21 junho 2021

Trio Fado: "À Espera do Verão"


"Lisboa à Espera", sardinha criada por João José Largueiras Martins | Concurso Sardinhas Festas de Lisboa 2014


Os festejos dos santos populares acontecem em Junho, e não noutro mês qualquer, porque são adaptações feitas pela Igreja de ancestrais cultos pagãos ao Sol que se realizavam, como está implícito, por alturas do solstício de Verão. Por causa da presente pandemia de COVID-19, ademais verificando-se a disseminação de uma nova estirpe mutante altamente contagiosa, denominada delta, a Câmara Municipal de Lisboa deliberou – e bem –, a exemplo do que fez no ano transacto, não promover as tradicionais festas da cidade e interditar os arraiais e as marchas populares. Procedimento idêntico ou medidas impeditivas da aglomeração de pessoas foram ou devem ser adoptados pelas edilidades do Porto, de Braga e das demais localidades do país onde era costume haver festas e arraiais sob a égide de Santo António, de S. João Baptista, de S. Pedro ou, já em Julho, Agosto ou Setembro, de outros santos. Neste domínio da diversão (e não só) podemos afirmar que o Verão de 2021 será atípico e macambúzio, quase como se fosse Inverno, não restando aos mais dados a folguedos e petiscadas conviviais de sardinhas e bifanas regadas a tinto outra opção (consciente e responsável) que a de esperar pelo Verão de 2022, fazendo figas para que não haja necessidade de prolongar a espera para além daquele. Em termos musicais, o tema "À Espera do Verão", do Trio Fado, não podia vir mais a propósito para ser destacado neste dia em que começou (no hemisfério norte, evidentemente) um Estio que não poderá ser plenamente vivido, mas que tem o condão de fomentar no espírito da maioria das pessoas a legítima esperança de que o próximo se venha a revelar jubiloso.

Dos muitos emigrantes portugueses e lusodescendentes que, além-fronteiras, se dedicam à música (instrumental e/ou cantada em português) poucos produzem obra com qualidade bastante que a torne digna de ser apreciada pelos co-patrícios deste rectângulo lusitano minimamente exigentes e dotados de bom gosto. Entre esses escassos mas honrosos casos contam-se os que formam o Trio Fado, grupo radicado em Berlim que até à data publicou três álbuns, o segundo dos quais em 2009, de título "PortoLisboa", que contém o espécime ora apresentado.
Não sabemos se a RDP-Internacional tem divulgado (ou alguma vez divulgou) repertório do Trio Fado, mas queremos acreditar que sim. Na 'playlist' da Antena 1 é certo que nunca entrou qualquer tema do Trio Fado e temos também sérias dúvidas de que no único e esconso reduto da grelha consagrado ao fado, chamado "Alma Lusa", algo do grupo já marcou presença. E aqui não podemos deixar de apontar o dedo acusatório ao primeiro canal da rádio estatal pelo continuado alheamento ante a boa produção musical da diáspora portuguesa. Tal atitude, além de tremendamente injusta para esses artistas, representa um inqualificável acto de sonegação cultural aos ouvintes de cá, os quais, em razão da contribuição que são obrigados a desembolsar mensal ou bimestralmente, mereciam mais consideração da parte da (sua) Antena 1.



À Espera do Verão



Letra: Maria Carvalho
Música: Frederico Valério ("Não Sei Porque te Foste Embora")
Intérprete: Trio Fado* (in CD "PortoLisboa", Trio Fado, 2009)




[instrumental]

Caminho acompanhando o tempo,
Um tempo que me sabe a curto...

O Inverno aceita o descanso,
Incerto dá lugar ao sol
Que, ainda tão meigo, ao de leve
Toca nas vozes que despertam:
Sem dó esquecem o Inverno,
Viram costas e entoam
Cantos de louvor ao Sol.

Cidade nova me acolhe,
Fresca e embrulhada em cheiro
De tanta lembrança antiga...
Quieta e entregue ao vento,
Agora transformado em brisa,
Ouço o murmúrio de água numa fonte
Que brinca como um riacho de um monte.

[instrumental]

A porta, que conteve a ânsia
De vida de tanta criança,
Range ao abrir, depois de longa chuva,
Com o grito alegre de gente miúda.

