26 dezembro 2007

Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2007

Os vinte anos sobre a morte de José Afonso (23 de Fevereiro) e os 25 anos sobre a morte de Adriano Correia de Oliveira (16 de Outubro) são as efemérides que marcam de forma mais visível o ano de 2007.
Mas também é neste ano que fazem anos (em decénios ou quinquénios) importantes registos discográficos da música portuguesa. Aqui fica uma lista que, embora não sendo exaustiva, contempla a maior parte dos discos mais relevantes.


Amália no Olympia, de Amália Rodrigues
(LP, Columbia/VC, 1957; CD, EMI-VC, 1988)


Em 1957, é lançado o LP "Amália no Olympia", o primeiro álbum de Amália Rodrigues editado em Portugal (o seu primeiro LP fora uma compilação editada em França, dois anos antes, pela Pathé-Marconi). Composto por gravações realizadas na famosa sala de concertos parisiense, "Amália no Olympia" contém 14 temas, entre os quais se contam alguns dos maiores clássicos da artista: "Uma Casa Portuguesa" (Reinaldo Ferreira / V. Matos Sequeira e Artur Fonseca), "Nem às Paredes Confesso" (Artur Ribeiro / Max - Ferrer Trindade), "Ai Mouraria" (Amadeu do Vale / Frederico Valério), "Perseguição" (Avelino de Sousa / Carlos da Maia), "Tudo Isto é Fado" (Aníbal Nazaré / Fernando Carvalho), "Fado Corrido" (Linhares Barbosa / Santos Moreira), "Barco Negro" (do filme 'Os Amantes do Tejo') (David Mourão Ferreira / Caco Velho - Piratini), "Coimbra" (José Galhardo / Raul Ferrão), "Sabe-se Lá" (Silva Tavares / Frederico Valério), "Tendinha" (José Galhardo / Raul Ferrão), "Lá Vai Lisboa" (Norberto de Araújo / Raul Ferrão), "Que Deus Me Perdoe" (Silva Tavares / Frederico Valério), "Lisboa Antiga" (José Galhardo - Amadeu do Vale / Raul Portela) e "Amália" (José Galhardo / Frederico Valério). Os acompanhadores foram Domingos Camarinha (guitarra portuguesa) e Santos Moreira (viola). Trata-se de um registo verdadeiramente histórico e que representou igualmente um marco importante na fulgurante carreira da nossa maior cantora.
[colocar citação]


Serenata de Coimbra, de Luiz Goes e António Portugal
(LP, Philips, 1957; CD "Fados de Coimbra", Polygram, 199?)


Em 1957, é gravado e editado internacionalmente o álbum "Serenata de Coimbra". Com a voz de Luiz Goes, as guitarras de António Portugal e Jorge Godinho, e as violas de Manuel Pepe e Levi Baptista (apelidado o Coimbra Quintet), "Serenata de Coimbra" é o primeiro LP de música portuguesa a ser lançado à escala internacional (pela Philips) e ainda hoje o disco de música de Coimbra mais vendido em todo o mundo. O alinhamento é composto por oito temas cantados – "Fado do Estudante" (Vicente Aroso / Fernando Machado Soares), "O Meu Desejo" (Luiz Goes), "Toada Beirã" (Popular, arr. Luiz Goes), "Canção Açoriana" (popular, arr. António Portugal), "Serra d'Arga" (Popular, arr. Fernando Machado Soares), "Fado Triste" (José Marques da Cruz / Francisco Menano), "Cantares do Penedo" (Fernando Machado Soares), "Fado Hilário" (António Hilário) – e quatro instrumentais – "Aguarela Portuguesa" (António Portugal), "Variações em Lá menor" (António Portugal), "Balada de Coimbra" (M.J.P. Elyseu), e "Variações em Ré menor" (A. Santos). O disco foi sucessivamente reeditado pela Philips, Polygram e Universal, com diferentes capas e títulos ("Serenata de Coimbra", "Fados de Coimbra") e atribuído a Luiz Goes e António Portugal.
O cantor conta: «Não é um trabalho só meu. Mas é um disco em que tenho a parte principal, porque sou o homem que dá a voz a todos os temas, tirando quatro guitarradas necessárias para compor o ramalhete. Mais tarde aparece a Philips a dizer que queria que o disco ficasse só em meu nome. Mas eu disse-lhes: "Ao menos ponham lá o nome do António Portugal, que é o homem da guitarra". E assim foi feito. Foi um disco que causou um grande impacto. Tecnicamente é muito mais evoluído que aqueles que foram gravados nos anos 20. Depois houve uma colheita de temas populares feita com muito critério e com uma tendência muito marcada para trazer canções populares para o meio urbano. É um disco em que a voz é posta ao serviço da cultura e não da pieguice. Para mim foi o primeiro disco moderno que se gravou de música coimbrã».
Este foi o trabalho que afirmou definitivamente Luiz Goes como um dos cantores superlativos da música de matriz coimbrã, o qual depois nos daria posteriormente álbuns tão importantes como "Coimbra de Ontem e de Hoje" (Columbia/VC, 1967), "Canções do Mar e da Vida" (Columbia/VC, 1969), "Canções de Amor e de Esperança" (Columbia/VC, 1972) e "Canções Para Quase Todos" (EMI-VC, 1983).
O advogado Levi Baptista, um dos elementos integrantes do conjunto instrumental, recorda a preparação da gravação deste disco lendário: «O Coimbra Quintet é uma coisa que nunca existiu! Em 1956, a Philips decide organizar, a nível mundial, uma recolha de folclore. Portugal é incluído nessa colecção e a escolha recai sobre Coimbra. Havia um homem excepcional, o professor Mário Silva, que foi assistente de Madame Curie, [que] a certa altura, nos anos 40, foi afastado da universidade – como muitos professores de alta qualificação, por razões políticas – e após atravessar uma fase difícil, foi contratado pela Philips como quadro superior. Penso que terá sido através dele que Coimbra surge no horizonte da Philips. Aparece então um grupo de estudantes de Coimbra que fica encarregue de fazer este trabalho. Daí elabora-se um projecto que continha essencialmente música tradicional de Coimbra, canção de Coimbra, guitarras de Coimbra, e alguns temas de folclore extra-coimbrão – na tradição, aliás, do que já vinha do tempo do Artur Paredes e do Bettencourt, e até do Menano, que eram contribuições dos Açores, da Beira Baixa... Por isso, aparecem no álbum alguns temas como a "Canção Açoriana", a "Toada Beirã" – conhecida por "Canção da Amélia" – a "Serra d'Arga", típica do Minho... uma componente folclórica que passou a ser integrada na canção de Coimbra. A gravação é feita em Março de 1957, em Madrid, porque devido ao extraordinário empenhamento da Philips, que tinha de apresentar um lançamento a nível mundial, é enviada a Espanha a equipa técnica que percorre todo o mundo. Aluga um teatro que tinha as melhores condições acústicas existentes em Madrid, o Teatro do Príncipe Real, onde durante vários dias – uma semana, salvo erro – gravámos estes temas. Tínhamos noção que era uma coisa para ficar, e portanto preparámos aquilo bem, durante meses com o Fernando Machado Soares, que era um indivíduo com uma grande sensibilidade e uma grande capacidade de criação. Era ele que estava para cantar, mas nos últimos dias acabou por não poder ir, e foi o Luiz Goes, que tinha acompanhado também toda a preparação do disco e contribuído com alguns arranjos, que entrou naturalmente na corrida. Embora sendo amadores – amadoríssimos! –, tínhamos a noção de que se tinha de funcionar em termos profissionais. [...] Aquilo estava de tal ordem que muitas vezes a primeira coisa que saía era a melhor. Eles gostaram muito. Embora fossem pessoas muitíssimo rodadas, era uma coisa muito diferente para eles. Daí que tenham apreciado muito, e que se tenham empenhado em fazer uma grande divulgação do disco e – não sei se na altura já havia uma grande noção de marketing – tenham criado uma designação para o grupo: Coimbra Quintet. Em Portugal, o disco só saiu em 1958. E de facto teve uma receptividade extraordinária, não só em Coimbra como em todo o lado. Aliás, continua a ser reeditado e a vender-se! Tenho ideia de que terá sido, ou continua a ser, o disco português mais vendido, inclusive mais que Amália. Este é o disco número um de Coimbra. [...] Esta foi a primeira gravação profissional. Este disco é o elo de ligação de todos os antigos estudantes de Coimbra. Ficou como uma referência. Há ali já um nível de qualidade de que tem de tentar aproximar-se. Passou a ser um cânone». (Levi Baptista).


Busto, de Amália Rodrigues
(LP, Columbia/VC, 1962; CD, EMI-VC, 1989)


A Valentim de Carvalho edita, em 1962, o álbum "Amália Rodrigues", que passou a ser conhecido por "Busto", em referência à escultura de Joaquim Valente reproduzida na capa, ou "Asas Fechadas", o nome do tema que abre o alinhamento. É o primeiro álbum de estúdio de Amália e o primeiro disco da cantora com músicas de Alain Oulman, quiçá o compositor mais importante da artista e a quem se deve o impulso decisivo para a renovação do fado. «Ele foi o primeiro a intuir, a um nível mais profundo, a fundamental coexistência, na personalidade de Amália, do popular e do culto, do espontâneo e do vigiado, do grácil e do austero – de tudo, em suma, o que a nimba de génio», disse David Mourão-Ferreira. Nesta primeira colaboração entre a fadista e o compositor francês, a escolha recaiu em quatro poemas de David Mourão-Ferreira ("Maria Lisboa", "Madrugada", "Abandono" e "Aves Agoirentas"), três de Luís de Macedo ("Asas Fechadas", "Cais de Outrora", e "Vagamundo"), um de Pedro Homem de Melo ("Povo Que Lavas no Rio") e um da própria Amália ("Estranha Forma de Vida"), sendo estes dois últimos os únicos que não têm música de Alain Oulman, respectivamente, de Joaquim Campos (Fado Vitória) e de Alfredo Duarte "Marceneiro" (Fado Bailado). O acompanhamento instrumental foi de José Nunes (guitarra portuguesa), Castro Mota (viola) e do próprio Alain Oulman (piano, em "Asas Fechadas" e "Cais de Outrora"). Tal como viria a acontecer em discos posteriores de Amália, a gravação foi efectuada por Hugo Ribeiro, o técnico de som que «grava aquela que eu acho que é a minha voz, aquela que eu oiço... Só o Ribeiro é que está habituado à minha maneira de cantar».
Amália já tinha interpretado avulsamente poetas eruditos, mas a vasta erudição literária de Alain Oulman permitiu-lhe abordar poemas mais densos e de leitura menos óbvia. «Houve sempre coisas que eu queria cantar, poemas de que gostava, e não encontrava música para eles dentro dos fados clássicos. Precisava de quem escrevesse música para mim, e depois do Valério pouca gente escreveu», disse mais tarde a cantora. «Na realidade, – escreve Rui Vieira Nery – Alain Oulman trazia a Amália a resposta a uma sua preocupação se sempre, a de construir, de certa forma, um fado para além do fado, ou seja, uma música capaz de encontrar na grande poesia portuguesa de todos os tempos formas de estar, de ver e de sentir essencialmente idênticas às do repertório fadístico tradicional mas de, ao mesmo tempo, as envolver numa construção formal e harmónica mais sofisticada, sem perda do sabor expressivo próprio dos velhos fados estróficos. Protestaram-se supostos sacrilégios, pela voz dos fundamentalistas da poesia erudita e do fado castiço, mas cedo a magia de Amália triunfava e embalava-nos nestas melodias tristes, de forte travo modal, que obrigavam os guitarristas a encontrar encadeamentos harmónicos de uma complexidade a que não estavam habituados ("Vamos às óperas", dizia o grande guitarrista José Nunes, num tom entre a ironia e a sedução, quando tinha que tocar Oulman)».
O próprio regime, se bem que por outras razões, também não ficou indiferente ao disco. Estava em causa a letra do tema "Abandono": "Por teu livre pensamento/ Foram-te longe encerrar/[...] Levaram-te a meio da noite". Versos que eram facilmente conotáveis com as acções persecutórias da PIDE. E havia também os versos "Ao menos ouves o vento/ Ao menos ouves o mar". Como havia um calabouço cheio de presos políticos precisamente à beira-mar, no Forte de Peniche, não demorou que "Abandono" ganhasse novo título: "Fado Peniche". O disco acabou por ser interditado e só viria novamente à luz do dia em 1970, já em plena Primavera Marcelista. Quem acusa Amália Rodrigues de conivência com a ditadura devia ouvir este fado e já agora também a "Trova do Vento Que Passa", incluída noutro álbum fundamental, intitulado "Com Que Voz" (Columbia/VC, 1970).
A propósito do álbum "Busto" assim escreveu Luís Maio: «Este disco é um óbvio marco histórico na história do fado e da música portuguesa em geral deste século. É como o "In The Wee Small Hours" de Sinatra, ou o "Revolver" dos Beatles. Porque é também uma mudança de nível, o salto qualitativo na carreira de uma artista já consagrada em termos de sucesso, que nesse movimento de risco inesperado atinge o auge da sua arte e determina a evolução de todo um género musical. Hoje é um disco de clássicos do fado, mas quando foi lançado representou uma ruptura com o classicismo então instituído, uma mudança de paradigma em termos de som e de imaginário. Antes, o fado tinha evoluído de modalidade de entretenimento marginal para uma forma musical sancionada e reivindicada pelas classes populares do país urbano. Sem perder esse cunho popular, este disco elevou-o a uma nova dignidade cultural. O requintado discurso dos poetas, as complexas composições de Oulman, mas também a nova liberdade vocal de Amália conjugada com uma sábia austeridade promoveram o fado a um plano superior de apuro artístico e cultural. Mais de quarenta anos depois, "Busto" emana um encanto intemporal que faz com que seja muito do fado feito depois que soe datado. Não que o fado ou a obra de Amália tenham morrido em 1962, mas este disco representa o género de associação entre espontaneidade e visionarismo característicos das obras em que assentam edifícios musicais. Por isso mesmo, a sua riqueza é tal que se presta sempre a novas formas de ouvir. Com Madredeus, em particular de "O Espírito da Paz", aprendemos a reescutar a música portuguesa de raiz popular como paisagem sonora. Ora, "Busto", com a toda a sua elaboração e austeridade, surge como que talhado pela mesma espiritualidade pictórica, extrapolação das formas de sentir portuguesas para um plano de inebriante metafísica. Uma estranha coincidência ou nem tanto?» (Luís Maio, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa", Público/FNAC, 1998)


Baladas e Canções, de José Afonso
(LP, Ofir, 1967; CD, EMI-VC, 1997)


Em 1967, é editado o LP "Baladas e Canções", o primeiro álbum em nome individual de José Afonso, desde que em 1953 foram editados os seus primeiros registos fonográficos, em discos de 78 rpm. Depois disso apenas publicara EPs e participara num LP colectivo, "Coimbra Orfeon of Portugal", editado pela Monitor (dos Estados Unidos), com as baladas "Minha Mãe" e "Balada Aleixo". Temas estes que regrava para "Baladas e Canções", nos Estúdios da RTP do Monte da Virgem, em Vila Nova de Gaia. A reedição em CD será feita pela EMI-VC, em 1996, para assinalar os dez anos da morte do cantor. "Baladas e Canções" é um disco envolto numa aura de sortilégio, revelando um Zeca no seu mais cativante lirismo. A balada "O Pastor de Bensafrim" é talvez o exemplo mais tocante desse lirismo nostálgico que caracterizou a fase criativa de José Afonso depois de se ter demarcado do fado de Coimbra.
Sobre este belíssimo disco assim escreveu Viriato Teles: «Editado em 1967 pela Discoteca Santo António, do Porto (etiqueta Ofir), "Baladas e Canções" reúne doze temas da fase de ruptura de Zeca com o tradicionalismo coimbrão. Acompanhado à viola por Rui Pato, o cantor é identificado, na primeira edição do álbum, ainda como Dr. José Afonso. A influência de Edmundo Bettencourt é sobretudo notória nos temas de maior lirismo, servidos por uma interpretação admirá­vel que, mantendo os traços característicos da 'escola' coimbrã, não se limita a ser uma mera demonstração de dotes vocais (ao contrário do que, por vezes, acontecia com outros cantores oriundos de Coimbra), mas se assume inteiramente como mais um elemento da canção, tão importante como o texto ou a música. É esta pureza interpretativa, poética e melódica (patente, de resto, em toda a sua obra) que podemos encontrar em "Altos Castelos", "Canção Longe" ou "Os Bravos" e, sobretudo, em "Ronda dos Paisanos", "Minha Mãe" ou "O Pastor de Bensafrim". O disco inclui ainda "Balada Aleixo", "Balada do Outono" [versão instrumental], "Trovas Antigas", "Na Fonte Está Lianor" [sobre poema de Luís de Camões], "Elegia" (um belo poema de Luís de Andrade que Adriano Correia de Oliveira também cantou) e o instrumental "Canto da Primavera", que mais tarde seria reto­mado por Zeca para o "Coro da Primavera" [no álbum "Cantigas do Maio", Orfeu, 1971]. Na altura da criação destas canções, a actividade de Zeca era ainda mais ou menos solitária (embora Adriano, em Coimbra, Luís Cília e José Mário Branco, em Paris, traçassem já caminhos musicais paralelos aos seus) e os temas deste disco reflectiam ainda uma postura "mais ou menos contemplativa" (palavras do próprio) em relação ao Universo – atitude que o cantor nunca abandonou por completo, nem mesmo nos momentos de maior empenhamento político» (Viriato Teles, in "Zeca Afonso: As Voltas de Um Andarilho", Relógio d’Água, 1983).


Margem Sul, de Adriano Correia de Oliveira
(LP, Orfeu, 1967)


A editora Orfeu, de Arnaldo Trindade, edita, em 1967, o álbum "Margem Sul", de Adriano Correia de Oliveira. É um disco que representa um aprofundamento da aposta na balada de cunho marcadamente intervencionista, assente nas palavras dos poetas: Luís de Andrade Pignatelli ("Elegia"), Fiama Hasse Pais Brandão ("Barcas Novas"), António Ferreira Guedes ("Pátria", "Rosa de Sangue", "Rosa-dos-Ventos Perdida"), Manuel Alegre ("Canção Terceira", "Exílio", "Pedro Soldado"), António Borges Coelho ("Sou Barco"), Urbano Tavares Rodrigues ("Margem Sul"); e também da tradição popular: "Pescador do Rio Triste", "Para Que Quero Eu Olhos". Neste belo álbum, no qual a voz de Adriano se apresenta na sua pureza mais cristalina, o cantor recupera três temas musicados e cantados por Luís Cília no álbum "Portugal-Angola: Chants de Lutte" (França, 1964): "Exílio", "Sou Barco" e "Canção Terceira" (no original, "Canção Final, Canção de Sempre"). Refira-se ainda que o tema "Margem Sul" que daria título ao álbum era para se chamar "Margem Esquerda", mas teve de ser alterado por causa da Censura. É o próprio Urbano Tavares Rodrigues, autor do poema, quem nos conta: «Em "Margem Sul", tivemos de fazer alterações. "Margem Esquerda" seria a nossa, a da nossa opção e, ao mesmo tempo, a margem esquerda do Guadiana, onde, tantas vezes depois, o Adriano foi cantar, comovendo e exaltando os operários agrícolas, os estudantes, as mulheres, o rapazio. Todos lhe queriam bem. Ele era como a sua voz: água da fonte mais limpa. Ainda na canção de que falava, mudámos, na quadra final, "terra vermelha", vermelha dos barros de Pias e de Moura, vermelha da nossa cor, para "terra morena". Era assim a canção de resistência, às vezes arranjada, codificada até cifrada. Contudo, o Adriano foi dos cantores mais directos e mais valentes» (Urbano Tavares Rodrigues).


A Lenda de El-Rei D. Sebastião, de Quarteto 1111
(EP, Columbia/VC, 1967)


Em 1967, surge também a banda que é talvez a mais mítica da música portuguesa, o Quarteto 1111. Sucedendo ao Conjunto Mistério que fazia música ao estilo dos Shadows, o Quarteto 1111 é formado por José Cid (voz e teclas), António Moniz Pereira (guitarra), Miguel Artur da Silveira "Michel" (bateria) e Jorge Moniz Pereira (viola baixo). Nota curiosa: o nome do grupo foi inspirado no número de telefone da casa dos pais de Michel, em S. João do Estoril, em cuja garagem decorriam os ensaios. Em finais de 1967, dá-se o lançamento pela Valentim de Carvalho do disco de estreia, o EP "A Lenda de El-Rei D. Sebastião" que além da tema-título inclui "Os Faunos", "Fantasma Pop" e "Gente". A balada "A Lenda de El-Rei D. Sebastião", com letra e música de José Cid, que ficou como o tema mais conhecido do grupo, e ainda hoje um dos mais belos que se fizeram em Portugal, teve ainda a proeza de ter sido o primeiro e o único de música portuguesa a passar no "Em Órbita", histórico programa do Rádio Clube Português, da autoria de Jorge Gil, Pedro Albergaria e outros, dedicado à música anglo-americana. O Quarteto 1111 publicará ainda vários singles e EPs contendo temas de antologia como "Balada para D. Inês" (1968) e "Partindo-se" (1968), este sobre um poema do poeta palaciano quatrocentista João Roiz de Castelo Branco (curiosamente também já gravado, em 1962, por Adriano Correia de Oliveira sob o título "Senhora, Partem Tão Tristes") e dois álbuns de referência: "Quarteto 1111" (Columbia/VC, 1970), com canções de intervenção sobre a guerra colonial, o racismo e a emigração, logo proibido pela Censura, e "Onde, Quando, Como, Porquê Cantamos Pessoas Vivas" (Decca/VC, 1974), um trabalho nitidamente influenciado pelo rock progressivo de grupos como King Crimson ou Renaissance e, nessa medida um prenúncio de outro álbum mítico que José Cid viria a gravar em nome próprio, pouco anos depois, de seu nome "10 000 Anos Depois Entre Vénus e Marte" (Orfeu, 1978). É o próprio José Cid que enquadra o grupo: «O Quarteto teve influências de uma área mais étnica, mais acústica, e outra área mais pop. No fundo aquilo que era de raiz popular já estava um bocadinho no nosso subconsciente, não precisávamos de o provocar, não andávamos à procura daquilo que já existia e existe dentro de cada um dos portugueses».
Sobre o Quarteto 1111 e o seu pioneirismo na música portuguesa, disse Rui Catalão: «A transversalidade sonora do projecto vinha de quem não estava fechado num só universo musical, sabendo conjugar as mais diversas estéticas. É o grupo mítico dos anos 60 em Portugal. Porque o Quarteto 1111 foi o único a furar o seguidismo retardado das restantes bandas de música pop e porque o seu primeiro e grande êxito de sempre foi sobre o maior mito da Historia Portuguesa: "A Lenda de El-Rei D. Sebastião".» (in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa", Público/FNAC, 1998).


Guitarra Portuguesa, de Carlos Paredes
(LP, Columbia/VC, 1967; CD, EMI-VC, 1987)


É editado pela Valentim de Carvalho o álbum "Guitarra Portuguesa", de Carlos Paredes, o primeiro LP do genial guitarrista que cinco anos antes (1962) havia gravado o seu primeiro EP e logo a seguir compusera a música para o filme "Verdes Anos" (1963), de Paulo Rocha. O álbum contou com a participação de Fernando Alvim, no acompanhamento à viola, e com a sábia supervisão técnica de Hugo Ribeiro, e inclui os seguintes temas: "Variações em Ré Maior", "Porto Santo", "Fantasia", "Melodia n.º 2", "Dança", "Canção dos Verdes Anos", "Divertimento", "Romance n.º 1", "Romance n.º 2", "Pantomina" (sem acompanhamento) e "Melodia n.º 1". "Canção dos Verdes Anos" ficará como o tema mais emblemático de toda a produção de Carlos Paredes.
O álbum "Guitarra Portuguesa" foi capaz de impor desde logo como referência obrigatória este homem que faz falar a sua guitarra com uma "voz" portuguesa que ultrapassa qualquer catalogação estilística. Partindo da guitarra de Coimbra, e moldando-a à sua sensibilidade e exigência artística, Carlos Paredes foi capaz de derrubar fronteiras e de criar o seu próprio – e infinito – raio de acção. Em "Guitarra Portuguesa" nasciam algumas das melodias mais imediatamente identificáveis com Portugal, qualquer que seja a nacionalidade de quem ouve. Nota curiosa: o tema "Dança" foi escolhido por Paul McCartney para música ambiente na sua digressão mundial de 1989.
Alain Oulman, o célebre compositor de Amália Rodrigues, escreveu estas palavras: «A música de Carlos Paredes exprime, a meu ver, mais do que nenhuma outra, a terra e as gentes de Portugal. É intemporal, como a de Theodorakis quando canta a Grécia, como, aliás, deve ser a verdadeira música. Não se pode catalogar a música de Carlos Paredes, nem determinar as suas origens – uma possível influência de música barroca que não esconde a voz pessoal de um homem que ama o seu país profundamente, que se não envergonha de o confessar e que o faz com delicadeza e força viril. Para empregar uma expressão portuguesa que significa que alguém não tem parceiro, Carlos Paredes é um ‘caso’. A primeira vez que o ouvi tocar foi em casa de Amália Rodrigues que também nunca o ouvira anteriormente. Ficámos todos desfeitos. Amália chorava e dizia que só lhe apetecia bater-lhe – reacção muito frequente nela quando se sente comovida pelo virtuosismo de alguém; nenhum de nós compreendia porque não era ele mais conhecido, pelo menos em Portugal. Paredes pedia desculpa como tocara – o que faz muitas vezes, pois é o seu pior crítico – e, para acreditar em tanta modéstia, é necessário vê-lo e ouvi-lo. Tínhamos perante nós uma ‘voz’ electrizante em música portuguesa, auxiliada por um extraordinário virtuosismo – e todos sentíamos que tal ‘voz’ tinha de ser conhecida em Portugal e além fronteiras. [...] Nenhum outro guitarrista é capaz de tocar a música de Paredes como ele o faz – e isto nada tem de surpreendente pois em Paredes não se pode separar o músico do guitarrista. Na sua música, porém, a técnica, sempre brilhante, esconde-se para dar lugar à precisão e clareza da melodia – os temas melódicos, plenos de sensibilidade e força de "Fantasia", "Porto Santo", "Verdes Anos". Com este primeiro LP, possa a "voz" de Carlos Paredes ir longe, bem longe, pois ele canta Portugal com sinceridade absoluta, sem peias, com amor e compreensão que dele fazem um grande e raro artista onde a mediocridade não encontra abrigo.» (Alain Oulman)


Coimbra de Ontem e de Hoje, de Luiz Goes
(LP, Columbia/VC, 1967; CD, EMI-VC, 1995)


Em 1967, pondo fim a uma pausa de dez anos, Luiz Goes publica, pela Columbia/VC, o seu primeiro álbum em nome próprio, intitulado "Coimbra de Ontem e de Hoje". A gravação decorre em Março de 1967 nos Estúdios de Paço d’Arcos da Valentim de Carvalho, pelo técnico Hugo Ribeiro, e as condições são extraordinárias, uma vez que nos ensaios é possível contar com a presença e as opiniões autorizadas de Armando Goes (tio do cantor), Edmundo de Bettencourt, Artur e Carlos Paredes, Fernando Alvim... em suma, a nata dos veteranos do fado de Coimbra. Em "Coimbra de Ontem e de Hoje", Luiz Goes canta doze temas: "Direcção" (Edmundo de Bettencourt / João Bagão), "O Meu Fado" (António Botto / Armando Goes), "Fado dos Beijos" (Arr. de Luiz Goes), "Sonhar Contigo Ó Coimbra" (Carlos de Figueiredo), "Rua Larga" (Carlos de Figueiredo), "Balada da Torre D'Anto" (Leonel Neves / João Bagão), "Balada do Tempo Breve" (Luiz Goes), "Balada da Distância" (Luiz Goes), "Balada da Velha Sé" (Leonel Neves / João Bagão), "No Calvário" (Fausto José / D. José Paes de Almeida e Silva), "Canção da Infância" (Armando Goes) e Balada do Mar (Luiz Goes).
No acompanhamento instrumental participam João Bagão, Aires Máximo de Aguilar (guitarras), António Toscano e Fernando Neto Mateus da Silva (violas), em todos os temas, excepto "Balada da Distância", "No Calvário", "Canção da Infância" e "Balada do Mar", cujo acompanhamento é de João Figueiredo Gomes (viola), que nos três últimos temas faz parceria com Carlos Paredes (guitarra). Note-se que Carlos Paredes não se limita a ser um mero acompanhador, ao estilo clássico, e faz a sua guitarra entrar em diálogo, quase de igual para igual, com a voz de Luiz Goes.
A origem do trabalho esteve em João Bagão, exímio executante da guitarra de Coimbra, que havia composto uma colecção de músicas especialmente idealizadas para a voz abaritonada de Luiz Goes e o encontro entre ambos dar-se-ia por intermédio de António Toscano. Este, no preâmbulo ao livro "Luiz Goes de Ontem e de Hoje" (Edição Universitária, 1998), confessa: «Guardo um secreto orgulho de ter sido eu a aproximar o Goes do Bagão (...). Colega na Faculdade de Ciências de meu irmão, que mo apresentou (...), sabedor que o Goes voltava da Guiné, onde serviu como médico, falou-me em nos encontrarmos com ele.» E é assim que Luiz Goes, nos ensaios, se começa a aperceber que nesse círculo liderado por João Bagão, onde também pontificava Leonel Neves (autor de letras interpretadas por vozes tão ilustres como Amália Rodrigues e Maria Teresa de Noronha), se respira o clima criativo que sempre procurara em Coimbra. Luiz Goes lembra: «O álbum de 1967 é um disco de maturidade, de alguém que tem outra experiência de vida. Um disco de um tipo magoado por dentro e por fora. Para mais com a percepção que muita coisa tinha de mudar em Portugal e com a necessidade de o transmitir. É também um disco onde metade dos temas se chamam baladas, uma designação que emprego quando tenho a certeza de que não estou a cantar fado. São temas que correspondem a uma maior liberdade de expressão, porque o fado é muito limitativo. As baladas são, afinal, apenas canções. Poderá perguntar-se: mas o que há aí de coimbrão? É a mesma coisa que apanhar um comboio em França, ver um tipo ao fim da carruagem, e mesmo sem falar com ele ter a certeza que é português.»


