A Constituição da República Portuguesa consagra – e muito bem – o princípio da laicidade do Estado. Quer isto dizer que os órgãos de soberania (Presidência da República, Assembleia da República, Governo, Tribunais), bem como os organismos sob a sua tutela, não podem tomar partido por qualquer credo religioso professado no país (ou não), nem se envolverem em acções de proselitismo ou doutrinação. Ora foi exactamente o contrário disto o que se passou na estatal Antena 2, com o programa "Musica Aeterna" no qual, a pretexto do Pentecostes, uma solenidade do calendário litúrgico católico, foram lidos vários textos de teor marcadamente confessional e do estrito domínio da fé, uns extraídos da Bíblia católica (digo católica, porque a Bíblia protestante tem algumas diferenças – no menor número de livros e não só) e outros de literatura doutrinária patrística ou pontifícia, quiçá constantes no catecismo romano e/ou em encíclicas papais.
Sou ouvinte regular do "Musica Aeterna", que considero muito bom em termos de selecção musical (muito criteriosa) e também no tocante à locução de João Pedro (primorosa – não direi o mesmo de algumas outras vozes que, por vezes, lá aparecem), mas ao ouvir a emissão de sábado passado confesso que me senti violentado na minha liberdade de consciência (de livre-pensador). O autor do programa, João Chambers, é presumivelmente uma pessoa que professa o catolicismo e quanto a isso não há a mais pequena censura da minha parte. O que não posso aceitar é que utilize um programa musical pelo qual é remunerado com dinheiros públicos para fazer proselitismo da sua religião. Desta vez, o pretexto para a acção apostólica foi o Pentecostes. Qual será o próximo? – A Assunção da Virgem Maria aos céus? A Imaculada Conceição? As aparições de Lourdes ou de Fátima? A canonização de João Paulo II? – Não, isto não se pode tolerar numa estação pública e, como tal, laica e aconfessional. A Antena 2 não é a Rádio Renascença.
Sei muito bem que parte considerável da produção musical anterior ao Romantismo tem feição religiosa: católica nos países do Sul da Europa e protestante nos do Norte. Por acaso, duas das minhas obras predilectas de toda a História da Música têm cunho religioso. São elas: a "Paixão Segundo São Mateus", de Johann Sebastian Bach, e o "Requiem", de Mozart. Que se trate de obras religiosas (deste ou daquele credo) é-me completamente indiferente. A genialidade da música é única coisa que me importa. Nesta conformidade, toda a música sacra de qualidade (católica, luterana, anglicana, ortodoxa, etc.) que o Sr. João Chambers nos queira dar a ouvir é bem-vinda. O que jamais se poderá admitir é que, a pretexto desta ou daquela solenidade ou festividade católica (vale o mesmo para qualquer outra confissão), queira fazer do programa uma sessão de catequese.
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