[instrumental]

Aberto, o céu dá passagem
A cheiro de sardinha e vinho,
De cigarro e de café...
É o Sr. Verão que nos visita:
Vem em sopro de calor,
Mas diz que ainda não fica.


* Trio Fado:
Maria Carvalho – voz
António de Brito – viola
Daniel Pircher – guitarra portuguesa
Benjamin Walbrodt – violoncelo

Produzido por Trio Fado
Masterizado por Niklas Schmincke, no Studio P4, Berlim
URL: http://www.triofado.de/
https://www.facebook.com/TrioFado/
https://www.youtube.com/channel/UCKvSiLZsq_Zo5Mylo00Bf7Q



Capa do CD "PortoLisboa", do Trio Fado (2009)
Design gráfico – www.meisterstein.de e www.lichtgruen.de
Fotografia – www.meisterstein.de

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Outros artigos com canções alusivas ao Verão:
Janita Salomé: "Reino de Verão"
Grupo Banza: "Verão"
Fernando Pardal: "Estio" (Manuel da Fonseca)
Trovante: "Noite de Verão" (Manuel da Fonseca)

11 junho 2021

Vitorino: "Marcha Ingénua"



Os soldados portugueses que, quando se deu o derrube do Estado Novo, a 25 de Abril de 1974, estavam mobilizados nas colónias africanas, então eufemisticamente denominadas províncias ultramarinas, a passar "tormentas com fartura d'incertezas" (à parte o sofrimento psíquico que as guerras sempre provocam nos que nelas intervêm directamente, os danos físicos e a morte podiam ocorrer a qualquer momento), embora tendo deixado de haver razões para continuarem a combater os chamados 'turras', pois uma das linhas programáticas do triunfante Movimento das Forças Armadas (MFA) era precisamente acabar com a guerra colonial, não lograram regressar de imediato às suas terras na Metrópole, como então se designava este rectângulo ocidental da Península Ibérica. Por razões de logística e outras, muitos viram-se na contingência de lá permanecer durante vários meses. E entre eles não eram poucos os que haviam cá deixado namorada ou noiva cujas cartas, como é fácil de entender, eram sempre muito esperadas e desejadas. É a essas notícias do Portugal já liberto da mordaça, em que os cravos se haviam tornado o símbolo da liberdade, que Vitorino Salomé alude na letra da sua belíssima "Marcha Ingénua", cujo esfuziante arranjo magnificamente gizado pelo maestro Sílvio Pleno evoca as bandas filarmónicas que animavam (e ainda hoje animam, se bem que em menor grau) as festas populares e as romarias em cidades, vilas e aldeias de Portugal (os foguetes a estalejar na secção final da marcha servem justamente para frisar o ambiente festivo que rodeia a actuação das bandas filarmónicas). Em véspera dos festejos de Santo António, em Lisboa e noutras localidades portugueses, seria difícil escolher um espécime do repertório de Vitorino mais apropriado do que a jovial "Marcha Ingénua" para com ela também celebrarmos o 80.º aniversário do cantautor e darmos nota da nossa penhorada gratidão por tantas e belas canções com que presenteou os apreciadores de boa música popular portuguesa (a recriada do cancioneiro tradicional e a concebida de raiz). Muito obrigado, Vitorino! E os nossos sinceros parabéns, com votos de longa vida!

Apesar de ser um dos mais distintos e reconhecidos autores, compositores e intérpretes do meio musical português, Vitorino não recebe actualmente das rádios portuguesas (privadas e pública) a devida atenção e divulgação. Estando a sua discografia recheada de pérolas, impõe-se que algumas delas sejam incluídas, ao menos, na 'playlist' da Antena 1, atendendo às suas particulares obrigações no capítulo da música portuguesa. Será um acto da mais elementar justiça ao meritório artista e uma boa maneira de elevar a qualidade da oferta musical do canal, a contento dos ouvintes/contribuintes já saturados de tanto lixo sonoro (exógeno e endógeno).



Marcha Ingénua



Letra e música: Vitorino Salomé
Intérprete: Vitorino* (in LP "Flor de la Mar", EMI-VC, 1983, reed. EMI-VC, 1992, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2008; CD "As Mais Bonitas", EMI-VC, 1993, EMI Music Portugal, 2012; 3CD "Tudo": CD 2 – "Lisboa", EMI Music Portugal, 2005)




[instrumental]

Embarcados p'rás tormentas
Com fartura d'incertezas:
Adeus, cais da felicidade!
Lá vão barcas portuguesas...

