27 maio 2014

Em memória de Vasco Graça Moura (1942-2014)


Vasco Graça Moura fotografado por Rodrigo Cabral


Fiz uma longa aprendizagem,
muitas rasuras e rascunhos,
muitos registos de passagem,
muitos borrões e gatafunhos
são outros tantos testemunhos
do meu mester, das minhas lavras,
uso a cabeça e às vezes punhos
de renda ou não. Ah, as palavras!

O Óscar Lopes e o David
deram-me as regras do jardim:
vinho fazer da minha vide,
nunca ficar assim-assim,
montar em pêlo e em selim.
Das teorias me dispenso:
pensaram tudo antes de mim
o E.P.C. e o E. Lourenço.

Vasco Graça Moura (in "Testamento de VGM", 2.ª edição, Porto: Edições Asa, 2002 – p. 20)


Um intelectual com espírito renascentista

O que mais impressionava em Vasco Graça Moura era essa espécie de energia intelectual renascentista, que o levava a ter uma intervenção cívica constante, uma actividade política e uma vida profissional intensas, e ainda assim arranjar tempo para criar uma obra literária (traduções incluídas) de uma extensão, diversidade e qualidade francamente invulgares.
Poeta e tradutor de grandes poetas, romancista, ensaísta, dramaturgo, cronista, antologiador, historiador honoris causa, advogado, político, gestor cultural – e podia acrescentar-se várias outras actividades –, Graça Moura foi um improvável espírito renascentista encarnado neste presente um pouco caótico de mais para o seu assumido gosto pela ordem e pela disciplina. Mesmo que nos fiquemos pela sua obra literária em sentido lato, seria talvez preciso recuarmos a um Jorge de Sena para encontrarmos um antecessor convincente do seu labor criativo e intelectual.
Autor de quase trinta livros de poemas, de Modo Mudando (1963) a O Caderno da Casa das Nuvens (2010), foi ainda um tradutor épico, que parecia ter particular prazer em impor-se desafios colossais, como o de verter em português a Divina Comédia e a Vita Nuova de Dante, ou as Rimas e Triunfos de Petrarca, ou os Testamentos de François Villon, ou ainda a integral dos Sonetos de Shakespeare.
Escolhas que certamente coincidem com as suas paixões pessoais de leitor, mas às quais também não terá sido alheio um forte sentido de missão: Graça Moura empenhou-se, como tradutor, em enriquecer o património literário disponível em língua portuguesa, como se esforçou, enquanto responsável da Imprensa Nacional/Casa da Moeda (IN/CM), que dirigiu ao longo da década de 1980, por combater o progressivo esquecimento dos grandes autores portugueses do passado.
Traduzindo directamente do espanhol, do francês, do italiano, do inglês e do alemão, traduziu, além dos autores já referidos, extensas escolhas de poetas como Pierre Ronsard, Rainer Maria Rilke, Gottfried Benn, Walter Benjamin, Federico García Lorca, Jaime Sabines, H. M. Enzensberger ou Seamus Heaney, e ofereceu-nos ainda versões portuguesas de algumas das peças mais importantes dos três grandes dramaturgos franceses do século XVII: Corneille, Molière e Racine.
É por estas duas dimensões, a de poeta e a de tradutor, que é mais reconhecido, e foram elas que lhe valeram as principais distinções atribuídas à sua obra, a começar pelo Prémio Pessoa, em 1995, e incluindo a criteriosa Coroa de Ouro do Festival de Struga, na Macedónia, que recebeu em 2004 – entre os vencedores das três edições anteriores contam-se dois prémios Nobel: Tomas Tranströmer e Seamus Heaney – e o Prémio Nacional de Tradução atribuído em 2007 pelo Ministério da Cultura italiano.
Mas outras dimensões da obra de Graça Moura, como a ficção ou o ensaísmo, estão longe de ser negligenciáveis. Se títulos como Luís de Camões, Alguns Desafios (1980), Camões e a Divina Proporção (1985) ou Os Penhascos e a Serpente (1987) lhe dão um lugar de indiscutível relevo entre os camonistas contemporâneos, os seus ensaios abarcam temas tão variados como os Descobrimentos, a pintura portuguesa da Renascença, a construção da identidade cultural europeia, o fado, a pintura de José Rodrigues ou Graça Morais, a literatura de David Mourão-Ferreira ou Vitorino Nemésio, para citar apenas uma breve amostra. À qual não se pode deixar de somar o tópico do Acordo Ortográfico, que considerava um crime de lesa-língua, e ao qual dedicou, em 2008, o ensaio Acordo Ortográfico: a Perspectiva do Desastre. Tentar travar a sua aplicação tornou-se o grande combate cívico dos seus últimos anos.
Como ficcionista estreou-se relativamente tarde, em 1987, com Quatro Últimas Canções, um romance no qual a música erudita, uma das suas paixões – a par da pintura, que chegou a praticar –, ocupa um lugar fundamental, contaminando a própria estrutura narrativa. Talvez por ter surgido tardiamente, a ficção de Graça Moura foi sempre vista como um corpo secundário na sua obra, juízo não isento de alguma injustiça, quer pela qualidade de algumas obras, quer pela extensão que acabou por atingir, com mais de uma dúzia de livros, incluindo romances, novelas e volumes de contos.
Para se dar uma ideia mais completa da bibliografia de Graça Moura, que ultrapassa bem uma centena de títulos, seria ainda necessário falar do dramaturgo ocasional – autor de Ronda dos Meninos Expostos (1987) e da sátira Auto de Mofino Mendes (1994) –, do truculento cronista cujos textos estão reunidos em volumes como Papéis de Jornal e Outros Materiais (1997) ou Contra Bernardo Soares e Outras Observações (1999), ou ainda do diarista de Circunstâncias Vividas (1995).
Uma produção que se torna ainda mais espantosa se tivermos em conta que Graça Moura começou cedo a assumir cargos públicos de elevada responsabilidade, tendo-os desempenhado com reconhecidos zelo e competência. A seguir ao 25 de Abril de 1974, foi duas vezes secretário de Estado: da Segurança Social (no IV Governo Provisório, chefiado por Vasco Gonçalves) e dos Retornados (no VI Governo Provisório, chefiado por Pinheiro de Azevedo). Militante do então PPD, desfiliou-se logo em 1975, mas manteve uma fidelidade ao partido que só em circunstâncias excepcionais quebrou, como sucederia nas eleições presidenciais de 1980, quando apoiou Ramalho Eanes contra Soares Carneiro.
Nunca escondeu a sua particular admiração por Cavaco Silva, quer como primeiro-ministro, quer como presidente da República, a ponto de ter incluído uma balada do bom cavaquista nessa espécie de auto-retrato poético a que chamou, na linha de Villon, Testamento de VGM (2001).
Vasco Graça Moura nasceu no Porto, a 3 de Janeiro de 1942, em casa dos seus avós maternos, na Foz do Douro. Fez os dois primeiros anos da primária em casa, estudando com uma professora inglesa, e frequentou depois o Colégio Brotero, onde se manteve até ao final do secundário.
Matriculou-se depois em Direito, na Universidade de Lisboa, e é ainda estudante quando publica, em 1963, numa edição de autor, o seu livro de estreia, Modo Mudando. Nos últimos anos da licenciatura, usufruiu do estatuto de aluno voluntário porque arranjara emprego numa conserveira de Matosinhos. Era correspondente de línguas estrangeiras, e não deixa de ter graça essa afinidade biográfica com Fernando Pessoa, que nunca será capaz de admirar e a quem, por (significativa) piada, chamará um dia "o poeta Aleixo da razão".
Concluída a licenciatura em 1966, dedicou-se à advocacia, que teve de interromper para cumprir o serviço militar obrigatório. Passou trinta e nove meses na tropa, numa altura em que era já casado e pai de dois filhos. Divorciou-se da sua primeira mulher, Maria Fernanda Sá Dantas, no início dos anos 80, e voltou a casar-se mais duas vezes, primeiro com a ensaísta Clara Crabbé Rocha [filha de Miguel Torga e de Andrée Crabbé Rocha], em 1985, e depois com Maria do Rosário Sousa Machado, em 1987, com quem teve mais duas filhas, enternecidamente referidas em vários poemas dos seus últimos livros.
Embora tenha editado a expensas próprias três livros de poemas ainda antes do 25 de Abril de 1974, é O Mês de Dezembro e Outros Poemas, publicado em 1976 pela Inova, que leva a sua poesia a um público mais vasto.
Ao mesmo tempo que ia exercendo intermitentemente a advocacia, foi director de programas da RTP-2 [1978], director da IN/CM de 1979 a 1989, comissário de Portugal para a Exposição Universal de Sevilha [1988-1992] e comissário-geral da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, funções que exerceu de 1988 até ao final de 1995, quando pôs o lugar à disposição do recém-empossado primeiro-ministro António Guterres, que o substituiu por António Hespanha. Integrou ainda o conselho de opinião da RTP, o conselho directivo da Fundação Luso-Americana, o conselho-geral do Instituto Camões e dirigiu o Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da Fundação Gulbenkian [sucedendo a Vergílio Ferreira, entre 1996 e 1999].
Eleito para o Parlamento Europeu nas listas do PSD em 1999, cumpriu dois mandatos como eurodeputado. Em Janeiro de 2012 foi nomeado presidente do Centro Cultural de Belém, uma decisão polémica e que levou à demissão do conselho directivo, em protesto contra as razões invocadas para a não recondução de António Mega Ferreira. Mas entre os que defenderam a escolha, elogiando as qualidades de Graça Moura para o cargo, contou-se a ex-ministra da Cultura Isabel Pires de Lima, que nomeara o seu antecessor.
Na homenagem de Janeiro [2014] na Fundação Gulbenkian, Artur Santos Silva, presidente da instituição, salientou o papel central do poeta na vida cultural portuguesa dos últimos quarenta anos e acrescentou que Graça Moura "é digno de partilhar a galeria dos grandes vultos da Renascença". E o ensaísta Eduardo Lourenço, organizador do colóquio, falou do "homem de acção" e do "humanista" que sempre se quis ver implicado na vida do seu país. "O mundo de Vasco é o mundo todo com o seu mistério e o seu enigma insondáveis", disse Lourenço. "É um teatro-mundo de configuração barroca e iluminista" em que o autor, "consciente de que vivemos no Ocidente uma espécie de noite de Deus", continua a ser um europeísta convicto, e que nunca lê Portugal numa perspectiva complexada em relação à Europa. [artigo de Luís Miguel Queirós, in jornal "Público", 28-Abr-2014]


Contam-se em mais de quarenta os poemas de Vasco Graça Moura que, até à data da morte, foram transpostos para canção e gravados em disco, alguns por mais do que um intérprete. Pois, por incrível que pareça, nem um – um sequer – desses espécimes figura na 'playlist' da Antena 1! O falecimento do insigne poeta e tradutor bem podia ter sido o pretexto para se colmatar a lacuna, mas decorrido um mês sobre a triste notícia, constata-se que está «tudo como dantes, quartel-general em Abrantes». Os ouvintes/pagantes da contribuição do audiovisual perguntam: é desta forma negligente, desleixada e preguiçosa que a rádio pública cumpre a sua obrigação de divulgar os autores que mais validamente contribuíram para o nosso património poético-musical?
Não podendo contemporizar com tão condenável atitude, o blogue "A Nossa Rádio" apresenta uma mão-cheia de poemas cantados que têm a assinatura de Vasco Graça Moura, ora como autor (a maioria), ora como adaptador e tradutor.
Antes, e em complemento ao artigo acima transcrito, faculta-se a audição de duas edições do programa "Agora... Acontece!" em que Carlos Pinto Coelho esteve à conversa com Vasco Graça Moura e ainda o documentário radiofónico sobre o autor e cidadão realizado por Ana Aranha para a série "Vidas Que Contam".


