11 janeiro 2010

A música portuguesa na 1.ª década do séc. XXI

Por Manuel Halpern (jornalista e crítico musical)



Um mundo de bolso


Fazer um disco do outro mundo é cada vez mais difícil. Não por já tudo estar inventado (sempre esteve e sempre estará), mas porque o mundo dos Outros está mais parecido com o nosso. Fruto da globalização, os mundos diluem-se, para o bem ou para o mal. Nos anos 60, George Harrison descobriu o caminho musical para a Índia. Nos 90, Talvin Singh, entre outros, encontraram a rota de regresso. As viagens têm sido feitas amiúde. E as paisagens tornaram-se menos misteriosas. Nunca foi tão fácil saber o que se passa na Papuásia Ocidental. E os papuas saberem o que se passa connosco.
O circuito de músicas do mundo intensificou-se na última década. O domínio anglófono/americano do mundo da música coexiste com um crescente interesse pelas diferentes culturas. É o que leva, por exemplo, Mariza e Ana Moura a cantar no Carnegie Hall, de Nova Iorque. São duas vias concorrentes. O lado bom da globalização, que inverte a ideia catastrofista de que a rede global está apenas a criar um mundo homogéneo, cinzento, insípido. Existe a valorização das diferenças, o culto das minorias, nichos que se unem e se impõem por motivos aparentemente estapafúrdios como os hábitos alimentares (movimento vegon).
Se Mariza faz a circum-navegação em concertos, é porque foram criados espaços e hábitos culturais que fazem com que seja aceitável e até desejável que uma cantora interprete uma música diferente numa língua estranha. Franceses e japoneses terão sido pioneiros nesta busca do Outro, e continuam a fazer um investimento nesse domínio. A França mais na edição de vozes de outras latitudes, incluindo fado, música cabo-verdiana e brasileira. O Japão numa assimilação ou apropriação das músicas dos outros, com artistas locais a interpretarem outras músicas, incluindo o fado, bossa nova e chanson française.
O fado expandiu-se de forma espectacular. Foi nos anos 00 (chamemos-lhe assim em homenagem à linguagem binária) que surgiram nomes tão relevantes como Mariza, Ana Moura, Katia Guerreiro, Raquel Tavares ou Carminho. E outros se afirmaram, embora já tivessem gravado discos na década anterior, como Joana Amendoeira, Cristina Branco ou Ana Sofia Varela. Repare-se que, internacionalmente, o fado é coisa de mulheres, salvo algumas excepções, nomes que, timidamente, têm conseguido chamar alguma atenção, como Camané, Pedro Moutinho, Hélder Moutinho, Ricardo Ribeiro ou António Zambujo. Esse facto poderá estar ligado ao quadro imagético criado pela grande referência nacional e internacional, Amália Rodrigues.
Mariza que, quer se goste quer não, é a grande figura da música portuguesa desta década, encarna por si só o espírito miscigenado dos tempos que correm. Não é de todo uma fadista convencional. O que mostra que o fado, mesmo internacional e comercialmente, entrou numa nova etapa. Vale além do castiço. E se em alguns circuitos o fado vale (vende) enquanto tal, sem precisar de mais apresentações, não há dúvida que no caso da cantora conta, acima de tudo, e como mais valia, o seu nome: Mariza. A imagem criada ultrapassa a ideia de fado e por isso é paradigmática.
A própria Mariza é um símbolo quase perfeito de uma década de fusões. Uma afro-europeia que canta o fado, reclamando-se da tradição ao mesmo tempo que a deturpa. E uma cantora de fados mulata, o que, por si só, promete juntar o melhor de dois mundos. A sua postura é algo excêntrica e exótica, mas não de um exotismo provinciano. O fado, na sua voz, tornou-se um espectáculo, uma estratégia de internacionalização da saudade. E a música propriamente dita bebe em várias fontes, avançando e recuando, mas indo sempre além (ou aquém) do fado tradicional. Mariza é, pois, uma cidadã do mundo, por mais que diga que gosta de pendurar a roupa no hotel como se estivesse na Mouraria. Formalmente, o fado manteve-se como a mais popular música de raiz portuguesa, nacional e internacionalmente, com toda uma geração que se assumiu como herdeira de Amália Rodrigues, que morreu pouco antes da nova década começar. E sobreviveu bem. Pouco arriscadas foram as modificações formais. A esse nível, a mais importante reinvenção do fado foi feita pel’A Naifa, grupo de João Aguardela, cuja morte marca negativamente o final dos anos 00.
O fado tornou-se mais internacional, não só porque as fadistas galgaram o mundo a cantá-lo, mas também porque os outros povos se interessaram pela música e fizeram uma coisa sua. Os ‘fadistas’ estrangeiros já não se contam pelos dedos, vão desde a Sérvia ao Japão. Mas há alguns casos mais curiosos, como a basca Maria Berasarte que gravou um disco de fados muito à sua maneira, a catalã Névoa que inventou o fado num novo estilo ou o italiano Marco Poeta que abriu uma casa de fados em Itália.