Oh! Enganadoras luas,
Trópico de Capricórnio,
Madrastas de bode preto,
Enteadas do demónio!

Oh! Império de má memória,
Dos cães de fila da moda!

Voa, vai, negra andorinha!
Pede à minha namorada
Dê notícias de Lisboa,
Das praças livres, dos cravos,
Das saudades que lhe tenho
De vê-la subir a rua...
A cantar a tal cantiga:
Primavera não esquecida!

Voa, vai, negra andorinha!
Pede à minha namorada
Dê notícias de Lisboa,
Das praças livres, dos cravos,
Das saudades que lhe tenho
De vê-la subir a rua...
A cantar a tal cantiga:
Primavera não esquecida!

[instrumental]

Das saudades que lhe tenho
De vê-la subir a rua...
A cantar a tal cantiga:
Primavera não esquecida!

[foguetes a estalejar / instrumental]


* Arranjo para banda e direcção – Sílvio Pleno
Trompas – António P. da Costa, Francisco C. Frazão
Trompetes – António R. Gomes, António F. Casquinha
Trombone – João N. Costa
Tuba – Domingos Gaspar
Bombardino – Manuel de Faria
Flauta e flautim – António Laureano Martins
Saxofone soprano – José Salomé Vieira
Bateria – José A. Pires
Caixas – José R. Vitorino, António S. de Oliveira
Clarinete – Sílvio Pleno
Acordeões – Baíco, João Lucas
Violas Ovation – Carlos Salomé, Vitorino
Baixo acústico – Pedro Wallenstein
Tuna – Baíco, João Lucas, Pedro Melo, Manuel Vieira e Carlos Salomé
Vozes – Vitorino, Baíco, Carlos Salomé, João Lucas, Manuel Vieira e Mimi

Direcção musical e arranjos – Vitorino, Pedro Caldeira Cabral e Janita Salomé
Produção – Vitorino e Manuel Salomé
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Engenheiro de som – António Pinheiro da Silva
Técnico assistente – José Valverde
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2008
URL: https://www.vitorinosalome.pt/
https://www.meloteca.com/portfolio-item/vitorino/
https://www.facebook.com/VitorinoSalome.officialpage
https://www.youtube.com/channel/UCuRPFnby4OlKEz5kzN655bA
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=vitorino



Capa do LP "Flor de la Mar", de Vitorino (EMI-VC, 1983)
Concepção – Renato Cruz

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Outros artigos com repertório interpretado por Vitorino ou da sua autoria:
Celebrando Luís Pignatelli
Em memória de Fernando Alvim (1934-2015)
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)

10 junho 2021

Camões recitado e cantado (VII)


© Maria Madrinha, 23 Jun. 2007 (https://www.flickr.com/photos/ametista/594153507/)
Estátua de Luís de Camões, em bronze, adjacente ao Jardim do Horto dedicado ao Poeta, na vila ribatejana de Constância. Concebida pelo escultor Lagoa Henriques, foi inaugurada a 6 de Junho de 1981, pelo então presidente da República António Ramalho Eanes.


«Vindo de lá [da China] se foi perder na costa de Sião [Tailândia], onde se salvaram todos despidos e o Camões por dita escapou com as suas "Lusíadas", como ele diz nelas, e ali se afogou ũa moça china muito fermosa com que vinha embarcado e muito obrigado, e em terra fez sonetos à sua morte em que entrou aquele que diz: "Alma minha gentil, que te partiste...» (excerto do manuscrito da "Década VIII", atribuído a Diogo do Couto, c.1542-1616)