"Agora... Acontece!" N.º 262, de 16-Abr-2004



Vasco Graça Moura entrevistado por Carlos Pinto Coelho, a respeito da sua actividade de deputado no Parlamento Europeu [a partir de 27':58"]


"Agora... Acontece!" N.º 286, de 02-Ago-2004



Vasco Graça Moura entrevistado por Carlos Pinto Coelho, a propósito da sua tradução d' "As Rimas", de Francesco Petrarca (Bertrand Editora, 2003) [a partir de 05':58"]


"Vidas Que Contam", de 25-Jun-2013
http://www.rtp.pt/play/p328/e121512/vidas-que-contam

Documentário radiofónico sobre Vasco Graça Moura; autoria e realização de Ana Aranha



O Atol dos Amores



Poema: Vasco Graça Moura (in "Os Rostos Comunicantes", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984; "Poesia 1963/1995", Lisboa: Quetzal Editores, 2007 – p. 313)
Música: Jorge Salgueiro
Intérprete: Negros de Luz* (in CD "Canções da Inquietação", Foco Musical, 1998; CD "10 Anos de Inquietação", Tradisom, 2005)


O atol dos amores
é uma porção de terra rodeada
de amor por todos os lados?
uma porção de amor rodeada
de terra por todos os lados?
rodeada de água?
rodeada?
ah, todo o amor é árduo a humano trato
e se interroga e ninguém
é uma ilha
onde se caça. Apenas
se conhece asperamente
seu rodeado mapa de coral. Apenas
contra a morte
a ilha, a redondilha.


* Negros de Luz:
Juliana Telmo – voz (soprano)
Dolores de Matos – voz (contralto)
Carlos Ançã – voz (tenor)
Carlos Cóias – voz (baixo)
Óscar Mourão – piano
António Barbosa – violino
Paulo Viana – violino
Susana Cordeiro – violeta
Carlos Faria – violoncelo
José Carinhas – percussão
Direcção musical – Jorge Salgueiro
Produção executiva – Miguel Pernes
Gravado, misturado e masterizado nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores, entre Janeiro e Maio de 1998
Gravação, misturas e produção – Zé Vasco, António Pinheiro da Silva e Jorge Salgueiro



Poetas de Lisboa



Poema: Vasco Graça Moura (in "Letras do Fado Vulgar", Lisboa: Quetzal Editores, 1997 – p. 18; "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 196)
Música: Casimiro Ramos (Fado Margaridas)
Intérprete: Carlos do Carmo* (in 2CD "Ao Vivo no CCB: Os Sucessos de 35 Anos de Carreira": CD 2, EMI-VC, 1999)




É bom lembrar mais vozes pois Lisboa
cidade com poético fadário
cabe toda num verso do Cesário
e alguma em ironias do Pessoa

Para cada gaivota há um do O'Neill
para cada paixão um do David
e há Pedro Homem de Mello que divide
entre Alfama e Cabanas seu perfil

E há também o Ary e muitos mais,
entre eles o Camões e o Tolentino,
ou tomando por fado o seu destino
ou dando de seu riso alguns sinais

Muito do que escreveram e se canta
na música de fado que já tinha
o próprio som do verso vem asinha
assim do coração para a garganta

Que bom seria tê-los a uma mesa
de café comparando as emoções
e a descobrirem novas relações
entre o seu fado e a língua portuguesa


* Carlos do Carmo – voz
Ricardo Rocha – 1.ª guitarra portuguesa (canal esquerdo)
Paulo Parreira – 2.ª guitarra portuguesa (canal direito)
José Maria Nóbrega – 1.ª viola (canal esquerdo)
Carlos Manuel Proença – 2.ª viola (canal direito)
José Elmiro Nunes – baixo acústico
Concepção musical – Carlos do Carmo
Produção – Alfredo Almeida
Gravado ao vivo no Centro Cultural de Belém, Lisboa, nos dias 10 e 11 de Dezembro de 1998
Misturado na unidade móvel BANZAI, por Alfredo Almeida e Miguel Escada
Editado e masterizado por Alfredo Almeida e Rui Dias, no Estúdio Tcha Tcha Tcha, Miraflores



Nasceu Assim, Cresceu Assim



Poema: Vasco Graça Moura (excerto de "Genealogia") [texto integral >> abaixo]
Música: Fernando Tordo
Intérprete: Carlos do Carmo* (in CD "Nove Fados e Uma Canção de Amor", Mercury/Universal, 2002)




Talvez a mãe fosse rameira de bordel
talvez o pai um decadente aristocrata
talvez lhe dessem à nascença amor e fel
talvez crescesse aos tropeções na vida ingrata

talvez o tenham educado sem maneiras
entre desordens, navalhadas e paixões
talvez ouvisse vendavais e bebedeiras
e as violências que rasgavam corações

talvez ardesse variamente em várias chamas
talvez a história fosse ainda mais bizarra
no desamparo teve sempre duas amas
que se chamavam a Viola e a Guitarra

pois junto delas já talvez o reconheçam
talvez recusem dar-lhe o nome de Enjeitado
e mesmo aqueles que o não cantam não esqueçam
nasceu assim, cresceu assim, chama-se Fado


* Carlos do Carmo – voz
Ricardo Rocha – guitarra portuguesa
Carlos Manuel Proença – viola
Fernando Araújo – viola baixo acústica
Arranjos – Carlos do Carmo, Ricardo Rocha e Carlos Manuel Proença
Produção – Carlos do Carmo, Ricardo Rocha, Carlos Manuel Proença e Nuno Faria
Consultadoria de produção – Alfredo Almeida
Produção executiva – Nuno Faria / Condado Azul, Lda.
Coordenação de edição – Paula Homem / Universal Music Portugal
Gravação – Fernando Abrantes, nos Estúdios MDL, Paço d'Arcos, em Setembro e Outubro de 2002
Assistente – Pedro Ferreira
Misturas – Fernando Abrantes, Nuno Faria e Alfredo Almeida, nos Estúdios MDL
Masterização e edição digital – Fernando Abrantes, nos Estúdios MDL



Genealogia

(Vasco Graça Moura, in "Letras do Fado Vulgar", Lisboa: Quetzal Editores, 1997 – p. 70-71; "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 241-242)


Talvez a mãe fosse puta de bordel
talvez o pai um decadente aristocrata
talvez lhe dessem à nascença amor e fel
talvez crescesse aos tropeções na vida ingrata

talvez o tenham educado sem maneiras
entre desordens, navalhadas e paixões
talvez ouvisse vendavais e bebedeiras
e as violências que rasgavam corações

talvez crescendo tenha visto que o destino
era a palavra que melhor compreendia
na sem-razão do seu sentido genuíno
ao abandono, isso era certo, assim crescia

talvez mais tarde solidão, erro, saudade
e má fortuna, amor ardente, amarga sina
viessem dar à sua voz a qualidade
do desespero e o timbre escuro da surdina

sofria muito, muitas vezes delirando,
talvez então cantasse rouco um amor louco
bem poucas vezes soube amar em fogo brando
e muitas vezes tanto amar sabia a pouco

talvez ardesse variamente em várias chamas
talvez a história fosse ainda mais bizarra
no desamparo teve sempre duas amas
que se chamavam a Viola e a Guitarra

pois junto delas já talvez o reconheçam
talvez recusem dar-lhe o nome de Enjeitado
e mesmo aqueles que o não cantam não esqueçam
nasceu assim, cresceu assim, chama-se Fado



Morrer de Ingratidão



Poema: Vasco Graça Moura
Música: António Victorino d'Almeida
Intérpretes: Maria João Pires* & Carlos do Carmo (in CD "Maria João Pires / Carlos do Carmo", Universal, 2012)




Vou sempre a jogo quando me convidas
e apenas sei que perco sempre a mão
há no baralho amor e solidão
e atraiçoa-me o tempo às escondidas.

As coisas sendo assim são o que são:
com gaivotas de sombra repetidas
e as cartas todas já distribuídas,
eu apostei a alma e o coração.

As ilusões passaram das medidas
e em noites tresloucadas de paixão
trazes um cheiro a fado e a perdição
e dás cabo de mim e não duvidas.

Nessas linhas que tens na tua mão
há estrelas cadentes esquecidas
e é na sina febril das nossas vidas
que eu vou morrer da tua ingratidão.