Fados 67, de Amália Rodrigues
(LP, Columbia/VC, 1967; LP "Maldição", Columbia/VC, 1973; CD, EMI-VC, 1992)




"Fados 67", posteriormente reeditado com o título "Maldição" (do tema de abertura), é o terceiro álbum de Amália Rodrigues, publicado nos anos 60. Curiosamente, neste trabalho apenas um dos temas tem música de Alain Oulman, o que representa uma espécie de parêntesis na estreita colaboração entre a cantora e o compositor francês, que vinha dos álbuns "Busto" (1962) e "Fado Português" (1965) e que será retomada em "Com Que Voz" (1970). Eis o alinhamento, com os autores das letras e das músicas: "Maldição" (Armando Vieira Pinto / Alfredo Duarte "Marceneiro"), "Pedro Gaiteiro" (António Feliciano Castilho / Alain Oulman), "Primavera" (David Mourão Ferreira / Pedro Rodrigues), "Não é Tarde" (Leonel Neves / António Mestre), "Fria Claridade" (Pedro Homem de Mello / José Marques do Amaral), "A Júlia Florista" (Joaquim Pimentel / Leonel Vilar), "Meu Nome Sabe-me a Areia" (Vasco de Lima Couto / Alfredo Duarte "Marceneiro"), "Um Fado Nasce" (Alberto Janes), "Olhos Fechados" (Pedro Homem de Mello / Armando Goes), "Carmencita" (Frederico de Brito / Pedro Rodrigues), "Fado das Tamanquinhas" (Linhares Barbosa / Carlos Neves), "Há Festa na Mouraria" (Gabriel de Oliveira / Alfredo Duarte "Marceneiro"). Os acompanhadores foram Raul Nery, José Fontes Rocha (guitarra portuguesa), Carlos Mota (viola) e Joel Pina (viola baixo).
[colocar citação]


Canções de Amor e de Esperança, de Luiz Goes
(LP, Columbia/VC, 1972; CD, EMI-VC, 199?)




Dando sequência lógica a "Canções do Mar e da Vida" (Columbia/VC, 1969), Luiz Goes publica, em 1972, o LP "Canções de Amor e de Esperança". A gravação decorre em Dezembro de 1971, nos Estúdios de Paço d’Arcos, da Valentim de Carvalho, pelo conceituado técnico de som Hugo Ribeiro. O disco inclui doze temas: oito com letra de Leonel Neves – "Cantiga Para Quem Sonha" (música de João Figueiredo Gomes), "Chamo-te Niña" (música de Luiz Goes), "Trova de Vila da Feira" (música de António Toscano), "É Preciso Acreditar" (música de Luiz Goes), "Canção Pagã" (música de Luiz Goes), "Anda o Mar Dizendo (Mensagem do Mar)" (música de Durval Moreirinhas), "Balada do Rei Vadio" (música de Luiz Goes) e "Uma Lenda do Levante" (música de António Andias) – e quatro com letra de Luiz Goes – "Poema Para Um Menino" (música de Luiz Goes), "Canção Para Quem Vier" (música de António Toscano), "Sangue Novo" (música de Luiz Goes) e "Canção Quasi de Embalar" (música de António Andias e Durval Moreirinhas). O acompanhamento instrumental é de António Andias (guitarra), Durval Moreirinhas, António Toscano e João Figueiredo Gomes (violas).
Se há discos que foram tocados por uma varinha de condão, "Canções de Amor e de Esperança" é, sem sombra de dúvida, um deles. Por um lado, a bela e portentosa voz de Luiz Goes capaz de nos fazer vibrar até ao âmago e, por outro, os primorosos poemas sobretudo os que saíram do punho de Leonel Neves, hoje um ilustre desconhecido para muita gente, mas a quem se devem alguns dos mais belos que já se escreveram em língua portuguesa. Atente-se, por exemplo, em "Cantiga Para Quem Sonha" [vide
poema] e "É Preciso Acreditar" [vide poema]. Como não é raro suceder com discos de êxito, o maior sucesso da carreira de Luiz Goes é gravado em estado de graça, sem muitos preparativos nem muitas horas de estúdio. Na verdade, o material do disco ficou pronto em duas sessões nocturnas de três horas cada. Todos os temas ao primeiro ‘take’, só repetidos por uma questão de precaução. O disco marca também o início da colaboração com António Andias, na sequência de uma zanga havida com João Bagão. O trabalho de Luiz Goes com João Bagão implicava, muitas vezes, cedências do cantor face ao guitarrista. Com António Andias, a sintonia é perfeita e Luiz Goes torna-se mais dono da sua música. Aliás, o cantor não se limita a substituir um guitarrista por outro já que decide dispensar a guitarra portuguesa em toda a face A do LP. O cantor explica essa opção: «Era preciso demonstrar que a guitarra portuguesa não é imperativa numa canção de matriz coimbrã. A viola é só por si um suporte perfeitamente válido. No fundo sou um fiel infiel. A minha infidelidade à música coimbrã respeita apenas à ortodoxia. Mas nunca quis destruir a música de Coimbra. Quis fazer uma revolução por dentro. Dar o meu contributo para que ela atingisse uma determinada dimensão, sem infringir a sua essência.»
Esta revolução estilística acaba por ser o resultado natural do aprofundamento do idealismo já manifestado no álbum precedente. Luiz Goes mantém-se a uma prudente distância da militância política que se radicalizara entre os seus antigos companheiros de Coimbra. É o próprio cantor quem nos esclarece sobre o seu posicionamento: «Tivemos trajectos de vida completamente diferentes. Enquanto o Zeca Afonso e o Adriano Correia de Oliveira se mantiveram em Coimbra alguns anos e ainda viveram a época dos motins académicos, eu em 1958 já estava em Lisboa. O Almeida Santos dizia-me, no outro dia, que se eu tivesse vivido essa época em Coimbra não teria acabado o curso. É bem provável que tenha razão. Depois a minha maturação em Lisboa foi diferente e sempre foi muito difícil arregimentarem-me! Por isso, depois do 25 de Abril, já em plena democracia ou a caminho dela, quando não se sabia qual a modalidade de democracia para a qual o país se encaminhava, cantava-se o Luiz Goes. Isto é significativo. Quer dizer que eu não era agarrado a este ou àquele partido, embora no fundo sempre acreditasse no socialismo democrático.»


Os Sobreviventes, de Sérgio Godinho
(LP, Guilda da Música/Sassetti, 1972; CD, Philips/Polygram, 1990)


É lançado pela Guilda da Música, etiqueta da Sassetti, o LP "Os Sobreviventes", primeiro álbum de Sérgio Godinho. A gravação do disco fora feita em Abril de 1971 em Chateau d’Hérouville, arredores de Paris, no Stawberry Studio, o mesmo onde também foram gravados "Cantigas do Maio", de José Afonso e "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", de José Mário Branco. Aliás, Sérgio Godinho e José Mário Branco, ambos exilados em França, colaboraram mutuamente na gravação dos respectivos primeiros álbuns: Sérgio Godinho participa como segunda viola e nos coros e contribui ainda com quatro letras ("Cantiga para Pedir Dois Tostões", "Cantiga do Fogo e da Guerra", "O Charlatão" e "Casa Comigo, Marta") para o álbum de José Branco e este, por sua vez, faz coros e toca diversos instrumentos (piano, xilofone, órgão e viola) em "Os Sobreviventes". "Que Força é Essa?", "Descansa a Cabeça", "Paula", "Que Bom Que é", "O Charlatão", "Farto de Voar", "Senhor Marquês", "Romance de Um Dia na Estrada", "A Linda Joana" e "Maré Alta" contam-se entre os 12 temas do alinhamento. Com este álbum, Sérgio Godinho afirmava-se desde logo como um dos grandes escritores/intérpretes de canções em português, e que confirmaria sobejamente nos álbuns seguintes, entre os quais que se destacam: "Pré-Histórias" (1973), "Pano-Cru" (1978), "Campolide" (1979), "Canto da Boca" (1981), "Coincidências" (1983), "Salão de Festas" (1984) e "Na Vida Real" (1986).
Sobre este álbum, disse Fernando Magalhães: «Se é verdade que a riqueza metafórica que caracteriza toda a obra posterior do autor se encontra aqui ainda na sua fase embrionária, não é menos verdade que "Os Sobreviventes" é hoje um álbum que envelheceu bem, não surgindo de modo algum datado. Temas como "Paula" ou "Farto de Voar", em toda a sua pureza, soam hoje rodeados de um estranho fascínio, enquanto em canções como "Que Bom Que é" e "Senhor Marquês" estão já presentes todas as características que marcariam a obra de Sérgio Godinho: a não linearidade do desenvolvimento temático, a sobreposição de registos vocais, a alternância de tonalidades, a importância da fonética, do que se esconde e revela no simples som que as palavras têm – o prazer, em suma, de dançar com as palavras e os seus significados. "Romance de Um Dia na Estrada" perspectiva uma das vertentes de sempre do universo poético-musical do autor: a introspecção, o conceito de percurso, nunca numa perspectiva abstractizante, antes romanceada em forma de situações arrancadas a um quotidiano ficcional ou não. E, se a época era de luta, em "Que Força é Essa?" e "Maré Alta", os dois temas onde é mais acentuado o cariz intervencionista, era já no fluxo de emoções e das pequenas e grandes descobertas interiores que o caminho de Sérgio Godinho se desenhava.» (Fernando Magalhães, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa", Público/FNAC, 1998)


Eu Vou Ser Como a Toupeira, de José Afonso
(LP, Orfeu, 1972; CD, Movieplay, 1987)


Também de 1972 é o LP "Eu Vou Ser Como a Toupeira" (Orfeu), de José Afonso. Faz parte deste álbum o belíssimo "Fui à Beira do Mar", tema de cariz introspectivo e auto-reflexivo. O poeta-cantor encontra no poder misterioso do mar a força anímica para continuar a cantar e não temer a adversidade: "Fui à beira do mar / Ver o que lá havia / Ouvi uma voz cantar / Que ao longe me dizia / Ó cantador alegre / Que é da tua alegria / Tens tanto para andar / E a noite está tão fria / [...] Desde então a bater / No meu peito em segredo / Sinto uma voz dizer / Teima, teima sem medo." (vide
poema completo). Admirável também a versão do tema tradicional "Ó Minha Amora Madura", um dos mais extraordinários e cativantes exercícios de minimalismo em círculo melódico da música portuguesa: partindo de apenas quatro versos, José Afonso consegue dar-nos 2’19” de música sem que sintamos a mais pequena sensação de cansaço ou aborrecimento.
Viriato Teles fala-nos assim deste álbum: «Continuação lógica de "Cantigas do Maio", este disco surge numa fase de grande empenhamento político de Zeca – que pouco tempo depois o levará novamente à prisão de Caxias. Apresentado como um trabalho de grupo, com colaborações de Benedicto García, Carlos Alberto Moniz, Carlos Medrano, Carlos Villa, Ernesto Duarte, José Dominguez, José Jorge Letria, José Niza, Maite, Maria do Amparo, Pedro Vicedo, Pepe Ébano e Teresa Silva Carvalho. Pratica­mente impedido de cantar em Portugal, Zeca apresenta-se ao vivo em Espanha e em França e tenta dar conta, em disco, do que por cá se passa. Prenúncios da mudança que se avizinhava são temas como "Ó Ti Alves" ou "É para Urga". Mas, enquanto o dia novo não chega, Zeca continua a cantar a cólera e o desespero colectivos, através de momentos musicais inesquecíveis como "A Morte Saiu à Rua" (dedicado a José Dias Coelho, assassinado pela Pide em 1961) e "Por Trás Daquela Janela" (escrito para Alfredo Matos, antifascista do Barreiro que se encontrava preso), ao mesmo tempo que ironiza com a cadavérica memória salazarista ("O Avô Cavernoso"), faz novos apelos à luta ("Fui à Beira do Mar", "Eu Vou Ser Como a Toupeira") e se diverte com o aparente "non sense" de Fernando Pessoa ("No Comboio Descendente"), afinal a imagem perfeita de um certo "laissez faire" tão tipicamente lusitano.» (Viriato Teles, in "Zeca Afonso: As Voltas de Um Andarilho", Relógio d’Água, 1983).


Margem de Certa Maneira, de José Mário Branco
(LP, Guilda da Música/Sassetti, 1972; CD, UPAV, 1991, EMI-VC, 1996)


Em Dezembro de 1972, é editado pela Guilda da Música/Sassetti, o segundo LP de José Mário Branco, "Margem de Certa Maneira". Tal como sucedera com "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", gravado e editado no ano anterior, o laboratório sonoro continuava a ser o Strawberry Studio, de Michel Magne (Chateau d’Hérouville, Paris), por onde tinham passado grupos como The Beatles, The Rolling Stones e Pink Floyd. No álbum podiam ouvir-se de novo o baixo eléctrico de Christian Padovan e as percussões de Michel Delaporte, dois músicos franceses que, em 1971, sob a batuta de José Mário Branco, tinham contribuído para a inesquecível sonoridade do álbum "Cantigas do Maio", de José Afonso. Na gravação do disco, participaram também Adriano Correia de Oliveira (coros), Mário Jorge (coros e palmas), Manuel Jorge Veloso (órgão, coros e palmas) e Isabel, então mulher do cantor (coros). Os arranjos e direcção musical estiveram a cargo do próprio José Mário Branco, igualmente autor de todas as letras e músicas, excepto quando indicado: "Por Terras de França", "Engrenagem", "Aqui Dentro de Casa", "Margem de Certa Maneira", "Cantiga da Velha Mãe e dos Seus Dois Filhos (Mãe Coragem)" (letra de Sérgio Godinho), "Sant'Antoninho" (música de Jean Sommer), "A Morte Nunca Existiu" (letra de António Joaquim Lança) e "Eh! Companheiro" (letra de Sérgio Godinho). Este segundo trabalho não era para se chamar "Margem de Certa Maneira" nem era para ter o mesmo conteúdo. Mas a censura portuguesa chumbara um outro projecto, mais ambicioso, feito em colaboração com o escritor e diplomata Álvaro Guerra. E José Mário Branco, recusando os cortes propostos, acabou por desistir e seguir outros caminhos: «Nesse ano eu tinha um projecto chamado "Crónicas", de parceria com o Álvaro Guerra, sobre textos dele, de Camões, Gil Vicente, Sá de Miranda... Era um disco conceptual, sem divisão de faixas. A censura proibiu mais de metade das letras e eu recusei-me a fazer o disco. O "Margem" nasce depois, na sequência disso. E penso que no seu conteúdo já se sente um projecto, mais claro, menos angustiado». [...] Eu fiz o "Mudam-se os Tempos" muito sozinho. Sozinho e inexperiente. No "Margem" há uma atitude já mais ideológica, mais madura, resultado de uma estratificação. Eu já tinha maior experiência de estúdio porque tinha trabalhado com o Zeca, o Sérgio Godinho, o José Jorge Letria, o Júlio Pereira...»
O jornalista Nuno Pacheco, comenta assim o álbum: «Depois da surpresa de "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", o refinamento de "Margem de Certa Maneira" não provoca o mesmo efeito de encantamento na crítica. Mas tratava-se, sem dúvida, de um trabalho mais cuidado, embora a duração do disco (35'51" contra 39'29" do primeiro) evoluísse na inversa proporção do número de músicos, aqui reforçados por dois naipes de sopros (trompa, trompete, trombone, cromornas, flautas) e cordas (violino, violeta, violoncelo). A temática de "Margem" construía-se de um modo similar à abordada no seu antecessor. A abrir, de novo a emigração: aos sons melancólicos da gare de Austerlitz sucedia-se a marcha irónica de "Por Terras de França" [agora num registo mais autobiográfico: "Não foi por vontade nem por gosto/ que deixei a minha terra/ vou andando por terras de França/ pela viela da esperança"]. A fechar, de novo um épico esperançoso e mobilizador: o camoniano "Mudam-se os Tempos" dava lugar a "Eh! Companheiro", com palavras de Sérgio Godinho: "Só tem medo desses muros/ quem tem muros no pensar;/ Pela paz que nos recusam/ muito temos de lutar." Nos restantes temas, são detectáveis outras simetrias e evoluções. A fatalista Mariazinha e a esperta Marta do primeiro disco dão agora lugar a uma personagem mista, metamórfica, que abandona a passividade da submissão e impõe o seu lugar num mundo onde a ordem é a do homem: "Mariazinha fui/ em Marta me tornei/ vou daquilo que fui/ pr’ àquilo que serei." Depois: "Meus olhos cansados/ abrem-se espantados/ prà vida de que me falavas / pra combater contra os donos de escravas." E, por fim, a inversão do conformismo inicial: "Mariazinha fui/ em Marta me tornei/ sei aquilo que fui/ e nunca mais serei." ("Aqui Dentro de Casa"). Nesta mesma linha, surge "Cantiga da Velha Mãe e dos Seus Dois Filhos" (letra de Sérgio Godinho): o reconhecimento da injustiça e o apelo a acabar com ela, seja de que maneira for: "Não quero dar-te conselhos/ mas se é o teu próprio irmão que te faz viver de joelhos/ doa a quem doer/ faz o que tens a fazer." O resto é o desfazer de mitos ("Sant’Antoninho", onde antes estivera o Sebastião de "Nevoeiro"), o retrato social de uma época (no lugar antes ocupado por "Queixa das Almas Jovens Censuradas" e "Perfilados de Medo" surgia agora "Engrenagem", mas com um apelo à insubmissão: "Pra ter um companheiro nesta viagem/ vou meter um pauzinho na engrenagem"). "A Morte Nunca Existiu", belíssima criação do poeta popular António Joaquim Lança, que José Mário conheceu ainda em vida, e "Margem de Certa Maneira", completam o disco. Esta última com mais uma mensagem forte, não só de esperança como de revolta: "A voz do vento é memória/ de acreditar na vitória/ de rebentar a barragem."» (Nuno Pacheco, 1995)


Palavras Ditas, de Mário Viegas
(LP, Orfeu, 1972; CD, Público, 2006)


1972 é também o ano em que é editado o primeiro álbum (e segundo disco) de Mário Viegas, o LP "Palavras Ditas", com chancela da Orfeu, de Arnaldo Trindade. Refira-se que a primeira edição fonográfica de Mário Viegas fora o EP "Mário Viegas Diz Poemas" (Orfeu, 1969), incluindo poemas de Armindo Rodrigues ("Homem, Abre os Olhos e Verás"), António Gedeão ("Poema para Galileo"), Joaquim Namorado ("Port-Wine"), Reinaldo Ferreira ("Receita para Fazer um Herói") e Manuel Alegre ("Lisboa Perto e Longe" e "Poemarma". Embora não se tratando de um disco de música, ou só de música (em sentido estrito), "Palavras Ditas" tem todo o cabimento nesta lista e por várias razões: primeira, Mário Viegas é muito provavelmente o mais emérito recitador de poesia, até hoje nascido em Portugal, constituindo os registos de poesia que efectuou o seu legado mais perene e significativo, como, aliás, ele próprio o reconheceu já no final da vida: «Se alguma coisa consegui profissionalmente nestes anos todos, isso devo-o aos recitais de poesia, às centenas e centenas de autores que interpretei, aos milhares de poemas que disse, e em que, de facto, não tive concorrência. É como recitador, portanto, que hoje me sinto realizado»; segunda, dentro do conceito mais lato de que a recitação de poesia dá substancia à música das palavras, um disco de poesia nesta lista não pode ser considerada uma carta fora do baralho; terceira, na maioria dos poemas que integram o álbum, a voz de Mário Viegas surge enquadrada numa "encenação musical" especialmente composta para o efeito, o que representa um conceito inovador e pioneiro em Portugal; quarta, o disco foi incluído, pela prestigiada revista "Mundo da Canção" (Março de 1973), na lista dos grandes discos de 1972, ao lado de: "Margem de Certa Maneira", de José Mário Branco; "Eu Vou Ser Como a Toupeira", de José Afonso; "Até ao Pescoço", de José Jorge Letria (com arranjos de José Mário Branco); e "Fala do Homem Nascido", com poemas de António Gedeão musicados por José Niza e cantados por Carlos Mendes, Duarte Mendes, Samuel e Tonicha.
Com produção, direcção musical e concepção sonoplástica de José Niza e captação de som de Moreno Pinto (nos Estúdios Polysom, em Campolide, Lisboa), são 12 as faixas do alinhamento: "Anedota" (Popular), "Amátia" (Jorge de Sena; música de José Calvário e José Niza), "Boletim Meteorológico" (retirado de um jornal; música de José Calvário e José Niza), "Epígrafe" (José Carlos Ary dos Santos; música de José Calvário), "Mãezinha" (António Gedeão; música de José Calvário), "Hino à Minha Terra" (Amélia Vilar; música de José Calvário), "O Ladrão do Pão" (Alexandre O’Neill), "Palavras" (Gastão Cruz), "Uma Lisboa Remanchada" (Alexandre O’Neill; música de José Niza), "Correio" (Manuel Alegre; música de José Niza), "O Viajante Clandestino/X" (Daniel Filipe; música de José Calvário e José Niza), "Sob o Trópico de Câncer" (Vinicius de Moraes; música de José Calvário, José Niza, Ramos Jorge (Rão Kyao) e Paulo Gil. A execução instrumental foi assegurada pelos próprios compositores: José Calvário (piano e órgão), José Niza (viola acústica), Ramos Jorge (Rão Kyao) (saxofone barítono) e Paulo Gil (percussão).
Diga-se ainda alguns poemas que Mário Viegas pretendia incluir no disco tiveram de ficar de fora por causa do lápis azul da Censura: cinco de Manuel Alegre ("E de Súbito Um Sino", "As Mãos", "As Palavras", "País de Abril" e "Nós Voltaremos Sempre em Maio"), um de Herberto Hélder ("Vocação Animal") e um de Pablo Neruda ("Ode ao Pão"). Citando José Niza, «no repertório do disco, para além dos poemas, Mário Viegas decidiu incluir uma anedota e um boletim meteorológico, retirado de um jornal do dia. Na leitura deste boletim está patente o genial talento do recitador. É que, ouvindo aquela voz, as nuances, as entoações, a carga dramática do temporal ou do brilhar do sol, conseguimos – sem precisar de palavras – saber o tempo que vai fazer. Este dom de alquimia (que nada tem a ver com o facto de Mário Viegas ser descendente de uma família de farmacêuticos) em que o recitador transformava um texto banal em qualquer coisa de invulgar e único, é simplesmente genial».
Também bastante justa e eloquente é a recensão crítica de José Jorge Letria: «Mário Viegas, um ex-actor do Teatro Experimental de Cascais, é talvez, depois de João Villaret, se bem que a outro nível, uma das pessoas que melhor souberam tratar e respeitar a "palavra" de poetas importantes a nível de disco. "Palavras Ditas", um 33 rpm com selo Orfeu, é disso prova evidente. Reformulando drasticamente todos os conceitos em que assenta a arte de dizer, e tendo bem presentes os ensinamentos de Brecht, Mário Viegas inventa para cada poema um clima ora retórico ora sarcasticamente simples e directo, para nos mostrar até que ponto a palavra, consoante o uso que dela se faça, pode ser didáctica e mobilizadora, ou ainda demagógica e irreal. Assim, Viegas começa por contar uma anedota, para logo a seguir nos mostrar até que ponto a palavra se pode bastar a si própria, num poema de Jorge de Sena. A demonstração culmina com a leitura melodramática de um boletim meteorológico. Mais adiante, em "O Ladrão do Pão", de O’Neill, em "Mãezinha", de António Gedeão, em "Correio", de Manuel Alegre, e, por último, em "Sob o Trópico de Câncer", de Vinicius de Moraes, Viegas revela-nos, ora com ironia, ora com austeridade, os múltiplos sentidos que a cada palavra podem ser atribuídos, e até que ponto esses mesmo sentidos se podem subverter, através da utilização de processos que normalmente não lhes andam associados. Mais ainda: Viegas consegue transferir para o espaço restrito da gravação todo o clima teatral que, dum modo geral, não surge integrado na declamação clássica e que dá ao poema, na sua oralidade, uma força e um alcance imprevisíveis» (in "Musicalíssimo", 19.11.1972).
José Niza, o mentor e arquitecto da sonoplastia do disco, pormenoriza assim a sua concepção: «O Mário estava então a cumprir o serviço militar e só não foi para a guerra [colonial] porque era quase cego de um olho: há males que vêm por bem. Por esses tempos, eu lia muita poesia e tinha ouvido três discos que me marcaram muito, sobretudo pelo papel que a encenação musical desempenhava na recitação dos poemas. Esses discos eram Paroles, de Jacques Prévert, recitado por André Maurice com encenação musical de Francis Lai e Michel Magne (o dono do Strawberry Studio, em Hérouville, França), outro poema com de García Lorca recitados por Maria Casares e um terceiro de Germaine Montero. Em todos estes discos o papel da música era determinante e decisivo na valorização final das perfomances dos recitadores. Aliás, sempre tinha sido assim desde tempos imemoriais. O que faziam D. Dinis e os trovadores da Idade Média senão casar a poesia com a música? Foi então que me encontrei com o Mário Viegas e lhe propus a gravação do seu segundo disco. Claro que lhe disse o que pensava do papel da encenação musical dos poemas para mim significativa e, até, da utilização da sonoplastia ou de outros tipos de sonorização. O Mário não gostou muito da conversa. [...] Com o Mário Viegas cheguei a um acordo honesto e pragmático: ele recitaria os poemas sozinho, sem quaisquer condicionamentos. Como ele gostava de fazer. Depois disso ia de férias e entrava eu, os músicos, o Moreno Pinto, as sonorizações, até alguns truques de estúdio. No final, se ele gostasse e aprovasse o trabalho de tudo aquilo, íamos beber um copo. Se não gostasse, ficava de novo sozinho com a sua voz, e o resto ia para o lixo. E também íamos beber uns copos. A parte pela qual eu era responsável era trabalhada como um improviso preparado, isto é, obedecia a algumas indispensáveis regras, sem coarctar a espontaneidade criativa. A primeira coisa que fazia que fazia era "obrigar" o técnico de som – o Moreno Pinto – e os músicos a lerem todos os poemas antes de se ouvirem recitados. A essa leitura seguia-se uma conversa entre todos. Que tipo de abordagens, que climas a criar, que sonoridades, qual a dose de descrição para que a música não colidisse ou se sobrepusesse às palavras? Só então, já com as bobinas a rodar na máquina, nos confrontávamos finalmente com a voz do Mário. E era aí que a espontaneidade, a criatividade, a inteligência, o tal improviso preparado, resolviam tudo. Em tempo real, que é uma coisa fundamental para que a interacção funcione como deve ser. Regressado ao estúdio, o Mário ouvia o produto final. E eu e o Moreno Pinto pensávamos para dentro: "O que é que este gajo vai dizer?" A verdade é que gostou (como aliás escreveu posteriormente no texto de apresentação do disco). E o mesmo aconteceu em todos os discos que depois fizemos» (José Niza, in livro/CD "Palavras Ditas", Público, 2006).