"Alma minha gentil, que te partiste": um dos mais conhecidos espécimes da Lírica camoniana e também um dos poemas mais belos e pungentes que alguém, em qualquer lugar, alguma vez escreveu a pessoa bem-amada que já não se conta no número dos vivos. Dirigido a uma rapariga oriental, provavelmente chinesa, chamada Dinamene (assim surge designada noutro soneto), que perecera num naufrágio ocorrido, presume-se, ao largo da foz do rio Mekong, o soneto tem como sujeito um homem, o poeta Camões, porque sabemos que foi ele o autor. No entanto, o sexo ou género do sujeito (o mesmo acontecendo com o do objecto) não está inequivocamente expresso nos versos, pelo que podem ser apropriados, com toda a legitimidade, por uma mulher para evocar um saudoso ente querido, trate-se ele de homem, mulher ou transgénero.
Já aqui apresentámos este admirável soneto por duas vozes masculinas – João Villaret [cf. Camões recitado e cantado] e Luís Cília [cf. Camões recitado e cantado (V)] – e por uma feminina – Amália Rodrigues [cf. Camões recitado e cantado (II)]. Nesta revisitação que lhe fazemos, em exclusivo, todas as vozes (três) são femininas – Carmen Dolores, Simone de Oliveira e Elsa Saque – e em abordagens muito distintas entre si: a primeira, recitada; a segunda, cantada em linguagem de fado (sobre melodia de Alfredo Marceneiro); e a terceira, cantada em registo lírico (com música de Fernando Lopes-Graça). Dedicamos esta singela celebração camoniana a todas as pessoas que já passaram pela desoladora experiência de ver partir uma "alma gentil".

A Antena 1, neste 10 de Junho, voltou a olhar para a obra do nosso Poeta maior como um cão quando passa por vinha vindimada. Quer dizer: ignorou-a, pura e simplesmente. Perguntamos: daria assim tanto trabalho pegar em quinze poemas de Camões, uns recitados e outros cantados, e difundi-los ao longo do dia, ao ritmo de um por hora? E era também muito complicado reprogramar a 'playlist', de modo a que oferta musical fosse somente cantada em português? Lamentavelmente, a inércia e o desleixo sobrepuseram-se, uma vez mais, ao dever de prestar serviço público. Vergonhoso!



Alma minha gentil, que te partiste



Poema (soneto) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 9)
Recitado por Carmen Dolores* (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003)


Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida, descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na Terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.


* Carmen Dolores – voz
Produção – Dito e Feito
Gravado nos Estúdios Goya, Lisboa, em Dezembro de 2002
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Carmen_Dolores
https://www.infopedia.pt/$carmen-dolores
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/search?query=carmen+dolores



Alma Minha Gentil, que te Partiste



Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 9)
Música: Alfredo Duarte "Marceneiro" (Fado CUF)
Intérprete: Simone de Oliveira* (in LP "Mulher, Guitarra", Philips/Poygram, 1984, reed. Universal, 2003)




Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida, descontente,
repousa lá no Céu eternamente,      | bis
e viva eu cá na Terra sempre triste. |

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente  | bis
que já nos olhos meus tão puro viste.    |

E se vires que pode merecer-te
alguma coisa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.


* Simone de Oliveira – voz
Martinho da Assunção – viola
Vital da Assunção – viola
Arménio de Melo – guitarra portuguesa
Fernando Correia Martins – viola baixo

Arranjos e direcção musical – Martinho da Assunção
Produção – Carlos do Carmo
Gravado no Angel Studio 1, Lisboa, em Outubro de 1983, por Rui Novais
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Simone_de_Oliveira
https://giradiscos.me/2019/09/28/a-discografia-de-simone-de-oliveira/
https://www.youtube.com/channel/UC8_4OqfgRzWxv-dbOZTqWlg



Alma minha gentil, que te partiste



Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 9)
Música: Fernando Lopes-Graça (2.ª peça de "Três Sonetos de Camões", Op. 27, LG 168, 1939)
Intérpretes: Elsa Saque* & Nuno Vieira de Almeida (in 2CD "Fernando Lopes-Graça e os Poetas": CD 1, Tradisom, 2006)




Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida, descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na Terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.


