de António Pinho Vargas; "Palavras do Meu Fado", de Cristina Nóbrega; "Voando sobre o Fado", de Deolinda Bernardo; "Meu Bem, Meu Mal", de José Barros e Navegante; "Escarpa", de Mandrágora; "Terra", de Mariza; "Um Sol Maior", de Origem; "Pé na Terra", de Pé na Terra; "Sensual Idade", de Pedro Barroso; e "Pousio", de Roda Pé. Agora cumpre-me fazer uma pergunta muito simples: algum destes bons álbuns de música portuguesa chegou, já não digo a ser destacado nos tópicos de abertura, mas pelo menos a ser referenciado no corpo dos noticiários da Antena 1? E não caberia à rádio do Estado (suportada pelos contribuintes), ao abrigo das obrigações de serviço público a que está vinculada, dar prioridade e primazia à música portuguesa, em especial a mais qualificada?

21 outubro 2008

Haendel em versão Reader's Digest



A existência de programas, ou de ciclos temáticos, dedicados à divulgação mais ampla e aprofundada da obra de determinado compositor, género ou época, é sempre de louvar no serviço público de rádio. E presumo que terá sido esse o propósito que presidiu à encomenda (ou à aceitação da proposta) da série de programas "Haendel de A a T", inserida no espaço Caleidoscópio (domingos, às 9 horas da manhã). Haendel, apesar de ser um dos compositores mais proeminentes do período barroco, e de toda a História da Música, tem uma obra relativamente pouco conhecida, se exceptuarmos as suites orquestrais "Música Aquática" e "Música para os Reais Fogos de Artifício", a oratória "Messias" e umas quantas árias de ópera (sobretudo para contratenor). A restante e prolífica produção haendeliana é praticamente desconhecida do público português, facto que se explica por tais obras muito raramente serem tocadas/representadas em Portugal e também pela sua parca e esporádica divulgação radiofónica. Neste contexto, a aposta num ciclo de programas dedicado ao compositor, alemão de nascimento e inglês por adopção, podia ser uma boa oportunidade para os ouvintes da Antena 2, em especial os amantes da música barroca, descobrirem, ou redescobrirem com maior profundidade e amplitude, o seu vasto repertório, nas suas diferentes categorias – obras religiosas, obras corais profanas, óperas, música de câmara, obras concertantes e orquestrais. Mas quem alimentou tais expectativas – perfeitamente legítimas, aliás – viu-as goradas. Senão vejamos! Quem se deu ao cuidado de acompanhar as três emissões de "Haendel de A a T", que até à data foram para o ar, o que é que ouviu? Sequências aleatórias e perfeitamente desconchavadas (quais miscelâneas das Selecções do Reader's Digest) de árias e duetos de ópera com um ou outro trecho de música orquestral, entremeadas com comentários mal elaborados e de reles recorte, revelando um pedantismo insuportável. Comentários esses, ainda por cima, debitados por uma voz de uma fealdade horripilante (roufenha e a descair para o grunhido, ressalvando a alusão eventualmente abusiva à vocalização porcina) e numa dicção de cano de esgoto. Raul Mesquita é o nome do autor e apresentador desta mistela intragável (não obstante a música de Haendel) que a Antena 2 nos passou a servir nas manhãs de domingo. Não conheço o sr. Raul Mesquita, nem nunca o vi, magro ou gordo, mas pelo que se tem ouvido, fica bem evidente que a pessoa não reúne as condições mínimas para realizar e, ainda menos, para apresentar um programa de rádio. Para fazer um programa não basta ter uma boa colecção de discos e, eventualmente, frequentar salas concertos / teatros de ópera: é preciso dominar em profundidade os assuntos que se pretende tratar e, depois, saber expor o que se sabe, de forma clara e em bom português, e com uma lógica de encadeamento, o que não é notoriamente o caso. Mas mesmo que fosse, nada nos diz que um autor tenha de ser também apresentador, quando Deus (ou a Natureza) não o dotou de uma voz com as características necessárias à locução radiofónica. Se Raul Mesquita não tinha consciência disso era expectável que alguém da rádio pública lho explicasse. E aqui terá de se pedir responsabilidades à direcção de programas da Antena 2. Como é possível que Rui Pêgo e o seu adjunto João Almeida, que até nem eram extraterrestres do meio rádio quando foram colocados à frente da Antena 2, tenham aprovado semelhante voz e, ainda por cima, num canal que pelo seu figurino e sentido de exigência do seu auditório requeria um cuidado redobrado? Não dá mesmo para entender! Mas há uma coisa que fica clara: o presente caso é apenas mais um que serve para demonstrar a total inépcia e incompetência daqueles dois indivíduos para dirigirem o canal clássico/cultural da rádio pública.