Fala do Homem Nascido, com poemas de António Gedeão musicados por José Niza e cantados por Carlos Mendes, Duarte Mendes, Samuel e Tonicha
(LP, Orfeu, 1972; CD, Movieplay, 1998)


Outro trabalho discográfico concebido por José Niza, e também surgido em 1972, é o álbum "Fala do Homem Nascido". Tendo como ponto de partida a poesia de António Gedeão, autor que Manuel Freire popularizara com a balada "Pedra Filosofal", José Niza musica 11 poemas que são cantados – ora colectivamente, ora em dueto, ora a solo –, por Carlos Mendes, Duarte Mendes, Samuel e Tonicha. São eles: "Estrela da Manhã" (por todos), "Fala do Homem Nascido" (por Samuel), "Desencontro" (por Samuel e Tonicha), "Tempo de Poesia" (por Duarte Mendes), "Vidro Côncavo" (por todos), "Poema da Malta das Naus" (por Samuel), "Lágrima de Preta" (por Duarte Mendes), "Poema do Fecho Éclair" (por Carlos Mendes), "Calçada de Carriche" (por Carlos Mendes), "Poema da Auto-Estrada" (por Tonicha) e "Poema da Pedra Lioz" (por Samuel). Refira-se, a título de curiosidade, que dois dos temas do disco – "Fala do Homem Nascido" e "Lágrima de Preta" – não são propriamente inéditos pois já haviam sido gravados por Adriano Correia de Oliveira, no álbum "Cantaremos" (Orfeu, 1970).
Gravado nos Estúdios Celada (Madrid) e nos Estúdios Polysom (Lisboa), em Novembro de 1972, a produção do disco é igualmente de José Niza, ao passo que os arranjos e direcção de orquestra são da responsabilidade do então jovem maestro José Calvário. «Se António Gedeão foi o grande e primeiro responsável por esta obra, ao talento de José Calvário, e ao seu bom gosto, inteligência e sensibilidade, de deve o excelente tratamento instrumental e orquestral das canções. Foi um trabalho decisivo, que eu nunca conseguiria fazer sozinho. Depois foram as vozes, os cantores. Tudo se conjugou, e se somou, para que "Fala do Homem Nascido" fosse, na altura, considerado um trabalho inovador da música popular portuguesa» (José Niza, Setembro de 1997). Lembre-se que ambos os músicos haviam já colaborado no álbum "Gente de Aqui e de Agora" (1971), de Adriano Correia de Oliveira, trabalho que representa um marco na música portuguesa, pela adopção de uma maior sofisticação no domínio da instrumentação e arranjos, em lugar do tradicional acompanhamento à viola. Postura estética que, aliás, está em perfeita consonância com o que José Mário Branco faz, na mesmo ano, em Paris, no seu "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" e em "Cantigas de Maio", de José Afonso.
Neste período, outro factor de grande importância, talvez o mais significativo, é a renovação da poesia portuguesa na canção, que assume uma feição de nítida contestação e resistência ao regime então vigente (atente-se especialmente em Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira e Manuel Freire). E é neste contexto que surge "Fala do Homem Nascido", um álbum conceptual sobre a poesia de António Gedeão, que veio agitar o nosso meio musical e imprimir uma nova dinâmica em termos de linguagem poética. Projecto algo ousado para a época, "Fala do Homem Nascido" depressa se evidencia como um dos discos de referência da música portuguesa, sendo hoje um documento poético-musical histórico e obrigatório.
E n--inguém melhor do que o próprio José Niza para nos falar de como surgiu a ideia do disco e nos pormenorizar as circunstâncias que rodearam a sua concepção: «Zau Évua (Norte de Angola). Abril-Maio de 1970. O correio da guerra trouxe um livro. "Poesias Completas", de António Gedeão. "Para musicar. Um abraço. Cambezes". Quase automático. Gedeão é um dos poetas mais musicais (musicáveis) da língua portuguesa. E a sua poesia, minha velha amiga. Esses poemas, a angústia, o estar aqui, a viola, as noites, os estilhaços de um povo, o torniquete equatorial, a medicina artesanal, o resto, tudo tornaram fácil. Tão fácil, como sentir o arame farpado rasgando a pele dos sentidos. Tudo tomou, também, um repentino sentido. Não eram poemas isolados, mas uma história, o que estava ali escrito. E a história, e a poesia, eram demasiado belas para que a música as estragasse. Havia o Homem. Havia uma história. Havia um palco: a Vida. Eu daria apenas um pouco de música e um pouco de ordem. Mas, o importante, era o Homem. Mesmo à dimensão de uma rodela negra, num rodopio de 33 voltas por minuto. Do início ("numa qualquer manhã, um qualquer ser, / vindo de qualquer pai, / acorda e vai, / como se cumprisse um dever") até "vestidos de surrobeco / e acocorados no chão", vai um salto de 20 séculos. Um drama em tempo de LP. Um disco pensado alto. Este o esquema, o funil, o encurralar da ovelha. Sob uma macieira de plástico, o homem nascido-em-qualquer-parte diz donde vem e o que quer: "Venho da terra assombrada / do ventre da minha mãe; / não pretendo roubar nada / nem fazer mal a ninguém". Mas avisa: "Não há poder que me vença / mesmo morto hei-de passar". Assim começa a fala do homem nascido. O pior é que o mundo não é o que devia ser. Há o desencanto do desencontro. O diálogo não passa de monólogo. As palavras são, apenas, sons. Para isto, mais vale "morrer atolado / na mais negra solidão". (A esta indiferença, a esta fácil aceitação da fatalidade, chamava Roger Vaillant, em "La Loi", "se portugalizer"). No entanto, nem tudo está, ainda, perdido. Acredita-se, mesmo por detrás da angústia, das contradições e de um quotidiano feito de misérias e esperanças, que "todo o tempo é de poesia". Há uma dinâmica permanente entre "bombas que deflagram / corolas que se desdobram / corpos que em sangue soçobram / vidas que a amar se consagram". O Homem acaba por ganhar o desafio, palmo a palmo, dia a dia, calo a calo: "Tenho sofrido poesia... / dói esta corda vibrante / a corda que o barco prende... / se vem onda que a levante / vem logo outra que a distende / não tem descanso jamais". Uma vitória adiada. Um volte-face do disco, um percurso do geral para o particular. Entramos em Portugal. Todo um (saudável) culto do passado, construído sobre um saudosismo que ainda dói – "Poema da Malta das Naus" – é, a um tempo, homenagem, crítica e incitamento ao Homem Português de ontem e de hoje. O marinheiro quinhentista "moldou as chaves do mundo", mas toda essa epopeia teve (e tem) o seu preço, o preço trágico de uma "lágrima de preta". Este o drama dos descendentes da malta das naus: a ciência diz-lhes que a lágrima não tem "nem sinais de negro / nem vestígios de ódio". Mas... e daí? De que vale a ciência da análise, se o Homem Nascido não está preparado para a aceitar? Bastará a ciência ao Homem para que ele se humanize? Filipe II (que aqui se cognomina de Manuel I) tinha tudo, tudo! "Mas o que ele não tinha / era um fecho éclair". É isto que dói ao Homem Nascido: o não ter coisas tão aparentemente simples e possíveis como um fecho éclair. Jamais a felicidade completa. Sobretudo por ser conseguida à custa da felicidade dos outros. "Lágrima de Preta" é o primeiro poema que, no disco, se dirige à mulher. A Mulher Portuguesa, mulher em vias de desenvolvimento, é hoje, talvez, o exemplo recente de uma nova forma de alienação. Ao fazer-se uma (demagógica) promoção da mulher, inaugura-se um moderno processo de a escravizar: a escravidão pelo trabalho desumanizado. E escravidão não só à dimensão da sociedade, mas na intimidade da sua própria vida (trabalho, casa, filhos, marido, trabalho... um ciclo vicioso infernal que uma vez iniciado não pode parar). "Calçada de Carriche" é um hino à escravidão da mulher-mártir, frágil máquina suburbana que o quotidiano da cidade suga. Mulher, máquina, máquina, que o vertiginoso e breve amor dos domingos evade para as auto-estradas, na doce ilusão de o novo mundo dos sentidos não ter segundas-feiras...
A evasão dá-se. "Leonor, Leonoreta, fuge, fuge, vai na asa de lambreta", com o único rumo de fugir a si própria, numa ilusória felicidade, fugaz como a paisagem que a lambreta rasga.
O cerco aperta-se. O Homem torna-se cada vez mais circunscrito. De um trilião de homens passa-se para o grupo e, finalmente, para o indivíduo, para o homem concreto, com nome, residência e tudo. "Álvaro Góis / Rui Mamede / filhos de António Brandão / naturais de Cantanhede...". Eles vivem, existem, são. Em Braga ou em Olhão, no Alentejo ou na guerra, eles lá estão! "Vivos", "vestidos de surrobeco" e "acocorados no chão", eles estão em toda a parte. No chão, mas ainda vivos... Eis a "Fala do Homem Nascido"! Ele nasceu numa qualquer manhã e não há poder que o vença. Mesmo morto há-de passar"» (José Niza, Novembro de 1972).


Eito Fora, de Brigada Victor Jara
(LP, Mundo Novo, 1977; CD, Farol, 1995)


É editado pela etiqueta Mundo Novo (associada à Editorial Caminho), o LP "Eito Fora", álbum de estreia da Brigada Victor Jara, grupo que se havia formado em 1975 na cidade de Coimbra, e primeiramente empenhado em campanhas de alfabetização e de dinamização cultural, tendo como referência dois poetas de culto, os chilenos Pablo Neruda e Victor Jara, este uma das vítimas do ditador Pinochet, em homenagem no qual o grupo foi baptizado. A Brigada Victor Jara depressa se afirmou como um dos projectos mais significativos (o outro foi o grupo Almanaque) na recuperação e divulgação do cancioneiro popular português, no pós-25 de Abril, devolvendo-nos a música tradicional recriada mas sem adulterar as suas raízes genuínas, depois do desvirtuamento folclorizante levado a cabo pelo Estado Novo. Partindo de recolhas feitas por Michel Giacometti, Fernando Lopes Graça, GEFAC, Luísa Sales e a própria Brigada, o disco inclui 11 temas de diversas regiões do país: "Cantiga da Ceifa" (Beira Alta), "Coro das Maçadeiras" (Minho), "Ao Romper da Bela Aurora" (Alentejo), "O Senhor da Serra é Meu" (Ribatejo), "Cantiga do Bombo" (Beira Baixa), "Manolo Mio" (Trás-os-Montes), "Pezinho da Vila" (Açores), "Senhora do Almortão" (Beira Baixa), "O Anel Que Tu Me Deste" (Douro Litoral), "Marião" (Trás-os-Montes) e "Baile Mandado" (Algarve). "Eito Fora" fica ainda na história por ter sido o álbum onde se estreou Né Ladeiras, uma das mais belas vozes femininas da música portuguesa.
Sobre este disco e o papel fundamental da Brigada Victor Jara na reabilitação da música tradicional portuguesa, escreveu Fernando Magalhães: «"Eito Fora", subintitulado "Cantares Regionais", esforça-se, mais do que revolucionar um som, por revolucionar um conceito. Um conceito realista, mas que então só era possível concretizar dentro de uma perspectiva idealista. Numa situação viciada à partida – de desprezo e estrangulamento da música tradicional portuguesa, entregue às mãos (as menos culpadas) dos ranchos folclóricos, aliciados na sua inocência por um poder que apregoava as virtudes turísticas do "Portugalzinho" –, a Brigada Victor Jara foi capaz de juntar o ideal e a lucidez. A lucidez por reconhecer desde logo a inutilidade e a impossibilidade de imitar as fórmulas de uma música que já nessa época, nas próprias comunidades rurais, se aviltara e afastara da pureza dos espécimes recolhidos na década de 60 por Giacometti e Lopes Graça, entre outros. O ideal, porque sem imitar, se esforçou, com humildade e sabedoria, por ver por dentro e desenvolver determinadas estruturas musicais próprias da música rural e, em particular, das várias regiões do nosso território. [...] Na contracapa de "Eito Fora", fica o mote no qual as gerações seguintes deveriam atentar: "Eito fora é fadiga, canseira de seguir sempre seara fora, a eito, eito fora é certeza de quem ajuda, à espera de poder subir o degrau que falta." À Brigada Victor Jara se deve muito do esforço que custou subir o primeiro degrau.» (Fernando Magalhães, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa", Público/FNAC, 1998)


Os Malteses, de Vitorino
(LP, Orfeu, 1977; CD, Movieplay, 1999)


Em 1977, Vitorino publica "Os Malteses" (Orfeu), o seu segundo álbum em nome próprio. Na linha de "Semear Salsa ao Reguinho" (1975), em "Os Malteses" Vitorino aprofunda a recriação livre do cancioneiro alentejano, em temas como "Alentejo És Nossa Terra", "Rouxinol Repenica o Cante", "Fui Colher Uma Romã", "Chamaste-me Extravagante" e "Lindo Ramo Verde Escuro", sem esquecer canções criadas de raiz como "O Maltês" ou "Maio", mas perfeitamente inscritas na tradição popular.
Citemos Mário Correia: «Com a colaboração, entre outros, de Júlio Pereira, Pedro Caldeira Cabral, José Niza, Grupo de Cantadores do Redondo, Janita Salomé e Hélder Reis, "Os Malteses" constitui um trabalho digno de toda a atenção e que, aquando do seu aparecimento, suscitou discussões francamente interessantes, sobretudo assentes na ideia de que ao recriar livremente determinadas modas tradicionais estaria a contribuir para um desenraizamento da tradição folclórica.» Vitorino argumenta: «Não acho que os meus detractores tenham razão. Quanto ao que estou a fazer no campo da interpretação bem pode ser uma forma de evolução do folclore transtagano. Existem, por exemplo, modas que antes eram apenas cantadas em coro; eu peguei-lhes e comecei a cantá-las a solo, embora mantendo o coro em fundo. Há dias estive a falar com o Carlos Paredes e contei-lhe do meu receio em mexer no folclore. Ele respondeu-me que ouvir-me fora uma descoberta para si, dado ter verificado que a linha melódica do cantar alentejano era tão rica que mesmo a solo não perdia a força. Além disso, eu não posso imitar o povo, porque não sou de origem rural, a minha ascendência é pequeno-burguesa; recolho e devolvo, e é assim que me sinto à vontade e como me parece correcto.» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).


Ó Rama, Ó Que Linda Rama, de Teresa Silva Carvalho
(LP, Orfeu, 1977; CD, Movieplay, 1994)


Teresa Silva Carvalho grava o LP "Ó Rama, Ó Que Linda Rama" (Orfeu, 1977), considerado por muitos o seu melhor trabalho discográfico. Teresa Silva Carvalho é hoje uma voz muito esquecida na rádio portuguesa, mas convém lembrar que ela foi – a par de Amália Rodrigues – uma das primeiras intérpretes femininas a dar voz aos nossos grandes poetas; só que ao contrário de Amália que tinha um Alain Oulman para musicar Camões, David Mourão-Ferreira ou José Régio, por exemplo, Teresa Silva Carvalho era ela mesma que compunha a música para alguns dos poemas que resgatava do silêncio dos livros, pois tinha formação musical, coisa rara entre cantoras fora da música erudita antes do 25 de Abril. "Barca Bela" (poema de Almeida Garrett) e "Amar!" (poema de Florbela Espanca) alcançaram grande popularidade na sua bela voz mas também Antero de Quental, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, António Botto, Carlos Queirós, José Régio, Fernanda de Castro, António Gedeão, entre outros poetas de renome, foram por si cantados, ora com música da sua autoria ora com melodias do fado tradicional. Refira-se que faz também parte do seu repertório uma versão cantada do celebérrimo "Adágio" de (ou atribuído a) Albinoni, com um poema expressamente escrito para ela por Ary dos Santos. No álbum "Ó Rama, Ó Que Linda Rama", que tem produção, direcção musical e arranjos de Vitorino Salomé, Teresa Silva Carvalho envereda pela música popular portuguesa com belíssimas interpretações de temas tradicionais ("Ó Rama, Ó Que Linda Rama"; "Moda de Silvares"), recriações de canções de José Afonso ("Verdes São os Campos", sobre poema de Luís de Camões; "Canto Moço", "Era Um Redondo Vocábulo"; "Moda do Entrudo", sobre tema tradicional da Beira Baixa; "Que Amor Não Me Engana", "Mulher da Erva") e ainda dois temas com música de Vitorino ("Mas Que Fresca Mondadeira", sobre poema de Francisco Martins Ramos; e "Litania Para um Amor Ausente", sobre poema de Luís Andrade Pignatelli). As participações instrumentais são assinadas por músicos de primeira água: Júlio Pereira (violas acústica e clássica, bandolim e percussões), Pedro Caldeira Cabral (guitarra portuguesa e rabeca), Catarina Latino (flauta barroca e cornamusa), Zé Luiz Iglésias (viola clássica), Pintinhas (percussões), Hélder Reis (acordeão). Participa ainda o Grupo Coral de Cantadores do Redondo, em cujo elenco se conta o próprio Vitorino e Janita Salomé.
Este belíssimo disco de música portuguesa tem ainda o mérito de constituir um relevante tributo, e talvez o mais significativo, que foi prestado ao autor de "Grândola, Vila Morena", quando ainda estava vivo e de boa saúde (alguns anos antes de se manifestar a doença que o viria a vitimar). Contudo, é hoje um trabalho criminosamente ignorado na nossa rádio.


Madrugada dos Trapeiros, de Fausto Bordalo Dias
(LP, Orfeu, 1977; CD, Movieplay, 1999)


Fausto Bordalo Dias grava, em 1977, "Madrugada dos Trapeiros" (Orfeu), um dos discos fundadores da música popular portuguesa e que, embora com algumas particularidades decorrentes do momento histórico, aborda temáticas que hoje, decorridos trinta anos, são preocupantemente actuais: desigualdades sociais, desemprego, condições de trabalho lesivas da dignidade humana, redução da mulher a mercadoria sexual, questões ambientais, etc. «Tendo como ponto básico de partida a música tradicional e a criação de raiz urbana, no seio da qual ganha alento novo a tendência para a fusão de elementos vários provenientes de influências diversas» (cit. Mário Correia), o trabalho surge também como reacção à invasão avassaladora e uniformizadora da música anglo-americana (mais propriamente do pop-rock): «Sempre me opus e resisti à tirania do rock e do pop em Portugal pelo que isso representa de normalização da música» (cit. Fausto). Infelizmente, o problema ainda está por resolver e muitos têm sido os danos causados à nossa música de maior valia e autenticidade, perante a indiferença olímpica dos poderes político-culturais.
A execução instrumental é assegurada por Fausto (guitarra acústica), Guilherme Scarpa (bateria), Hélder Reis (acordeão), Mestre Paulinho das Garotas (violinha), Rui Monteiro (adufes, bombos, caixa de guerra e ferrinhos) e Rão Kyao (saxofone e flauta), contando-se também a participação vocal de Aristides, Fernando Laranjeira, Sabine e Sérgio Godinho, para canções com letra e música de Fausto ("Atrás dos Tempos Outros Tempos Vêm", "Se Tu Fores Ver o Mar (Rosalinda)", "Uns Vão Bem e Outros Mal", "O Varredor", "Cantiga do Desemprego", "Mariana das Sete Saias" e "Um Canto para Letrado"), com letra de Leonel Santos e música de Fausto ("As Comissões") e com música de Fausto e António Pedro Braga sobre poema de Reinaldo Ferreira ("Rosie").
Parafraseando Viriato Teles, «"Madrugada dos Trapeiros" é, ainda, um disco com uma profunda carga política, mas onde é já possível vislumbrar as novas preocupações estéticas do seu autor, nomeadamente através da utilização sistemática de elementos tradicionais – o embrião, afinal, daquilo que virá a ser conhecido como Música Popular Portuguesa. O disco inclui aquele que permanece como um dos maiores êxitos do músico: "Rosalinda", um belíssimo manifesto ecológico [contra a central nuclear que pretendiam construir em Ferrel, Peniche], que foi, inclusivamente regravado em Espanha por Luis Pastor». Destaque ainda para a belíssima e alga esquecida "Mariana das Sete Saias", canção que versa o problema social da prostituição, assunto que Carlos Mendes também cantou na altura ("Amélia dos Olhos Doces") e que Vitorino retomará, quinze anos mais tarde, no álbum "Eu Que Me Comovo Por Tudo e por Nada" (EMI-VC, 1992).


Hoje Há Conquilhas, Amanhã Não Sabemos, de Banda do Casaco
(LP, Imavox, 1977; CD, CNM, 2006)


"Hoje Há Conquilhas, Amanhã Não Sabemos", editado em 1977, pela editora estatal Imavox, é o terceiro álbum da Banda do Casaco. Com letras de António Pinho e músicas de Nuno Rodrigues (inspiradas em temas tradicionais), o disco tem oito faixas: "Acalanto", "Despique", "País: Portugal", "Alvorada", "Tio Lérias", "Geringonça", "Dez-Onze-Doze", "Ont'à Noite" e "Água de Rosas". Além de António Pinho (adufe, cistros, voz, pratos, fole, bilha de bronze) e Nuno Rodrigues (voz, guitarras acústicas, Cromo Harp, stylofone, taças persas, bandoneon), na ficha técnica constam os seguintes nomes: Mena Amaro (voz, violino, sinos), Miguel Coelho (violino, pífaros), Jorge Paganini (violino), Celso de Carvalho (violoncelo, violoncelo eléctrico, cítara, stylofone), Carlos Amaro (flexitone, tumbadora, baixo, contrabaixo, harmónica, alcofinha), Tó Pinheiro da Silva (guitarra eléctrica, flauta), Helena Rodrigues (voz), Necas (bateria), Gabriela Schaaf (voz), Rão Kyao (saxofone tenor), José Castro (mellotron), Daphne (voz), Judi Brennan (voz), António Serafim (oboé) e ainda "Mercearia Vigorosa, feijão carrapato".
Rui Catalão discorre assim sobre o disco: «No tema-manifesto do álbum, "País: Portugal", Nuno Rodrigues afirma: "É pena capital pena que em ti/ se escrevem os livros da incultura/ que em ti se diga a liberdade/ em bocas libertinas" (a letra é de António Pinho). Três anos depois da revolução de Abril, a Banda do Casaco punha o primeiro sinal de interrogação no desenvolvimento social e político da democracia: "A constatação que fizemos na altura é que, independentemente de não estarmos conformados com o antigo regime, esperávamos mais do 25 de Abril." A sátira sulfurosa dos textos de António Pinho (ex-Filarmónica Fraude), assim como as desconcertantes composições de Nuno Rodrigues (ex-Musica Novarum), desbaratavam a "intelligentzia" artística: "Era uma demarcação dos nossos colegas de esquerda", recorda Nuno Rodrigues. A proposta do álbum era lapidar: "Não concordamos com esta pseudo-esquerda que está a gerir a nação."
"Portugal/ País fardado à força/ País forçado à farda/ país fadado à forca." Foi esta inquietação que alimentou a ideia para o título do terceiro disco da Banda do Casaco, assim como o provocador "nonsense" da capa: "Tinha a ver com um velho ‘slogan’ que existia em Espanha: Hoje há, amanhã não sabemos. Não era propriamente sobre conquilhas." Só que "num país em que ninguém sabia como seria o dia de amanhã", como acrescenta Nuno Rodrigues, o que tinha sentido trazia a configuração de um dogma. Além disso, "a etnografia e a poesia estão cheias de surrealismo e de sátira."
"Nunca tivemos intenção de nos tornarmos budistas ou elementos de partidos políticos." A violência inscrita nos textos do álbum, oscilando entre libelos provocatórios e metáforas do quotidiano arrancadas de cânticos tradicionais, era uma inequívoca afirmação política: "Há coisas muito mais importantes do que determinados doutrinários, doutrinas, religiões ou opções políticas. Uma delas tem a ver com a terra, com uma imagem que utilizámos: gostávamos de estar musicalmente com os pés enterrados na terra e com as pontas dos dedos a tentar tocar as estrelas."
A Banda do Casaco veiculava tanto uma sonoridade tradicional como uma arte abrupta de ruptura, equilibrando-se já nas possibilidades de uma outra dimensão musical. Entre a acidez vinagrosa de "Geringonça" ou "Dez-Onze-Doze" (em que os textos tradicionais servem de matéria para apontar "os cegos surdos mudos") e a doçura (no prelúdio "Acalanto" ou no tema que termina o disco, "Água de Rosas", ambos instrumentais), a Banda do Casaco criou um disco denso e lúdico, em que o divertimento e a harmonia se digladiam com o desconchavo do humor e dos jogos fonéticos, em intermináveis cascatas de sentidos que puxam novos sentidos» (Rui Catalão, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa", Público/FNAC, 1998).


Chão Nosso, de Trovante
(LP, Sassetti, 1977; CD, Strauss, 2002)


Em 1977, mais precisamente no mês de Setembro, que vem a público, com chancela da Sassetti, o primeiro álbum dos Trovante, grupo formado em Agosto de 1976, em Sagres. Com o sugestivo título de "Chão Nosso", trata-se de um disco de forte inspiração tradicional, perfeitamente entrosado com a recuperação das raízes musicais portuguesas e incorporando uma forte temática política, no rescaldo do período revolucionário. Com composições e arranjos do grupo (João Gil – viola, bandolim e percussão; João Nuno Represas – percussão, flautas; Luís Represas – viola, bandolim, percussão e voz solo; Manuel Faria - piano, sintetizadores), a colaboração de Luís Duarte (viola baixo) e Guilherme Inês (bateria) e a supervisão musical de Pedro Osório, todos os temas têm letras de Francisco Viana: "Alto e Bom Som", "Chão Nosso", "Hoje", "Igual ao Mesmo", "Engrenagem", "Mais e Mais, Agora", "À Flor da Vida" (à memória de José Dias Coelho, assassinado pela PIDE), "Amanhecendo" e "Muralha de Ombros".
Citemos Mário Correia: «O aparecimento do grupo Trovante no panorama da música popular portuguesa pode considerar-se bastante modesto. Embora promissor na globalidade das suas propostas, o primeiro álbum, "Chão Nosso", trazia-nos uma música inacabada, plena de influências mal assimiladas: havia por todo ele laivos de presenças múltiplas apenas ligadas entre si pelos propósitos de fusão desses vários elementos, numa procura em torno de uma especificidade e uma universalidade não só possível como desejável para a música popular portuguesa» (in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
"Chão Nosso", embora não podendo ser considerado uma obra-prima dos Trovante, merece, em todo o caso, ser citado justamente por ter sido o primeiro de um dos grupos mais marcantes da música popular portuguesa.


