27 junho 2011

Publicidade comercial na rádio pública



É através da publicidade comercial que os órgãos de comunicação social do sector privado garantem a sua sustentabilidade económica. Devido a tal contingência a programação de uma estação de rádio privada está naturalmente condicionada pela lógica das audiências. O serviço público de rádio, pela natureza que lhe é intrínseca, não podia estar sujeito a tal constrangimento, pelo que o Estado determinou que o seu financiamento fosse assegurado com dinheiros públicos – os relativos às transferências directas do Orçamento de Estado e os que provêm da taxa de radiodifusão (rebaptizada, há meia-dúzia de anos, de contribuição do audiovisual, por forma a que a televisão passasse comer do bolo – a parte de leão, acrescente-se), que é cobrada na factura da electricidade e cujo montante mensal se cifra actualmente em 2,25 euros (+ IVA).
A Antena 1 podia assim fornecer um serviço de qualidade, quer na vertente da informação quer na vertente da programação, e os ouvintes tinham a garantia de o poder fruir sem que os seus ouvidos fossem massacrados com publicidade. Com um ou outro desvio pontual, foi assim que as coisas se processaram até meados de 2005. Com a colocação na direcção de programas das Antenas 1, 2 e 3, pela mão de Luís Marques, do sr. Rui Pêgo, um indivíduo "nado e criado" em rádios comerciais, a perversão era inevitável. E a publicidade a marcas e produtos não se fez esperar, entrando de rompante na estação pública, convenientemente disfarçada sob a capa de publicidade institucional. Desde filmes comerciais americanos que recebem o rótulo de "um filme Antena 1" a eventos desportivos e musicais associados a marcas e a empresas com fins lucrativos, tudo a rádio pública (sobretudo as Antena 1 e 3 – por vezes, também a Antena 2) tem publicitado sem a menor parcimónia. Refira-se, a título de exemplo, o filme "Toy Story 3", o Vodafone Rally de Portugal e o Festival Delta Tejo ("um festival Antena 1", pois claro). A promoção dada a este último, de tão intensa e desproporcionada que tem sido, é verdadeiramente obscena e atinge as raias do escândalo. Na verdade, o 'spot' com a voz de José Mariño a anunciar, em tom arrebatado, «o cartaz mais multicultural [?!] do Verão com os sons e os ritmos dos países produtores de café» (o Canadá de onde vem a Nelly Furtado é acaso um produtor de café?) tem passado com uma frequência tão elevada, de há duas ou três semanas para cá, que um ouvinte da
Antena 1, mesmo que só durante algumas horas (imagine-se o dia inteiro!), não pode deixar de se sentir mentalmente agredido com tão desmesurada repetição. O sr. Rui Pêgo terá sido acometido de uma paixão tão assolapada pelos Cafés Delta, que resolveu contemplá-los com uma campanha promocional graciosa? Na hipótese da marca de café do comendador Rui Nabeiro ser a predilecta do actual director de programas da rádio estatal, não acredito, sinceramente, que a sua benemerência fosse a tal ponto. Não, não é no café que reside a explicação para a massiva promoção ao Festival Delta Tejo 2011, mas numa coisa bem menos prosaica. Como é sabido, o evento é organizado pela empresa de espectáculos Música no Coração, pertencente ao genro de Cavaco Silva, Luís Montez, que por coincidência é também o proprietário do grupo de rádios Luso Canal (Radar, Oxigénio, Marginal, Rádio Nova, Rádio Nova Era, Rádio Festival, Rádio Amália, Rádio SW TMN). Nesta última, o Sr. Luís Montez já deu emprego ao filho de Rui Pêgo, Rui Maria Pêgo. E é claro: favor paga-se com favor. Além disso, uma operação de charme ao amigo Luís Montez (lembre-se que na Associação Portuguesa de Radiodifusão os lugares de presidente e de vice-presidente da Mesa da Assembleia-Geral são ocupados por Rui Pêgo e Luís Montez, respectivamente), nas ondas nacionais da Antena 1, pode revelar-se muito útil ao futuro profissional do próprio Rui Pêgo, pois um lugarzinho numa (ou em várias) das rádios de Luís Montez não é coisa de desperdiçar. Sabendo que a sua permanência na RDP não está garantida até à reforma, o sr. Rui Pêgo trata de acautelar o seu futuro. Que isso seja feito atropelando os mais elementares princípios éticos e gozando com a cara dos ouvintes/contribuintes que lhe pagam o sumptuoso salário, é de somenos importância, com certeza. E assim vai o "serviço público de rádio"...

14 junho 2011

"Musica Aeterna": um programa ao serviço do apostolado católico?