* Elsa Saque – voz (soprano)
Nuno Vieira de Almeida – piano

Assistente musical – Fernando Serafim
Supervisão artística – Nuno Vieira de Almeida
Técnico de piano – Manuel Patrão
Coordenação executiva – José Moças / Tradisom
Gravado no Salão do Conservatório Nacional de Lisboa, nos dias 2 a 6 de Junho de 2006
Técnico de gravação – José Fortes
Edição e masterização – José Fortes
URL: https://www.facebook.com/Elsa-Saque-Soprano-553289944782411/
https://www.meloteca.com/portfolio-item/elsa-saque/
https://www.youtube.com/channel/UCIWY-MNsP3G6In7yu4rgCdg
https://www.youtube.com/channel/UCuafekhGZb5t_8H6n-a1U8A



Capa do CD "Poemas da Minha Vida", de Carmen Dolores (Dito e Feito, 2003)
Design gráfico – João Nuno Represas



Capa do LP "Mulher, Guitarra", de Simone de Oliveira (Philips/Poygram, 1984)
Fotografia – Chico Graça



Capa do duplo CD "Fernando Lopes-Graça e os Poetas", de Elsa Saque & Nuno Vieira de Almeida (Tradisom, 2006)
Design e concepção gráfica – Henrique Silva ('Bibito')
Fotografias – Inácio Ludgero

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Outros artigos com poesia de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
Camões recitado e cantado (IV)
Camões recitado e cantado (V)
Camões recitado e cantado (VI)

01 junho 2021

Taleguinho: "Pele de Piolho"



Entre os setenta e cinco "Contos Populares Portugueses" que Francisco Adolfo Coelho coligiu e publicou, em 1879, consta um que dá pelo título de "A Pele do Piolho". Luís Pedro Madeira, do projecto conimbricense Taleguinho, achou por bem adaptá-lo tomando a liberdade de acrescentar-lhe vários pontos (fazendo jus ao ditado «quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto») na gravação feita para o álbum "Costurar Cantigas e Histórias", editado em 2020. Trata-se de uma belíssima versão que desenvolve e aprimora o texto sucinto publicado por F. Adolfo Coelho, sendo que tem o atractivo adicional de incluir um trecho cantado (acompanhado por instrumentos musicais), no caso a cantiga tradicional de cunho satírico "Olha o Velho, Olha o Velho", cuja melodia é das mais belas da tradição oral portuguesa. É pois com a "Pele de Piolho", primorosamente tratada pelo Taleguinho, que celebramos este Dia Mundial da Criança, esperando que seja do apreço dos miúdos e graúdos que fiquem com curiosidade de ouvi-la.

Não somos ouvintes da Rádio ZigZag (já tentámos mas desistimos porque a selecção musical deixou-nos muito a desejar), todavia queremos acreditar que as histórias tradicionais tenham cabimento na respectiva programação, seja extraídas de edições discográficas, seja contadas para o efeito por quem sabe fazê-lo bem. Será que os infantis ouvintes da Rádio ZigZag já tiveram a oportunidade de se encantar com esta "Pele de Piolho", do Taleguinho? Se sim, louvamos quem se ocupa da pesquisa de histórias publicadas em disco com o propósito de divulgação naquela rádio 'online'. Se não, fica a sugestão.
Na hertziana Antena 3 (e, porque não?, também na Antena 1) era bom que existisse um espaço diário reservado a uma história para crianças, em horário certo (que poderia muito bem ser por volta das 21h:00). Não havendo uma rádio hertziana dedicada ao público infantil, importa que as que existem façam alguma coisa para criar hábitos de escuta radiofónica nos mais pequenos, sem necessidade de terem de estar obrigatoriamente 'online'. O futuro começa a construir-se hoje mesmo. Que futuro terá a rádio se quem actualmente a dirige não tiver a clarividência de fazer o que lhe compete para atrair aqueles que amanhã poderão garantir a sua sobrevivência?



Pele de Piolho



História adaptada por Luís Pedro Madeira a partir da versão de Coimbra coligida por Francisco Adolfo Coelho e publicada no livro "Contos Populares Portugueses" (Lisboa: Paulo Plantier, 1879)
Contada por Luís Pedro Madeira / Taleguinho* (in CD "Costurar Cantigas e Histórias", Taleguinho, 2020)
Cantiga "Olha o Velho, Olha o Velho" interpretada por Catarina Moura / Taleguinho*