Um Homem na Cidade, de Carlos do Carmo
(LP, Trova, 1977; CD, UPAV, 1991, Polygram, 1995)


Carlos do Carmo publica o LP "Um Homem na Cidade" (Trova, 1977), unanimemente considerado a sua grande obra-prima discográfica e indubitavelmente um dos grandes discos da música portuguesa de sempre. Álbum conceptual sobre a cidade de Lisboa, inteiramente com poemas de José Carlos Ary dos Santos, dele constam os seguintes temas, alguns dos quais se tornariam clássicos: "Um Homem na Cidade" (música de José Luís Tinoco), "O Cacilheiro" (música de Paulo de Carvalho), "Fado do Campo Grande" (música de António Victorino d’Almeida), "O Amarelo da Carris" (música de José Luís Tinoco), "Namorados da Cidade" (música de Fernando Tordo), "Nova Feira da Ladra" (música de Frederico de Brito), "O Homem das Castanhas" (música de Paulo de Carvalho), "Rosa da Noite" (música de Joaquim Luís Gomes), "Fado Varina" (música de Mário Moniz Pereira), "Fado dos Azulejos" (música de Martinho d'Assunção), "Fado da Pouca Sorte" (música de Fernando Tordo) e "Balada para Uma Velhinha" (música de Martinho d'Assunção). A execução instrumental esteve a cargo de Raul Nery (1.ª guitarra), António Chaínho (2.ª guitarra), Martinho da Assunção (viola) e José Maria Nóbrega (viola baixo), nem mais nem menos que a fina-flor no que respeita a instrumentistas da área do fado.
Como já se disse todos os poemas são da lavra de Ary dos Santos. «Foi uma ideia que o Ary teve. Resultou em vários temas da cidade, alguns considerados intemporais, outros que teriam a ver com referências que, com o tempo, serão apenas aguarelas de Lisboa», recorda Carlos do Carmo. E acrescenta: «O Ary dos Santos gostava muito de fado e tinha uma grande ternura pelos fadistas antigos. Não está feito nenhum levantamento disso, mas tenho a certeza de que existem bons fados do Ary, que ele, num gesto de generosidade e ternura, deixou em algumas casas de fado. Tinha uma particular ternura pelas pessoas velhas e deixava numa noite umas quadras ou uns decassílabos a uma fadista antiga. Esse seu gosto pelo fado foi sublinhado no trabalho que fizemos». E ao contrário do que geralmente sucede na concepção de canções, Ary dos Santos escreveu as letras sobre as músicas: «Os compositores foram-se deslocando a casa do Ary, tivemos momentos inesquecíveis. Cada poema era feito em cima da música e normalmente cada fado não demorava mais do que três horas a ser feito pelo Ary, que tinha uma imaginação que diria genial». Sobre a génese do belíssimo "Fado do Campo Grande", com música de maestro António Victorino d’Almeida, então adido cultural em Viena, Carlos do Carmo conta: «Fomos os três à Gôndola, em frente da Gulbenkian, e depois viemos para casa. Mas no trajecto que fizemos da Av. de Berna para a Av. dos Estados Unidos da América, ao passarmos no Campo Grande, estava ali um prédio em ruínas e o António disse: "Se tivesse dinheiro não deixava que demolissem esta casa, onde passei a minha infância, e era aqui que gostava de viver o resto dos meus dias". E o Ary ouviu-o. Nessa noite surgiu "Fado do Campo Grande"».
Sobre o álbum assim escreveu Rui Catalão: «"Eu sou um homem na cidade/ que manhã cedo acorda e canta/ e por amar a liberdade/ com a cidade se levanta". Muitos anos depois, talvez pareça um abuso conotar este disco com a Revolução dos Cravos (a que qualquer trabalho deste período não consegue escapar, pela febre histórica que então se vivia), até pelos poemas de Ary dos santos, refugiados de euforias militantes que então celebrou com outros cantores. "Um Homem na Cidade" é, no entanto, uma peça diáfana e a sua luz matutina engana uma audição rápida (ou um olhar directo). Este disco celebra, por vezes de forma entusiasmada, outras melancólica, a cidade de Lisboa, mas a cidade castiça, dos gestos antigos, dos objectos que resistem ao tempo, dos ofícios que vão desaparecendo, dos bairros guardando os vestígios ancestrais, das ruas bronzeadas por um sol mouro. O que pode parecer frívolo num período de outras ambições. Acontece que "Um Homem na Cidade", erguido pela polida expressão da voz de Carlos do Carmo, está abençoado pela luz da liberdade, pela gentileza dos olhares frontais, pelas gentes redescobertas com uma imensa ternura» (Rui Catalão, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa", Público/FNAC, 1998).


Cantigas Numa Língua Antiga, de Amália Rodrigues
(LP, Columbia/VC, 1977; CD, EMI-VC, 1992)


"Cantigas Numa Língua Antiga", editado em Abril de 1977, é o primeiro álbum de Amália Rodrigues com material original, editado após o 25 de Abril, embora dele façam parte alguns temas já anteriormente registados pela fadista, aqui gravados em novas versões. Com a totalidade das composições da autoria de Alain Oulman, Amália continua a cantar grandes nomes da poesia portuguesa: José Carlos Ary dos Santos ("Alfama", "Rosa Vermelha", "Meu Amigo Está Longe", "Amêndoa Amarga", "O Meu é Teu"), Pedro Homem de Mello ("Gondarém", "A Minha Terra é Viana"), Manuel Alegre ("Abril", "Meu Amor é Marinheiro", "As Facas") Bernardim Ribeiro ("Malaventurado") e Luís de Camões ("Perdigão"). Os acompanhadores são José Fontes Rocha (guitarra portuguesa) e Martinho d'Assunção (viola).
Amália, que durante o PREC foi acusada de colaboração com o regime político anterior, mereceu estas palavras de David Mourão-Ferreira, em nota apensa ao disco: «Ficou sobejamente provado, não há muito, que certa "intelligentzia" portuguesa está bem longe de ser inteligente quando alguns dos seus representantes – julgando também representar o próprio Povo – tentaram marginalizar ou crucificar Amália, num sumário e grotesco "processo" de que só eles saíram ridicularizados. Sem ter tido sequer necessidade de reagir ou defender-se, Amália renasceu incólume das próprias cinzas em que esses apressados coveiros do talento e do mérito pretendiam enterrá-la. E eis a sua voz, incomparável como sempre, mais vibrante e comovedora do que nunca, fiel a si própria e aos poetas que tem cantado, triunfando do silêncio a que quiseram remetê-la e sugerindo incansavelmente através da harmonia que a caracteriza, a superioridade da alegria de quanto nos une sobre a mágoa de quanto nos divide».
Sobre Amália e a sua arte, transcreve-se também um belo texto de Carlos Barbosa de Carvalho: «Amália, grande trágica, grande cantora, canta a vida toda, canta a vida adulta – por isso não pode deixar de cantar o sofrimento, a morte, as cadeias da saudade e da condição humana e, por fim, a libertação através do canto, a poesia. Quem se pode admirar que Amália cante Camões? Ou queriam o Camões muito bem arrumadinho nas bibliotecas das universidades para deleite estéril de professores sem coração? No essencial e dando à palavra "fadista" a sua maior, universal, dimensão, Camões é um fadista. Fadista não só porque Camões é o português por excelência mas também pelas raízes etimológicas da palavra "fado": destino, tragédia. Portuguesa e universal (como é que uma portuguesa viva, artista, pode deixar de o ser e de ser universal ao mesmo tempo?) também é Amália Rodrigues – muito provavelmente a maior cantora do nosso tempo, e como tal reconhecida. Tudo, desde os timbres da sua voz, que nos faz estremecer, até à inteligência com que escolhe letras e música e à sua inteligência interpretativa, faz de Amália uma enorme artista. A voz de Amália é hoje para milhões de pessoas, em Portugal e pelo mundo em pedaços repartida, a voz do desejo, da ternura, da alegria gaiata ou brejeira, da tristeza orgulhosa, da saudade que não se envergonha, do amor adulto que é afinal o amor louco, da lucidez. É a voz do povo. A sua melhor voz» (Carlos Barbosa de Carvalho, Julho de 1977).


Marcha dos Foliões, de Brigada Victor Jara
(LP, Vadeca, 1982; CD, EMI-VC, 199?)


Depois de "Eito Fora" (Mundo Novo, 1977), "Tamborileiro" (Mundo Novo, 1979) e "Quem Sai aos Seus" (Vadeca, 1981), a Brigada Victor Jara apresenta-nos, no ano de 1982, o álbum "Marcha dos Foliões" (Vadeca), outro belo trabalho dedicado ao rico e diverso cancioneiro popular português.
«Nenhum elemento da formação inicial surge neste disco mas a identidade da Brigada permanece: acima do nome ergue-se um projecto de música tradicional portuguesa autêntica e enraizada. A reflexão básica – sobre o desaparecimento de expoentes valiosos da cultura popular – parte de um excelente poema de Manuel da Fonseca, "Mataram a Tuna!"; as recolhas são de nomes consagrados, como Michel Giacometti, Fernando Lopes Graça, Louzã Henriques, Brigada Victor Jara e GEFAC. Fernando Seabra, Manuel Rocha, Arnaldo Carvalho, Amílcar Cardoso, Ofélia Liberto, Luís Nunes, Ananda Fernandes, Rui Curto e Luísa Cruz, com as colaborações especiais de António Manuel, Toni Andrade e João Curto, asseguraram a renovação do itinerário musical da Brigada: Açores ("Marcha dos Foliões" e "Chamarrita"), Douro Litoral ("Tareio" e "Tiro-liro"), Ribatejo ("Fandango Saloio"), Beira Litoral ("Quadrilhas 1 e 2"), Beira Alta ("Tia Batista" e "Silvaninha"), Minho ("Cana Verde"), Trás-os-Montes ("Redondo") e Baixo Alentejo ("Cantar Alentejano" e "Doba, Doba Dobadoira")» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).


Raízes, de Raízes
(LP, Orfeu, 1982; CD, Movieplay, 2005)


Em 25 de Abril de 1980, é criado em Vila Verde, distrito de Braga, o grupo Raízes que, passados dois anos, publica o seu disco de estreia, "Raízes", com selo Orfeu. Citemos Mário Correia: «Em 1982, o Grupo de Acção Cultural - Raízes apresentou o álbum "Raízes: Música Tradicional Portuguesa", inteiramente dedicado ao Minho, um trabalho da maior importância. Integrado por Armando Machado (viola, viola braguesa, banjolim e voz), António L. Silva (viola, banjolim, cavaquinho e voz), João M. Oliveira (voz e viola), Luís Vilela (viola e voz), Xavier Costa (viola, viola braguesa e voz), Chico Malheiro (cavaquinho e voz), Tó (bombo, chincalhos, reque-reque, trancanholas e tréculas), Mira Lira (reque-reque e voz), Adélia (ferrinhos e voz) e Luís Silva (bombo, voz), o grupo Raízes apresentou, com arranjos da sua autoria, os seguintes temas, todos do Minho: "Malhão da Carvalhosa", "Sapatinho", "Flor de Chá", "Tia e Sobrinho (Dueto de Cegos)", "Boiada", "Música da Dança do Rei David", "Fandango Minhoto" e "Se Fores à Erba". "Raízes" é uma aposta na "terra para pronunciar", na "terra escalavrada", nos cantos que são – que se querem – "presença e memória", num acto de intervenção culturalmente importante, urgente e tão necessária. De Vila Verde, do Minho, da memória do povo que somos no assumir total do nosso património cultural, o Grupo de Acção Cultural - Raízes traz-nos uma música que "diz muito mais às pessoas do que os discursos patriotas exaltados e manipuladores" falando sobre a identidade do povo, as suas culturas de raiz, genuínas-autênticas-diversificadas...» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).
«Apesar de ainda não revelarem a sofisticação que viriam a demonstrar no segundo e terceiro álbuns ["Diabo do Belho!" (1985) e "Caminhos d'Água" (1988)], a música deste curto mas intenso álbum de estreia revela uma aturada capacidade para, começando do chão, das raízes, se seguir em direcção ao alto, ao céu. Logo na abertura, "Malhão da Carvalhosa", os cavaquinhos e as braguesas erguem uma "parede de som", capaz de transformar a folk portuguesa em algo psicadélico. O mesmo se passa no insinuante instrumental "Música da Dança do Rei David" ou em "Boiada", canção em que a voz feminina se revela superior. Sem se notar comportamento desviante face à norma, os Raízes já deixavam expressa a intenção de personalizar a música de raiz tradicional» (M.F.C., in "Público": Suplemento Y, 08.07.2005).


Pedra d’Hera, de Pedra d’Hera
(LP, Promusix, 1982; CD, 1994)


O grupo Pedra d’Hera, formado no Fundão, revelou-se igualmente em 1982, através do álbum com o mesmo nome, um trabalho que aposta "na revelação de uma música original, nova, mas fiel ao rigor da inspiração da riquíssima tradição musical da Beira Baixa". Sobre o disco, escreveu Mário Correia: «Um canto profundamente ligado à terra, com a qual dialoga ora com ternura ora com revolta, e uma música que reflecte a preocupação de fusão de diversas influências, tendo como ponto de partida a criação com base na nossa música de raízes populares. De salientar que este chão através do qual irrompe a música dos Pedra d’Hera nem sempre surge claramente evidenciado. E aqui, pensamos, reside um dos pontos mais atractivos e prometedores da criação musical dos nossos dias: a omnipresença da música tradicional como sintoma evidente de que a criação da música popular não implica a referência imediata, clara e vincada dos esquemas básicos de um passado mais ou menos remoto. As propostas musicais do grupo Pedra d’Hera – constituído por Carlos J. Branco, José R. Fontão e José Emílio Martins – surgem-nos essencialmente através de José R. Frontão, autor das letras e músicas de "Ai Serafina", "Ouro por Achar", "Ai Bela de Amar", "Fundão (Vila Perfumada)", "Nagasaki Hiroshima", "Olhar Enamorado", "Nos Braços do Oriente" e "Bobo", sendo os restantes trechos "Hera e Não Era" (letra de origem popular e música de José Emílio Martins), "Ai Terra Que Mata" (com letra de José R. Fontão e música do grupo), "Entardecer (Em Paris)" (instrumental de Carlos J. Branco) e "O Perfume das Camélias" (com letra e música de José Emílio Martins)» (in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).


Aguarela, de Charanga
(LP, Polygram, 1982; CD, Universal, 2001)


«O grupo Charanga, com o seu trabalho "Aguarela", editado em 1982, com produção de Manuel Faria e João Gil, constitui a mais prometedora revelação em termos de continuação/reforço/alargamento das propostas basicamente delineadas pelos Trovante. A preocupação em partir da inspiração de raiz tradicional incorporando no acto criativo elementos e influências externas de distintas origens, resultou em "Aguarela", uma obra equilibrada, sugestiva e enraizada. Trabalho rigoroso no tratamento musical de simbiose de inspirações e invulgarmente expressivo através dos poemas utilizados (flagrante a recuperação do lirismo da poesia portuguesa dialogante com a terra), "Aguarela" constitui um contributo indispensável para a descoberta de novos caminhos na longa marcha evolutiva da música popular. Integram este álbum oito canções com letras de José Carlos S. de Almeida e música do grupo ("Varina", "Lua", "Nem Sirvo Nem Servo", "Saber da Água", "Dia a Gota", "Iniciação", "Sertão" e "Naturalmente") e um tradicional da Beira Baixa com adaptação e arranjos dos Charanga – "O Conde da Alemanha" – estando a instrumentação a cargo dos elementos do grupo: Chico Carrilho Tomás (guitarras), José Carlos Flores Silva (baixo), Tozé Xavier (flauta, pífaro e percussão), José Carlos Faria (percussão) e António João Freitas (bateria)» (Mário Correia, in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984)


Máscara, de João Lóio
(LP, Orfeu, 1982)


Nascido em Matosinhos no ano de 1953, João Lóio é licenciado em Medicina pela Faculdade de Medicina do Porto e obteve uma pós-graduação em Ciências Musicais pela Faculdade de Letras de Coimbra. Estudou também guitarra clássica, tendo igualmente efectuado estudos de piano e clarinete. Iniciou a sua carreira artística em 1975, no Grupo de Acção Cultural "Vozes na Luta", no seio do qual participou como cantor, instrumentista e compositor, nos álbuns "Pois Canté!" (GAC, 1976) e "...E Vira Bom!" (GAC, 1977). Terminada esta experiência desenvolveu uma intensa actividade ligada ao teatro, onde para além de compositor e intérprete, participou como actor, encenador e dramaturgo. Actualmente, é professor de Música e Voz no Curso de Teatro da Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo do Instituto Politécnico do Porto.
Editado pela Orfeu, em Julho de 1982, "Máscara" é o seu primeiro álbum em nome próprio. Com arranjos e direcção musical de Luís Pedro Faro, o disco inclui onze temas: "Sim", "E Se...", "Oração do Malfeitor", "O Que Tu És", "Vai Meu Barco", "Máscara", "Deixem Passar", "Branco, Branco", "Um Dia de Sol", "Olha Para Mim" e "À Toa da Vida".
[colocar citação]
Depois de "Máscara", João Lóio publicou os seguintes álbuns: "Mais Um Dia" (Discantus, 1987), "Encontros" (Memórias, 1997), "O Segredo Maior: Canções a Brincar" (Memórias, 1998), "Primeiro Acto: Música de Cena" (Edição de Autor, 2000) e "Canções de Amor e Guerra" (Edição de Autor, 2002).
Praticamente desconhecido do grande público, João Lóio é um bom exemplo do silenciamento a que tacanhez e estreiteza de vistas dos fazedores de ‘playlists’ votaram uma boa parte dos intérpretes portugueses de maior valia. Por ser pública, a Antena 1 devia prestar uma atenção redobrada aos criadores que não fazem parte dos circuitos promocionais da indústria discográfica, mas, no caso concreto de João Lóio, não me consta que alguma vez tenha figurado na ‘playlist’.


Cantos à Terra-Madre, de Pedro Barroso
(LP, Rádio Triunfo, 1982; CD, Movipelay, 1997)


O LP "Cantos à Terra-Madre" (Rádio Triunfo, 1982), de Pedro Barrso, é, como o título deixa antever, um álbum profundamente telúrico e, por isso mesmo, o que apresenta uma componente etnográfica mais vincada. O que aliás está em perfeita consonância com a actividade que o artista desenvolvia ao tempo: pesquisa na área dos estudos etnomusicais, autoria e realização de programas de rádio ("Musicantes", na RDP-2, de 1979 a 81) e de televisão ("Musicarte", na RTP-1, em 1982 e "Tempo de Ensaio", na RTP-1, em 1988), com o nobre intuito de chamar a atenção para a importância do património musical de matriz tradicional, não raramente vítima de desprezo das cátedras e encarado como coisa culturalmente inferior.
A música tradicional e a música erudita sempre se influenciaram mutuamente e Pedro Barroso, partindo das suas pesquisas etnomusicológicas, mas nunca abdicando da sua criatividade pessoal, dá neste disco um contributo muito original na exploração dessas pontes. O elenco de músicos e instrumentos é exemplificativo dessa opção estética: Pedro Barroso (concertina, harmónica bocal, violas, cavaquinhos, adufes e bombo), António Chaínho (guitarra portuguesa), António Veríssimo (sapateado e ferrinhos), Carlos Augusto (violas de 6 e 12 cordas), Carlos Alberto Moniz (violas), Luís Sá Pessoa (violoncelos), Miguel Sá Pessoa (piano), Pedro Osório (piano, acordeão, caixa), Samuel e Henrique Marques (trancanholas "gémeas" - por serem gémeos...) e Zé Calhau (flautas e bombo).
O disco inclui onze temas, todos com música e letra de Pedro Barroso, salvo onde indicado: "Cantar Brejeiro", "Aprendi Cantos co’a Terra", "Concerto para Esperança e Orquestra", "Pela Vida Companheiros", "Cantarei", "A Piação dos Ninhou", "Tanta Gente", "Camarnal", "Avessada", "O Ramalhete Rubro das Papoulas" (poema de Cesário Verde) e "Fandango Veríssimo". Tal como já fizera com José Saramago e Sá de Miranda (LP "Água Mole em Pedra Dura", Sassetti, 1978), Pedro Barroso volta a musicar um dos nossos poetas maiores – Cesário Verde –, no tema "O Ramalhete Rubro das Papoulas", que conta com um belo arranjo de flauta transversal, violoncelo e guitarra portuguesa. "Cantar Brejeiro", um tema de cariz mais imediatista, em ritmo de chula minhota, que abre o alinhamento, tornar-se-á um dos maiores êxitos do cantor. Do disco merecem ainda destaque: "Concerto para Esperança e Orquestra", em que o maestro Pedro Barroso dirige uma naipe de instrumentos solistas e gente; "Cantarei", uma espécie de testemunho de vida e de arte: «fiz-me andarilho a cantar / cantei noite cantei dia / canções do meu inventar»; "Pela Vida, Companheiros" e "Tanta Gente", dois temas de temática ecologista, numa altura em que o futuro do planeta estava longe de estar na ordem do dia, pelo menos em Portugal; e "Avessada", uma belíssima composição para guitarra clássica, violoncelo e flauta, baseada numa antiga melodia de embalar que a trisavó lhe entoava na idade do berço.
Mário Correia escreveu assim sobre o disco: «Síntese do múltiplo na procura do uno na diversidade é o álbum "Cantos à Terra-Madre" através do qual Pedro Barroso agarra na música tradicional para elaborar uma proposta musical digna de toda a atenção. Esta obra corresponde às palavras do seu autor, "reformular-se, revoltar-se, abrir-se, renovar-se e envelhecer. Amadurecer em anos de perseverança difícil e de saudade". Crónicas da terra – os balhos da eira dos avós, o fandango ribatejano, os cantares de acusação e aviso, o dialecto minderico e a amostra de que a "música clássica e a agrária não estão assim tão distantes uma da outra como isso" – que Pedro Barroso interpreta, num diálogo "com o amor que da terra vem e à terra regressa connosco nos olhos e ouvidos, em corpo e fantasia"» (in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).


Por Este Rio Acima, de Fausto Bordalo Dias
(2LP, Triângulo/Sassetti, 1982; CBS, 1984; 2CD, CBS, 1988)


Em 19 de Novembro de 1982 é editado pela Triângulo/Sassetti o duplo LP "Por Este Rio Acima", a obra-prima absoluta de Fausto Bordalo Dias e também um dos discos mais importantes da música portuguesa de sempre. Para muitos – eu incluído – é mesmo o melhor. Tendo como fonte de inspiração a obra "Peregrinação", de Fernão Mendes Pinto, Fausto apresenta um duplo álbum conceptual, seguindo do princípio ao fim uma ideia coerente e concretizando-a de forma magistral, dando-nos um trabalho que na verdade supera tudo o que até aí fora feito em Portugal e ainda hoje não igualado nem mesmo pelo próprio Fausto, apesar da tentativa feita em "Crónicas da Terra Ardente" (Sony, 1994), o segundo capítulo sob o signo da Diáspora Lusitana. Com letras e composições de Fausto, o álbum é composto por dezasseis temas com o seguinte alinhamento: Disco 1: "É o mar que nos chama" (instrumental), "O barco vai de saída", "Porque não me vês", "A guerra é a guerra", "De um miserável naufrágio que passámos", "Como um sonho acordado", "A ilha", "A voar por cima das águas" e "Olha o fado"; Disco 2: "Por este rio acima", "O cortejo dos penitentes", "O romance de Diogo Soares", "Navegar, navegar", "O que a vida me deu", "Lembra-me um sonho lindo" e "Quando às vezes ponho diante dos olhos".
Gravado durante a Primavera e Verão de 1982, nos Estúdios Angel, em Lisboa, com captação de som de José Fortes, Rui Novais e Luís Flor, "Por Este Rio Acima" é simplesmente um caso ímpar na música popular portuguesa, quer do ponto de vista da complexidade da proposta e da sua genial execução quer da extraordinária profundidade musical da obra. Além da riqueza melódica e harmónica, então ainda pouco usual na música popular portuguesa, Fausto aprofunda quase até ao limite a invenção que já vinha de "Madrugada dos Trapeiros" (Orfeu, 1977) e de "Histórias de Viageiros" (Orfeu, 1979) e a exploração de uma nova rítmica, a partir da tradição portuguesa. Este trabalho a todos os títulos superlativo e referencial, – de que se não deve esquecer o precioso contributo de Eduardo Paes Mamede na produção, direcção musical e arranjos (partilhados com o próprio Fausto), e o magistral desempenho de uma plêiade de músicos de excelência, marca de forma decisiva a música popular portuguesa e afirma Fausto como um dos grandes criadores do nosso tempo. Na execução instrumental ressalta a riqueza e variedade das fontes sonoras e respectivos músicos: cordas (Ilídio Gomes, Isabel Sorrilha, António Oliveira e Silva, Luísa Vasconcelos), trompa (Adácio Pestana, Joaquim Correia, António Costa), guitarra portuguesa (Pedro Caldeira Cabral), viola acústica (Fausto, Júlio Pereira, Mestre Paulinho das Garotas), viola braguesa e cavaquinho (Júlio Pereira), baixo (Pedro Casaes, Xico Zé), adufes, triângulo, bombos, tablas, caixas populares, paus, reco, maraca, choca, bloco (Pintinhas, Rui Júnior, Zé Martins, Rui, Pedro Casaes, Xico Zé), violino (Zé Ernesto), flautas (Eduardo Paes Mamede, creditado como Ed), acordeão (Jorge Nascimento), piano e sintetizador (João Paulo), violas de gamba soprano e alaúde (Pedro Caldeira Cabral) e coros (Lena, Zélia, Toinas, Isabel, Tozé, Rui Vaz, Pedro Casaes e Eduardo Paes Mamede). Destaque ainda para a participação especial de alguns actores do Grupo de Teatro A Barraca (Maria do Céu Guerra, Santos Manuel, Orlando Costa e João Maria Pinto) e de várias vozes femininas do GAC, creditadas como Coro dos "Meninos do Meio-Tom" (no tema "O romance de Diogo Soares").
Citemos as palavras de Eduardo Paes Mamede, por razões óbvias, e porque constituem, sem dúvida alguma, uma achega importante para a compreensão de "Por Este Rio Acima": «Pareceu-me que ninguém estava melhor colocado para escrever algumas notas sobre o trabalho musical do que eu, que acompanhei o Fausto desde o início de embarcar neste sonho. Recordar o início da viagem é recordar aquela tournée por Espanha, naquele Verão de 80, em que o Fausto nos mostrou o desabrochar do que viria a ser, porventura, uma das mais belas canções de amor da Música Portuguesa – "Porque não me vês". Assistir ao nascimento destas canções foi para mim uma experiência que me permitiu, não só o exame do processo criativo, como também dos elementos subjectivos e subjacentes que lhe presidiram, nascendo desta observação, e do posterior trabalho conjunto, uma tão grande afeição por esta obra, que aconteceu aquilo que eu gostaria que também acontecesse com o público – adoptei-a como minha também. Fundamentalmente podemos dividir as canções incluídas neste disco em dois grandes grupos: as canções com influências urbanas e as directamente inspiradas pela tradição musical popular portuguesa.
Em relação ao primeiro grupo encontramos títulos como "O cortejo dos penitentes", "O romance de Diogo Soares" e "O que a vida me deu", que estruturalmente não demonstram quaisquer afinidades particulares, servindo, a meu ver, tanto nos aspectos melódicos, harmónicos e de arranjo ou ambientais, como excelentes suportes para o discurso literário, sendo produtos da amálgama cultural urbana que, no caso do Fausto, tem a ver muitas vezes com reminiscências melódicas e harmónicas beatlianas e africanas. Estão ainda consideradas neste grupo as canções "Como um sonho acordado", "A ilha" e "Por este rio acima", porém nestes casos há algo mais a acrescentar como a utilização da rítmica tradicional estilizada numa preocupação evidente de recuperar e referenciar culturalmente as canções (ritmos de Lavacolhos em "Como um sonho acordado" e a utilização do ritmo ternário dos adufes comum às regiões da Beira Baixa e Alto Douro em "Por este rio acima"). Para além destes aspectos e, porventura mais importantes por dizerem respeito à própria concepção melódica/harmónica das canções, encontramos as simbioses com elementos do fado de Coimbra ("A ilha") e com a tradição musical açoriana ("Como um sonho acordado"). "Quando às vezes ponho diante dos olhos", canção que sintetiza e com que termina toda a obra é, como não podia deixar de ser, uma canção urbana no sentido em que abarca toda a viagem anterior. Curiosa, e quanto a mim singular, é a referência nítida ao fado (apresentado numa evolução harmónica) do discurso final, por este ser já de si próprio, segundo afirmam alguns estudiosos, originário de influências culturais diversificadas numa estratificação lenta através dos séculos e com raízes no próprio século XV durante a empresa marítima portuguesa.
No segundo grupo de canções que definimos como directamente inspiradas pela tradição musical portuguesa há, em primeiro lugar, que chamar a atenção para algumas características da concepção destas canções. Trata-se, quanto a mim, de Música Popular Portuguesa de primeira água, definindo esta como inspirada na música tradicional portuguesa e, por conseguinte, identificada e identificadora duma Cultura Nacional. É sabido que, em geral, a música tradicional dos países da Europa Ocidental se, por um lado, é muito limitada harmonicamente, resumindo-se a esquemas bitonais e tritonais, enquadrando as melodias entre a tónica e a dominante (exceptuando-se, claro, construções antigas modais), por outro, quase toda ela possui uma diversidade rítmica muito grande e rica. Daqui se conclui que, para os que trabalham e se preocupam com estas coisas, o maior problema para a Música Popular Portuguesa é, sem dúvida, a questão harmónica/melódica, questão esta que a experiência brasileira já mostrou ser resolúvel mas não aplicável em todos os casos, isto é, as soluções encontradas (marchas harmónicas e formação dos próprios acordes) não satisfazem plenamente no nosso país por colorirem em demasia a nossa música com tons tropicais e, por arrastamento, cairmos nos ritmos brasileiros aos quais estas sequências harmónicas estão intimamente ligadas, preferindo-os inconscientemente à verdadeira raiz africana. Esta questão faz com que muitas vezes, procurando elementos africanos (a raiz de muitos géneros musicais vigorosos e que histórica e culturalmente muito têm a ver connosco), utilizemos, não avisadamente, ritmos brasileiros pensando dela se tratar. No caso de Fausto (com uma memória cultural africana original pois nasceu e viveu muitos anos em Angola), na própria concepção destas canções podemos examinar dois aspectos: por um lado, os temas são formados, em geral, por A e B, sendo o primeiro feito ao estilo tradicional (bitonal ou tritonal, movendo-se a melodia entre a tónica e a dominante) mas, e isto é que é curioso neste autor, não se apoiando nos tempos fortes ao compasso (característica da música dos bairros suburbanos de Luanda) dando assim um efeito flutuante sobre uma base rítmica sólida e quebrada pela permanente acentuação em contratempo de uma viola (também outra característica do acompanhamento instrumental da zona já referida); por outro lado, a concepção dos temas B, em que se procuram modulações a tons afastados em apoio duma melodia fluente que foge ao espartilho bitonal ou tritonal. Estão neste caso as canções "O barco vai de saída", "A guerra é a guerra", "De um miserável naufrágio que passámos", "Navegar, navegar" e "Lembra-me um sonho lindo". Nestas canções houve ainda a preocupação, tal como aconteceu nas outras, de as vestir ritmicamente com elementos estilizados da música tradicional (paus de Trás-os-Montes, ritmos de Lavacolhos e Santa Marinha) aliados, por vezes, a outros elementos de origem africana. Por último, uma referência a "Olha o fado" que, como se pode perceber, trata-se de mais um fado de nova geração e inclui-se dentro da preocupação dos autores desta área em recuperar esta forma de folclore urbano experimentando a sua evolução harmónica» (cit. Eduardo Paes Mamede).
É também pertinente citar Fernando Magalhães: «Sobre esta obra há quem diga que saiu antes de tempo. Que o seu autor nunca conseguirá vencer o estigma de a ter feito, como se Fausto estivesse condenado a ver tudo o fez depois sujeito a uma comparação impiedosa. Que é o verdadeiro disco sobre os Descobrimentos e não a encomenda que fizeram quase uma década mais tarde a Rui Veloso ["Auto da Pimenta", EMI-VC, 1991]. Que é um marco da história da música popular portuguesa. Tudo isto é verdade, porque "Por Este Rio Acima" é um objecto único e irrepetível. Raramente tantos factores positivos se conjugaram de maneira a resultar num álbum onde tudo bate certo. Em primeiro lugar, porque faz a síntese coerente da música tradicional portuguesa com a modernidade. "Por Este Rio Acima" constrói-se, nos temas mais balanceados, sobre as fundações rítmicas das chulas, do corridinho, até do fado. E sobre outros chãos onde Portugal deixou sementes, em África, no Oriente, no Brasil. Mas o que se ouve é algo de original que se projecta no futuro e numa atitude de puro experimentalismo, no sentido de pesquisa de novas formas e sonoridades. Depois é uma lição de história viva, na maneira como Fausto transformou "A Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto em qualquer coisa que toca de perto e com muita força na sociedade portuguesa actual. Há a aventura, mas também a miséria. O tom épico e a farsa. O sonho e a mordacidade crítica. "Por Este Rio Acima" é uma viagem pelos mares, mas também como se diz no disco "por cima dos pensamentos". Saga heróica onde a visão interior serve de bússola, como mostra a bela ilustração da capa. É um disco imbuído de felicidade, onde tudo se encaixa de maneira natural, fruto, em parte, da rodagem que sofreu no período anterior à gravação [no teatro de A Barraca] e ao extremo cuidado posto nos variados aspectos técnicos. E se hoje a maior parte das pessoas recorda e trauteia as melodias irresistíveis de "O Barco vai de saída" e "Navegar, navegar", a verdade é que são os temas mais lentos, como o psicadelismo oriental "Porque não me vês", a dor solitária de "O que a vida me deu" ou a antológica cena de "interiores" que é "Como um sonho acordado" que deixam marcas mais profundas. Um álbum de infinitas descobertas.» (Fernando Magalhães, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa", Público/FNAC, 1998).