Do outro lado do espelho está a importação de novos estilos, que fogem da lógica pop-rock. Os Balcãs estiveram na moda, em parte graças aos filmes de Kusturika, assim como a música cigana em geral. E houve ainda um conceito mais global de intercultura, veiculado nos discos de Manu Chao, com frutos visíveis um pouco por todo o mundo, mas também em Portugal, com bandas como Dazkarieh, Terrakota ou Kumpania Algazarra.
Simultaneamente, houve uma crise sem precedentes na indústria fonográfica. Nunca se venderam tão poucos discos. Mas, paradoxalmente, os discos nunca foram tão ouvidos. Os programas peer-to-peer baixaram a pique os lucros das editoras, que haviam tido uma postura especulativa desde o aparecimento do CD. Curiosamente, a mesma tecnologia que prejudicou a indústria tornou mais fácil gravar um disco ou uma canção. Ou mesmo divulgar as canções e mostrá-las ao público. Já não é imprescindível a gravação num estúdio musical e o myspace mostrou-se um espaço privilegiado de divulgação musical. Não nos esqueçamos que foi nesse site que se revelaram bandas tão importantes como os Arctic Monkeys ou os Arcade Fire. Ao mesmo tempo que se atingiu um pique de sofisticação na produção, em que as masterizações e remasterizações, a batota feita em estúdio, atingiu um nível de apuramento irreal, há uma contracorrente, low-fi, que se impõe pela simplicidade do método.
Em Portugal, caso flagrante é o ‘movimento’ ligado às editoras Flor Caveira e Amor Fúria, curiosamente, ambas cristãs, a primeira baptista, a segunda católica. Notabilizaram-se nomes como B Fachada, Pontos Negros, João Coração, Samuel Úria ou Tiago Guilul. O seu som caracteriza-se por uma genuinidade de ideias, e uma afirmação da portugalidade da sua música, o que funciona numa contracorrente em relação à americanização do mundo.
A partir da segunda metade da década, a crise fonográfica tomou proporções alarmantes, e nem sequer a aprovação de uma nova lei da rádio, protectora da música portuguesa, afastou a malapata. Entre fusões e falências houve uma mudança brusca no panorama português. O facto mais assinalável foi a cisão da EMI-Valentim de Carvalho, e a saída do próprio David Ferreira (sobrinho de Rui Valentim de Carvalho), da multinacional. Tal como outras grandes editoras, passou a ter uma lógica mais ibérica. Quanto ao precioso espólio da Valentim de Carvalho, passou a ser tratado pela iPlay, nova editora sucessora da Som Livre.
Apesar desta crise acentuada, pequenas editoras, de espírito guerrilheiro, tiveram um papel significativo. Além das já faladas Flor Caveira e Amor Fúria, note-se o esforço da Footmovin/SóHipHop de BomberJack, que conseguiu que o hip hop fosse dos géneros mais editados em Portugal (em quantidade de títulos) nos últimos 10 anos. E, por falar em hip hop, um nome ficou, acima dos outros: Sam the Kid. Deslumbrou nas suas duas vertentes, a rimar e a samplar, conferindo um traço de portugalidade (com samplers de fado, por exemplo) ao seu trabalho.
A globalização tornou apetecíveis os mercados internacionais. E é significativo que um grupo tão português como os Deolinda tenha conseguido romper fronteiras e entrar nas listas dos melhores do ano do "Sunday Times". Mas, regra geral, a tentação de internacionalização fez-se através da busca de linguagens universais, cantadas em inglês. A tentativa não é nova. O sucesso é que talvez seja. Foi o que aconteceu com os Gift (o primeiro álbum ainda é dos anos 90), David Fonseca (ex-Silence 4) e, numa perspectiva mais alternativa, Legendary Tigerman ou Wray Gunn. Ainda a outro nível, todo o destaque para Rodrigo Leão, que gravou discos com grandes nomes, como Beth Gibbons ou Neil Hannon.
Com a massificação dos downloads, legais ou ilegais, os concertos ganharam preponderância e transformaram-se definitivamente na mais importante fonte de receita dos artistas. Em Portugal deu-se uma autêntica explosão de festivais de Verão, nem sempre com a qualidade desejada, com destaque para o Rock in Rio, um dos maiores do mundo, e o Optimus Alive. Mas uma das melhores surpresas, a nível de concertos de portugueses, ficou para o final da década e vem de uma geração que já deu todas as provas: falamos de "Três Cantos", que uniu Sérgio Godinho, José Mário Branco e Fausto.
Um barómetro para se saber com que linhas se cose uma década musicalmente é perceber o que anda a fazer Brian Eno. E "Everything that happens will happen Today", o último disco do fundador dos Roxy Music, muito revela. Um álbum feito com David Byrne através da internet e que apenas conheceu edição digital. Dos anos 00 para a frente quem não está on-line... fica de fora. (Manuel Halpern, in "JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias", 30.12.2009)


