18 junho 2008

Bach achincalhado na Antena 2



Rui Pêgo e João Almeida, habituados à lógica comercial das rádios por onde passaram, logo que foram postos a dirigir a Antena 2, não descansaram enquanto não a contaminaram de uma carga considerável de factores de poluição auditiva. Refiro-me à abundante e oca verborreia, ainda por cima numa deficiente e reles dicção, do inenarrável "Império dos Sentidos" (a propósito, já pagaram direitos de autor ao cineasta Nagisa Oshima?), a outras aberrações da grelha como "Fuga da Arte" e "Vias de Facto", e muito especialmente aos massacrantes jingles e 'spots', disparados a todo o momento. Um dos 'spots' que já deve ter passado milhares de vezes, desde que a grelha foi reformulada em Março último, é aquele em que puseram um trecho de uma composição de Bach, mais concretamente do Allegro inicial do concerto para violino e orquestra de cordas, BWV 1042, em cima do qual se nomeiam pintores, museus e salas de concertos, terminando com a indicação de uma frequência hertziana da Antena 2 e o slogan "Antena 2: a arte que toca". Ora se a utilização de uma obra do divino Bach num 'spot' promocional já revela uma certa leviandade e – porque não dizê-lo – uma sintomática falta de respeito e de deferência pelo superlativo legado do mestre de Köthen (digo Köthen porque foi nessa pequena cidade alemã que, entre 1717 e 1723, o genial Johann Sebastian compôs, para o príncipe calvinista Leopold, o concerto em causa e, bem assim, boa parte do seu acervo de obras instrumentais, de que destaco as suites para violoncelo solo), mais grave ainda é a repetição recorrente e sucessiva do referido 'spot'. E isso é feito quase sempre a intervalos de uma hora (às vezes menos), pelos locutores de continuidade, presumo eu que não por alguma obsessão sadomasoquista que deles se tenha apoderado (embora alguns evidenciem já terem adquirido um tique subliminar e mecânico, com as inevitáveis situações em que metem os pés pelas mãos), mas em obediência a ordens expressas da dupla Rui Pêgo / João Almeida. Dois indivíduos que, imbuídos da euforia de quem descobriu a pólvora, se não têm poupado a esforços na "nobre missão" de "modernizar" a "vetusta" Antena 2, afastando profissionais de incontestada competência e preparação intelectual para dar lugar a imberbes e amigos medíocres e, como se isso não bastasse, introduzindo na antena uma série de "inovações" de que, em boa verdade, ela nunca precisou para prestar um serviço de reconhecida qualidade e que mais não são do que espartilhos que a não deixam respirar e que efectivamente apenas a têm reduzido a uma triste sombra do paradigma de excelência que já foi o seu timbre. E uma das "inovações" introduzidas são precisamente os blocos promocionais, ao virar de cada hora, como que dando-se a entender aos ouvintes que optam pela Antena 2: «Ah! não querem ouvir os noticiários e os anúncios comerciais das outras, pois nem por isso se livram de gramar com umas boas cartuchadas de publicidade institucional e, claro está, os nossos 'spots' autopromocionais. Já os ouviram muitas vezes? Paciência. Os ouvintes das privadas também ouvem milhentas vezes os anúncios do BES e de outras banhas da cobra e não se queixam. O nosso conceito de serviço público é assim, e é para quem quer. Quem não está satisfeito vá dar uma volta ou ponha a tocar CDs!». Agora falo eu: pois, pois, mas para tocar CDs eu não precisava de desembolsar a taxa do audiovisual (20.52 euros anuais + IVA), montante a que acrescem ainda avultadas verbas do Orçamento Geral do Estado (provenientes dos nossos impostos, directos e indirectos), ao abrigo do contrato de concessão de serviço público. Então, em que ficamos? Presumindo que Rui Pêgo e o seu adjunto João Almeida não tenham uma resposta (razoável e convincente) para me dar, eu intercedo junto do Provedor do Ouvinte para que se digne apreciar este assunto. Devo dizer que até possuo uma razoável colecção de CDs (e ficheiros áudio) e é claro que não me faz mal nenhum dar-lhes uso frequente, mas enquanto contribuinte (coercivo) para a estação do Estado não abdico do direito que me assiste de reivindicar uma rádio livre das adiposidades que, além de serem perfeitamente inúteis e supérfluas, têm ainda a agravante de constituírem um insuportável factor de saturação e cansaço para os nossos ouvidos. No caso concreto da sublime música de J.S. Bach, que serviu de mote a esta reclamação, eu jamais aceitaria que, por causa de uns irresponsáveis e ineptos, colocados por engano aos comandos da Antena 2, lhe ganhasse anticorpos de rejeição, por saturação e pela banalização e achincalhamento a que a mesma vem sendo criminosamente submetida. Tivessem escolhido qualquer coisa de Philip Glass que já não me queixaria de achincalhamento mas, em todo o caso, não deixaria de me insurgir contra a poluição sonora.
Em conclusão: que os actuais inquilinos da direcção de programas nos devolvam uma rádio clássica devidamente higienizada e limpa do lixo com que a conspurcaram! Ou então, se estão agarrados ao poleiro que nem lapas e não têm a hombridade de se irem embora pelos seus próprios pés, que a administração da Rádio e Televisão de Portugal e a tutela governamental
tenham a clarividência e o bom senso de os apear e de entregar os destinos da rádio clássica a alguém mais capaz e competente.


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