Triângulo do Mar, de Carlos Mendes
(LP, Triângulo/Sassetti, 1982)




Em 1982, Carlos Mendes publica "Triângulo do Mar", um álbum que como o nome indica explora as pontes que musicalmente ligam os três vértices atlânticos da lusofonia – Portugal, África e Brasil. Um trabalho algo surpreendente, se atentarmos no percurso musical do cantor: estreou-se no grupo Sheiks (ao lado de Paulo de Carvalho, Fernando Chaby e Jorge Barreto), derivou depois para canções festivaleiras (ganhou duas edições do Festival RTP da Canção: em 1968 com o tema "Verão" e em 1972 com "Festa da Vida"), e participou a convite de José Niza, no LP "Fala do Homem Nascido" (Orfeu, 1972), exclusivamente dedicado à poesia de António Gedeão, ao lado de Samuel, Duarte Mendes e Tonicha. A sua afirmação como grande intérprete e também como compositor acaba por acontecer depois do 25 de Abril com dois álbuns assentes na poesia de Joaquim Pessoa: "Amor-Combate" (1976) e "Canções de Ex-Cravo e Malviver" (1978), este em torno de Lisboa e da realidade humana da cidade, onde pontificam temas como "Lisboa, Meu Amor", "Ruas de Lisboa" e "Amélia dos Olhos Doces". Em seguida, acontece o ressurgimento dos Sheiks (de que resultaram os álbuns "Pintados de Fresco", em 1979, e "Sheiks com Cobertura", em 1980). E depois aparece "Triângulo do Mar", disco que representa efectivamente um novo caminho na carreira de Carlos Mendes que terá afirmado «A Europa, em termos musicais, já me diz muito pouco».
Disse Mário Correia: «Proposta de interacção cultural, "Triângulo do Mar" é uma viagem de sínteses: desde a canção ao fado, desde a música de raiz angolana às mais ricas expressões da música popular brasileira, desde o reggae ao malhão, em suma. "Seripipi de Benguela", "Cantar do Alentejo", "Terra Mãe", "Até Sempre", "Fado da Esperança", "Leve Giz", "Reggae Rega o Meu Malhão", "Espera", "Passadeira" e "Vou Pelo Mar" – eis as coordenadas do percurso de Carlos Paredes em "Triangulo do Mar", do qual dispensamos melhor identificação pois é um trabalho indispensável. Com este disco, Carlos Mendes veio dar um alento novo à música popular portuguesa: a força da (re)descoberta da sua mais expressiva e promissora essência» (in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).


Cancioneiro, de Luís Cília
(LP, Diapasão/Sassetti, 1982)


Ainda de 1982 deve referir-se o álbum "Cancioneiro", de Luís Cília, um compositor/intérprete absolutamente silenciado na actual rádio portuguesa (ainda mais que Luiz Goes, Adriano Correia de Oliveira ou Teresa Silva Carvalho), embora não seja um nome de somenos importância. Convirá não esquecer que ele foi um dos primeiros a pôr em música, no álbum "Portugal-Angola: Chants de Lutte" (Le Chant du Monde, 1964) e na trilogia "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours" (Moshé-Naim, 1967-1971), grandes poetas portugueses e afro-lusófonos (Camões, Filinto Elísio, Garrett, Guerra Junqueiro, Fernando Pessoa, Miguel Torga, Carlos de Oliveira, Rui Namorado, José Gomes Ferreira, José Saramago, Afonso Duarte, António Gedeão, Orlando da Costa, Manuel Alegre, Arquimedes da Silva Santos, Fernando Ilharco Morgado, João Apolinário, Daniel Filipe, Gabriel Mariano, Jonas Negalha, etc.). De salientar ainda a influência que Luís Cília teve no movimento dos chamados "baladeiros", designadamente em Adriano Correia de Oliveira que no álbum "Margem Sul" (Orfeu, 1967) cantou três temas com música sua ("Exílio", "Sou Barco" e "Canção Terceira") e em Manuel Freire que gravou um álbum, "Devolta" (Diapasão/Sassetti, 1978), exclusivamente com músicas da sua autoria. "O Peso da Sombra" (Diapasão/Sassetti, 1980), sobre poesia de Eugénio de Andrade, "Contradições" (Diapasão/Sassetti, 1983) sobre poesia de Armindo Rodrigues (face A), "Sinais de Sena" (Diapasão/Sassetti, 1985) sobre poesia de Jorge de Sena, e "Penumbra" (Transmédia, 1987) sobre poesia de David Mourão-Ferreira são outros trabalhos importantes da sua discografia, que inclui também álbuns de música instrumental composta para bailados como "A Regra do Fogo"(Tejo, 1988) e "Bailados" (Strauss, 1995). Já o álbum "Cancioneiro" (Diapasão/Sassetti, 1982), na verdade uma regravação (das partes vocais) de "O Guerrilheiro" (Orfeu, 1974), o primeiro LP que Luís Cília gravou em Portugal após o seu regresso do exílio, é uma abordagem ao ancestral repertório tradicional português. "O Conde Niño", "O adeus d’um proscrito", "Flor da Murta", "A guerra do Mirandum", "O Conde de Alemanha", "D. João da Armada", "Canção do figueiral", "D. Sancho" e "O guerrilheiro" são os nove temas do alinhamento. Fruto de aturadas pesquisas efectuadas pelo cantor na Biblioteca Gulbenkian de Paris, durante os anos de 1973 e 1974, "O Guerrilheiro"/"Cancioneiro" constitui um dos trabalhos mais notáveis e raros de recuperação do romanceiro tradicional e de canções de antanho (do séc. XIII ao séc. XIX).
Sobre a génese deste disco, é oportuno citar Luís Maio: «Luís Cília, cantor de intervenção durante uma década exilado em Paris, regressou a Portugal dias depois do 25 de Abril. [...] Ao ser confrontado com a nova conjuntura portuguesa, Cília, em vez de aproveitar, decidiu demarcar-se. "Cheguei a 29 de Abril e, perante o sectarismo que se começou a criar, dei uma entrevista em que dizia que considerava o Alfredo Marceneiro um cantor revolucionário. É uma coisa que mantenho, mas que na altura até disse como uma forma de provocação contra aqueles tipos que achavam que o fado era fascista. De resto, um povo que durante 48 anos não tinha tido acesso a um determinado tipo de música e que a seguir ao 25 de Abril apanhou com doses industriais de uma reles música a que chamavam revolucionária onde 'pão' rimava com 'patrão'... Depois havia uma inflação de 'revolucionários'. Este disco foi então a minha reacção, como também o foi ter dado a mim mesmo como meta, durante um ano, não cantar em Lisboa. Porque era em Lisboa que se dava o folclore todo. Daí eu ter arranjado, desde essa altura, alguns inimigos. Resolvi fazer este disco, que era em tudo contrário à corrente. Decidi fazer um disco cultural, embora também tivesse a sua intervenção. [...] Conheci o doutor Coimbra Martins, director da biblioteca da Fundação Gulbenkian em Paris. Ele deu-me todas as facilidades para ir à biblioteca regularmente recolher música antiga e consultar todos os cancioneiros que lá havia." [...] Para gravar o seu disco de 74, Cília optou por voltar a Paris, tendo por única companhia José Niza, enviado pela Orfeu como produtor executivo. A razão era simples: estavam na capital francesa os companheiros musicais de que o cantor português precisava para concretizar o seu projecto. "Eu conhecia o Bernard Pierrot que era um guitarrista clássico, que tinha sido aluno do meu professor de composição, Michel Puig. O Bernard tinha um grupo de música antiga e pedi-lhe para fazer as orquestrações das canções que eu recolhera. Aliás, limitei-me a fazer a recolha e a cantar. Talvez tenha sido o único disco meu em que não assumi a direcção artística. [...] A canção que dá título a este disco ["O Guerrilheiro"] é uma canção alentejana feita na guerrilha do séc. XIX. Depois até a Intersindical pegou nessa música para fazer o seu hino com outra letra." [...] Se "O Guerrilheiro" saiu depois das recolhas e das antologias de Giacometti e Lopes Graça não é menos verdade que foi lançado antes da sua reelaboração por formações como Almanaque, Brigada Victor Jara, GAC, Raízes ou Vai de Roda. Mas em contraste com estes, Luís Cília não era, em 1974, um cantor urbano de regresso às raízes, como a uma fonte purificadora de autenticidade social e estética. Cília era um cantor de baladas com veleidades culturais, que nessa medida se quis fazer acompanhar no mergulho histórico de um grupo de música antiga dirigido pelo académico Bernard Pierrot. Nesta conjunção singular entre o presente e o passado, o seu gesto também poderá ser considerado pioneiro. [...] É também [um trabalho] animado por intuições, ideias e um tipo de ousadia cultural e estética que é a essência da música portuguesa mais criativa de sempre.» (Luís Maio, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa", Público/FNAC, 1998)


Ser Solidário, de José Mário Branco
(2LP, Edisom, 1982; 2CD, EMI-VC, 1996)


O duplo LP "Ser Solidário" (Edisom), de José Mário Branco, é outro trabalho a merecer destaque da rica safra de 1982. O alinhamento é o seguinte: Disco 1: "Travessia do deserto", "Queixa das almas jovens censuradas", "Vá..vá...", "A morte nunca existiu", "Fado da tristeza", "Fado Penélope", "Qual é a tua, ó meu? ", "Eu vim de longe, eu vou p'ra longe (chulinha)"; Disco 2: "Inquietação", "Não te prendas a uma onda qualquer", "Linda Olinda", "Treze anos, nove meses", "Sopram ventos adversos (Maiden voyage)", "Eu vi este povo a lutar (Confederação)" e "Ser solidário". A acompanhar o álbum, saiu o maxi-single "FMI", que na reedição em CD seria integrado no próprio disco como extra.
Na colaboração instrumental contam-se excelentes músicos: Pedro Wallenstein (contrabaixo, baixo eléctrico), Rui Cardoso (saxofones, flauta, flautim, clarinete baixo), Zé da Cadela (bateria, tarola), Pedro Luís (piano, polymoog), Júlio Pereira (violas eléctrica e acústica, banjo, guitarra portuguesa), Trindade Santos (flauta), António Chaínho (guitarra portuguesa), Armindo Neves (viola eléctrica) e João Paulo Esteves da Silva (piano), além do próprio José Mário Branco (viola acústica, acordeão, polymoog, bombo, triângulo, timbalões, caixa). Nos coros estiveram Formiga, Lúcia Lemos, António Branco e Gustavo Sequeira.
O álbum representa o fecho de um ciclo criativo, nas palavras do próprio autor: «"Ser Solidário" é uma obra feita já a olhar para a frente, embora não fale daquilo para que está a olhar. Mas fala de tal maneira definitivamente que encerra mesmo um ciclo, pelo menos no que diz respeito à minha obra. Mas não só. Talvez tenha sido eu – e digo-o sem vaidade, com a maior lucidez possível – a tomar a iniciativa de encerrar um ciclo aberto há onze anos com "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" e com as "Cantigas do Maio" do Zeca Afonso.» (in "Expresso", 09.04.1982). Nessa medida, se compreende que a par dos temas inéditos (ou anteriormente compostos para peças de teatro), José Mário Branco retome alguns temas dos primeiros álbuns, como "Queixa das Almas Jovens Censuradas" (de "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", 1971) e "A Morte Nunca Existiu" (de "Margem de Certa Maneira", 1972).
"É um disco pensado para disco", diz o autor, "com material inventado, composto e concebido na sequência da minha saída da Comuna – um disco com princípio, meio e fim, com o ‘FMI’ integrado. Agarrei numa maqueta e foi assim que o propus a várias editoras, que não se interessaram. Houve reacções e respostas negativas de vária ordem: frontais, laterais, silêncio, não-respostas. Pelo que percebi de algumas negativas que foram expressas, terá havido dois tipos de factores para a recusa. Por um lado, a marginalização de um tipo muito queimado no período de 1974-75. Por outro, medo e recusa de editarem, especificamente, o ‘FMI’. Havia a atracção pelo mais escandaloso, mas também o receio". Então, José Mário Branco decidiu transformá-lo num "espectáculo de cartaz". Estreado em 21 de Novembro de 1980, no Teatro Aberto, foi a primeira vez que um espectáculo ficou em cena durante perto de dois anos, com salas esgotadas, o que permitiu às canções crescerem e ganharem força. Ultrapassada uma fase em que José Mário Branco chegou a propor ao público que contribuísse para a gravação do disco, pré-comprando-o pela quantia de 500 escudos (cerca de 800 pessoas responderiam ao apelo), "Ser Solidário" encontraria por fim uma editora interessada, a Edisom, que o lançaria a 14 de Abril de 1982. Em termos musicais, o álbum espelha as tensões psicológicas e as contradições com que o seu autor de debatia. "Quase uma briga de estilos", em que vários géneros musicais explodem como estilhaços em todas as direcções. "É uma coisa e o seu inverso". Dialéctica entre experiências já realizadas com "o jazz, o fado, as marchas populares, a música de raiz tradicional" e o "contacto com um património pessoal", na "reconciliação" do músico com o próprio passado. José Mário Branco define numa palavra o seu estado de espírito nessa época: "Inquietação", título de uma das canções do álbum. Confusão, oportunismo, indiferença, provincianismo, cinismo. Eis as linhas com que se cosia a sociedade portuguesa onde, cada um a seu jeito, deu o sentido que mais lhe convinha à palavra revolução. É este estado de coisas que "FMI" vem ferir como um cutelo, sem poupar ninguém. «É o produto de uma grande dor, uma dor que me deu. Numa noite, em Fevereiro de 1979, já deitado para adormecer, começou a rezinar-me uma parte de um tema antigo, em que glosava o início de "Os Lusíadas", e a virem-me as palavras soltas, quase em escrita mental automática, de jorro. Um texto profundamente confessional e catártico, uma conversa que me é permitida exclusivamente com a gente da minha geração... E na qual as outras gerações (a de antes e a de depois) são só atingidas por tabela».
Citando Fernando Magalhães, "Ser Solidário" «é um álbum de ruptura, de inquietação e de procura de novas formas musicais que pudessem conter e responder à incandescência criativa das palavras, mais desesperadas e, paradoxalmente, carregadas de esperança. Testemunho de um homem só, estigmatizado pela sua coragem e pela sua diferença, "Ser Solidário" é, em paralelo, o testemunho de uma geração que não o soube compreender. Mais do que o hino "Eu vim de longe, eu vou p'ra longe", ou o sarcasmo populista transformado em êxito radiofónico de "Qual é a tua, ó meu?", é o título-tema que melhor reflecte essa relação de amor-ódio com a mediocridade, ontem como hoje, vigente neste quintal lusitano. Onde seria de supor a declaração linear, José Mário Branco dispara a ambiguidade, bem expressa na derradeira quadra do disco: "De como aqui chegar não vale a pena/ Já que a moral da história é tão pequena/ Que nunca por vingança eu te daria/ No ventre das canções sabedoria". [...] Gravado ao vivo [no Teatro Aberto, em Maio de 1981], "FMI", nos 25 minutos mais violentos e catárticos de sempre da música popular feita em Portugal, é o equivalente musical da "Cena do Ódio", de Almada Negreiros. A lucidez e a raiva levadas ao extremo, num libelo de vida e de morte contra o sistema, mas também o grito e o choro, a nudez absoluta de um homem que se expôs por inteiro» (Fernando Magalhães, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa", Público/FNAC, 1998).


Baladas e Fados de Coimbra, de José Afonso
(LP, Edisco, 1982; CD "Os Vampiros", Edisco, 1987)


Em 1982 é editado, pela Edisco, o LP "Baladas e Fados de Coimbra", uma compilação que reúne as baladas (e ainda um fado, "Amor de Estudante") que foram gravados por José Afonso para os EPs "Balada do Outono" (1960), "Baladas de Coimbra" (1962) e "Baladas de Coimbra" (1963), todos com chancela da Rapsódia. Com letras e músicas de José Afonso, salvo onde indicado, o alinhamento é o seguinte: "Os Vampiros", "Menino d'Oiro", "Canção do Vai... e Vem" (poema de Paulo Armando com estribilho do cancioneiro algarvio / música de José Afonso), "Senhor Poeta" (poema de António Barahona, Manuel Alegre e José Afonso / música de José Afonso), "Tenho Barcos, Tenho Remos" (Popular / José Afonso), "Vira de Coimbra" (Popular / arr. António Portugal), "Menino do Bairro Negro", "As Pombas" (poema de José Afonso / música de Luís Andrade Pignatelli), "No Lago do Breu", "Canção Longe" (Popular-Açores), "Amor de Estudante" (Popular / arr. Machado Soares-Paradela de Oliveira) e "Balada do Outono". De notar que o tema instrumental "Morena" (Arr. Artur Paredes) que integrava o EP de 1960 foi substituído nesta compilação pelo instrumental "Canção Longe", executado à viola por Rui Pato (a versão cantada faz parte do álbum "Baladas e Canções", de 1967).
«"Menino d'Oiro, dedicada ao seu primeiro filho [José Manuel], é a redescoberta de uma ternura que até então a música portuguesa dificilmente se atrevia a abordar. Musicalmente distinguia-se já do fado de Coimbra, não só pelo acompanhamento mais simples (uma viola, tocada pelo então adolescente Rui Pato, que aqui iniciou a sua parceria com Zeca), como pela própria concepção e pelas inflexões vocais, mais determinadas pelo texto do que pelas exigências do "estilo", tornando-se elas próprias com­ponentes da criação melódica. Tanto "Os Vampiros" como "Menino do Bairro Negro" [inspirado nos meios sociais miseráveis do Bairro do Barredo, no Porto] seriam, pouco tempo depois, proibidos pela Censura, originando a edição de outro EP, em que estes temas surgiam em versão instrumental.» (cit. Viriato Teles). Destaque ainda para a belíssima "No Lago do Breu", «balada de inspiração Brassens, [que] define simultaneamente um estado de espírito e uma autobiografia, uma crise de consciência (destruição do sentimento de remorso) e um meio social (os prostíbulos do "Terreiro da Erva" ou os seus sucedâneos mais ou menos bem iluminados)» (José Afonso, in "Cantares José Afonso", 1966).
Sobre a génese da balada coimbrã encetada por José Afonso e a repercussão que teria na música portuguesa, é oportuno dar a palavra a Viriato Teles: «Qualquer história da música popular portuguesa que um dia se venha a escrever terá como ponto de referência obrigatória o roteiro musical coimbrão dos anos 50 e 60, com todas as suas tradições e características, a sua boémia, as suas canções e as suas lutas. Coimbra foi, efectivamente, o ponto de partida da quase totalidade das experiências musicais que, de uma forma mais ou menos activa, se opunham àquilo que João Paulo Guerra designou de nacional-cançonetismo. Por ali passaram Manuel Freire, Adriano Correia de Oliveira, Vieira da Silva e muitos outros. Dali receberam influências determinantes a quase totalidade dos chamados baladeiros e mesmo alguns dos cantores surgidos já depois do impulso inicial do movimento, como foi o caso de Fausto. A liderança insubstituível de José Afonso em todo o processo é coisa de que actualmente já ninguém se atreve a duvidar. No princípio era o fado, cantigas simples (embora não necessariamente simplistas) geradas a partir das vivências estudantis, das alegrias e tristezas das noites de Coimbra. Tratando-se de uma forma muito específica de folclore urbano, mais limitado em termos sociais do que o fado de Lisboa por estar praticamente circunscrito ao meio académico, o fado de Coimbra raras vezes conseguiu ultrapassar as fronteiras que lhe eram impostas pelas suas características tipicamente regionais. Os primeiros grandes contributos para a transformação e consequente evolução do fado de Coimbra surgiram através de alguns nomes importantes como Artur Paredes, ao nível técnico e instrumental, Edmundo Bettencourt, Francisco Menano, José Boavida. "Do Choupal até à Lapa / foi Coimbra os meus amores", cantava Bettencourt. E foi ultrapassando estes limites meramente citadinos que Zeca Afonso se apercebeu de uma nova realidade que já não cabia apenas na estrutura melódica de um fado mas antes rasgava esses horizontes e exigia a criação de novos cantares».


Encontros, de Pedro Caldeira Cabral
(LP, Orfeu, 1982)


Antes de mais, um pequeno intróito sobre o percurso de Pedro Caldeira Cabral. Embora tenha acompanhado numerosos fadistas e actuado, como elemento integrante, na Orquestra Típica da Emissora Nacional e até gravado o seu primeiro disco, "Guitarra Portuguesa", em 1969 (aos 19 anos de idade), o músico acaba por se notabilizar na execução de música antiga e na construção de instrumentos antigos. Recorde-se a fundação e direcção do grupo Musica Ficta (1978), especializado na execução de música dos séculos XIII a XVI com instrumentos da época e, em 1980, do grupo Lusitani Musicis, dedicado à música dos séculos XVI e XVII. Posteriormente, fundaria e dirigiria os agrupamentos La Batalla (música trovadoresca) e Concerto Atlântico (música do tempo dos Descobrimentos). Ainda nos anos 70, Pedro Caldeira Cabral colabora como executante de guitarra portuguesa (e outros instrumentos) em trabalhos de José Afonso, Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira, Teresa Silva Carvalho, Pedro Barroso e Vitorino, tendo sido este último quem o impulsiona para a gravação de "Encontros". E é graças a este disco de guitarra portuguesa que o músico se revela efectivamente como o mais exímio intérprete solista do instrumento, logo depois de Carlos Paredes, alcançando de modo francamente decisivo um lugar de destaque no mundo da música portuguesa. Mas houve logo quem tentasse fazer a comparação do seu trabalho ao de Carlos Paredes. Pedro Caldeira Cabral faz questão se separar as águas: «O que eu busco hoje em dia é uma atitude muito diferente da do Paredes em termos de prática musical. Estou muito mais virado para o improviso, a música feita no momento, restaurando uma prática antiga que acabou com pessoas como o Armandinho e os guitarristas de Lisboa dos anos 30. Isto é, aliás, uma coisa curiosíssima e as pessoas que estão ligadas à música nunca tentaram pôr em paralelo, por exemplo, o Armandinho e os guitarristas de jazz norte-americanos da sua época. Existe uma semelhança espantosa entre eles! Aquilo que eu faço reflecte um pouco essa prática. A música do Paredes, por outro lado, reflecte uma certa influência da música clássica – Mozart, Beethoven, Haydn, etc. – e tem outras componentes muito próprias. E para além disso há a sua expressão pessoal que ninguém pode imitar sem cair no ridículo. Cada um tem a sua personalidade como instrumentista».
Com produção de Vitorino, e acompanhado à viola por Fernando Alvim e Francisco Perez e, no contrabaixo, por José Eduardo, Pedro Caldeira Cabral toca no disco os seguintes temas, todos da sua autoria: "Encontros", "Canção", "Variações em dó menor", "Prelúdio", "Miscelânea", "Valsa", "Entrada", "Improviso à partida", "Algarve", "Estudo em acordes" e "Retorno". Parafraseando Mário Correia, «"Encontros" proporciona um encontro com a guitarra portuguesa ao qual não podemos faltar» (in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984).


Amália Fado, de Amália Rodrigues
(LP, Columbia/VC, 1982; CD, EMI-VC, 1992)


Em Novembro de 1982, Amália Rodrigues publica "Amália Fado", um novo álbum de estúdio em que revisita o início da sua carreira (anos 40 e 50) regravando onze fados, todos com música de Frederico Valério: "Ai Mouraria" (Amadeu do Vale), "Maria da Cruz" (Amadeu do Vale), "Que Deus me Perdoe" (Silva Tavares), "Boa Nova" (Amadeu do Vale), "Só à Noitinha (Saudades de Ti)" (Amadeu do Vale), "Fado Malhoa" (José Galhardo), "Fado do Ciúme" (Amadeu do Vale), "Confesso" (José Galhardo), "Não sei Porque te Foste Embora" (José Galhardo), "Sabe-se Lá" (Silva Tavares) e "Amália" (José Galhardo). Com produção de João Belchior Viegas e captação de som de Hugo Ribeiro, o acompanhamento instrumental é da responsabilidade de José Fontes Rocha e Carlos Gonçalves (guitarra portuguesa), Jorge Fernando (viola) e Joel Pina (viola baixo).
O disco atinge o 5.º lugar do top de vendas de álbuns compilado pela revista "Música & Som".
Vítor Pavão dos Santos, o grande biógrafo de Amália, comenta assim o disco: «Quem como eu, cresceu ao sol e à chuva destas cantigas, se habituou a cantarolá-las rua fora, vida fora, há-de agora surpreender-se de as reencontrar reinventadas pela voz que com elas se confunde, ignorando os requebros antigos, dando força onde antes havia lamento, com todo o poder do passado ao serviço da criatividade do presente, cantando como sempre as cantou e, ao mesmo tempo, como se nunca as tivesse cantado».
Miguel Esteves Cardoso, já de outra geração, discorre desta maneira: «Com este disco, Amália decidiu ser menina outra vez. Ameninou, e essa meninice amenina-nos também. Mima-mos como uma mãe, e faz-nos filhos, amantes, maridos, pais, irmãos. Faz de nós o que quer, o que nós queremos que ela faça. Faz-nos chorar, rir, saudade, amor. A cantar claramente as suas canções mais meninas. As antigas que são novinhas, as velhinhas que são as mais recém-nascidas. Porque é que a minha ignóbil geração a perde tanto, perdendo tanto tempo com perdigotos e perdigueiros, roufenhos e roqueiros, quando há a Amália para ganhar? Não a merecemos, não. Isto embora, como geração apenas, nunca a pudéssemos merecer, por muito bem que a quiséssemos e trouxéssemos para dentro de nós. Porque a única coisa que merece a Amália é Portugal-todo, oitocentos anos para trás e para a frente. E nós na pequena parcela que nos calhou dessa infinita temporada, apenas podemos chorar a alegria, de poder tê-la. Tal como ela, lá dentro, na voz, nos tem a todos nós. Este disco da Amália não é apenas um glorioso monumento nacional. É mais. É uma pequena nação. Sejamos reverentes no modo como ela nos comove. Seja: deixemo-nos comover. Não sejamos cegos na forma como ela nos deslumbra. Seja: deixemo-nos deslumbrar» (Miguel Esteves Cardoso, 21.10.1982).