* Maria João Pires – piano
Carlos do Carmo – voz
Gravado nos Estúdios Namouche, Lisboa, em Maio, Julho e Outubro de 2012
Engenheiro de gravação – Joaquim Monte
Misturado e masterizado por Alfredo Almeida e Carlos Vales, no Bebop Studio



Rosa Nocturna



Poema: Vasco Graça Moura (in "Letras do Fado Vulgar", Lisboa: Quetzal Editores, 1997 – p. 43-44; "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 218-219)
Música: Mário Pacheco
Intérprete: Ana Sofia Varela* (in CD "Ana Sofia Varela", EMI-VC, 2002)




Dei-te uma rosa e no espelho
entre a sombra e o vermelho
estranhaste o seu clarão
agora só a debrua
a luz irreal da Lua
no vago da escuridão

nela vi quanto dizias,
davas, rias, prometias
vão murmúrio, vão rumor
louca, louca esta existência
tresloucada incandescência
que o sangue lhe vinha pôr

e era tão intensa a vida
que a fugaz rosa colhida
já nem no espelho perdura
fez-se rosa em desalento
que a noite mesmo sem vento
só de a tocar desfigura

vão-lhe as pétalas caindo
e à medida que fugindo
a Lua desaparece
e a manhã quando desperta
já só vê a forma incerta
de uma réstia que estremece

[instrumental]

triste vida a que me afoite
a fazer de cada noite
uma flor, uma quimera
mas rosa, a rosa terás
outra e outra e outra atrás
da que morre à tua espera


* Mário Pacheco – guitarra portuguesa
Carlos Manuel Proença – viola
Paulo Paz – contrabaixo
Arranjos – Mário Pacheco
Gravado e misturado por João Martins, nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, entre Janeiro e Maio de 2001
Assistentes – Artur David, Luís Caldeira
Masterizado por Joe Fossard, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores



Crónica



Poema: Vasco Graça Moura (in "Letras do Fado Vulgar", Lisboa: Quetzal Editores, 1997 – p. 16; "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 194)
Música: José Campos e Sousa
Intérprete: António Pinto Basto* (in CD "Letras do Fado Vulgar", Zona Música, 2003)


Eram barcos e barcos que largavam
fez-se dessa matéria a nossa vida
marujos e soldados que embarcavam
e gente que chorava à despedida

ficámos sempre ou quase ou por um triz
correndo atrás das sombras inseguras
sempre a sonhar com índias e brasis
e a descobrir as próprias desventuras

memória avermelhada dos corais
com sangue e sofrimento amalgamados
se rasga escuridões e temporais
traz-nos também nas algas enredados

e ganhou-se e perdeu-se a navegar
por má fortuna e vento repentino
e o tempo foi passando devagar
tão devagar nas rodas do destino

que ou nós nos encontramos ou então
ficamos uma vez mais à deriva
neste canto que é nosso próprio chão
sem que o canto sequer nos sobreviva

[instrumental]

e ganhou-se e perdeu-se a navegar
por má fortuna e vento repentino
e o tempo foi passando devagar
tão devagar nas rodas do destino

que ou nós nos encontramos ou então
ficamos uma vez mais à deriva
neste canto que é nosso próprio chão     | bis
sem que o canto sequer nos sobreviva   |


* José Luís Nobre Costa – guitarra portuguesa
Bernardo Couto – guitarra portuguesa
Francisco Gonçalves – viola
Armando Figueiredo – viola baixo



Ficção e Realidade



Poema: Vasco Graça Moura (in "Letras do Fado Vulgar", Lisboa: Quetzal Editores, 1997 – p. 55; "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 228)
Música: José Campos e Sousa
Intérprete: António Pinto Basto* (in CD "Letras do Fado Vulgar", Zona Música, 2003)


Ela cantava o fado e de repente
fez-se na tasca enorme zaragata:
chegara o seu amante da fragata
e não gostou de ouvi-la tão ardente

e ao ver que os olhos dela se cravavam
nos olhos de um rufia devagar
a cena foi de faca e alguidar
como depois os outros relatavam

calaram-se o guitarra e o viola
e os mais à meia-luz emudeciam
pois só passos felinos se mediam
no lampejar riscado a ponta e mola

é quando um deles cambaleia e vence-o
a golfada fatal de sangue e vinho
tingindo peito, mangas, colarinho,
e a quebrar num soluço esse silêncio

já não há casos destes na cidade
e eu já não sei quem estendeu a mão
mas num golpe certeiro ao coração
tornou-se esta ficção realidade

[instrumental]

já não há casos destes na cidade
e eu já não sei quem estendeu a mão
mas num golpe certeiro ao coração
tornou-se esta ficção realidade


* José Luís Nobre Costa – guitarra portuguesa
Francisco Gonçalves – viola
Armando Figueiredo – viola baixo



Sinais de Cinza



Poema: Vasco Graça Moura (in "Letras do Fado Vulgar", Lisboa: Quetzal Editores, 1997 – p. 22-23; "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 199-200)
Música: José Campos e Sousa
Intérprete: António Pinto Basto* (in CD "Letras do Fado Vulgar", Zona Música, 2003)


No beco abandonado
sem horas que distinga
com letra que se vinga
do sangue atormentado
vai inscrevendo o fado
na trémula restinga
do corpo macerado
e a pena é uma seringa

quase em andrajos nua
no olhar parado voga
torpor de asas de droga
na palidez da sua
face de quem se afoga
chupou-lhe o rosto a lua
sonâmbula flutua
e nada aos deuses roga

tão longe a juventude
em cinzas deslembrada,
e tão desfigurada
ajude ou desajude
já não lhe vale de nada:
mesmo que a sombra mude
na sombra se degrada
sem que anjo algum a escude

menina e moça assim
em casa de seus pais
criada entre alecrim
e rosas no jardim
levaram-na os sinais
das luzes irreais
agora é quase o fim
que a vida estava a mais

[instrumental]

menina e moça assim
em casa de seus pais
criada entre alecrim
e rosas no jardim
levaram-na os sinais
das luzes irreais
agora é quase o fim
que a vida estava a mais


* José Luís Nobre Costa – guitarra portuguesa
Bernardo Couto – guitarra portuguesa
Francisco Gonçalves – viola
Armando Figueiredo – viola baixo



Casario



Poema: Vasco Graça Moura (in "Letras do Fado Vulgar", Lisboa: Quetzal Editores, 1997 – p. 19; "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 197)
Música: José Campos e Sousa
Intérprete: António Pinto Basto* (in CD "Letras do Fado Vulgar", Zona Música, 2003)


Em Lisboa eu prefiro o casario
que se narcisa visto da outra banda
no espelho às vezes turvo deste rio
na limpidez do rio às vezes branda

é entre o Mar da Palha e o Bugio
que o renque das fachadas se desmanda
em tons de porcelana ao desafio
em cada patamar, cada varanda

e a luz de água e azul a derramar-se
vem envolver-lhe o vulto reflectido,
dar-lhe o contraste de uns ciprestes, dar-se
como um banho lustral e desmedido

é véu de gaze leve o seu disfarce
mas é tão ténue e frágil o tecido
que pode acontecer que ainda o esgarce
um voo de gaivotas esquecido

então seu corpo sob o céu rasgado
terá uma outra luz densa e leitosa
translúcida nudez do compassado
coração da cidade branca e rosa

[instrumental]

e a luz de água e azul a derramar-se
vem envolver-lhe o vulto reflectido,
dar-lhe o contraste de uns ciprestes, dar-se
como um banho lustral e desmedido

então seu corpo sob o céu rasgado
terá uma outra luz densa e leitosa
translúcida nudez do compassado
coração da cidade branca e rosa

[instrumental]


* Bernardo Couto – guitarra portuguesa e viola
Armando Figueiredo – viola baixo



Fado da Sereia



Poema: Vasco Graça Moura (in "Letras do Fado Vulgar", Lisboa: Quetzal Editores, 1997 – p. 68-69; "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 239-240)
Música: José Campos e Sousa
Intérprete: António Pinto Basto* (in CD "Letras do Fado Vulgar", Zona Música, 2003)


Ela era cantadeira e um caso sério
rainha sem rival no seu ofício
e já tinha levado só por vício
três faias e um banqueiro ao cemitério

a voz despia-a toda se cantava
no arfar do xaile preto e do decote
tinha a força nocturna de um archote
e a raiva e a revolta de uma escrava

na boca o seu vermelho era sangrento
nas mãos curvava as unhas como garras
nas ancas tinha a curva das guitarras
as fúrias no cabelo eram do vento

os olhos eram de aço se os abria
cravando-os em incautos corações
e ao serem mais funestas as paixões
todo o seu corpo branco estremecia

cantava como o fogo que devasta
as almas e as cidades de repente
chamavam-lhe "a sereia" toda a gente
e era como a maré quando ela arrasta

morreu de um desespero de facadas
no peito, nas carótidas, na cara,
deu-lhas alguém que um dia atraiçoara
e preferiu as mãos ensanguentadas

não vi mulher mais bela em toda a vida
e em forma de mulher mais tempestade
nem voz ouvi que fosse mais verdade
nem verdade a cantar mais incontida

baixou por sua vez ao cemitério
rainha sem rival no seu ofício
o que era de contar agora disse-o
fica por desvendar o seu mistério

[instrumental]

baixou por sua vez ao cemitério
rainha sem rival no seu ofício
o que era de contar agora disse-o   | bis
fica por desvendar o seu mistério    |


* José Luís Nobre Costa – guitarra portuguesa
Bernardo Couto – guitarra portuguesa
Francisco Gonçalves – viola
Armando Figueiredo – viola baixo



Fado do Conhecimento



Poema: Vasco Graça Moura (in "Letras do Fado Vulgar", Lisboa: Quetzal Editores, 1997 – p. 42; "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 217)
Música: José Campos e Sousa
Intérprete: António Pinto Basto* (in CD "Letras do Fado Vulgar", Zona Música, 2003)


                    «Que afagos tão suaves, que ira honesta»
                                 LUÍS DE CAMÕES
                                 (estrofe 83 do Canto IX
                                 d' "Os Lusíadas", Lisboa, 1572)

Fiz no teu corpo à noite a travessia
de mares e céus e terras e vulcões
e em breve rodopio as estações
detinham-se esquecidas e foi dia
fiz no teu corpo à noite a travessia

a memória das praias e florestas
perpassou-me na pele e entranhou-se
como um suave afago que assim fosse
espuma que ficou de iras honestas
a memória das praias e florestas

e ao despertar de tanta sonolência
formou-se devagar esta canção
para entreter de novo o coração
tão paciente em sua impaciência

até que sendo noite eu atravesso
uma outra vez o mundo, o mar, o vento,
amar é sempre mais conhecimento
e conhecer é tudo o que eu te peço.