Estou genericamente de acordo com este artigo de Manuel Halpern, em jeito de balanço da música portuguesa (não erudita) da primeira década do séc. XXI (que na verdade só termina no final de 2010). Gostaria, contudo, que tivesse sido prestada mais atenção à música tradicional/folk que, tal como fado, teve um grande florescimento na década inaugural do presente século. A década de 90 terá sido a década de maior apagamento, embora nela tenham surgido grupos/intérpretes tão importantes como Navegante, Gaiteiros de Lisboa, Frei Fado d’El Rei, Realejo, Danças Ocultas, Quadrilha, Amélia Muge e Filipa Pais, depois do período áureo que se registou no pós-25 de Abril de 1974 até finais da década de 80, com nomes como Almanaque, Brigada Victor Jara, Vitorino, Teresa Silva Carvalho, Janita Salomé, Júlio Pereira, Terra a Terra, Raízes, Vai de Roda, Pedra d’Hera, Charanga, Rosa dos Ventos, Disto & Daquilo, Trigo Limpo, Ronda dos Quatro Caminhos, Maio Moço... sem esquecer os Trovante pelo importante contributo que deram ao movimento sobretudo com o álbum "Baile no Bosque" (1981). De facto, foi já no século XXI que a música de raiz tradicional ganhou um novo impulso, com o aparecimento e/ou afirmação de um acrescido lote de grupos e músicos de assinalável qualidade, uns mais ligados à tradição portuguesa, outros mais cosmopolitas, por assim dizer. Refiro alguns: Galandum Galundaina, Roda Pé, Dazkarieh (que por acaso até foi citado no texto mas muito de fugida), Roldana Folk, Mandrágora, Mu (estes dois já distinguidos com o Prémio Carlos Paredes), Ginga, Banda Futrica, Segue-me à Capela, Moçoilas, Manuel d’Oliveira, Lúmen, Chuchurumel, Diabo a Sete, Pé na Terra, Fol&ar, Gnomon, Monte Lunai, A Barca dos Castiços, Roncos do Diabo, Ventos da Líria, Assobio, etc. (estes e muitos outros podem ser vistos e ouvidos em
http://www.myspace.com/lugaraosul). Para a pujança e fulgor do movimento, além de importantes festivais e certames musicais (de que o FMM de Sines talvez seja o mais mediático), é de primordial importância o papel desempenhado por editoras independentes (Açor/Emiliano Toste, Vachier & Associados, Ocarina e Hepta Trad, por exemplo) sem as quais excelentes discos não teriam vindo a lume. Digna de menção é igualmente a dedicação de alguns realizadores de rádio, designadamente Luís Rei ("Terra Pura"), João Sá ("Folklândia"), Carlos Norton ("Sopa da Pedra"), Jorge Costa ("Multipistas") e Octávio Fonseca ("Os Cantos da Casa"), que em rádios locais e na internet (com o podcast) vêm prestando um serviço de divulgação que é de toda a justiça enaltecer. O que não pode deixar de se lamentar é a atitude de marginalização e menorização das rádios nacionais (incluindo a pública Antena 1) face a este interessantíssimo fenómeno da nossa vida musical, instrumentalizadas que estão pelas majors, as quais, como é sabido, enjeitaram por completo a música tradicional/folk e apenas se empenham em promover um género que está completamento gasto e estafado – a pop. Talvez não seja um acaso que o florescimento das músicas de raiz (fado e música tradicional) coincida precisamente com a decadência do género de feição menos identitária. Algo está a mudar na música portuguesa e ainda bem que assim é.