Ritual, de Rão Kyao
(LP, Danova, 1982; CD, Groove/Movieplay, 2002)


Rão Kyao (nome pelo qual é conhecido o cidadão João Ramos Jorge), antes de se tornar o popular flautista de bambu que hoje todos conhecem, tornou-se notado como saxofonista de jazz. Foi mesmo o primeiro músico português a gravar um disco do género, "Malpertuis", no ano de 1976. Com "Fado Bailado" (Polygram, 1983), em que, com o seu saxofone, dá voz a clássicos do fado o seu nome extravasa o círculo restrito do jazz e chega ao grande público. Essa súbita popularidade, não muito bem vista por certa crítica, sairia ainda mais reforçada com o álbum "Estrada da Luz" (Polygram, 1984), já na qualidade de flautista. Entretanto, gravara "Bambu" (1977), "Goa" (1979) e "Live at Cascais" (1980), este gravado na 10.ª edição do Festival Internacional de Jazz de Cascais, a convite de Luís Villas-Boas. Em 1982, com chancela Danova, vem a lume "Ritual", álbum que o confirma como a mais importante figura do meio jazzístico português e que lhe vale um Se7e de Ouro na categoria de Jazz/Blues. Além da qualidade musical de um instrumentista/compositor de excepção, o disco é digno de nota por outro aspecto marcante: o fascínio de Rão Kyao pela música oriental (no caso, a indiana) e a colaboração que solicita a músicos desses quadrantes, esboçando assim o caminho que trilharia posteriormente enquanto flautista.
Com produção de Ramon Galarza, e música da autoria de Rão Kyao em todos os temas, o disco abre com "Thilana" (baseado num original do sul da Índia), seguindo-se "O Canto das Aves", "Blues Indian", "Dança Ritual", "Chandrakuns", "Adoração", "Swing Funk", "Festa" e "Bonzos". Além de Rão Kyao (saxofone tenor, flauta, tambura, piano), o elenco de músicos é composto por António Pinho [Vargas] (piano), José Eduardo (contrabaixo), Mário Barreiros (bateria), Louie Banks (piano), Carl Peters (baixo), Ramesh Shotam (percussão) e Ranjit Barot (bateria).
O álbum foi reeditado em CD pela Movieplay, em 2002, tendo a propósito, escrito Jorge Pinho: «"Ritual" é o disco que antecede imediatamente "Fado Bailado". Nele, Rão Kyao enceta já uma colaboração com músicos indianos. No entanto, é o jazz que ainda domina, apesar de procurar já os terrenos da fusão, revelando-se menos espontâneo que na gravação feita em Cascais. Como curiosidade, saliente-se que entre os portugueses que juntam aqui a "voz" ao saxofonista contam-se nomes que hoje não merecem qualquer contestação, casos de José Eduardo, Mário Barreiros e António Pinho (ainda sem utilizar o apelido Vargas)» (in "A Capital", 19.10.2002).


Inda Canto, Inda Danço, de Maio Moço
(LP, 1987)


Vítor Reino, que após o 25 de Abril fizera parte do grupo Almanaque ao lado, entre outros, do etnomusicólogo José Alberto Sardinha, e posteriormente (1983) fora um dos fundadores da Ronda dos Quatro Caminhos no seio da qual foi responsável pela selecção musical, estudo e textos explicativos, arranjos, produção e direcção artística dos álbuns "Ronda dos Quatro Caminhos" (Rádio Triunfo, 1984) e "Cantigas do Sete-Estrelo" (Rádio Triunfo, 1985), cria em meados de 1985 um novo grupo a que dá o nome de Maio Moço. Objectivo: «Dar continuidade e expressão artística ao vasto trabalho de recolha da tradição musical portuguesa que vinha empreendendo com o reconhecido especialista José Alberto Sardinha» e para levar a cabo «a árdua mas aliciante tarefa de lutar pela recuperação e revitalização da vasta e valiosa tradição musical portuguesa, criando uma nova música de raiz tradicional em que as ricas e fascinantes sonoridades tão características dos nossos velhos instrumentos populares se "casam" com os modernos recursos da tecnologia actual». Assim, em 1987, o grupo Maio Moço publica o seu primeiro trabalho discográfico, intitulado "Inda Canto, Inda Danço". Integralmente dedicado às danças tradicionais, o álbum divide-se em duas partes: Danças de terreiro: "Verdegar", "Cana verde", "Moda de gaita", "Quando eu era pequenina", "Tirana", "Baile das desfolhadas", "Inda canto, inda danço"; Danças de salão: "Dança do Maio Moço", "Valsa antiga", "Dança dos Lanceiros", "Valsa de dois passos", "Verde-gaio", "Quadrilha", "Dança da Besbilhana". Todos os temas têm por base originais recolhidos por José Alberto Sardinha, excepto "Quando eu era pequenina" (Arquivos sonoros de Monsanto) e "Tirana" (recolha de Artur Santos).
Com direcção musical, adaptações e arranjos de Vítor Reino que também assegura a execução de acordeão, concertina, harmónio, sintetizador, flautas, gaita-de-foles, ponteira, viola, caixa de ritmos (programação), palmas, voz solo e coros, completam o elenco do Maio Moço: Ana Rita Reino (bandolim, banjo, cavaquinho, guitarra portuguesa, adufe, campainhas, ticletis, palmas, voz solo e coros), Mário Gameiro (viola, viola braguesa, guitarra portuguesa, ferrinhos, claves, palmas, voz solo e coros) e Sérgio Contreiras (bombo, castanholas, guizos, pandeireta, caixinha chinesa, conchas, pinhas, palmas, voz solo e coros). Participam ainda como convidados: Jorge Lé (violino), Pedro Casaes (baixo, palmas e coros), Alice Santos (palmas e coros), Elsa Lampreia (palmas, voz solo e coros), Ilda Grencho Marquês (palmas e coros), Inocência Monteiro (adufe), José Beato (palmas e coros), Maria da Encarnação Portugal (palmas, voz solo e coros) e Maria Manuel Mendes (palmas e coros).
O grupo apresenta assim a sua proposta: «O presente trabalho discográfico procura trazer ao grande público, de uma forma ao mesmo tempo rigorosa e inovadora, algumas das mais representativas danças – de terreiro e de salão – do nosso país, desvendando, simultaneamente, certas facetas hoje quase totalmente ignoradas da música tradicional portuguesa. É o caso das velhas danças de salão, actualmente caídas no completo esquecimento e votadas ao abandono, mas que, sem dúvida, correspondem a uma necessidade profundamente enraizada na gente portuguesa e em cada um de nós. Não temos pejo algum em acreditar que estas belas danças poderão ainda reconquistar o papel fundamental que outrora lhes era reservado nos momentos de expansão colectiva».


Fados Velhos, de Ronda dos Quatro Caminhos
(LP, Contradança, 1987; CD, Movieplay, 1998)


Também de 1987, cabe nomear o álbum "Fados Velhos" (Contradança), da Ronda dos Quatro Caminhos, outro dos grupos de referência da música tradicional portuguesa. Ao contrário do que o título possa sugerir não se trata de fados antigos de Lisboa ou mesmo de Coimbra. Pelo menos à primeira vista. Em nota apensa ao disco, o grupo elucida: «Para não enveredarmos por caminhos que não são os nossos, diríamos resumidamente que este é um disco de canções tradicionais às quais o povo chama fados, e outras, que talvez também se pudessem chamar fados. Cremos que o fado é sobretudo como se canta. Se ao "Siga a Rusga" substituíssemos o instrumental das rusgas minhotas por uma guitarra e uma viola, e se à voz déssemos um pouco mais de intenção, talvez pudesse ser cantado em Alfama... E que dizer do "Fadinho" ou do "Fado Velho"? E serão o "Delicado Pezinho" e o "Fado do Estudante" dos Açores? Ou fazendo a pergunta de outra maneira, não serão os fados de Coimbra açorianos? Enfim, as perguntas suceder-se-iam e, evidentemente, as respostas não são dos nossos caminhos.» Os caminhos da Ronda são as recuperações e as soberbas recriações que desde a sua formação, em 1983, vem fazendo do nosso riquíssimo património musical tradicional. Concebido com base em recolhas da própria Ronda (António Prata – viola de arame, violino; António Silva Lopes – guizos e voz solo; Daniel Completo – viola e coros; Fátima Valido – banjo, bandolim, cavaquinho, flautas e voz solo; João Cavadinhas – viola, viola braguesa e voz solo), de Armando Leça, Artur Santos e José Alberto Sardinha, "Fados Velhos" é um dos mais fascinantes trabalhos discográficos que até hoje se fizeram na área da música tradicional. Um disco a (re)descobrir com urgência!


Olho de Fogo, de Janita Salomé
(Transmédia, 1987)


Na senda de "A Cantar ao Sol" (EMI-VC, 1983) e "Lavrar em Teu Peito" (EMI-VC, 1985), Janita Salomé grava, em 1987, o LP "Olho de Fogo", o seu quarto álbum a solo, com chancela da Transmédia. Com produção e direcção musical de José Mário Branco e a colaboração de José Peixoto e de João Lucas nos arranjos, Janita Salomé canta poemas da sua autoria ("Quando a luz fechou os olhos", "Azul Branco"), de Luís Andrade Pignatelli ("Cantata", "Os Amantes"), José Bebiano ("Poema"), e dos poetas do Al-Andaluz, Al-Mutamid ("Ao Passar Junto da Vide") e Ibn Sara ("O Zéfiro e a Chuva", "Estrela Cadente"). Integram também o alinhamento duas versões de temas tradicionais ("Senhora do Almortão" e "Saias do Freixo em Gibraltar"). Entre os instrumentistas, além de Janita Salomé (bendir, darbuka, adufe) e José Mário Branco (harpa sequenciada, sintetizador, timbalão) contam-se João Lucas (piano, sintetizadores), José Peixoto (guitarra acústica, baixo, harpa sequenciada, piano-marimba), Irene Lima (violoncelo), Carlos Zíngaro (violino), Fernando Flores (contrabaixo), António Serafim (oboé), Paulo Curado (flauta, sax soprano e tenor), Tomás Pimentel (trompete, flugelhorn), José Martins (percussões), entre outros. Nas vozes colaboraram os irmãos Vitorino e Carlos Salomé e as filhas de Janita, Marta e Catarina Salomé. De assinalar também o arranjo da compositora Constança Capdeville em "Senhora do Almortão", tema tradicional da Beira Baixa, a região de Portugal que, segundo os etnomusicólogos, melhor conseguiu conservar a influência árabe (adufes, por exemplo). A apresentação pública do disco teve lugar na Aula Magna (Lisboa) e no Teatro Carlos Alberto (Porto). O álbum valeu ao cantor o Troféu Nova Gente para o melhor intérprete masculino de música ligeira.
Tal como sucede com outros discos da Transmédia (e da Sassetti), este é um álbum que ainda não conheceu edição em CD. Fica aqui o meu apelo aos proprietários das matrizes para a necessária e urgente reedição desses valiosos tesouros, de modo a que fiquem acessíveis a quem os desejar fruir. A defesa e promoção da cultura portuguesa também passam por aí!


Para Além das Cordilheiras, de Fausto Bordalo Dias
(LP, CBS, 1987; CD, CBS, 19??)


Para "Além das Cordilheiras" é o título do álbum que Fausto publica em 1987, com chancela da CBS. Depois de "Por Este Rio Acima" e de "O Despertar dos Alquimistas", Fausto já não tinha nada para provar e este trabalho vem apenas evidenciar a versatilidade criativa de um autor, compositor e intérprete de excepção da música portuguesa. Portugal e Espanha, dois países ainda não há muito saídos de prolongadas ditaduras isolacionistas, haviam sido admitidos na Comunidade Europeia a 01 de Janeiro de 1986, e Fausto, aproveitando o pretexto, concebe um álbum inspirado no encontro de um Portugal, ainda pouco europeu em vários aspectos, com a velha Europa civilizada, de além Pirenéus. É o retrato de uma nação que, perdido o império colonial, lentamente, se vira a norte mas cuja memória ainda repousa a sul. Ao longo das canções do disco, Fausto conduz o ouvinte de Lisboa a Berlim, estrada fora. O que na era de Quatrocentos e Quinhentos fora uma epopeia marítima, transforma-se neste fim de século XX na (re)descoberta de paradigmas económicos, sociais e culturais que durante séculos permaneceram distantes. Afirmando sempre a sua condição de português, Fausto liga-se mais do que nunca, ao seu continente de origem, "sem preconceitos, mas também sem cedências". Com produção de Eduardo Paes Mamede, que partilha os arranjos como o próprio compositor, Fausto interpreta nove temas, todos da sua autoria: "Lusitana", "Toda a Europa à Proa", "Foi por Ela", "Prego a Fundo", "Ali Está a Cidade", "Porque Me Olhas Assim", "Eu Cá Sou do 'Midi'", "Europa, Querida Europa", e "De Ocidente a Oriente". A execução instrumental é assinada pelo do próprio Fausto (guitarras acústicas) e por um elenco de músicos de alto gabarito: João Lucas (teclados), André Sousa Machado (bateria), Rui Luís Pereira "Dudas" (guitarras eléctricas), Pedro Casaes (baixo), Fernando Molina (percussões), Edgar Caramelo (saxofone), Tomás Pimentel (trompete), Eduardo Paes Mamede (flautas) e António Pinheiro da Silva (programação de sintetizadores), sendo os coros feitos por Rui Vaz, Fausto, João Lucas, André, Fernando Molina, Pedro Casaes e Eduardo Paes Mamede (creditado como Ed).
O disco seria distinguido com um Se7e de Ouro (na categoria de Música popular/tradicional) e com o Prémio José Afonso, logo na sua primeira edição. Zeca Afonso que contou com a estreita colaboração de Fausto na gravação de alguns dos seus álbuns, terá certamente ficado contente que tenha sido ele o primeiro nome a figurar na lista de contemplados com o Prémio de que é patrono. E se o Prémio já existisse em 1982, quando José Afonso ainda pertencia ao número dos vivos, estou certo que seria ele próprio a fazer questão que a distinção fosse para o álbum "Por Este Rio Acima", uma obra que muito apreciava e para a qual não deixou de chamar a atenção no concerto que deu no Coliseu dos Recreios, em Janeiro de 1983.


Pássaros do Sul, de Mafalda Veiga
(LP, EMI-VC, 1987; CD, EMI-VC, 19??)


Mafalda Veiga revela-se com o álbum "Pássaros do Sul", editado em Setembro de 1987, pela EMI-VC. Mas a sua aparição não surgiu do nada pois a par dos estudos em Línguas e literaturas Modernas, na Faculdade de Letras de Lisboa, Mafalda Veiga, já escrevia canções desde 1983. A primeira canção que escreveu no idioma materno foi "Velho" (um dos temas incluídos neste disco), com o qual em Agosto de 1984 venceu o Festival da Canção de Silves. E em 1986, grava uma série de maquetas com arranjos de António Ferro e António Vacas de Carvalho, após o que Nuno da Câmara Pereira a convida para, em Fevereiro de 1987, participar nos seus espectáculos de Lisboa e Porto. Pouco depois, assina contrato discográfico com a EMI-Valentim de Carvalho, e inicia as gravações do seu álbum de estreia, para o qual a editora escolhe como produtor Manuel Faria, teclista dos Trovante. O resultado das sessões de gravação é o álbum "Pássaros do Sul" que inclui dez originais todos da autoria de Mafalda Veiga: "Planície", "O Menino da Sua Mãe" (poema de Fernando Pessoa), "Restolho", "Sol de Março", "Charco", "Balada de Un Soldado", "Velho", "Me Escapé con Mi Guitarra", "Nós" e "Soslaio". Com produção e direcção musical de Manuel Faria, que co-assina os arranjos com António Ferro, no elenco de instrumentistas contam-se: António Ferro (baixo eléctrico), José Salgueiro (bateria), Renato Júnior (piano), Luís Fernando (guitarra eléctrica), Rui Luís Pereira (guitarra de nylon e guitarra de 12 cordas), João Nuno Represas (percussão), Mário Gramaço (saxofone tenor), Artur Costa (saxofone soprano e concepção de metais em "Sol de Março"), Fernando Júdice (baixo eléctrico em "Nós") e Manuel Faria (Yamaha DX-7 em "Balada de Un Soldado" e "Soslaio").
Bem recebido pela crítica, o disco só é acusado de uma coisa: a de ter uma sonoridade próxima da dos Trovante. O que para alguns parecia um defeito para outros era uma virtude. O tema "Planície", escolhido como single de apresentação, torna-se rapidamente um grande sucesso junto do público, alcançando uma popularidade que ultrapassa as próprias expectativas da editora. O álbum esgota a primeira tiragem numa semana, e atinge o 4.º lugar do top de vendas de álbuns chegando rapidamente a disco de prata (10 mil exemplares vendidos). "O Menino da Sua Mãe" e "Sol de Março" tornar-se-ão igualmente expressivos êxitos, graças à divulgação radiofónica que então mereceram. "Pássaros do Sul" seria – e muito justamente – distinguido com o Se7e de Ouro Revelação. Hoje, e apesar da verdura da voz de Mafalda Veiga, continua a ser o melhor disco da cantora, a qual posteriormente enveredou por uma via mais ‘mainstream’ e, como tal, menos original e interessante.


Mar d’Outubro, de Sétima Legião
(LP, EMI-VC, 1987; CD, EMI-VC, 1988)


Depois da grande revelação que foi "A Um Deus Desconhecido" (1984), logo considerado um dos grandes discos dos anos 80, o grupo Sétima Legião, apresenta, em 1987, o álbum "Mar d’Outubro".
O grupo era então constituído por Rodrigo Leão (baixo, voz, guitarras), Pedro Oliveira (guitarra, voz principal), Nuno Cruz (bateria), Paulo Gabriel (gaita-de-foles, bombarda, flautas), Paulo Abelho (percussões), Ricardo Camacho (teclados, guitarras e programação rítmica), Gabriel Gomes (acordeão), participando ainda no disco Luís San Payo (percussão), Francis (guitarra e coros), Marco Santos (voz e coros) e Tiago Faden (guitarra portuguesa).
Com letras de Francisco Menezes e músicas assinadas pelos Sétima Legião, em "Mar d’Outubro" são incluídos dez temas: seis cantados ("Sete Mares", "Noutro Lugar", "Saudades", "Além-Tejo", "A Reconquista" e "Os Limites do Mar") e quatro instrumentais ("Noites Brancas", "Este Amor Que Nos Separa", "O Baile (das sete partidas)" e "Onde Tem Estado o Outono?").
De novo aclamado pela crítica, "Mar d’Outubro" torna-se rapidamente um expressivo sucesso comercial, esgotando a primeira edição ao fim de uma semana, atingindo o Disco de Prata, por vendas superiores a 10 mil exemplares; o primeiro tema "Sete Mares" torna-se um hino, mas "Noutro Lugar" é igualmente um êxito de rádio e "Além-Tejo" e "A Reconquista" destacam-se igualmente. O disco é apresentado em concertos com lotação esgotada, no Auditório Carlos Alberto (Porto) e na Aula Magna (Lisboa), actuando na primeira parte os debutantes Madredeus. O sucesso obtido pelos Sétima Legião e, depois pelos Madredeus e também por Rodrigo Leão a solo, veio provar que em Portugal se pode fazer música moderna de qualidade, fora do estafado domínio do pop/rock, e que se devidamente promovida o público não deixa de ser receptivo. Outro aspecto que merece ser elogiado nos Sétima Legião é a aposta na música instrumental, uma importante vertente da nossa música que sempre teve lugar na rádio e que os fazedores de ‘playlists’, de forma absolutamente irresponsável e criminosa baniram das estações nacionais. É caso para perguntar: nomes referenciais como Carlos Paredes, Rão Kyao ou Júlio Pereira teriam possibilidade de vingar no actual estado de coisas?
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Terra Firme, de Trovante
(LP, EMI-VC, 1987; CD, EMI-VC, 1988)


Em Novembro de 1997, é editado "Terra Firme", o sétimo e penúltimo álbum de originais dos Trovante. Trabalho de charneira na carreira do grupo, o disco marca o afastamento das influências tradicionais em direcção a um som mais próximo da canção pop. O álbum coincide também com uma demarcação de funções dos diversos elementos – talvez já prenunciando a futura desagregação do grupo –, sendo que as canções e os arranjos que até aí eram maioritariamente colectivos, passam a ser assinados individualmente: João Gil assume a autoria da maior parte das composições e Manuel Faria assume a produção em parceria com o saxofonista Artur Costa. O grupo Trovante que então era constituído por Artur Costa (saxofone), Fernando Júdice (baixo), João Gil (guitarras e coros), José Martins (sintetizador) e José Salgueiro (bateria, percussão e coros), Luís Represas (voz) e Manuel Faria (piano e sintetizador), interpreta em "Terra Firme" os seguintes temas, todos com música de João Gil, salvo onde indicado: "125 Azul" (letra de Luís Represas), "Fiz-me à Cidade" (letra de João Gil), "Memórias de Um Beijo" (letra de Luís Represas), "Um Caso Mais" (letra e música de Luís Represas), "Bye-Bye Blackout" (letra de João Monge), "Noite de Verão" (poema de Manuel da Fonseca), "Sinais" (letra de João Monge), "Terra à Vista" (letra de João Gil), "Perdidamente" (poema de Florbela Espanca). Como nota curiosa, refira-se que João Gil, o grande compositor e guitarrista do grupo, intervém neste disco também como letrista, em dois temas, e como cantor solista, no tema "Fiz-me à Cidade". Nota ainda para a participação, enquanto autor, de João Monge, que viria posteriormente a afirmar-se um dos grandes letristas da música portuguesa. Depois do relativo insucesso de "Sepes" (EMI-VC, 1986), por coincidência talvez o melhor de toda a discografia, "Terra Firme", obtém os favores do público tornando-se rapidamente o álbum mais vendido de sempre da carreira dos Trovante, com praticamente todos os seus temas a serem tocados na rádio. O Disco de Prata surge ao fim de uma semana de mercado e o álbum atingirá o 2.º lugar do top oficial de álbuns, mantendo-se entre os dez discos mais vendidos em Portugal até Março de 1988. Apesar do retumbante sucesso que alcançou, e visto objectivamente e à distância, "Terra Firme" não pode ser considerado o melhor trabalho dos Trovante, mas mesmo assim merece ser referenciado. Vale sobretudo por dois temas de antologia da música portuguesa: "Memórias de Um Beijo" e "Perdidamente", este sobre o soneto "Ser Poeta", de Florbela Espanca.


Os Dias da Madredeus, de Madredeus
(2LP, EMI-VC, 1987; CD, EMI-VC, 1988)


Em Julho de 1987, os Madredeus (Pedro Ayres Magalhães – guitarra clássica, Rodrigo Leão – teclados, Gabriel Gomes – acordeão, Francisco Ribeiro – violoncelo, Maria Teresa Salgueiro - voz) gravam na igreja do convento de Xabregas, o seu disco de estreia, de título genérico "Os Dias da Madredeus". O duplo LP é lançado pela EMI-VC a 7 de Dezembro do mesmo ano e é tal o entusiasmo com que o público e a crítica o acolhem (distinguido com o Se7e de Ouro na categoria de Música Ligeira), que a primeira tiragem em vinil se esgota em pouco tempo (a edição em CD sairá em Novembro de 1988). Embora com algumas limitações, sobretudo de ordem técnica, ao nível do som, o trabalho não deixa de ser notável pelo generoso desempenho dos músicos e pela fresca voz de Teresa Salgueiro em temas como "A Sombra" (à memória de António Variações), "A Vaca de Fogo", "Adeus... e Nem Voltei", "A Cantiga do Campo", "Fado do Mindelo", "A Cidade" e "Amanhã", não se devendo esquecer os instrumentais "As Montanhas", "A Península", "A Marcha da Oriental" e "A Andorinha". "Os Dias da Madredeus" marca o início da ascensão fulgurante de um projecto que rapidamente se afirma como uma das maiores referências da música portuguesa e tornando-se, por justíssimo mérito, o grupo português de maior projecção internacional.
Segundo Jorge Dias, "Os Dias da Madredeus" «para além se aquele que lançou a semente à terra, é um disco que ainda hoje mantém alguns dos melhores momentos da sua criação. Titubeante ainda, mas totalmente descomprometido ante estratégias que não as que levavam directamente à música, encerra pérolas que estabelecem um equilíbrio irrepetível entre fragilidade e rudeza, entre inocência e solenidade, e que na sua beleza são plenamente capazes de provocar arrepios na espinha a quem os ouça».
Recuemos ao germinar do grupo, citando ainda Jorge Dias: «Criados em 1986, do encontro entre Pedro Ayres Magalhães e Rodrigo Leão, os Madredeus começaram por ser um projecto que teve a sua origem em várias vontades. A primeira era para Pedro Ayres, o facto de "poder continuar a compor para língua portuguesa". A segunda, a de que queria tocar guitarra clássica, instrumento que já tinha tocado nos Heróis do Mar e que "era da sua predilecção". Depois havia a necessidade "de criar um espectáculo que fosse ecologicamente adequado a um meio em que os músicos que querem fazer da música a sua vida pudessem trabalhar" e que tivesse grande mobilidade, isto é, que pudesse tocar com muita ou pouca aparelhagem. Por último, porque Pedro Ayres tinha encontrado em Rodrigo Leão um bom interlocutor para discussões acerca da "poesia portuguesa naquilo que ela tem de mais universal e mais peculiar". O processo foi lento. O disco só aconteceu ao fim de um ano e meio dos encontros terem começado nas suas casas e depois na igreja de Madredeus, que entretanto se tinha transformado em local de ensaios. Depois, também, do surgimento de Teresa Salgueiro, "para aí a décima quarta pessoa" que surgiu num processo de audições. E foi quando ela apareceu que o esforço começou verdadeiramente: "já existiam algumas canções, mas o repertório dos Madredeus deve ser visto sob essa luz, a de que foi composto para explorar ao máximo as características dramáticas e musicais da sua voz. Para que ela cantasse as letras com credibilidade e adequação". As gravações aconteceram em apenas três dias. A ideia da edição tinha sido bem aceite pela EMI-Valentim de Carvalho, dada a boa relação que Pedro Ayres mantinha com os seus responsáveis desde a Fundação Atlântica. Mas o orçamento foi pouco discutido, tendo ficado à volta de 250 contos. O método de gravação foi inovador na altura: directamente para digital em duas pistas. "O álbum foi gravado no primeiro DAT que existiu cá. Nós tínhamos tido tempo para compor algumas canções, mas a construção do grupo também era a de uma escola de música. E era muito melhor gravar a música como o grupo a fazia do que ir para estúdio confrontar os músicos com técnicas que não dominavam. Nesse sentido eu propus a gravação em directo, com o grupo a tocar em ensemble". O método de composição era basicamente colectivo. Mesmo quando o tema era de um músico, aos outros era proposto que inventassem partes que gostariam de tocar, como uma banda de rock. Um dos temas-chave do álbum é "Vaca de Fogo" cuja letra é baseada num ritual que Pedro Ayres tinha testemunhado em Barrosa, ao pé de Chaves, quando lá foi com os Heróis do Mar. "Estava lá e às tantas começo a ouvir no megafone: ‘Atenção, atenção, vai sair a vaca de fogo’. E que era aquilo? Um ataque da aldeia de baixo, com a aldeia de cima a defender-se soltando uma vaca de fogo – um indivíduo com uma armação feita de alumínio e palha, cheia de fogo de artifício e a dançar ao ritmo dos tambores". No fundo "é a representação da surpresa que um tipo vindo de Lisboa tem perante coisas tão antigas e tradicionais". Outro dos temas fundamentais do álbum é "A Sombra", dedicado a António Variações: "A letra pretendia criar a imagem da solidão. Não a do António Variações, mas a do sentir português. Só quando foi editada no disco é que lhe foi dedicada". Para além disso, e segundo o livro de Jorge Pires, "Madredeus: Um Futuro Maior" (1995), "A Sombra" era também o tema que servia para eles testarem as cantoras. Quem conseguisse cantar aquele "texto tão sinistro e melancólico quanto o título, um texto que despertava rumores com as suas referências às ruas de outrora, ao cais e a um cantar distante" passava a ser a voz do grupo. Teresa Salgueiro foi a que passou na prova vindo a dar corpo a "um formato da música de salão, com instrumentos acústicos, instrumentos a sublinhar melodias, com ou sem ritmo, e uma voz principal que cantava a poesia ou contava a história". Um formato que tinha inspiração na música trovadoresca e que para Pedro Ayres "estava directamente ligada à afirmação da nossa idiossincrasia como nação"» (in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa", Público/FNAC, 1998).