[instrumental]

E ao despertar de tanta sonolência
formou-se devagar esta canção
para entreter de novo o coração
tão paciente em sua impaciência

até que sendo noite eu atravesso
uma outra vez o mundo, o mar, o vento,
amar é sempre mais conhecimento    | 3x
e conhecer é tudo o que eu te peço.   |


* José Luís Nobre Costa – guitarra portuguesa
Bernardo Couto – guitarra portuguesa
Francisco Gonçalves – viola
Armando Figueiredo – viola baixo



Toada de Goa



Poema: Vasco Graça Moura (in "O Concerto Campestre", Lisboa: Quetzal Editores, 1993; "Poesia 1963/1995", Lisboa: Quetzal Editores, 2007 – p. 469-470)
Música: José Campos e Sousa
Intérprete: António Pinto Basto* (in CD "Letras do Fado Vulgar", Zona Música, 2003)


Com um nó na garganta
com o sarro de tanta
noitada de Lisboa
amanhecer em Goa
entardecer em Goa

pode ser o resgate
do coração que bate
descompassado à toa
amanhecer em Goa
entardecer em Goa

pode ser uma espuma
de já coisa nenhuma
só lembrança que voa
amanhecer em Goa
entardecer em Goa

pode ser o inseguro
fogo-fátuo no escuro
lá no mastro da proa
amanhecer em Goa
entardecer em Goa

pode ser este brusco
silêncio ao lusco-fusco
que nas almas ressoa
amanhecer em Goa
entardecer em Goa

entre azul e lilás
pode ser o fugaz
tempo que não perdoa
amanhecer em Goa
entardecer em Goa

nesta dura deriva
da memória cativa
que a saudade magoa
amanhecer em Goa
entardecer em Goa

[instrumental]

amanhecer em Goa    | bis
entardecer em Goa    | 

entre azul e lilás
pode ser o fugaz
tempo que não perdoa
amanhecer em Goa
entardecer em Goa

nesta dura deriva
da memória cativa
que a saudade magoa
amanhecer em Goa
anoitecer em Goa


* José Luís Nobre Costa – guitarra portuguesa
Francisco Gonçalves – viola
Armando Figueiredo – viola baixo



Fado da Corda Bamba



Poema: Vasco Graça Moura (in "Letras do Fado Vulgar", Lisboa: Quetzal Editores, 1997 – p. 58-59; "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 230-231)
Música: José Campos e Sousa
Intérprete: António Pinto Basto* com Maria João Quadros (in CD "Letras do Fado Vulgar", Zona Música, 2003)


Se você me deixou na corda bamba
e se eu me estatelei mordendo o pó
não sei se isso é um fado ou se é um samba
se mantém a toada ou se descamba
sei que se foi embora e fiquei só

não sei se isso é um fado ou se é um samba
não sei se isto é um fado ou se é um samba

se é um fado deixaste-me no Tejo
se é samba foi no Rio de Janeiro
duas medidas para um só desejo
em fado ou samba assim no duplo ensejo
da mesma língua a dar-lhe um só roteiro

duas medidas para um só desejo
duas medidas para um só desejo

antes fique eu a meio do caminho
da nossa vida para recordá-la
ou mais depressa ou mais devagarinho
poderei sussurrá-la num fadinho
ou num sambinha doce murmurá-la

ou mais depressa ou mais devagarinho
ou mais depressa ou mais devagarinho

se é fado direi "tu" mas imagina
que se é samba prossigo com "você"
em qualquer caso nunca desafina
sujeito e predicado são rotina
de em fado ou samba perguntar porquê

em qualquer caso nunca desafina
em qualquer caso nunca desafina

mas se você me deixou na corda bamba
e se eu me estatelei mordendo o pó
não sei se isso é um fado ou se é um samba
se mantém a toada ou se descamba
sei que se foi embora e fiquei só

e canto o mesmo fado e o mesmo samba

[instrumental]

em qualquer caso nunca desafina

ai se você me deixou na corda bamba
e se eu me estatelei mordendo o pó
não sei se isso é um fado ou se é um samba
se mantém a toada ou se descamba
sei que se foi embora e fiquei só

e canto o mesmo fado e o mesmo samba
e canto o mesmo fado e o mesmo samba

se você me deixou na corda bamba
e se eu me estatelei mordendo o pó
não sei se isso é um fado ou se é um samba
se mantém a toada ou se descamba
sei que se foi embora e eu fiquei só


* Bernardo Couto – guitarra portuguesa
Armando Figueiredo – viola e viola baixo
Cajó (Carlos Jorge Vales) – percussão
Produção e arranjos – José Campos e Sousa
Arranjo de "Fado da Corda Bamba" – Armando Figueiredo
Gravado, misturado e masterizado nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores – Algés, em Outubro e Novembro de 2002
Engenheiro de som – Joel Conde
Masterização – Joe Fossard



Se a alma te reprova



Poema: William Shakespeare; trad. Vasco Graça Moura (ligeiramente adaptado) [tradução ipsis verbis >> abaixo]
Música: Custódio Castelo
Intérprete: Cristina Branco* (in CD "Sensus", Emarcy/Universal Classics France, 2003)




Faz só meu nome teu amor e amor;
e amas-me então pois eu te chamo Ardor.

Se a alma te reprova eu venha perto,
jura à cega, que o teu ardor eu fosse;
ardor tem, como saber, sítio certo
e assim me enchas, amor, medida doce.

Ardor enche de ardor e amor teu cofre,
ai, lardeia-o de ardor!, e ardor apronto
e bem prova que em vazadouro sofre:
se o número é grande, eu só não conto.

Faz só meu nome teu amor e amor;
e amas-me então pois eu te chamo Ardor.

Então que eu passe em grupo sem ser visto,
sendo um nas contas dessa feitoria;
tem-me em nada, se te agradar registo
de que este nada em ti é doçaria.

Faz só meu nome teu amor e amor;
e amas-me então pois eu te chamo Ardor.

Faz só meu nome teu amor e amor;
e amas-me então pois eu te chamo Ardor.


* Custódio Castelo – guitarra portuguesa
Alexandre Silva – viola
Fernando Maia – viola baixo



Se a alma te reprova eu venha perto

(William Shakespeare; trad. Vasco Graça Moura, in "Os Sonetos de Shakespeare: Versão Integral", Soneto n.º 136, Lisboa: Bertrand Editora, 2002 – p. 283)


Se a alma te reprova eu venha perto,
jura à cega, que o teu ardor eu fosse;
ardor tem, como sabes, sítio certo
e assim me enchas, amor, medida doce.
Ardor enche de ardor e amor teu cofre,
ai, lardeia-o de ardor!, e ardor apronto
e bem prova que em vazadouro sofre:
se o número é grande, eu só não conto.
Então que eu passe em grupo sem ser visto,
sendo um nas contas dessa feitoria;
tem-me em nada, se te agradar registo
de que este nada em ti é doçaria.
        Faz só meu nome teu amor e amor;
        e amas-me então pois eu me chamo Ardor.



Soneto Destruído



Poema: Vasco Graça Moura (de "Quatro Sonetos", in "O Retrato de Francisca Matroco e Outros Poemas", Lisboa: Quetzal Editores, 1998; "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 308)
Música: Custódio Castelo
Intérprete: Cristina Branco* (in CD "Sensus", Emarcy/Universal Classics France, 2003)




Talvez logo na berma de uma estrada
um par se beije transtornadamente
e o destino os separe de repente
entre as duas e as três da madrugada

talvez a lua fria os desinvente
e só lhes traga sombras e mais nada
e por saída só lhes dê a entrada
para o túnel da noite à sua frente

[instrumental]

talvez então as faces se desolem
talvez depois em cinza e solidão
a aurora ponha um luto, talvez colem
as nuvens o seu dorso rente ao chão

talvez por não ousar ninguém mereça
o que viveu. Talvez não amanheça.


* Custódio Castelo – guitarra portuguesa
Alexandre Silva – viola
Miguel Carvalhinho – guitarra clássica
Fernando Maia – viola baixo
Arranjos e produção – Custódio Castelo
Co-produção – Fernando Nunes
Produção executiva – Yann Ollivier / Universal Classics France
Gravado e masterizado por Fernando Nunes, nos Estúdios Pé-de-Vento, Salvaterra de Magos, entre Setembro e Dezembro de 2002



Cristal (Tinha Algum Vinho Ainda)



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 8-9; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 53)
Música: Custódio Castelo
Intérprete: Cristina Branco* (in CD "Ulisses", Emarcy/Universal Music S.A.S. France, 2005)


[instrumental]

Tinha algum vinho ainda o copo que atirei
por cima do meu ombro e foi cair ao Tejo
de madrugada, amor, e havia esse lampejo
do fogo em teu olhar a impor-me a sua lei

da minha sombra à tua, em sombras pelo cais
tinha um som inda rouco o fado que eu cantava
tão perto já de ti, não sei se respirava,
nem se era para sempre ou para nunca mais

meu amor, meu amor, meu amor, por quanto me dizias
estranho murmurar levado pelo vento
por quanto era paixão e agora é desalento
o meu rosto estremece em águas tão sombrias

por quanta embriaguez então nos consumiu
fiquei como o cristal, mas creio que esqueceste,
do copo em que eu bebi e tu também bebeste
que foi cair ao rio e nele se partiu

meu amor, meu amor...


* Custódio Castelo – guitarra portuguesa
Ricardo J. Dias – piano
Alexandre Silva – viola
Fernando Maia – viola baixo
Arranjos – Custódio Castelo e Ricardo J. Dias
Produção – Custódio Castelo
Co-produção e programação – Fernando Nunes
Produção executiva – Yann Ollivier / Universal Music S.A.S. France
Gravado e masterizado por Fernando Nunes, nos Estúdios Pé-de-Vento, Salvaterra de Magos, entre Junho e Setembro de 2004



Tango



Poema: Vasco Graça Moura (in "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 92-93)
Música: Mário Laginha
Intérprete: Cristina Branco* (in CD "Kronos", Emarcy/Universal Music Classics France, 2009)


Deixa-me enlaçar-te
quando a noite cai
quando os nossos passos
cruzam o destino,
quando em toda a parte
de entre as sombras sai
em soluços baços
choro repentino.

Pobre coração
tinto de amargura,
no vaivém mais triste
já foste e vieste.
Se na escuridão
tanta luz impura
noutros olhos viste,
porque o não disseste?

Ah, desesperado,
quanta hora perdida
foge a todo o pano
hoje em meu redor.
Tango incendiado
pela minha vida,
voz que em mim engano
mas que sei de cor,

luar entre os ramos,
aço de um punhal,
noite perfumada
de cruéis lampejos,
corpos que enlaçamos
nessa hora fatal,
alma entrecortada
de adeus e desejos.

Pobre coração,
tinto de amargura,
no tango mais triste
já foste e vieste.
Se na escuridão
tanta luz impura
noutros olhos viste,
porque o não disseste?


* Bernardo Couto – guitarra portuguesa
Bernardo Moreira – contrabaixo
Arranjos e produção musical – Ricardo J. Dias
Produção – Yann Ollivier / Universal Music Classics France
Produção executiva – Olga Carneiro / ONC Produções
Gravado e masterizado por Nelson Carvalho, nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, em Novembro e Dezembro de 2008



Soluço



Poema: Vasco Graça Moura
Música: Pedro Moreira
Intérprete: Cristina Branco* (in CD "Não Há Só Tangos em Paris", Emarcy/Universal Music Classics & Jazz France, 2011)




Aqui me tens agora toda nua
deitada junto a ti como se fosse
branco areal onde se espraia a lua
e o marulhar das vagas é mais doce.