14 outubro 2008

O futebol não vale o mesmo que a ciência e a cultura

A abertura de noticiários com futebol e o peso excessivo que o mesmo tem na programação da Antena 1 foi uma das questões que o Provedor do Ouvinte, Adelino Gomes, teve a louvável iniciativa de levar ao seu programa, na edição de 10 de Outubro. A questão é deveras pertinente e a resposta dada pelo director de informação, João Barreiros, não pode deixar de ser motivo de preocupação para quem preza do serviço público de rádio. Para este senhor, o futebol deve ser tratado no mesmo plano, e com a mesma "dignidade" (sic), que os assuntos políticos, sociais, económicos, científicos e culturais. Mas em que país é que estamos? Terá realmente o futebol a mesma importância e relevância que todos os outros assuntos que mexem com a nossa vida? Vamos lá ver se nos entendemos. Quando o Paulo Bento, com o seu estilo peculiaríssimo e risível, se põe a debitar banalidades sobre um jogo que ainda não aconteceu, isso terá o mesmo valor informativo que, por exemplo, o lançamento de um romance de José Saramago, a estreia de um filme de Manoel de Oliveira ou a descoberta de uma vacina? Não, definitivamente não tem. Pelo menos assim pensa quem ainda tem algum senso e não vive em estado de alucinação futebolística. Bem, eu falei do Paulo Bento por ser o caso mais anedótico mas a minha asserção vale para qualquer outro treinador ou jogador de futebol, independentemente do clube. Mas a verdade é que os noticiários da Antena 1 passaram a estar pejados desse género de lixo, e não é raro essa pseudo-informação ter primazia, em destaque e em tempo de antena, relativamente a assuntos de importância realmente superior. E aqui nem há nenhuma particular antipatia face ao futebol: o que se disse é igualmente aplicável a qualquer outra modalidade desportiva e, já agora, também às touradas, às lutas de galos, às corridas de cães, etc. E nem vale a pena vir dizer que o futebol é um desporto com muitos adeptos, logo de grande interesse público. Por essa ordem de ideias, também teria de haver pena de morte em Portugal porque a generalidade da população desejaria que ela existisse. Mas o nosso ordenamento jurídico proíbe-a, e muito bem. Isto para dizer que nem todos os desejos da populaça devem ser atendidos e, muito menos, estimulados. As estações privadas, por razões estritamente comerciais, até podem enveredar por esse caminho (ainda assim não sem a regulação de uma entidade supervisora) mas tal não deverá acontecer com a rádio pública, que por ser financiada pelos contribuintes tem a obrigação de se reger por outros critérios. E que critérios são esses? O equilíbrio, a justa medida, o rigor, a verdade, a imparcialidade, a atenção ao essencial em detrimento do acessório, o bom gosto, e – subjacente e transversal a tudo isso – um apurado sentido de serviço público. E nesse conceito de serviço público caberá inevitavelmente a componente pedagógica e formativa dos auditórios, coisa muito diferente da "informação" de encher chouriços, por muitos saborosos e apetecíveis que os ditos (os verdadeiros) possam ser. A propósito, porque motivo os noticiários da Antena 1, ao virar da hora, hão-de ter sempre quinze minutos de duração?
Em conclusão: atribuir ao futebol (e a outros tipos de entretenimento) o mesmo valor e dignidade das actividades verdadeiramente importantes para a vida humana, só pode decorrer de uma ideia conceptualmente errada e distorcida, em primeiro lugar, relativamente ao que merece ou não ser objecto de notícia e, em segundo, da relevância informativa da matéria em apreço. Entretenimento é uma coisa, informação é outra. E o futebol enquanto entretenimento deve ser tratado como tal. Porque é estúpido, estupidificante e, pior ainda, alienante atribuir-lhe uma importância que por natureza ele não tem. Não terá o futebol, hoje em dia, a mesma função que tinha o circo no tempo dos Romanos?