A Constituição da República Portuguesa consagra – e muito bem – o princípio da laicidade do Estado. Quer isto dizer que os órgãos de soberania (Presidência da República, Assembleia da República, Governo, Tribunais), bem como os organismos sob a sua tutela, não podem tomar partido por qualquer credo religioso professado no país (ou não), nem se envolverem em acções de proselitismo ou doutrinação. Ora foi exactamente o contrário disto o que se passou na estatal Antena 2, com o programa "Musica Aeterna" no qual, a pretexto do Pentecostes, uma solenidade do calendário litúrgico católico, foram lidos vários textos de teor marcadamente confessional e do estrito domínio da fé, uns extraídos da Bíblia católica (digo católica, porque a Bíblia protestante tem algumas diferenças – no menor número de livros e não só) e outros de literatura doutrinária patrística ou pontifícia, quiçá constantes no catecismo romano e/ou em encíclicas papais.
Sou ouvinte regular do "Musica Aeterna", que considero muito bom em termos de selecção musical (muito criteriosa) e também no tocante à locução de João Pedro (primorosa – não direi o mesmo de algumas outras vozes que, por vezes, lá aparecem), mas ao ouvir a emissão de sábado passado confesso que me senti violentado na minha liberdade de consciência (de livre-pensador). O autor do programa, João Chambers, é presumivelmente uma pessoa que professa o catolicismo e quanto a isso não há a mais pequena censura da minha parte. O que não posso aceitar é que utilize um programa musical pelo qual é remunerado com dinheiros públicos para fazer proselitismo da sua religião. Desta vez, o pretexto para a acção apostólica foi o Pentecostes. Qual será o próximo? – A Assunção da Virgem Maria aos céus? A Imaculada Conceição? As aparições de Lourdes ou de Fátima? A canonização de João Paulo II? – Não, isto não se pode tolerar numa estação pública e, como tal, laica e aconfessional. A Antena 2 não é a Rádio Renascença.
Sei muito bem que parte considerável da produção musical anterior ao Romantismo tem feição religiosa: católica nos países do Sul da Europa e protestante nos do Norte. Por acaso, duas das minhas obras predilectas de toda a História da Música têm cunho religioso. São elas: a "Paixão Segundo São Mateus", de Johann Sebastian Bach, e o "Requiem", de Mozart. Que se trate de obras religiosas (deste ou daquele credo) é-me completamente indiferente. A genialidade da música é única coisa que me importa. Nesta conformidade, toda a música sacra de qualidade (católica, luterana, anglicana, ortodoxa, etc.) que o Sr. João Chambers nos queira dar a ouvir é bem-vinda. O que jamais se poderá admitir é que, a pretexto desta ou daquela solenidade ou festividade católica (vale o mesmo para qualquer outra confissão), queira fazer do programa uma sessão de catequese.

09 junho 2011

"Lugar ao Sul" mutilado, não! (III)

Tenho-me esforçado para não voltar a "chover no molhado" relativamente às continuadas mutilações das gravações do "Lugar ao Sul", desde que o programa passou a ser emitido em reposição (finais de Janeiro de 2011). Na edição de sábado passado (dia 04 de Junho) a coisa foi feita de forma tão grosseira e chocante que a minha indignação subiu aos píncaros. Vi-me, por isso, obrigado a retomar o assunto.
Desta vez, não só mutilaram praticamente todos poemas da recolha de campo (noutras ocasiões alguns poemas ainda escapavam incólumes à "tesoura") como não tiveram o menor pejo em amputar as próprias músicas de disco escolhidas por Rafael Correia para o preâmbulo musical, agora não na totalidade nas em secções intermédias, o que causa uma indisfarçável sensação de desconforto a quem ouve. Aconteceu isto na moda "Trovoada" (em que eliminaram a parte correspondente ao verso "Mais tarde deu em chover" que é cantado duas vezes) e na moda "Rego abaixo, rego acima" (em que suprimiram a secção em que o Grupo Coral e Etnográfico "Os Camponeses de Pias" canta "Nem só com armas de guerra / Se defende uma nação").
Através da minha gravação caseira (pré-programada, pois gosto de ouvir o programa às 09:00 de sábado, continuando a cultivar um ritual com quase duas décadas) dei-me logo conta de que nos poemas (ditos pelo Sr. Joaquim Cruz, filho da vila alentejana de Cuba) havia versos em falta e que em certas passagens as rimas não batiam certo. Tudo isto acompanhado de ruídos estranhos e incomodativos... Ao reouvir o programa, aquando da preparação da "circular" com as letras das cantigas e os textos dos poemas que semanalmente expeço para os
Amigos do LUGAR AO SUL, vim a confirmar com mais pormenor e acuidade a impressão com que ficara da primeira audição. Uma autêntica barbaridade... Se é grave que as partes de diálogo sejam suprimidas, mais inaceitável ainda se afigura a truncagem (completamente arbitrária) dos poemas.
Não sei se é a sra. Cláudia Almeida que decide quais as partes dos registos originais a suprimir ou se deixa isso ao critério do técnico de montagem (que deve ser uma pessoa bastante inexperiente atendendo ao rasto de ruídos que deixa nos pontos de corte). Qualquer que seja o caso, o que foi feito é absolutamente intolerável e revoltante. Reitero o que escrevi anteriormente: o que está em causa é não apenas a adulteração, a todos os títulos inaceitável, dos registos de Rafael Correia, mas uma tremenda e insustentável desconsideração pelos ouvintes do programa que, com tais procedimentos, são tratados "abaixo de burro". «Para quem é, bacalhau basta!», deve dizer o sr. Rui Pêgo para os seus botões. Esquece-se, com certeza, que os ouvintes do "Lugar ao Sul", que tão pouca consideração lhe merecem, também contribuem para o opíparo salário que leva para casa no final de cada mês.
Os ouvintes do admirável programa de Rafael Correia voltam a clamar a quem de direito: «"Lugar ao Sul" mutilado, não!»


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01 junho 2011

A infância e a música portuguesa (III)

Terceira parte: Brincando, brincando... >>> aqui