Sou estrela-do-mar e sou molusco
sou mucosa e cetim de lés-a-lés,
sou de dor e prazer e sou um brusco
redemoinho de algas e marés.

Sou a ninfa que vai desgovernada
feita espuma a entrar no temporal,
sou vulcão, carne viva, uivo e golfada
de amor e de agonia em espiral.

Sou garras, dentes, língua, turbilhão
da lava de carícias nas veredas
de me enroscar em ti e ao fim, então,
sou um longo soluço em labaredas.


* Cristina Branco – voz
João Paulo Esteves da Silva – piano
Produção – Pedro Moreira
Coordenação – Paulo Ochôa e Olga Carneiro / ONC Produções Culturais
Produção executiva – Yann Ollivier / Universal Music Classics & Jazz France
Gravado por Nelson Carvalho e Tiago de Sousa, em Setembro de 2010
Misturado por Nelson Carvalho, nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Masterizado por Andy Vandette, no Masterdisk, Nova Iorque



Presságios de Alfama



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 80-81; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 97-98)
Música: Carlos Paredes ("António Marinheiro – Tema da Peça", in LP "Movimento Perpétuo", Columbia/VC, 1971, reed. EMI-VC, 1988, 1998, Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Intérprete: Mísia* (in CD "Canto", Warner Jazz France, 2003)




Névoa e partida
vaivém das vagas
luzes no mar

vela perdida
vozes pressagas
a vêm tocar

vozes pressagas
quanto agoirar

luz esquecida
como te apagas
a tremular

ó louca vida,
como naufragas
a navegar

vozes pressagas
quanto agoirar

morre a gaivota
doente
e à tua rota
vai rente
num triste trino
a chama
o teu destino,
Alfama

morte que sem olhos fita
pelo mar vem a desdita

pó de saudade,
cinzas sem lume
escuridão

e tempestade
noite e negrume
no coração

noite e negrume
no coração

às cegas vou
e não sei
quem violou
esta lei
quem poluiu
o meu linho
quem me impediu
o caminho

meu destino já marcado
erros meus que são meu fado

[instrumental]

meu destino já marcado
erros meus que são meu fado



Lamento das Rosas Bravas



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 82-83; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 99-100)
Música: Carlos Paredes ("Nas Asas da Saudade", in CD "Asas Sobre o Mundo", Philips/PolyGram, 1989)
Intérprete: Mísia* (in CD "Canto", Warner Jazz France, 2003)




Asas de um lenço
no azul imenso
ave que vai voar
nave no alto mar

agora que partiste
fica onde moravas
esta valsinha triste
entre as rosas bravas

e no fim
do lamento
no jardim
sopra o vento

vida assim
desolada,
névoa em mim,
sombras, nada.

Vem à toa
a saudade
e magoa
e vibra no meu peito,
chega e parte
a chamar-te
meu amor, ó meu amor perfeito

e se um dia nalgum voo repentino
a saudade for nas asas do destino
vai correr mundo
e levar o coração
vagabundo
à tua mão

[instrumental]

agora que partiste
fica onde moravas
esta valsinha triste
entre as rosas bravas

e no fim
do lamento
no jardim
sopra o vento

vida assim
desolada,
névoa em mim,
sombras, nada.

[instrumental]

Asas de um lenço
no azul imenso
ave que vai voar
nave no alto mar



Tia Minha Gentil



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 88-89; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 104)
Música: Carlos Paredes ("Canção para Titi", in CD "Canção para Titi: Os Inéditos de 1993", EMI-VC, 2000)
Intérprete: Mísia* (in CD "Canto", Warner Jazz France, 2003)


[instrumental]

Tia minha
tão gentil que me educaste,
da minha vida adivinha
o que sempre adivinhaste

tia minha,
que em menino me cuidaste,
e da manhã à tardinha,
eras flor curvando a haste

tia minha,
em pequeno acompanhaste
tu sozinha, tu sozinha,
tanta dor que dissipaste

tia minha,
cresci, sofri, que contraste,
tia minha vem asinha,
saber como me lembraste

tia minha,
por muito que a vida arraste,
se eras outra mãe que eu tinha,
mãe como ela ficaste

tia minha,
não mereces que te baste
esta guitarra à noitinha:
meu coração escutaste

tia minha,
que em menino me cuidaste,
e da manhã à tardinha,
eras flor curvando a haste

tia minha,
em pequeno acompanhaste
tu sozinha, tu sozinha,
tanta dor que dissipaste

[instrumental]

tia minha,
não mereces que te baste
esta guitarra à noitinha:
meu coração escutaste



Ah Não II



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 90-91; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 105)
Música: Carlos Paredes ("Asas Sobre o Mundo", in CD "Asas Sobre o Mundo", Philips/PolyGram, 1989)
Intérprete: Mísia* (in CD "Canto", Warner Jazz France, 2003)


[instrumental]

Meu amor, meu amor,
foste-me sonho e pão,
foste febre e fervor,
razão e sem razão,

e sede e sabor
das manhãs de verão,
mas minha prisão,
ah não

e em tanto calor
nada foi em vão,
mas minha prisão,
ah não

[instrumental]

meu amor, meu amor,
não te peço perdão,
não te peço favor,
não te peço aversão,

não te peço dor,
nem a contrição,
nem o coração,
ah não

agora ao sol-pôr
meus olhos se vão
e não voltarão
ah não

agora ao sol-pôr
meus olhos se vão
e não voltarão
ah não



Canção de Alcipe



Poema: Marquesa de Alorna, adaptado por Vasco Graça Moura [texto original >> abaixo]
Música: Afonso Correia Leite e Armando Rodrigues, para o filme "Bocage" (1936), de José Leitão de Barros; arr. Carlos Paredes (grav. 1971, in CD "Na Corrente", EMI-VC, 1996, Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Intérprete: Mísia* (in CD "Canto", Warner Jazz France, 2003)




Sozinha no bosque fui
com os meus tristes pensamentos,
lá calei minhas saudades,
e fiz trégua aos meus tormentos.

Olhei então para a lua
que as sombras já rasgava,
e no tremular das águas
seus raios soltava,
seus raios soltava.

Nessa torrente
da despedida
vejo, assustada,
a minha vida.

Do peito as dores
iam cessar,
voa a tristeza
torna o meu penar.

Do peito as dores
iam cessar,
tornam tristezas
a voar.

Sozinha no bosque fui
com os meus tristes pensamentos,
lá calei minhas saudades,
e fiz trégua aos meus tormentos.

Olhei então para a lua
que as sombras já rasgava,
e no tremular das águas
seus raios soltava,
seus raios soltava.

[instrumental]

Nessa torrente
da despedida
vejo, assustada,
a minha vida.

Do peito as dores
iam cessar,
voa a tristeza
torna o meu penar.

Do peito as dores
iam cessar,
tornam tristezas
a voar.

[instrumental]



CANTIGA

(Marquesa de Alorna, 1750-1839, in "Poetas do Século XVIII", selecção, prefácio e notas de M. Rodrigues Lapa, 3.ª edição, Lisboa: Seara Nova, 1967 – p. 103-104)


Sozinha no bosque
com meus pensamentos,
calei as saudades,
fiz trégua a tormentos.

Olhei para a lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.

Naquela torrente
que vai despedida
encontro, assustada,
a imagem da vida.

Do peito, em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a penar.



Horas de Breu



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 92-93; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 106-107)
Música: Carlos Paredes ("Melodia N.º 2", in LP "Guitarra Portuguesa", Columbia/VC, 1967, reed. EMI-VC, 1987, 1998, Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Intérprete: Mísia* (in CD "Canto", Warner Jazz France, 2003)




No dia
de eu me ir embora
não sei se chora
quem me prendeu

na hora
da despedida
a minha vida
quase morreu

agora
só corre a água
da mágoa
que amor me deu

e mora
no coração
um vão
só de breu

na rua
de madrugada
esta balada
triste gemeu

e a lua
quando tentava
ver quem cantava
viu que era eu

agora
só corre a água
da mágoa
que amor me deu

e mora
no coração
um vão
só de breu

[instrumental]

agora
só corre a água
da mágoa
que amor me deu

e mora
no coração
um vão
só de breu

[instrumental]



Valsa das Sombras



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 94-95; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 108-109)
Música: Gonçalo Paredes e Artur Paredes; arr. Carlos Paredes ("Valsa", in LP "Movimento Perpétuo", Columbia/VC, 1971, reed. EMI-VC, 1988, 1998, Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Intérprete: Mísia* (in CD "Canto", Warner Jazz France, 2003)




Agora esta valsa na lenta espiral
do baile de sombras em que às vezes danças
quando a noite cai e é de pedra e cal
no espelho vazio das minhas lembranças,

agora esta valsa no avesso dos dias,
na melancolia das suas oitavas,
repete de leve nas horas sombrias
as loucas palavras que me murmuravas

agora esta valsa quando te atravessas
nesta solidão envolta num xaile
lembra-me uma a uma as tuas promessas
na luz apagada deste fim de baile

qualquer valsa agora são passos em volta,
na vida sem rumo o adeus é cruel,
galopam as nuvens deixadas à solta,
ficou-me o deserto, ainda sabe a mel

vejo o teu vulto e é muito tarde
nesta distância sem regresso
talvez a vida me acobarde
se à tua ausência eu me confesso

nem saberei o que me espera
nem que rosário de amargura
nem se é inverno a primavera
nem se este amor se fez loucura

[instrumental]

agora esta valsa na lenta espiral
do baile de sombras em que às vezes danças
quando a noite cai e é de pedra e cal
no espelho vazio das minhas lembranças,

qualquer valsa agora são passos em volta,
na vida sem rumo o adeus é cruel,
galopam as nuvens deixadas à solta,
ficou-me o deserto, ainda sabe a mel

[instrumental]

nem saberei o que me espera
nem que rosário de amargura
nem se é inverno a primavera
nem se este amor se fez loucura



Tim-Tim por Tim-Tim



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 86-87; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 102-103)
Música: Carlos Paredes ("Canção", in LP "Movimento Perpétuo", Columbia/VC, 1971, reed. EMI-VC, 1988, 1998, Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Intérprete: Mísia* (in CD "Canto", Warner Jazz France, 2003)