Danças de Rua, de Rão Kyao
(LP/CD, Polygram, 1987)


Depois da retumbante e algo inesperada receptividade que Rão Kyao, enquanto como flautista, alcançou com os álbuns "Estrada da Luz" (Polygram, 1984) e "Oásis" (Polygram, 1985), o músico publica, em 1987, o disco "Danças de Rua", também com chancela Polygram. Uma curiosidade: o álbum marca uma nova première de Rão Kyao: é o primeiro álbum português a ser editado simultaneamente em vinil, cassete e CD.
Como se pode inferir do título, o disco é composto maioritariamente por ritmos de dança, concebidos pelo próprio músico, tendo como fonte de inspiração diversas paragens geográficas e musicais (Índia, Brasil, Portugal), com particular incidência no Nordeste brasileiro, cujas raízes portuguesas procura explorar. São dez os temas do alinhamento: "Bombaião", "Pela Praia", "Maratona" (homenagem a Carlos Lopes), "Amor Distante", "Asa Branca" (música de Luiz Gonzaga), "Ilha do Sal", "Cor de Valsa", "Na Calma", "Dança de Rua" e "Chapéu Preto" (música de Arlindo de Carvalho).
Gravado nos Estúdios Polygram (Rio de Janeiro) e nos Estúdios Namouche (Lisboa), com produção de António Avelar de Pinho, colaboram com Rão Kyao (flautas de bambu, voz e sandália), os músicos brasileiros Sivuca (acordeão), Marcos Resende (piano, sintetizadores), Jorge Degas (baixo), Marçalzinho (tumbadoras, triângulo, caxixi, caixa, cabaça, chocalho), Marcelo Salazar (zabumba, ganzá, claves, bongós, a go-go, triângulo, tambor, timbales, chocalho, esteira, reco), e os portugueses António Chaínho (guitarra portuguesa), Rui Luís Pereira (guitarras de 6 e de 12 cordas), Jaime Santos (guitarra de 6 cordas) e João Nuno Represas (caixa, bombo, surdo).
Desde os temas mais efusivos aos mais intimistas e nostálgicos, em "Danças de Rua", Rão Kyao não deixa o seu virtuosismo e capacidade de nos encantar por mãos alheias. Quanto aos concertos que se seguem à edição do álbum, é de notar que o músico enche, pela segunda vez, o Coliseu dos Recreios, onde tem como convidados Marcos Resende e Pedro Caldeira Cabral, tocando também no Olympia, de Paris.
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Miradouro, de Júlio Pereira
(LP/CD, Transmédia, 1987; CD, CNM, 1994)


Continuando e aprofundando a exploração da electrónica encetada em "Cadói" (Transmédia, 1984) e em "Os Sete Instrumentos" (Transmédia, 1986), Júlio Pereira grava, em 1987, o álbum "Miradouro". As melodias e os ritmos tradicionais portugueses continuam a ser a matéria-prima do músico, que concebe o disco como uma paisagem musical do país, região por região. São nove os temas do alinhamento, todos da autoria de Júlio Pereira: "Miradouro", "Piano de Cavalariça", "Borda d'Água", "Verde Andar", "Trás-os-Montes", "Beladufe", "Castelo do Pastor", "Lua de Laranja" e "Al Gare".
Com arranjos e direcção musical de Júlio Pereira que partilha a produção com o técnico de som José Manuel Fortes, colaboram no disco: António Serafim, José Mário Branco, Minela, Ana Bola, Tóinas, Guida A. Silva, Rui Vaz, Vasco Gil, Janita Salomé, Cristiano Barata, Conceição Castro Alves, Orlando Costa, Virgílio da Lança, João Pestana, Virgílio G. Lança, Joaquim Fialho e José G. Lança.
Entusiasticamente recebido pelo mercado, torna-se Disco de Ouro em apenas uma semana e a distribuição internacional é garantida pela todo-poderosa Virgin. A internacionalização de Júlio Pereira continua também no plano dos concertos: Festival Printemps de Bourges (França), Londres, Cabo Verde, Amesterdão, Espanha, etc.
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Duas Faces, de Pedro Caldeira Cabral
(LP, EMI-VC, 1987; CD, EMI-VC, 1993)


Em 1997, Pedro Caldeira Cabral publica "Duas Faces", um belíssimo disco de guitarra portuguesa, no qual também toca viola acústica, viola baixo, flauta pastoril, pandeiro e crótalos, e se faz ainda acompanhar de Rui Luís Pereira "Dudas" (viola de 12 cordas), João Nuno Represas (bongós, adufe) e Francisco Perez (viola acústica). Todos os temas são da autoria de Pedro Caldeira Cabral, excepto onde indicado: "Akdeniz-Mediterrâneo", "Castro Daire", "Sons de Belmonte", "Jogo dos Sons", "Variações sobre o Fado Alberto" (sobre música original de Miguel Ramos), "Sonata em Dó Maior" (música de Carlos Seixas, transcrição e arranjo de Pedro Caldeira Cabral), "Dança dos Alfaiates", "Gestos", "Estudo em Harpejos", "Ostinato" e "Chôro de Contraponto".
Com "Duas Faces", além de enriquecer se sobremaneira a discografia da guitarra portuguesa, Pedro Caldeira Cabral prova, a quem acaso ainda tivesse dúvidas, que é um dos músicos mais notáveis e valorosos da nossa terra. Mas, a meu ver, ainda sem o reconhecimento e notoriedade que merecia. Maldita sina a de um país que substima o mérito e enaltece a mediocridade!
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Peças Imortais em Guitarra Portuguesa, de Edgar Nogueira
(LP, Metro-Som, 1987)


Em 1987, a Metro-Som, edita o LP "Peças Imortais em Guitarra Portuguesa", pelo Prof. Edgar Nogueira. Integram o álbum oito conhecidas obras/trechos da música clássica – "Voo do Moscardo" (Rimski-Korsakov), "Marcha Turca" (Mozart), "Célebre Minueto" (Boccherini), "Dança Húngara n.º 5" (Brahms), "Czardas" (Monti), "Para Elisa" (Beethoven), "40.ª Sinfonia" (Mozart), "Ave-Maria" (Gounod) – e ainda duas composições do próprio Edgar Nogueira ("Saudades do Marão" e "Lá de Portugal"). A gravação foi efectuada nos Estúdios Namouche (Lisboa), pelo técnico João Pedro de Castro, tendo Edgar Nogueira contado ainda com a colaboração de Jorge Machado (piano), José António (viola), Fernando Guiomar (viola e viola baixo) e Lelo Nogueira (viola).
Fazer versões dos chamados "hits" da música clássica nada tem de original. O carácter inédito deste registo reside simplesmente no uso da guitarra portuguesa, um instrumento tradicionalmente usado no acompanhamento do fado e à partida – segundo se supunha – sem as características requeridas para tocar dignamente este tipo de repertório. Com este trabalho, Edgar Moreira veio provar que isso não passava de uma ideia feita e que a guitarra portuguesa – técnica e expressivamente – é um instrumento de grande potencial. Potencial esse que Edgar Moreira, com o seu extraordinário virtuosismo e domínio técnico do instrumento, explorou de forma magistral e surpreendente.


Temas do Cancioneiro Português, de Opus Ensemble
(LP, His Master’s Voice/EMI Classics, 1987; CD, EMI Classics, 1998)


Em Novembro de 1987, é lançado pela EMI Classics, na série His Master’s Voice, o álbum "Temas do Cancioneiro Português", do Opus Ensemble. A gravação fora realizada no Salão Nobre do Teatro de São Carlos (Lisboa), nos dias 14 e 15 do mês anterior, pelo técnico Hugo Ribeiro.
O título deste disco é claro: trata-se de uma viagem pela música tradicional do nosso país, percorrido de uma ponta à outra – do Minho aos Açores – e ainda acrescentado com uma série de temas musicais infantis que têm resistido de geração para geração. Falta explicar que esta abordagem é protagonizada por um quarteto que, desde 1980, espalhou talento e diversidade, aproveitando ao máximo as potencialidades da violeta (Ana Bela Chaves), do piano (Olga Prats), do oboé (Bruno Pizzamiglio) e do contrabaixo (Alejandro Erlich-Oliva). O Opus Ensemble recebeu múltiplos prémios pelas suas gravações, algumas das quais de peças escritas propositadamente para o quarteto por compositores como Fernando Lopes Graça, Joly Braga Santos, Constança Capdeville, Jorge Peixinho, António Pinho Vargas, António Victorino d’Almeida, Guido Donati ou Astor Piazzolla. Mas este disco, pelo cruzamento de linguagens que consegue, ocupa um lugar à parte na carreira do grupo, capaz de levar muito a sério o que, tantas vezes, é tomado como uma brincadeira. Uma outra leitura para temas que ajudam também a desenhar o Portugal musical.
Com harmonização e instrumentação de Alejandro Erlich-Oliva, o Opus Ensemble toca vinte e seis temas, boa parte dos quais bem presentes no nosso imaginário: "Alecrim" (Baixo Alentejo), "Bailinho dos vilões" (Madeira), "Não quero que vás à monda" (Caridade, Alentejo), "O verde gaio é maroto" (Torres Vedras, Lisboa), "Indo o lavrador, à noite..." (Alcoutim, Faro), "As pombinhas da Catrina" (infantil), "Não se me dá que vindimem" (Beira Baixa), "Sete varas tem a minha saia nova" (Pegarinhos, Trás-os-Montes), "Passa, passa Gabriel" (Ilha de S. MIguel, Açores), "Ó minha caninha verde" (Santo Tirso, Porto), "Meu lírio roxo do campo" (Beja), "São Macário deu à costa" (Ilha de S. Jorge, Açores), "Saias" (Campo Maior), "Menina estás à janela" (Alentejo), "O milho da nossa terra" (Beira Baixa), "Ó-ó menino ó" (Trás-os-Montes), "O Senhor da Serra é meu" (Ribatejo), "Senhora do Almortão" (Proença-a-Velha, Idanha-a-Nova, Castelo Branco), "Boia, boia, binha" (infantil), "Fui-te ver estavas lavando" (Alentejo), "Papagaio louro" (Tomar e Santarém), "Chama Rita, chama, chama" (Santa Cruz, Funchal, Madeira), "Dança do Rei David" (Mourisca de S. João de Braga), "Senhora do Livramento" (Évora, Alentejo), "Trigo louro, trigo louro" (S. Vicente, Funchal, Madeira) e "Que linda falua" (infantil).
"Temas do Cancioneiro Português" é um daqueles discos que sabe bem ter sempre à mão quando, já saturados da poluição sonora com somos incessantemente agredidos, sentimos a necessidade vital de "limpar" os ouvidos. "Temas do Cancioneiro Português" é um daqueles discos que sabe bem ter sempre à mão quando, já saturados da poluição sonora com que somos incessantemente agredidos, sentimos a necessidade vital de "limpar" os ouvidos. É também um álbum que tem perfeito cabimento, para além da rádio clássica, em qualquer estação generalista portuguesa, seja ela nacional, regional ou local. Sem prejuízo de uma audição mais atenta e continuada, as faixas que o integram são do melhor que se pode encontrar para interlúdios musicais.


As Folhas Novas Mudam de Cor, de António Pinho Vargas
(LP, EMI-VC, 1987; CD, EMI-VC, 1988)


Em Maio de 1987, António Pinho Vargas, publica o álbum "As Folhas Novas Mudam de Cor", considerado um dos grandes discos do ano. O músico que começou por interessar pelo jazz, graças à influência de Jorge Lima Barreto, teve a sua estreia discográfica em nome próprio, no ano de 1983, o com o LP "Outros Lugares" (Polygram), a que se seguiu "Cores e Aromas" (EMI-VC, 1985), do qual o tema "Dança dos Pássaros" se tornou um inesperado êxito de rádio, algo de invulgar para um disco de jazz. Com "As Folhas Novas Mudam de Cor", cujo título é retirado de um verso de Eugénio de Andrade, o sucesso é ainda maior pois o álbum atingirá o 8.º lugar na tabela nacional de vendas, durante uma estada de três meses no top. Para tal muito contribui a larga difusão que o disco teve na rádio, em especial o tema de abertura, "Tom Waits". Os restantes sete temas do alinhamento, todos compostos por António Pinho Vargas, são: "Vilas Morenas", "De Longe", "O Túmulo", "Da Floresta", "Um Dia Claro", "Jogos com Doze Sons", "Obscura, Nebulosa".
Com produção de António Pinho Vargas e José Nogueira, e arranjos colectivos, António Pinho Vargas (piano e sintetizadores) faz-se acompanhar por José Nogueira (saxofone alto e soprano), Rui Júnior (percussões), Pedro Barreiros (contrabaixo e baixo eléctrico), José Carlos Costa (oboé e corne inglês), Mário Barreiros (bateria) e Quico (sintetizadores). "As Folhas Novas Mudam de Cor" será distinguido com o Se7e de Ouro na categoria de Jazz.
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Cantos d’Outrora, de Belaurora
(CD, UPAV, 1992)


Em 1992, vem a lume o CD "Cantos d'Outrora", álbum que o grupo Belaurora gravara em Abril de 1991. Seguindo-se ao LP "E do Velho Se Faz Novo!" (Polygram, 1987), este é o segundo trabalho discográfico do Grupo de Cantares Belaurora, criado em 1985, na ilha de S. Miguel (Açores), e especialmente vocacionado para a «recolha, pesquisa, estudo, preparação e divulgação da música tradicional e popular de todas as ilhas, sobretudo a mais antiga e já quase desconhecida». Com harmonizações de Carlos Sousa, o grupo Belaurora (Ana Medeiros, Carlos Sousa, Eduardo Medeiros, Francisco Nascimento, Isabel Meireles, Laureno Sousa, Margarida Botelho, Margarida Sousa, Micaela Sousa, Pedro Medeiros e Rui Lucas), recupera e recria em "Cantos d'Outrora" doze temas: "Manjericão" (Flores), "Abana" (Pico), "Sapateia" (S. Jorge), "Chamarrita de Braço" (S. Miguel), "Pezinho" (Graciosa), "Nova Chamarrita" (letra e música de Gilberto Bernardo), "Sapateia" (Santa Maria), "Pezinho dos Flamengos" (Faial), "Tirana" (Terceira), "Saudade" (Saudade), "O Ladrão" (Flores) e "Naufrágio" (letra de Cristóvão de Aguiar / música tradicional da Ilha Terceira).
"Cantos d'Outrora" fez parte da lista de álbuns nomeados para o Prémio José Afonso, de 1992, e embora não tivesse merecido do júri a distinção máxima (atribuída a Vitorino, com "Eu Que Me Comovo por Tudo e por Nada"), não deixa de ser um belo trabalho de música tradicional portuguesa, no caso açoriana. Com este disco e os que se seguiram, o grupo Belaurora tornou-se – pode dizer-se sem exagero – a maior referência no que respeita à recuperação e divulgação do rico cancioneiro das nove "ilhas de bruma".
Sobre o disco, assim escreveu António Melo Sousa (ao tempo, Director de Programas da RDP-Açores): «Espelho de cantigas de um tempo sem tempo, "Cantos d'Outrora" é, antes de mais, um álbum concebido e laborado com rigor, mestria e vontade. Aqui se confirma a opção do Grupo Belaurora por caminhos já anteriormente revelados, tanto em disco como em muitas actuações ao vivo. Só que, neste caso, os critérios de recolha, as harmonizações e a disciplina dos arranjos reflectem uma solidez que é afinal fruto da experiência acumulada. "Cantos d'Outrora" é, no seu todo, um bom exemplo da necessária redescoberta do cancioneiro tradicional dos Açores, levada a cabo por um grupo cujo trabalho reflecte a verdade de um compromisso assumido com a terra e a gente que inspiram a raiz dos sons que recria. Sete anos depois do seu aparecimento, o Grupo Belaurora regressa assim ao nosso convívio com uma mão cheia de cantigas que nos (re)conduzem ao terreiro das ilhas onde a chamarrita pode ser nova ou de braço e onde, entre o aperto da saudade e da tirana, florescem pezinhos e sapateias».


O Meu Bandolim, de Júlio Pereira
(CD, Sony, 1992)


Com "O Meu Bandolim", editado pela Sony, Júlio Pereira regressa aos percursos trilhados em "Cavaquinho" (Sassetti, 1981) e "Braguesa" (Sassetti, 1983), desta vez explorando e pondo em evidência o bandolim, o primeiro instrumento que aprendera a tocar. Um álbum que o músico quis alegre e, onde, além do bandolim, toca outros variados instrumentos (viola braguesa, baixo, acordeão, sintetizador, viola, reco-reco, cavaquinho e adufes), e para o qual contou com a colaboração de Paulo Curado (flauta transversal, saxofone soprano), José Martins (caxixi, "talking drum", ferrinhos, sininho chinês, guizos, adufes, claves, tumbadoras), Minela (voz), João Lucas (piano eléctrico, piano, acordeão), Quim Correia (baixo), Quico (sintetizador), António Serafim (oboé) e José Peixoto (viola). A direcção musical e os arranjos são do próprio Júlio Pereira, que assina igualmente a música de dez dos onze temas do disco: "Baião do Mar", "Carrocel Oito", "Na Lua" (música do original "Espalibator", de Pancho Alvarez), "Fogo de Artifício", "Palaciana", "Noite Genuína", "Vento Suão", "Tentação da Romaria", "Poção Mágica", "Conversa Adiada" e "O Meu Bandolim".
João Lisboa fala assim do disco: «Júlio Pereira, "O Meu Bandolim" e o regresso a um discurso sólido e articulado por parte de quem se empenhou em investigar os instrumentos da tradição reconvertidos à idade de hoje. A seguir ao cavaquinho, à braguesa e aos "sete instrumentos", encerrada a inequívoca experimentação electrónica de "Miradouro" e "Janelas Verdes", houve que voltar ao lugar onde Portugal e os outros mundos se reúnem. Baiões e leste-europeu, expressão livremente articulada, sombras norte-americanas, povo e erudição no mesmo barco, num álbum que volta a colocar a música no posto de comando e só formula aquelas regras que decorrem naturalmente do dedilhar do instrumento. Identificado o que corresponde a uma vontade e um pensamento musical, a revisitação do bandolim foi o pretexto para concretizar definitivamente o lugar específico que cabe à tecnologia, aos timbres acústicos e à música que dessa fricção há-de resultar. Virtualmente irrepreensível na modalidade instrumental é a segura reafirmação do retorno aos "valores seguros" que os recentes concertos de Júlio Pereira já deixavam adivinhar» (João Lisboa, in "Expresso", 13.06.1992).
Sobre o bandolim, instrumento eminentemente popular mas que também mereceu a atenção de grandes compositores eruditos, é oportuno transcrever um interessante texto do Prof. Domingos Morais: «Se sairmos à sua procura, talvez tenhamos a sorte de os encontrarmos nas mãos de alguns pedintes que nas ruas de Lisboa e do Porto, nas esquinas ensolaradas ou abrigadas nos corredores e gares das estações do metropolitano e dos comboios, esperam as moedas dos apressados citadinos. Podemos ainda encontrá-los nas mãos de palhaços, nos pequenos circos que percorrem o país por altura das Festas de Inverno ou nas digressões de Verão, tendo talvez a surpresa de reconhecer, por detrás da máscara, o pedinte que encontramos na época baixa, quando não há trabalho certo. Vamos ainda encontrá-los nas lojas de mobílias, nos antiquários, nos ferros-velhos, instrumentos em segunda mão, de todas as formas e feitios, testemunhas mudas de um tempo em que eram o instrumento mais vulgar de Norte a Sul do país e nas Ilhas, companheiro de serenatas e tertúlias, nas tunas citadinas, ou integrando-se nas rusgas, chulatas e outros conjuntos instrumentais populares mistos, presentes em todas as festas profanas, nos bailes de diversões. As caixas de madeira forradas que os acondicionam, o feltro que lhe envolve a escala, as cordas sobresselentes, as ferragens utilizadas, revelam estarmos perante instrumentos que desempenharam importante papel na vida dos seus donos, que nos contemplam em fotografias amarelecidas de princípio de século, empunhando os seus bandolins. O seu destino actual, para lá do museu, é ficarem pendurados numa parede como recordação de um parente que o tocava ou como mera função decorativa. Quase ninguém se recorda do seu timbre, muito menos como se afina e se toca. Poderão talvez chegar em estado razoável ao terceiro milénio se forem poupados pelo caruncho, humidade e exposição directa ao sol, se resistirem à actividade exploratória infantil de várias gerações e aos acessos cíclicos de mudança nos adultos (é vulgar bandolins e outros instrumentos de madeira terminarem ingloriamente numa fogueira ou num folguedo carnavalesco).
Não é fácil traçar-lhe a genealogia. Como em tantos outros instrumentos de corda europeus, resultantes da evolução, de instrumentos tocados por Árabes, Judeus e Cristãos, somos por vezes tentados a simplificar os vários caminhos e soluções encontradas pelos músicos, para conseguir resolver a sua necessidade de encontrar novos timbres, com novos materiais de que iam dispondo, de que resultaram inúmeros instrumentos, que por vezes usam designações que nos confundem. Vários autores coincidem, no entanto, numa origem árabe, o rabât, passando pela mandora medieval e renascentista. Não podemos, ainda assim, deixar de considerar outros instrumentos de cordas com braço como o alaúde, a bandurra, a baldosa, a cítola, a cetra, a guitarra e a vihuella, contemporâneos da mandora. Preferimos uma caracterização organológica quando queremos encontrar o que de facto distingue um determinado instrumento no seu processo evolutivo, complementada pela sua utilização funcional que acaba por determinar as alterações introduzidas na sua construção.
Instrumento muito versátil, foi utilizado por Vivaldi (concerto para dois bandolins), Mozart (ópera "D. Giovanni"), Haendel (oratória "Alexander Balus") e Beethoven. Berlioz viria mesmo a referir as suas qualidades no seu "Tratado de Instrumentação". [...] O seu uso crescente no repertório de ópera do final do século XIX contribuiu para a sua popularização (Verdi, em "Otello" e "Falstaff"). No século XX, foi introduzido na orquestra por autores como Mahler (Sinfonias n.º 8 e 9 e "Das Lied von der Erde"), Schoenberg (Serenade op. 24 e Variações para orquestra, op. 31), Webern (5 Peças para orquestra), Hans Werner Henze ("Konig Hirsch") e Igor Stravinski ("Agon"). [...]
Foi instrumento de salão predilecto da burguesia feminina do séc. XIX, conquistou terreiros e arraiais populares juntando-se a outros instrumentos nas tunas e rusgas, animou os bailes de clubes e agremiações recreativas em que se fazia ouvir tocando cançonetas em voga, fados-canção e danças de sala, integrou Orquestras Típicas que, no caso português, seguiam o exemplo dado pela Emissora Nacional (que terminou na década de 50), em Santarém, em Castelo Branco e Coimbra (Tuna Académica). Os arranjos e transcrições, as rapsódias, as canções napolitanas, as serenatas, ao sabor das modas e do gosto e perícias de maestros e tocadores, não puderam nem souberam acompanhar o gosto das novas gerações, para quem a rádio e TV trouxeram novos modelos de identificação. Ao refluxo das tunas e orquestras de instrumentos de cordas apenas escaparam alguns tocadores de grupos instrumentais de ranchos, o Quarteto Zimarlino (Lisboa), dirigido por Bernardino do Nascimento, e o Grupo Carlos Seixas (Coimbra), dirigido por Tobias Cardoso.
O bandolim tem, no entanto, outras histórias. Ao viajar para outros continentes, adaptou-se e foi adoptado por novos repertórios como o "blue grass" norte-americano, a música hispânica sul-americana, os chorinhos, valsas, sambas e frevos brasileiros (como Jacob do Bandolim e Luperce de Miranda), a negro-americana das Caraíbas, mesmo a nova música urbana africana (Zaire, Cabo Verde, África do Sul). Na Europa, o revivalismo dos anos 60 permitiu a sua reutilização na música popular irlandesa, bretã e italiana. Em Portugal, alguns grupos usaram-no com funções "emblemáticas", já que, tocando-o mal, não prescindiam da sua presença.
Por tudo isto, arriscamo-nos a dizer que se abrem para o bandolim novos tempos, em que novos músicos e instrumentistas lhe dedicarão a sua arte e saber, libertos das peias que limitaram o instrumento a géneros musicais sem saída ou demasiado datados. Desde que tenham, claro, persistência e humildade para vencer dificuldades técnicas, tirar o melhor partido das suas potencialidades e encontrar saída para as limitações que sempre se deparam a quem quer fazer nova música.» (Domingos Morais, 1992).