Era uma vez um rei que tinha muita comichão na cabeça. Muita mesmo! Estava tão aflito que resolveu chamar pela filha:
— Ó minha rica filha, ó minha princesa, vem aqui ver o que é que o teu pai tem na cabeça, que não há meio de me parar de coçar!
A menina veio logo e começou a catar o pai no regaço. De repente parou e disse:
— Ó senhor meu pai, olhe que tem aqui um piolho! E olhe que é dos grandes! Quer que lho mate?
— Não, não, não! Deixa estar o bicho. Piolho em cabeça de rei é piolho real. E sempre me faz companhia naquelas longas sessões na sala do trono.
Assim foi. A menina deixou ficar o piolho, mas o bicho foi crescendo, crescendo, crescendo, até que era já mais ou menos impossível que ninguém reparasse. E um dia a menina foi ter o pai e disse:
— Senhor meu pai, vós sois rei e vós lá sabeis, mas esse piolho já está um bocadinho grande demais. As pessoas já começam a reparar. De vez em quando, quando Sua Majestade está a dar audiência, por cima coroa já se vê uma patita dele. E sabe como é: as pessoas reparam e começa a falar-se...
— Bem sei, minha filha, bem sei, o bicho cresceu mais do que eu esperava e já está muito grande. Infelizmente, vou ter que o mandar matar. Mas em recordação deste bicho que me fez aqui tanta companhia, com a pele dele hei-de mandar fazer um pandeiro.
Assim foi. O rei mandou fazer um pandeiro com a pele do piolho e mandou guardá-lo lá na torre mais alta, lá num armário onde havia de ficar por muitos anos. A menina foi crescendo e tornou-se mulher. Um dia foi ter com o pai e disse:
— Ó senhor meu pai, eu gostava de ter um noivo, gostava de me casar.
— Bem sei, minha filha, chegou a hora de te casar. E temos que te arranjar um noivo, mas não pode ser um palerma qualquer que venha para aí, que isto agora anda aí uma gandulagem que sabe Deus! Não pode ser um qualquer: tem que ser um rapaz avisado, um rapaz com juízo, um rapaz como deve ser. Vou mandar chamar todos os rapazes do Reino para que escolhamos o melhor.
Assim foi. O rei mandou então os seus arautos ao cimo das muralhas do castelo a anunciar aos quatro ventos:
— O rei manda dizer que quer casar a sua filha. Os rapazes todos do Reino devem vir ao palácio responder a uma pergunta do rei. Aquele que acertar casará com a menina.
Ora, como a princesa era muito bonita e ainda por cima tinha alguma coisa de seu, acorreram rapazes de todo o lado para vir responder à pergunta do rei e ter a mão da princesa em casamento. No dia combinado estava uma fila enorme de rapazes à porta do palácio, e o rei pediu então ao seu velho criado que fosse lá à torre mais alta; lá dentro dum armário havia de encontrar um pandeiro que lá estava guardado há muitos anos. O criado foi buscar o pandeiro e o rei, mostrando-o a todos aqueles rapazes, disse:
— Ó rapazes, aquele que de vocês adivinhar de que é feito este pandeiro casará com a princesa!
Os rapazes puseram-nos todos a olhar com muita atenção... e veio o primeiro e botou-se a adivinhar:
— Eu acho que este pandeiro é feito de pele de cabra.
— Não, não! — disse o rei. E passou ao próximo.
— Oh, não, não, eu acho que este pandeiro é feito de pele de porco.
— Também não.
— Não, não, este pandeiro é feito de... de pele de cabrito.
— Também está errado.
E vinham e vinham... e iam tentando, tentando... e vinha um e dizia:
— Eu acho que é de pele de vitela.
— Eu acho que é de pele de cão.
— Eu acho que é de pele de gato.
— Eu acho que isto é pele de burro.
— Eu acho que isto é pele de... de... de... eu acho que isto é pele de galinha, se calhar, sei lá!...
— Eu acho que isto... parece-me a mim que é assim um bocado tipo pele de... de... de...
E iam todos, todos errando. Ora dá-se o caso que naquela fila enorme de rapazes estava um rapaz com quem a princesa engraçava. Mas as princesas nem sempre acertam muito: às vezes engraçam com rapazes que são assim... palermas. Este, além de palerma, era muito mouco, ouvia muito mal. Mas a princesa foi-se pôr atrás do velho criado, falando-lhe lá para o meio da fila o mais baixinho que conseguia:
— Ei! Estás a ouvir? Olha!
E ele lá do meio da fila dizia:
— Hum?
— Olha, o pandeiro é feito de pele de piolho.
— Hum? É... é uma espécie de repolho?
— Não, não! O pandeiro é feito de pele de piolho.
— Hum... Uma galinha com molho?
— Não! — dizia a menina, apontando para a cabeça — Não! É feito de pele de piolho.
— Ah! Acho que já ouvi.
Mas quando chegou a vez dele, o rapaz, apontando o pandeiro, disse:
— Eu acho que este pandeiro é... é feito de pele do sobrolho.
Errado. E foram errando os outros rapazes todos, até que aconteceu uma coisa que causou grande consternação geral e uma surpresa de que ninguém estava à espera. O velho criado vira-se para o rei e diz assim:
— Saiba Vossa Majestade que eu também sou um rapaz solteiro e, como rapaz solteiro, também gostava de me botar a adivinhar de que que é feito este pandeirinho.
O rei achou aquilo muito estranho, mas disse:
— Bom, de facto não vejo nada que te impeça de tentar também.
— Ora, eu acho... eu acho que este pandeirinho é feito de pele de piolho.
E todos exclamaram:
— Oh!
E o espanto era enorme; e se nós ficávamos espantados, mais espantada ficou a princesa. Espantada e danada. E dizia:
— Ah! Ah! Ah! Sacana do velho! Isto não pode ser! Isto não pode ser, porque ele ouviu-me! Ele ouviu-me a falar com o meu amigo, ele ouviu a resposta... Então, mas isto não pode ser! Eu vou agora casar com aquele velho?! Ah! Mas isso é que não vou, ai não vou, não senhora! Era agora o que me faltava! Ele ainda por cima fez batota. Não senhor!
E então chamou o velho à parte, dizendo-lhe que lhe queria cantar uma canção. E cantou-lhe assim:

— Olha o velho! Olha o velho!  | bis
Olha o velho atrevido:             |
Dizer-me na minha cara    | bis
Que queria casar comigo!  |

Se quiser casar comigo,  | bis
Há-de ser na condição    |
De eu dormir em cama fofa  | bis
E tu, velho, nesse chão.       |

E tu, velho, se falares,            | bis
Hás-de levar com um bordão; |
Eu hei-de comer pão alvo  | bis
E tu, velho, de rolão.        |
 
«A rapariga… diz que se eu casar com ela que tenho que dormir no chão, logo eu que sofro tanto das minhas cruzes! E que tenho que comer sempre pão duro, eu que quase já não tenho dentes! E que se falar que me dá com um pau! Que serviço que eu havia de aqui arranjar, hã! O melhor, se calhar, é eu ir com delicadeza falar ao rei e tentar resolver isto da melhor forma.»
— Sua Majestade não me leve a mal, a sua filha é assim uma rapariga muito jeitosa, muito educadinha e muito meiguinha, mas eu estive a pensar que já tenho uma certa idade... Não caminho para novo e agora com esta idade lembrar-me de casar... se calhar, até foi um bocado de asneira e por isso vinha falar com Sua Majestade que se me pudesse desobrigar desta coisa do casório... quer dizer: se calhar, a rapariga encontrava assim um moço mais assim lá para a idade dela, não é verdade?
Ora isto era o que o rei queria, porque, de facto, não queria casar a filha com aquele velho; e então o rei lá o desobrigou e a filha, um tempo depois, lá encontrou um príncipe com quem foi feliz para quase sempre.
Vitória, vitória, acabou-se a história.


* Taleguinho:
Catarina Moura – voz
Luís Pedro Madeira – voz falada, viola braguesa, bandola, bandolim, banjo, cavaquinho, percussão
Participação de:
Manuel Rocha – violino

Arranjos – Luís Pedro Madeira
Produção – Taleguinho
Gravado, misturado e masterizado no Estúdio Láudano (Coimbra), em 2019 e 2020
Gravação, mistura e masterização – Luís Pedro Madeira
Assistência de gravação e mistura – Paulo Yoshida de Carvalho
URL: https://www.facebook.com/taleguinho
https://taleguinho.bandcamp.com/



Capa do CD "Costurar Cantigas e Histórias" (Taleguinho, 2020)
Ilustração e design gráfico – Cátia Vidinhas

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