Do rio ao mar
verde cor
branca espuma vã

não vás cuidar
minha flor
na luz de amanhã

hoje é sem par
e o sol-pôr
tem na lua a irmã

vai devagar
meu amor
feito de hortelã

como dizer
destas nuvens na sede?

como entender
o princípio e o fim?

nesta espiral
do viver
dentro da canção

há um sinal
a bater
só no coração

sangue fatal
a correr
para a solidão

e é musical
a doer
entre o sim e o não

como dizer
entre o não e o sim?

como entender
o princípio e o fim
postos dentro de mim?

postos dentro de mim
e tim-tim por tim-tim?

do rio ao mar
verde cor
branca espuma vã

não vás cuidar
minha flor
na luz de amanhã

hoje é sem par
e o sol-pôr
tem na lua a irmã

vai devagar
meu amor
feito de hortelã

[instrumental]

hoje é sem par
e o sol-pôr
tem na lua a irmã

vai devagar
meu amor
feito de hortelã


* Mísia – voz
Manuel Rocha – violino
José Manuel Neto – guitarra portuguesa
Carlos Manuel Proença – viola de fado
Quinteto de cordas "Camerata de Bourgogne":
Jean-François Corvaisier – 1.º violino
Leurent Lagarde – violoncelo
Alain Pelissier – violeta
Valérie Pelissier – violeta
Pierre Sylvan – contrabaixo
Henri Agnel – cistre (em "Ah Não II")
Arranjos e direcção musical – Henri Agnel
Direcção do projecto – Pascal Bussy / Warner Jazz France
Produção executiva – Igor Szabason / IS Music
Assistente – Laurence Gilles
Gravado no Studio Gam, Waimes (Bélgica), em Junho de 2003
Engenheiro de som – Silvio Soave
Misturas – Silvio Soave, no CATI Audio, Roman (França)



Coração



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 76-77; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 94)
Música: Mário Pacheco
Intérprete: Mísia* (in CD "Movimentos Perpétuos: Música Para Carlos Paredes", Polydor/Universal, 2003)


Coração de mar e vento
que aos corações lanças redes
és perpetuo movimento
na guitarra do Paredes,

pões esperança e amargura,
vibras sombra e luz nas notas,
e em surdina tens gaivotas
de saudade e de aventura,

coração tumultuário,
ó faminto coração,
solidário e solitário,
a prender nuvens ao chão,

coração da melodia,
coração em que murmuram
sol e lua e se misturam
em funda melancolia,

de tantas fomes e sedes
coração terno e violento,
és perpétuo movimento
na guitarra do Paredes

ó faminto coração,
a prender nuvens ao chão,

[instrumental]

de tantas fomes e sedes
coração terno e violento,
és perpétuo movimento
na guitarra do Paredes


* Mísia – voz
João Paulo Esteves da Silva – piano
Produção – Mísia e João Paulo Esteves da Silva
Produção executiva – Carmo Stichini
Gravado, misturado e masterizado por Joe Fossard, no Estúdio Tcha Tcha Tcha, Miraflores



Fogo Preso



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 44-45; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 73)
Música: José Fontes Rocha
Intérprete: Mísia* (in CD "Drama Box", Liberdades Poéticas/Naïve/EMI-VC, 2005)


[instrumental]

Quando se ateia em nós um fogo preso,
o corpo a corpo em que ele vai girando
faz o meu corpo arder no teu aceso
e nos calcina e assim nos vai matando

essa luz repentina
até perder alento,
e então é quando
a sombra se ilumina,
e é tudo esquecimento,
tão violento e brando.

Sacode a luz o nosso ser surpreso
e devastados nós vamos a seu mando,
ai nessa prisão o mundo perde o peso
e em fogo preso à noite as chamas vão pairando

e vão-se libertando
fogo e contentamento,
a revoar num bando
de beijos tão sem tento
que não sabemos quando
são fogo, ou água, ou vento,

[instrumental]

a revoar num bando
de beijos tão sem tento,
que perdem o comando
do próprio esquecimento.


* José Manuel Neto – guitarra portuguesa
Carlos Manuel Proença – viola de fado
Daniel Pinto – baixo acústico



Fado do Lugar-Comum



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 34-35; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 68-69)
Música: Alfredo Duarte "Marceneiro" (Fado Bailado)
Intérprete: Mísia* (in CD "Drama Box", Liberdades Poéticas/Naïve/EMI-VC, 2005)


Vida amarga a que passei
de infortúnios sem história
governou-a a dura lei
vida amarga a que passei
do amor e da desmemória

tristes palavras ao vento
fui deitando devagar,
sabiam ao meu lamento
tristes palavras ao vento
eram meu jogo de azar

tenho os olhos rasos de água
e em tanta melancolia
como flor feita da mágoa
tenho os olhos rasos de água
nos limos da maresia

a chorar mal reconheço
o coração tão estranho
assim virado do avesso
a chorar mal reconheço
a voz com que o acompanho

meu pobre contentamento
meus nervos então arrase
ao ver momento a momento
meu pobre contentamento
ter falhado, estando quase

ah, fado, és lugar-comum
sustentas-me o coração
sem lhe fazer bem nenhum
ah, fado, és lugar-comum
e pura contradição


* José Manuel Neto – guitarra portuguesa
Carlos Manuel Proença – viola de fado
Daniel Pinto – baixo acústico



Gaivota Doente



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 32-33; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 67)
Música: Mário Pacheco
Intérprete: Mísia* (in CD "Drama Box", Liberdades Poéticas/Naïve/EMI-VC, 2005)




Perguntei ao mar salgado
pela gaivota doente
por seu voo desenhado
à crista das ondas rente

seu bico tocava a espuma
e nas asas transportava
branco estilhaço de bruma
que à luz do sol faiscava

perguntei ao mar salgado
pela gaivota doente

viveu na rosa-dos-ventos
nos halos da maresia
e entre os algodões cinzentos
das nuvens quando as havia

viveu na rosa-dos-ventos

mas o mar já não a espelha
não vem mais à maré vaza
nem às nuvens aparelha
nem o vento é sua casa

nem o vento é sua casa

[instrumental]

perguntei ao mar salgado
pela gaivota doente
por seu voo desenhado
à crista das ondas rente

digo ao mar salgado assim:
nunca mais ninguém a viu
nem voa dentro de mim
porque o meu amor partiu


* José Manuel Neto – guitarra portuguesa
Carlos Manuel Proença – viola de fado
Daniel Pinto – baixo acústico
Arranjos – José Manuel Neto, com colaboração de Carlos Manuel Proença
Conceito e produção artística – Mísia
Produção executiva – Inês Mota / Liberdades Poéticas, Lda.
Gravado nos Estúdios Xangrilá (Lisboa), Studio Plus XXX (Paris), Studio de la Seine (Paris), Audio Spot Studio Digital (Madrid), Gallery Studio (Londres), Todd's Studio (Nova York)
Engenheiro de som – Silvio Soave



Fado de Santa Catarina



Poema: Vasco Graça Moura (versão em quadras) [versão em décimas >> abaixo]
Música: José Fontes Rocha
Intérprete: Mísia* (in 2CD "Ruas": CD "Lisboarium", AZ/Universal Music France, 2009)


Quero a luz leve e vibrante
da Lisboa ribeirinha
fazer menos vida errante
ter, ter uma casa bem minha

casa antiga, casa nova
mas de traça pombalina
meu coração posto à prova
junto a Santa Catarina

ver do alto o rio, espelho
que a certas horas revela
algum quadro do Botelho
a entrar-me pela janela

durante o dia divide-a
fronteira de sombra e luz
marcada por uma orquídea
que num copo de água pus

e se à noite tem perfume
que as rosas rubras lhe dão
a lua dá-lhe um volume
musical de solidão

não é preciso mais nada:
sobre a mesa pão e vinho
a porta fica encostada
empurra-a devagarinho.


* Mísia – voz
Luís Pacheco Cunha – violino



Fado de Santa Catarina

(Vasco Graça Moura, in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 18-19; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 60-61)


No peitoril da janela
uma caprichosa orquídea
verde, castanha, amarela,
sinal da tua perfídia.

Quero a luz leve e vibrante
da Lisboa ribeirinha
quero uma casa bem minha
e a vida menos errante,
quero a gaivota distante
que o meu olhar atropela,
quero o rio que revela
como se fosse um espelho
algum quadro do Botelho
no peitoril da janela.

Quero a traça pombalina
de uma casa antiga e nova,
quero pôr o fado à prova
junto a Santa Catarina.
Já vi que a casa fascina
a Mafalda, a Berta, a Lídia:
quando é de dia divide-a
fronteira de sombra e luz
e num copo de água pus
uma caprichosa orquídea.

Se à noite as rosas lhe dão
um esquisito perfume,
a lua dá-lhe o volume
musical da solidão.
Mas sobre as tábuas do chão
vê-se inda a sombra daquela
orquídea curva e singela,
flor das nossas tentações
e das minhas condições,
verde, castanha, amarela.

E tu alta madrugada
podes vir devagarinho,
sobre a mesa há pão e vinho
e a porta fica encostada,
não é preciso mais nada.
Creio que amas sem insídia,
e a vida é tua, decide-a,
mas se achas que isso a atrasa
fico eu de olhos em brasa,
sinal da tua perfídia.



Fado Inventaire



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 102-103; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 115) [tradução livre >> abaixo]
Música: Alfredo Marceneiro (Fado Bailado)
Intérprete: Mísia* (in 2CD "Ruas": CD "Lisboarium", AZ/Universal Music France, 2009)




C'est la chanson de ma vie
entre soleil et brouillard,
entre amour et jalousie,
ce vol pur qui déshabille
une mouette, un regard,

c'est l'endroit et le revers
de l'absence sans retour,
c'est la passion, c'est l'enfer
d'une attente à bout de nerfs,
c'est la mer au point du jour,

c'est le Taje qui murmure
des échos des caravelles,
c'est ta voix à l'embouchure,
l'écume, la déchirure
d'un printemps sans hirondelles.

C'est la blancheur, le parfum
des vieux quartiers de Lisbonne
et la force du destin,
l'ivresse de l'incertain
dans l'âme qui robinsonne.

[instrumental]

Ma légitime défense
mon coeur qui bat en sursaut
la mesure de l'absence,
l'espoir fou, l'impatience
et voilà: c'est le fado...

la mesure de l'absence,
l'espoir fou, l'impatience
et voilà: c'est mon fado...


* Ângelo Freire – guitarra portuguesa
Carlos Manuel Proença – viola de fado
Daniel Pinto – baixo acústico
Daniel Mille – acordeão
Direcção artística – Mísia
Produção executiva – Flavio D'Ancona
Gravação e mistura – Charles De Schutter (Acousti Studio, Paris / Studio Rec'n Roll, Bruxelas)
Masterização – Mike Marsh (The Exchange Mastering)



Fado Inventário

É a canção da minha vida
entre o sol e a neblina,
entre o amor e o ciúme,
este voo puro que desnuda
uma gaivota, um olhar,

é o direito e o avesso
da ausência sem regresso,
é a paixão, é o inferno
duma espera nervosa,
é o mar da aurora,

é o Tejo que murmura
ecos das caravelas,
é a tua voz no estuário,
a espuma, o rasgão
duma primavera sem andorinhas.

É a brancura, o cheiro
dos velhos bairros de Lisboa
e a força do destino,
a embriaguez do incerto
na alma que isolada vive.

Minha legítima defesa
meu coração que bate em sobressalto
a medida da ausência,
a esperança insana, a impaciência
em suma: é o fado...

a medida da ausência,
a esperança insana, a impaciência
em suma: é o meu fado...



Sem Saber



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 84-85; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 101)
Música: Carlos Paredes ("Mudar de Vida – Tema", in LP "Movimento Perpétuo", Columbia/VC, 1971, reed. EMI-VC, 1988, 1998, Valentim de Carvalho/Som Livre, 2007)
Arranjo: Christina Pluhar
Intérprete: L'Arpeggiata* com Mísia (in CD "Mediterraneo", Christina Pluhar/Virgin Classics, 2013)




[instrumental]

Sem saber
porque te amei assim,
porque chorei por mim,

sem saber
com que punhais tu feres,
magoas mais e queres,

sem saber
onde é que estás, nem como,
o que te traz sem rumo,

[instrumental]

sem saber
se tanto amor devora
mais do que a dor que chora,

sem saber
se vais mudar, se então
podes voltar ou não,

sem saber
se em mim mudou a vida,
se em ti ficou perdida.

Sem saber
da solidão depois
no coração dos dois,

[instrumental]

sem saber
quanto me dóis na voz,
ou se há heróis em nós.


* Mísia – voz
Daniel Pinto – guitarra portuguesa
Sandro Daniel – viola de fado
Sarah Ridy – harpa barroca
Margit Übellacker – saltério
Francesco Turrisi – cravo
Boris Schmidt – baixo
Christina Pluhar – tiorba
Direcção musical – Christina Pluhar



Fado da Capicua



Poema: Vasco Graça Moura (in "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 245-246; "Letras do Fado Vulgar", 2.ª edição, Lisboa: Quetzal Editores, 2001)
Música: Carlos Maria Trindade
Intérprete: Anabela* (in CD "Aether", Elec3city, 2005)


[instrumental]

Telefonei-te da rua
32123 urgente
dizes que te deixe em paz
azar o da capicua
que se lê de trás p'ra a frente
e da frente para trás

Moras no beco da lua
101 lado nascente
mas em casa nunca estás
má sina a da capicua
que se lê de trás p'ra a frente
e da frente para trás [bis]

É dia 11 a tua
festa e eu não vou lá estar presente
33 anos farás
há sempre uma capicua
que se lê de trás p'ra a frente
e da frente para trás [bis]

[instrumental]

De 1001 modos flutua
a sonhar-te a minha mente
nas horas boas e más
ansiosa capicua
que se lê de trás p'ra a frente
e da frente para trás

Mas se o olhar nos desagua
e em meus olhos de repente
o par dos teus se compraz
é bonita a capicua
que se lê de trás p'ra a frente
e da frente para trás [bis]

É dia 11 a tua
festa e eu não vou lá estar presente
33 anos farás
há sempre uma capicua
que se lê de trás p'ra a frente
e da frente para trás [bis]

[instrumental]


* Ricardo Parreira – guitarra portuguesa
Miguel Monteiro – viola
José Marino de Freitas – baixo acústico



Toada do Desengano



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 48-49; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 75)
Música: Franklin Godinho (Fado Franklin de Sextilhas)
Intérprete: Mariza* (in CD "Transparente", World Connection/Capitol/EMI-VC, 2005)




[instrumental]

Este amor, este meu fado,
tão vivido e magoado
entre o sim e o todavia,
este amor desgovernado,
marcado a fogo e calcado
em funda melancolia

este amor dilacerado,
este amor que noite e dia
me arrebata e me agonia,
este amor desenganado,
de saudades macerado,
a encher-me a vida vazia,

[instrumental]

este amor alucinado,
este amor que desvaria
entre o luto e a alegria,
sendo assim desencontrado
meu amor desesperado,
que outro amor eu cantaria?


* Mário Pacheco – guitarra portuguesa
António Neto – viola
Jorge Hélder – contrabaixo
Paulo Sérgio Santos – clarinete
Produção, arranjos e direcção musical – Jaques Morelenbaum
Produção executiva – Albert Nijmolen, João Pedro Ruela e Paulo Junqueiro
Gravado e misturado nos Estúdios AR, Rio de Janeiro, por Marcelo Sabóia e Pablo Vitório
Assistente de mistura – Bruno Stehling
Masterizado por Ricardo Garcia, nos Estúdios Magic Master, Rio de Janeiro



Era a Noite Que Caía



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 30-31; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 66)
Música: Carlos da Maia (Fado Perseguição)
Joana Amendoeira & Mar Ensemble* (in CD/DVD "Joana Amendoeira & Mar Ensemble", HM Música, 2008)




Era a noite que caía
e na sombra recolhia
o voo das andorinhas.
Era a voz que se calava,
era a dor de ver que estava
sem as tuas mãos nas minhas.

Eram passos que escutei,
que eram teus ainda pensei,
iludiu-me o coração.
Foram pela rua escura
longe da minha amargura
e acompanhei-os em vão.

Fiquei perto da janela,
pus-me a abri-la com cautela,
fiz disfarce da cortina.
Vi então na luz incerta
que a rua estava deserta
e deserta estava a esquina.

Era só eu na escuridão,
era no peito um rasgão,
era já no céu a lua,
que me importa?, à minha porta
a sombra que se recorta
bem pode ainda ser a tua.

[instrumental]

que me importa?, à minha porta
a sombra que se recorta
bem pode ainda ser a tua.


* Joana Amendoeira – voz
Pedro Amendoeira – guitarra portuguesa
Pedro Pinhal – viola de fado
Paulo Paz – contrabaixo
Pós-produção musical – António Pinheiro da Silva
Produção executiva – Hélder Moutinho / HM Música
Gravado ao vivo na Praça de Armas do Castelo de São Jorge, Lisboa, no dia 21 de Junho de 2008 (no âmbito da 5.ª edição da Festa do Fado)
Captação de áudio – Luiz Delgado
Misturado e masterizado por António Pinheiro da Silva e Maria João Castanheira, entre Setembro e Outubro de 2008



As Quatro Operações



Poema: Vasco Graça Moura
Música: Pedro Pinhal e Joana Amendoeira
Intérprete: Joana Amendoeira* (in CD "Sétimo Fado", Nosso Fado, 2010)


Fui deitar contas à vida,
fiz as quatro operações;
num instante e de seguida,
tirei certas conclusões.

Comecei pela adição,
porque te amei mais e mais;
se fiz essa soma à mão,
fiz também contas mentais.

Aprendi a tabuada
e vi que multiplicar
era a forma acelerada
de o meu amor aumentar.

Depois vi que subtraía
a tua deslealdade
e o total se reduzia
para menos de metade.

Essa foi a consequência
da mentira repetida
e assim a minha existência
acabava dividida.

E agora não me comove
dar-te uma prova provada:
fiz sempre a prova dos nove
e deu noves fora nada.

[instrumental]

Enfim, não leves a mal
que eu te diga em voz serena:
não tiro a prova real             | 3x
porque já não vale a pena.   |


* Joana Amendoeira – voz
Pedro Amendoeira – guitarra portuguesa
Pedro Pinhal – viola de fado
Paulo Paz – contrabaixo
Filipe Raposo – piano
Davide Zaccaria – violoncelo
Paulo Santos – acordeão
João Ferreira – percussão (em "As Quatro Operações")
Arranjos musicais – Filipe Raposo
Gravação – Maria João Castanheira, nos Estúdios Namouche, Lisboa, entre Dezembro 2009 e Fevereiro de 2010
Misturas no Estúdio La Strada, em Fevereiro e Março de 2010
Masterização – António Pinheiro da Silva, em Março de 2010



Vou Por Ruas, Vou Por Praças



Poema: Vasco Graça Moura (in "Letras do Fado Vulgar", Lisboa: Quetzal Editores, 1997 – p. 25-26; "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 202-203)
Música: Viviane (Viviana Parra Guerreiro)
Intérprete: Viviane* (in CD "Viviane", ZipMix/Zona Música, 2007)


Vou por ruas, vou por praças
por onde à noite derivo
arcadas, paredes baças
luzes trémulas, escassas
e silêncios de que vivo [bis]

rente ao baixo casario
vou por húmidas vielas
chega-me o cheiro do rio
e confio e desconfio
a desoras, sem cautelas [bis]

e por isso em cada muro
cada porta e cada esquina
te procuro e me procuro
por teu corpo me aventuro
e o teu rosto me ilumina [bis]

ai, ai, amor, e o teu rosto me ilumina

sigo pois no labirinto
de Lisboa a horas tardas
vou perdido mas pressinto
ou sei mesmo por instinto
que nalgum lugar me aguardas [bis]

e por isso em cada muro
cada porta e cada esquina
te procuro e me procuro
por teu corpo me aventuro
e o teu rosto me ilumina [bis]

ai, ai, amor, e o teu rosto me ilumina
ai, ai, amor, e o teu rosto me ilumina


* [Créditos gerais do disco:]
Viviane – voz, flauta
Tó Viegas – guitarra portuguesa, guitarra acústica
Rui Freire – bateria
Yuri Daniel – contrabaixo
Luís Simões – baixo acústico
Paulo Borges – acordeão, piano
Celina da Piedade – acordeão
Nelson Conceição – acordeão
Raimundo Seixas – guitarra portuguesa
Miguel Drago – guitarra portuguesa
Produção musical – Tó Viegas e Viviane
Produção executiva – Tó Viegas
Gravado e misturado por Tiago Lopes, no Estúdio ZIPMIX, Quelfes – Olhão, durante os meses de Novembro e Dezembro de 2006
Masterizado por Tó Pinheiro da Silva



Ó Meu Amor, Não Te Atrases



Poema: Vasco Graça Moura (in "Letras do Fado Vulgar", Lisboa: Quetzal Editores, 1997 – p. 40-41; "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 215-216)
Música: Viviane (Viviana Parra Guerreiro)
Intérprete: Viviane* (in CD "As Pequenas Gavetas do Amor", ZipMix Records, 2011)




[instrumental]

Ó meu amor, não te atrases
vou agora pôr-te à prova
esta noite é Lua Nova
e tu não sabes de fases

se chegas tarde eu te acuso
de que andarás a enganar-me:
vindo de ti, cada abuso
me soa a sinal de alarme

teus olhos arregalados
não são desculpa melhor
sabes cá chegar de cor
e mesmo de olhos fechados

nem um cego se perdia
lá fora agitam-se os ramos
nas brenhas da ventania
é tarde, porém jurámos

que enquanto este amor se guarde
e seja o nosso segredo
virias cedo, bem cedo
e havias de partir tarde

[instrumental]

sendo a Lua Nova ou Cheia
ou Crescente ou Minguante
o que a nós nos incendeia
é fogo de outro quadrante

é clarão de uma outra luz
que ao pressentir os teus passos
acendi quando dispus
quatro quartos nos teus braços [4x]


* [Créditos gerais do disco:]
Viviane – voz, flauta
Tó Viegas – guitarra portuguesa, guitarra acústica
Rui Freire – bateria
Xico Santos – contrabaixo
Nelson Conceição – acordeão
Miguel Drago – guitarra portuguesa
João Mogo – trompete
Tiago Rêgo – percussões
Produção musical – Tó Viegas e Viviane
Produção executiva – Tó Viegas
Gravado e misturado por Tiago Lopes, no Estúdio ZIPMIX, Quelfes – Olhão, durante os meses de Junho e Julho de 2010
Masterizado por Tó Pinheiro da Silva



Fado dos Trevos



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 28-29; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 65)
Música: Florêncio de Carvalho
Intérprete: Clara* (in CD "Encontros", Thape, 2010)




A vida é feita de escolhas:
quis escolher uma vez
um trevo de quatro folhas
mas só vi trevos de três

quis então cantar nas ruas
um fado que as três resuma
mais valem três do que duas
e mais duas que nenhuma

e então cantando e somando
o que quero e o que não quero
no meu onde, como e quando,
tinha de partir do zero

e então cantando e somando
o que quero e o que não quero

[instrumental]

acontece que entretanto
deu-se um golpe de teatro
encontrei-te e amei-te tanto
que as três valeram por quatro

e assim nas minhas escolhas
eu tinha razão talvez
transformando em quatro folhas
trevos que eram só de três

e então cantando e somando
o que quero e o que não quero
no meu onde, como e quando,
tinha de partir do zero

e então cantando e somando
o que quero e o que não quero

[instrumental]

e então cantando e somando
o que quero e o que não quero
no meu onde, como e quando,
tinha de partir do zero

e então cantando e somando
o que quero e o que não quero



Mais e Menos



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 36-37; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 70)
Música: José Marques do Amaral
Intérprete: Clara* (in CD "Encontros", Thape, 2010)


[instrumental]

No amor, regras que contem,
há uma só que não é vã:
amar hoje mais do que ontem
mas bem menos que amanhã

e eu num fado que isto guarde
também acrescentaria
amo-te mais cada tarde
do que amei nascendo o dia

e cada vez muito mais
do que antes, mas tais requintes
são muito menos, ver vais,
do que nos dias seguintes

com resultados tão plenos
como somar dois e dois:
muito mais e muito menos
conforme "antes" e "depois"

no amor, regras que contem,
há uma só que não é vã:
amar hoje mais do que ontem
mas bem menos que amanhã



Não Me Peças Perdão



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 52-53; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 77)
Música: Alfredo Duarte "Marceneiro" (Fado CUF)
Intérprete: Clara* (in CD "Encontros", Thape, 2010)


[instrumental]

Não me peças perdão, a culpa é minha:
foi este tempo todo descuidado,
foi não achar que o fim um dia vinha
foi ficar sem defesas a teu lado

foi nunca te lembrar em sobressalto
foi não deixar falar a tua boca
foi não pensar em ventos no mar alto
foi tanta coisa, tanta, hoje tão pouca

foi deixar-me viver em falsa paz
foi afagar-te as mãos sem as prender
ou foi prendê-las mal e tanto faz
julgar que se morria de prazer

agora é tarde, sim, tarde demais,
tropeço às cegas nesta dura lei,
não sei se vale a pena dar sinais
e o que te hei-de dizer também não sei.

[instrumental]


* Clara – voz
Luís Ribeiro – guitarra portuguesa
Florêncio de Carvalho – viola
Joel Pina – baixo acústico



Talvez



Poema: Vasco Graça Moura
Música: Luís Pedro Fonseca
Intérprete: Cristina Nóbrega* (in CD "Retratos", Sony Music, 2010)


Talvez digas um dia o que me queres,
talvez não queiras afinal dizê-lo,
talvez passes a mão no meu cabelo,
talvez não pense em ti, talvez me esperes

Talvez, sendo isto assim, fosse melhor
falhar-se o nosso encontro por um triz
talvez não me afagasses como eu quis,
talvez não nos soubéssemos de cor

Mas não sei bem, respostas não mas dês,
vivo só de murmúrios repetidos,
de enganos de alma e fome dos sentidos,
talvez seja cruel, talvez, talvez...

Se nada dás, porém, nada te dou
neste vaivém que sempre nos sustenta,
e se a própria saudade nos inventa,
não sei talvez quem és mas sei quem sou.

[instrumental]

Talvez, sendo isto assim, fosse melhor
falhar-se o nosso encontro por um triz
talvez não me afagasses como eu quis,
talvez não nos soubéssemos de cor

Mas não sei bem, respostas não mas dês,
vivo só de murmúrios repetidos,
de enganos de alma e fome dos sentidos,
talvez seja cruel, talvez, talvez...

Se nada dás, porém, nada te dou
neste vaivém que sempre nos sustenta,
e se a própria saudade nos inventa,
não sei talvez quem és mas sei quem sou.


* Cristina Nóbrega – voz
José Manuel Neto – guitarra portuguesa
Rogério Ferreira – viola de fado
Pedro Festa – contrabaixo



Questão de Culpa



Poema: Vasco Graça Moura
Música: Carlos Gonçalves
Intérprete: Cristina Nóbrega* (in CD "Retratos", Sony Music, 2010)


Que me deixasses só e te afastasses
foi o que te pedi, sabe-lo bem
e quando me deixasses, nem falasses
do fim do nosso amor com mais ninguém

Mas se andas por aqui como se a vida
continuasse a mesma entre nós dois
tristemente iludida, a despedida
para um adeus cruel, mas só depois

Se é ao banco dos réus que tu me arrastas
como se o fim do amor fosse algum crime
se com palavras gastas tu te afastas,
mas queres que de ti eu me aproxime

É que talvez não saibas que te amei
e que esse louco amor não continua
de tanto que passei, desesperei
e se a saudade é minha, a culpa é tua

[instrumental]

É que talvez não saibas que te amei
e que esse louco amor não continua
de tanto que passei, desesperei
e se a saudade é minha, a culpa é tua


* Cristina Nóbrega – voz
Carlos Gonçalves – guitarra portuguesa
Rogério Ferreira – viola de fado
Pedro Festa – contrabaixo
Produção – Luís Pedro Fonseca
Gravado e misturado nos Estúdios MDL, Paço d'Arcos, por André Tavares
Masterizado por Fernando Abrantes



Recado



Poema: Vasco Graça Moura (in "Letras do Fado Vulgar", Lisboa: Quetzal Editores, 1997 – p. 15; "Poesia 1997/2000", Lisboa: Quetzal Editores, 2000 – p. 193)
Música: Miguel Ramos (Fado Alberto)
Intérprete: Patrícia Costa* (in CD "Um Cantar Velado e Lento", Patrícia Costa, 2010)


[instrumental]

Leva a Lisboa azul quadriculada
que a Vieira da Silva já pintou
e a última gaivota que riscou
a sua leve luz acidulada

leva a névoa que cai pela amurada
e a corrente do Tejo não lavou
leva as pedras que o tempo afeiçoou
e a saudade na voz sobressaltada

leva uma vela branca desfraldada
a que no mar salgado desenhou
um rumo que dos mapas não constou
e se desfez depois sob a nortada

leva também a vida amargurada
que o pobre coração desgovernou
e o recado febril que não chegou
contando da paixão desesperada

leva o tempo que foi e não voltou
e levarás contigo tudo e nada


* Patrícia Costa – voz
Miguel Amaral – guitarra portuguesa
André Teixeira – viola
João Penedo – contrabaixo
Gravação e mistura – Francisco Maldonado, no Porto
Masterização – Francisco Maldonado, em Londres



Prometo Queimar as Cartas



Poema: Vasco Graça Moura (in "Mais Fados & Companhia", Lisboa: Público, 2004 – p. 50-51; "Poesia 2001/2005", Lisboa: Quetzal Editores, 2006 – p. 76)
Música: Vanessa Sassine e José Ferra
Intérprete: Cacau* (in CD "Cacau", Cacau, 2014)


[instrumental]

Prometo queimar as cartas
que me escreveste e bem quis
agora que tu te apartas
ficar com as mais febris

terei todas as cautelas,
rasgo tudo, queimo tudo,
a minha alma arde com elas
e o coração fica mudo

[instrumental]

prefiro a tua franqueza
mesmo que seja brutal:
se já eram chama acesa,
arderão mais, não faz mal

[instrumental]

quero coragem, vou tê-la,
mas tê-la assim dói imenso,
ter a vida e desfazê-la,
meu amor, não me convenço

e quanto mais cartas queime,
nada me custa, descansa:
dei-te tudo e então deitei-me
nas cinzas da minha esperança.


* Vanessa Sassine – voz
José Ferra – guitarra
André Mariano – percussão
Jorge Fundo – baixo
Pedro Vieira – piano
Bruno Ferreira – clarinete
Produção – Pedro Vieira e José Ferra
Gravado e misturado por Pedro Vieira, na MusicFlat, Carvalhos – Vila Nova de Gaia, entre 25 de Abril de 2012 e 13 de Março de 2014
Masterização – Miguel Pinheiro Marques (Bender Mastering Studio)



Capa do livro "Letras do Fado Vulgar" (Quetzal Editores, 1997)
Desenho por Mário Eloy.



Capa do livro "Mais Fados & Companhia" (Público, 2004)
Ilustração por Stuart de Carvalhais.