Delírios Ibéricos, de Rão Kyao
(CD, Vertigo/Polygram, 1992)


Da parceria luso-espanhola, entre Rão Kyao o grupo de flamenco Ketama, resulta, em 1992, o álbum "Delírios Ibéricos". É a primeira co-produção entre a Polygram espanhola e a portuguesa. O projecto nasce de uma ideia do presidente da Polygram do país vizinho, fã confesso de Rão Kyao. Espanha era, há muito, um dos países europeus mais receptivos à música do flautista e compositor português. O disco esteve inicialmente previsto para 1991, com o guitarrista Manollo San Lucar, mas acabaria por se concretizar com os três Carmona: Juan e José Miguel (guitarras flamencas) e Tony (percussões). Tal como acontecera em "Ritual" e "Danças de Rua", Rão Kyao conta ainda com a colaboração de um elenco músicos bastante heterogéneo: Renato Júnior (piano, teclados, acordeão), Filú (baixo), Quim M’Jojo (caxixi, pandeiro, triângulo, cabaça, bombo português, cortina, surdo, guizo), Bondó (pratos, tablas), Joni Galvão (guitarras, bateria, arranjos de cordas), Steve Taylor (bateria) e ainda um quarteto de cordas formado por Aníbal Lima (violino), Pedro Pacheco (violino), Isabel Pimentel (violeta) e Teresa Portugal (violoncelo).
Com música da autoria de Rão Kyao, em todos os temas, são estas as onze faixas do disco: "Vozes no Deserto", "Água de Fogo", "Amor Cantado", "Lamento Andaluzo", "Delírios Ibéricos", "Soledades y Saudades", "De Copas con la Dama", "Canto das 1001 Notas", "Amor Sentido", "No Planalto" e "Normalmente".
Despojado de um fácil imediatismo e com arranjos de irresistível fascínio, "Delírios Ibéricos" é um dos melhores trabalhos da fase flautística de Rão Kyao.
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Múgica, de Amélia Muge
(CD, UPAV, 1992)


Em 1992, Amélia Muge lança o álbum "Múgica", gravado em Outubro do ano anterior. Após anos e anos de actividade regular nos domínios do canto e da composição (o seu acervo de composições já então centenas canções), Amélia Muge, grava enfim, com selo da UPAV (uma cooperativa de artistas), o seu primeiro álbum de originais. Com produção e direcção musical de António José Martins, em "Múgica", Amélia Muge musica e canta a poesia da sua própria lavra ("Salteadora das trovas perdidas", "Dia em dia", "E viva a paz", "Quem à janela"), de Luís de Camões ("Aos olhos de Helena"), de João Pedro Grabato Dias ("Senhorecos", "Sôbolos rios", "Ervas de cheiro", "O Sol (esse, que dizia...) ", "Mariazinhas", "Papãozinho", "Haverá um lugar)". Falta referir "Em Mértola" (poema música de Teresa Muge, sua irmã), talvez o mais belo tema deste disco, o qual no seu conjunto apresenta uma qualidade pouco vulgar em discos de estreia. A esse facto não será certamente alheio o anterior percurso da cantora em actuações ao vivo, e também a sábia supervisão musical de António José Martins que aqui dirige um soberbo elenco de instrumentistas: Alberto Campos (violoncelo), Irene Lima (violoncelo), Maria João Correia (acordeão), Paulo Curado (flauta), Carlos Bica (contrabaixo), António José Martins (sintetizadores, percussões), Yuri "Brodje" Daniel (baixo eléctrico), José Peixoto (guitarra acústica, alaúde), Amélia Muge (guitarra acústica), António Chaínho (guitarra portuguesa), Rui "Dudas" Pereira (guitarra de 12 cordas) e Paulo de Carvalho (coros).
Com "Múgica", Amélia Muge afirma-se desde logo como a autora e compositora mais importante da música popular portuguesa, um domínio até então quase exclusivo de homens. Em recensão crítica ao disco, assim escreveu João Lisboa: «"Múgica", o álbum de estreia de Amélia Muge, não é só um disco memorável como também a apresentação de uma voz rara. Autora, compositora e intérprete, à primeira investida define instantaneamente os contornos de uma individualidade musical própria e recuperada para actualidade tudo quanto, há duas décadas, impôs a urgência de uma música nacional. Não exagero. É à dimensão de registos como "Cantigas do Maio" (de José Afonso), "Margem de Certa Maneira" (de José Mário Branco), ou "Sobreviventes" (de Sérgio Godinho) que "Múgica" exige ser comparado. Com poemas do genial João Pedro Grabato Dias (ou António Quadros, ou Frei Johanes Garabatus ou Multimati Barnabé João), de Camões e da própria Amélia que também assina as músicas, é daqueles discos que assinalam datas desta vez pré-pós-pós-modernas, quero dizer, intemporais. O género de coisa em viagem entre a alma da nação, África e o fado, o minimalismo e as trovas perdidas. Folk-pop-étnico-rural-astral-urbano. Daqui e do mundo, de ontem e amanhã. A urdir sarcasmo e teatralidade, o silêncio e o grotesco. Com a maior canção portuguesa dos últimos anos, "Quem à Janela". Imperfeito e admirável, numa ponte que religa as margens da canção clássica como as do paradigma que Eugénia Melo e Castro tem perseguido sem nunca atingir» (João Lisboa, in "Expresso", 13.06.1992).
No mesmo sentido vão as palavras de Fernando Magalhães: «Em termos de análise comparativa, "Múgica" é um dos melhores álbuns, ao nível da composição, dos arranjos e da voz, de música popular portuguesa da última década. "Múgica" começa por impressionar pela voz. Amélia Muge é a cantora das mil vozes, das mil maneiras de recriar um poema – a "provocação", como lhe chama, que desencadeia o acto criativo – e de arrancar toda a força que as palavras potenciam. Entre o fado e a música tradicional, a canção sarcástica, de "intervenção" ("Senhorecos", "Mariazinhas"), reminiscente da época em que os seus heróis (José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho) lutavam contra a estagnação e o conformismo, e melopeia infantil, entre o negrume e a luz, Amélia Muge lança sempre o trunfo certo, no modo como ela própria se joga na diversidade de máscaras e de registos vocais. Ora abusivos e viscerais, ora declamatórios e introspectivos. Num momento, grito, noutro, oração. "Múgica" acorda a intemporalidade da tradição, expressa logo na imagem do diabo músico da capa [de Rosa Ramalho], com a modernidade das formas e do conceito – que recuperam o primado do conteúdo sobre a imagem. Um disco com razão de ser. [...] Numa perspectiva diferente, é de louvar o modo como o produtor, António José Martins "vestiu" cada canção, optando por tonalidades que embora redutíveis à "world music" sabem evitar a armadilha do lugar-comum ao mesmo tempo que assumem contornos bem portugueses. Talvez por isso, Amélia se tenha deixado encantar – de resto ela própria o reconhece – recolhendo um pouco a voz, assim se deixando impregnar das cintilações electrónicas, das percussões arabizantes e dos sintetizadores de luz que a rodeiam. "Em Mértola", "O Sol (esse, que dizia...)", "Papãozinho" e "Quem à janela" são as pérolas do tesouro. Até agora escondido mas finalmente ofertado à fruição colectiva (Fernando Magalhães, in "Público", 21.06.1992)


Eu Que Me Comovo por Tudo e por Nada, de Vitorino
(CD, EMI-VC, 1992)


Depois da sua participação no projecto Lua Extravagante, ao lado de Filipa Pais e dos irmãos Carlos e Janita Salomé, Vitorino publica o álbum "Eu Que Me Comovo por Tudo e por Nada", no final de 1992. Obedecendo a uma ideia conceptual, o disco é integralmente constituído por composições originais de Vitorino sobre doze poemas propositadamente escritos pelo escritor António Lobo Antunes ("Bolero do coronel sensível que fez amor em Monsanto", "Ana I", "Todos os homens são maricas quando estão com gripe", "Branco", "Aos maridos", "Canção para a minha filha Isabel adormecer quando tiver medo do escuro", "Tango do marido infiel numa pensão do Beato", "Fado da prostituta da rua de St. António da Glória", "Rua do Quelhas", "Valsa das viúvas da Pastelaria Benard", "E se eu não te amar mais", "Ana II") e ainda um poema do próprio Vitorino ("Marcha de Alcântara"). Com produção de Vitorino e João Paulo Silva, sendo este último também responsável pelos arranjos e direcção musical, a execução instrumental tem a assinatura de Jorge M. Varrecoso Gonçalves (violino), Luís M. Silva Santos (violino), Pedro Wallenstein (contrabaixo), Rogério Gomes (viola), Miguel Ivo Cruz (violoncelo), Kenneth Frazer (violoncelo), Rui Alves (percussões), Paulo Curado (sax soprano, flauta), José M. Andrade Coutinho (oboé), Manuel Lopes Fernandes (clarinete), João Paulo Silva (piano) e Quarteto de Cordas Lusitânia.
Tendo por pano de fundo a prostituição, as infidelidades masculinas, os amores venais, as vidas sem esperança no limbo da marginalidade, o disco é muito bem recebido pela crítica (distinguido com Prémio José Afonso 1993 e com o Se7e de Ouro na categoria de Música popular), mas acaba por ter um fraco acolhimento da parte do público. Por esta razão e pelo carácter transgressivo e algo incómodo da temática abordada, "Eu Que Me Comovo por Tudo e por Nada" ficou como o disco maldito da obra de Vitorino. O cantor, no entanto, não o enjeitou e continua a cantá-lo nos seus concertos.
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Lisboa, de Madredeus
(2CD, EMI-VC, 1992)


Em Dezembro de 1992, a EMI-VC edita o primeiro registo ao vivo dos Madredeus, duplo CD "Lisboa". O álbum corresponde ao concerto dado no Coliseu de Lisboa, em 30 de Abril de 1992, que contou com a participação especial de Carlos Paredes (guitarra portuguesa) e da sua acompanhadora Luísa Amaro (guitarra clássica) e ainda do Orfeão Dr. Edmundo Machado de Oliveira, dos Açores.
Francisco Ribeiro (violoncelo), Gabriel Gomes (acordeão), Pedro Ayres de Magalhães (guitarra acústica), Rodrigo Leão (teclados) e Teresa Salgueiro (voz) e convidados interpretam 23 temas (todos com letra e música de Pedro Ayres Magalhães, salvo onde indicado): Disco 1: "Matinal" (vocal, música de Francisco Ribeiro), "A Cidade" (letra de Francisco Menezes e Pedro Ayres Magalhães / música de Pedro Ayres Magalhães e Rodrigo Leão), "A Península" (música de Rodrigo Leão, Pedro Ayres Magalhães e Rodrigo Leão), "Cuidado" (música de Madredeus), "O Ladrão" (letra de Pedro Ayres Magalhães, Teresa Salgueiro e Francisco Ribeiro), "O Pomar das Laranjeiras", "Mudar de Vida" (música de Carlos Paredes), "Canto de Embalar" (letra de Pedro Ayres Magalhães / música de Carlos Paredes), "O Navio", "O Pastor" (música de Madredeus), "As Ilhas dos Açores" (instrumental, música de Madredeus), "A Vontade de Mudar" (letra de Rodrigo Leão, Francisco Ribeiro e Pedro Ayres Magalhães / música de Rodrigo Leão); Disco 2: "A Cantiga do Campo" (poema de Gomes Leal / música de Rodrigo Leão e Pedro Ayres Magalhães), "Amanhã" (música de Pedro Ayres Magalhães, Rodrigo Leão e Gabriel Gomes), "A Sombra (à memória de António Variações) ", "Solstício" (instrumental, música de Madredeus), "A Estrada do Monte" (música de Rodrigo Leão e Pedro Ayres Magalhães), "A Vaca de Fogo" (música de Gabriel Gomes e Pedro Ayres Magalhães), "A Confissão", "As Montanhas" (instrumental, música de Gabriel Gomes), "O Menino" (Popular / música de Francisco Ribeiro), "Fado do Mindelo" (letra de António Jorge Pacheco e Pedro Ayres Magalhães) e "O Pastor" (música de Madredeus).
Refira-se que "Canto de Embalar", originalmente um instrumental de Carlos Paredes, foi "vestido" com uma letra expressamente escrita por Pedro Ayres Magalhães para a ocasião.
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Contos de Fragas e Pragas, de Quadrilha
(CD, Ovação, 1992)


«De lendas perdidas do pó das pedras ou de contos aprendidos à lareira quase apagada, nasceu uma boa parte da inspiração para este trabalho que dedicamos, com um abraço forte, a quem acredita na nova música popular portuguesa», assim apresenta o grupo Quadrilha o seu álbum de estreia, "Contos de Fragas e Pragas", datado de 1992. Com letras e músicas de Sebastião Antunes, salvo onde indicado, são dez os temas desta primeira proposta discográfica da Quadrilha: "Ai Caramba", "Temporal", "Quadrilha", "Fraga", "Menina do Fato Negro", "Chamaram-me Cigano" (letra e música de José Afonso), "Normanda", "Desnorteio", "Balada das Naus" e "Mulher da Erva" (letra e música de José Afonso). Além de Sebastião Antunes (voz, guitarra acústica, bandolim, tin whistle e cavaquinho) que também assina a produção, e dos demais elementos integrantes da Quadrilha – Paulo Marques (piano, sintetizadores, acordeão e vozes), Rui Nunes (baixo), Mário João Santos (bateria) –, participam ainda no disco: Ramiro Martins (guitarra portuguesa), Joni Garcia (guitarra eléctrica e voz), Daniel Romeiro (flauta transversal), Luís Cascais (voz), Paulo Fernandes (voz), Nando Araújo (voz), Rui Santos (voz) e João Courinha (saxofone).
Ainda sem a sonoridade céltica a que a Quadrilha nos viria a habituar, este primeiro disco tem o grande mérito de revelar um novo bom autor para a música portuguesa – Sebastião Antunes. Na verdade, além de ser a voz solista, é ele que escreve as letras e compõe as músicas, revelando-se um autor digno de nota. Atente-se, por exemplo, nesta passagem de "Desnorteio": "A Lua dá tanta volta / Faz feitiços e desnorteia / O mar ainda que ande à solta / Não tem onda onde não brilhe a lua cheia". Destaque também para a versão de "Mulher da Erva", original de José Afonso. Tanto Teresa Silva Carvalho ("Ó Rama, Ó Que Linda Rama", 1977) como Janita Salomé ("Lavrar em Teu Peito", 1985) já nos tinham dado belas versões deste tema, mas a Quadrilha vai mais além, num arrojado arranjo electrónico. E o resultado é surpreendente mostrando que, a exemplo da música de Bach, também a de José Afonso pode ser abordada das mais variadas e heterodoxas formas, sem que se a sua essência fique molestada.
«É sem rodeios que "Contos de Fragas e Pragas" procura trazer o passado ao presente. A intenção é louvável e explícita: o trabalho é dedicado àqueles que acreditam na nova música popular portuguesa e enquadra-se na mudança de paradigma que vai transformando a MPP em NMPP» (M.C., in "Blitz", 1993)


Guitarra Portuguesa: April in Portugal, de Edgar Nogueira
(CD, Metro-Som, 1992)


Levando ainda mais longe o conceito presente no LP "Peças Imortais em Guitarra Portuguesa" (1987), o Prof. Edgar Nogueira, apresenta em 1992 o CD "Guitarra Portuguesa: April in Portugal". Nele, Edgar Nogueira inclui três géneros de repertório: clássicos do fado – "Coimbra (April in Portugal)" (José Galhardo / Raul Ferrão), "Lisboa à Noite" (Fernando Santos / Carlos Dias), "Lisboa Antiga" (Raul Portela), "Canção do Mar" (J. Filipe de Brito / Ferrer Trindade), "Ai Mouraria" (Amadeu do Vale / Frederico Valério) e "Uma Casa Portuguesa" (Artur Fonseca); composições da sua autoria – "Saudades do Marão", "Lá de Portugal", "Dália e Cosmos", "Sim à Vida" e "Liberdade Espiritual"; e peças célebres da música clássica – "Voo do Moscardo" (Rimski-Korsakov), "Marcha Turca" (Mozart), "Czardas" (Monti), "Para Elisa" (Beethoven), "Rapsódia Húngara" (Liszt), "Serenata" (Mozart) e "Minueto em Sol" (Beethoven).
Os arranjos são assinados pelo próprio Edgar Nogueira, que se faz acompanhar de Pedro Nóbrega, José António e Fernando Guiomar (violas), Jorge Machado (piano) e Américo Monteiro (sintetizadores).
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Abbey Road 1952, de Amália Rodrigues
(CD, EMI-VC, 1992)


Em Dezembro de 1992, é editado o CD "Abbey Road 1952", que reúne a totalidade das primeiras gravações realizadas por Amália para a Valentim de Carvalho nos estúdios de Abbey Road, em Londres. O disco integra dezanove temas: "Foi Deus" (Alberto Janes), "Malmequer Pequenino" (Ricardo Borges de Sousa), "Grão de Arroz" (José Belo Marques), "Fado Eugénia Câmara" (Pereira Coelho / Raul Ferrão), "La Salvadora" (Rafael Leon / Antonio Quintero / Lopez Quiroga), "Não Digas Mal Dele" (Linhares Barbosa / Armandinho), "Há Festa na Mouraria" (António Amargo / Alfredo Duarte "Marceneiro"), "Noite de Santo António" (Norberto de Araújo / Raul Ferrão), "Ai Ai Ai, Meu Irmão" (Nassara / A. de Almeida), "Vingança" (L. Rodrigues), "Fado Hilário" (Augusto Hilário), "Os Teus Olhos São Dois Círios" (Linhares Barbosa / Música do "Fado Menor"), "Não é Desgraça Ser Pobre" (Norberto Araújo / Santos Moreira), "La Salsamora" (Rafael Leon / Antonio Quintero / Lopez Quiroga), "Lerele" (G. Monreal Lacosta / F. Muñoz Acosta), "Mi Sardinita" (Arr. Lopez Quiroga), "Novo Fado da Severa" (Júlio Dantas / Frederico de Freitas), "Faz Hoje um Ano" (José Galhardo / Raul Ferrão) e "Tudo Isto é Fado" (Aníbal Nazaré / Fernando Carvalho).
O acompanhamento instrumental tem a assinatura de Raul Nery (guitarra portuguesa) e Santos Moreira (viola).
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É Tão Grande o Alentejo, de Grupo Coral "Os Ganhões" de Castro Verde
(CD, ACA "Os Ganhões", 1997)


Na boa tradição do cante alentejano, o Grupo Coral "Os Ganhões" de Castro Verde, publicam, em 1997, o álbum "É Tão Grande o Alentejo", o quarto da sua discografia. Formado em 1972, o Grupo Coral "Os Ganhões" ganha, em 1980, o 1.º Prémio do Concurso de Coros Alentejanos realizado na Casa do Alentejo em Lisboa, tornando-se um mais representativos e prestigiados intérpretes, na vertente coral, do cancioneiro tradicional do Baixo Alentejo. No seu currículo, além da presença em múltiplos certames culturais e de música folk em Portugal e além-fronteiras, contam-se a participação no disco "O Primeiro Canto" (Polydor, 1999), de Dulce Pontes, e na subsequente digressão de concertos, e ainda a honrosa participação numa "Tarde Cultural em Belgais" (2003), a convite da pianista Maria João Pires.
Neste disco, que se segue a "Modas (1994) que foi considerado pela crítica especializada o melhor disco de música étnica do ano, "Os Ganhões" de Castro Verde cantam onze temas: "Ía chegando às areias", "Ao romper da bela aurora", "Olha a noiva se vai linda", "Oh águia que vais tão alta", "Vai de centro ao centro", "A ribeira do sol posto", "Mondadeira Alentejana", "A Vila de Castro Verde", "Camponês Alentejano", "Castro Verde é um jardim" e "É tão grande o Alentejo".
Sobre o cante alentejano, é oportuno citar as pertinentes palavras de José Luis Jones, que apelam à nossa reflexão: «Os ricos não cantavam. Eram os homens do campo, os que untavam as gretas das mãos com o suor do rosto, que tinham no cante a receita para os males do corpo e do espírito. O cante era a vida. Sobretudo aquela que se desejava ter. Cantar significava fazer parte. Era a forma mais eloquente de comunicar. Cantava-se no caminho, no trabalho e no regresso. Quem bailou por esses casões fora e seu par escolheu bailando, sabe que a voz e a força de todas elas juntas fazia estremecer o chão e vibrar o corpo em bebedeiras de desejo, de alegria e de juventude. E o cante era rei e o rei tinha força. Quando apertava a invernaria e o frio chegava o corpo ao borralho e o estômago à parede, as vozes elevavam-se para os céus cantando ao Menino. E o cante era rei e o rei tinha fome. Quando a monda reunia as moças em rancho e a jorna mal chegava para as solas era a voz que encurtava a caminhada e amaciava o cabo do sacho. E o cante era rei e o rei tinha geada.
Nas ceifas quando o corpo pagava o imposto da sua pobre condição, mais a tirania do capataz, mais o castigo do sol, a voz era um barco navegando por essas searas fora em viagem para outras vidas e outras paragens. E o cante era rei e o rei queria mudança. O cante é um hino, um grito de sabedoria condensado pelo tempo. E no tempo perdem-se as recordações, apagam-se as letras, esquecem-se os passos e as voltas da dança. Preservar não significa copiar a todo o custo os pormenores de estilo, de forma e de vida que ao próprio tempo já pertenceram. Preservar tem que significar aceitar a mudança quando sabemos acautelados os nossos valores culturais. O cante não pode ficar amarrado a uma geração, nem à actual exteriorização visual dos seus executantes.
O cante sofrerá o golpe de misericórdia se não for rapidamente enriquecido e valorizado como expoente artístico e como objecto de inspiração no sentido mais abrangente do termo. O cante tem de voltar a ser cantado pelo prazer simples de cantar. Esta espontaneidade aprende-se no banco da escola, nas pautas do conservatório ou, se necessário, nas páginas da internet. Quem quiser defender o cante alentejano, aprenda com os nossos vizinhos do lado de lá do Alentejo. Saiba como a expressão máxima da cultura andaluza, o "cante rondo", consegue ser todos os anos cabeça de cartaz no CCB, para dar um exemplo de uma realidade próxima de nós. O flamenco é arte. É cante. É dança. É coreografia em qualquer conservatório do mundo, enquanto nas nossa escolas primárias o "Frère Jacques" ou o "Jingle Bells" tirou o lugar ao "Ao Passar da Ribeira" ou à "Oliveirinha da Serra", para pegar no exemplo mais singular» (José Luis Jones, 1997)


Recantos, de Ronda dos Quatro Caminhos
(CD, Polygram, 1997)


Depois de "Uma Noite de Música Tradicional" (Polygram, 1994), a Ronda dos Quatro Caminhos apresenta, em 1997, o álbum "Recantos", também com chancela Polygram. A Ronda, então constituída por António Prata (violas, violino, bandolim, coros), Carlos Barata (acordeão, adufe, segunda voz), Daniel Completo (baixo acústico, coros), João Cavadinhas (viola amarantina, voz solo) e Vítor Costa (bateria, percussões), conta nesta disco com a colaboração de A.C. (violino), Filipe Martins (contrabaixo, baixo acústico), José Barros (viola breguesa), Pedro Fragoso (piano, coros), António Lopes e Alexandre Jerebtzov (coros). Com produção e direcção musical de António Prata, também responsável pelos arranjos com João Cavadinhas e Carlos Barata, são onze os temas que integram o disco, todos com letras do cancioneiro popular português: "Serenata" (Beira Baixa), "Anima Mea" (Trás-os-Montes), "Sol Baixinho" (Açores), "Serração da Velha" (Estremadura), "Bailinho do Meio" (Madeira), "Canção de Janeiro" (Beira Baixa), "Romance de D. João" (música de João Cavadinhas), "Cantiga da Azeitona" (música de João Cavadinhas), "S. Gonçalo Viageiro" (Açores), "D’Onde Vens Ana" (Baixo Alentejo) e "Valsinha II" (instrumental, com música de António Prata sobre popular duriense).
A Ronda dos Quatro Caminhos, um dos grupos com mais pergaminhos na área da música tradiconal portuguesa, mostra com este belíssimo registo discográfico que a tradição popular é uma fonte quase inesgotável de pérolas à espera que alguém as resgate e no-las apresente à nossa fruição. Ouvir um disco deste quilate, além de ser um acto de cultura, constitui uma experiência de raro deleite para os ouvidos: além de muito bem cantado, os arranjos e a execução instrumental são de puro encanto.
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Cantigas Partindo-se, de Navegante
(CD, Ovação, 1997)


Ainda na área da música tradicional, o álbum "Cantigas Partindo-se" (Ovação, 1997), do Navegante, merece igualmente ser destacado. Do repertório do Navegante, grupo liderado por José Barros, o romance "Gerinaldo" (do álbum "Rimances", JBN, 2001), é hoje o seu grande cartão de visita, mas a actividade do grupo remonta a 1992, ano da sua criação, tendo como âmbito "a criação, ou recriação, de temas tradicionais, respeitando as raízes de um passado recente, mas não esquecendo o presente". Em termos de discos, a gravação do primeiro álbum, dá-se em 1994, para a Movieplay, e tem por título genérico "Navegante". "Cantigas Partindo-se" é o álbum que se segue e nele ao elenco do Navegante (José Barros, Jorge Cruz, Rui Júnior, Carlos Passos, Vasco Sousa e Pedro d’Orey) soma-se uma plêiade de músicos convidados: Rui Vaz, Pedro Jóia, Artur Fernandes, Mário Santos, João Ramos, Halina Beresowska, Sandra Moura, Daniel, Rui Rocha, Miguel Rebelo e João Luís Lobo. Com produção e direcção musical de José Barros, que também assina as adaptações, integram o disco onze temas: "Serventês" (D. Afonso X, o Sábio / música de José Barros), "São João" (tradicional), "Cascata" (José Barros), "Penha Garcia" (tradicional), "Saudades da Lua" (José Barros), "Tão Longe da Vida" (tradicional), "Como o Lugar é Frondoso" (José Afonso / música de José Barros), "Em Barca" (instrumental, música de Jorge Cruz), "Cantiga Partindo-se" (João Roiz de Castel-Branco / música de José Barros), "Milho Verde" (tradicional) e "Valsa Braguesa" (instrumental, música de José Barros). A título de curiosidade, refira-se que o tema "Cantiga Partindo-se", do qual é tirado o título genérico, sobre poema do poeta cortesão do séc. XV, João Roiz de Castel-Branco (presente no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende), é um dos que regista mais versões, com composições diferentes, na música portuguesa: Adriano Correia de Oliveira - "Senhora, partem tão tristes", com música de António Portugal (in EP "Fados de Coimbra", Orfeu, 1962); Amália Rodrigues - "Partindo-se", com música de Alain Oulman (in single "Nós as Meninas/Partindo-se", Columbia/VC, 1968); Quarteto 1111 - "Partindo-se", com música de José Cid (in EP "Balada para D. Inês", Columbia/VC, 1968); Vitorino - "Cantiga Partindo-se", com música de Vitorino (in "Leitaria Garrett", EMI-VC, 1984; reed. 1993); Pedro Barroso - "Cantiga Partindo-se", com música de Pedro Barroso (in CD "Cantos d’Antiga Idade", Strauss, 1994). Tendo por base a versão de Amália Rodrigues, há ainda que referir as seguintes intérpretes: Liana (in CD "Fado.pt", Difference, 2004); Cristina Nóbrega (in CD "Palavras do Meu Fado", Iplay, 2008)


Bocas do Inferno, de Gaiteiros de Lisboa
(CD, Farol, 1997)


"Bocas do Inferno", assim se chama o álbum que os Gaiteiros de Lisboa nos propõem no ano de 1997. E mostrou ser uma aposta ganha pois o trabalho seria distinguido com o mais prestigiado galardão da música popular portuguesa, o Prémio José Afonso. Produzido por Carlos Guerreiro, Carlos Jorge Vales (Cajó) e José Manuel David, este trabalho conta com arranjos e direcção musical de Carlos Guerreiro e José Manuel David, sendo de realçar a vasta panóplia instrumental utilizada: por um lado, instrumentos bem mais ou menos conhecidos (gaita galega, gaita-de-foles mirandesa, ocarina, tambores, trompa, sanfona, marimba, fliscorne, mum-mum, flauta-de-pã, cromorne, flauta chinesa, shawm chinês, pratos chineses, charamela, svina dragão, saltério e idiofone chinês) e, por outro, instrumentos construídos pelos elementos do grupo (tubo estriado com búzio, cabeçadecompressorofone, clarinete acabaçado, orgáz e serafina). A convite dos Gaiteiros de Lisboa (Carlos Guerreiro, José Manuel David, José Salgueiro, Paulo Marinho, Pedro Casaes e Rui Vaz), participam também Vozes da Rádio, Jerôme Casalonga, Carlos Jorge Vales (Cajó) e Anabela Assis.
São catorze os temas que integram o álbum: "Trângulo-Mângulo" (Letra: popular – Santa Marta de Penaguião / Música: Carlos Guerreiro), "Leva-Leva" (Letra e música: popular – Algarve e Trás-os-Montes), "Agora Que Eu Vou Cantar" (Letra: popular – Alentejo / Música: José Manuel David), "Trompa da Moda" (Música: José Manuel David), "Segadinhas" (Música: popular – S. João do Campo, Gerês), "Por Riba Se Ceifa o Pão" (Letra e música: popular – Penha Garcia, Beira Baixa), "Milho Grosso" (Letra e música: popular – Aldeia do Barco, Beira Baixa), "Ciau Xau Macau" (Letra: Sérgio Godinho / Música: Carlos Guerreiro), "Wash Post" (Música: John Philip de Sousa), "Folia do Espírito" (Letra e música: popular – Santa Maria, Açores), "Cromórnia" (Música: José Manuel David), "Condessa" (Letra: Romance Popular de Lisboa / Música: Carlos Guerreiro), "Nós Daqui e Vós Dali" (Letra e música: popular - Ifanes, Trás-os-Montes) e "Chula Gaiteira" (Letra: Manolo Outeiriños / Música: Carlos Guerreiro).
Sobre o disco, redigiu Fernando Guimarães esta lapidar recensão crítica: «Bárbaros! O grito saiu de algumas bocas mais angustiadas pela audição do álbum de estreia dos Gaiteiros de Lisboa, "Invasões Bárbaras", ao repararem que o mundo da música tradicional já não era redondo. Bocas do inferno. Os Gaiteiros não se ralam, inventando as regras musicais por que se regem, instrumentos do demo e todo um imaginário elaborado a partir de uma memória colectiva forçosamente contaminada. Este espírito de transgressão, que de imediato remete para o arquétipo localizado no norte da Europa nos suecos Hedningarna – presente, mais do que no "fait divers" do uso de instrumentos mutantes, na construção das harmonias vocais, entre a polifonia pura e a "drone" – manifesta-se, contudo, neste segundo álbum da banda se uma forma mais subtil que em "Invasões Bárbaras", cuja prioridade máxima foi o estabelecimento de um espaço novo na música portuguesa de raiz tradicional. "Invasões Bárbaras", pela originalidade da sua proposta e pelo consequente risco nela envolvida, foi obrigado a forçar as portas, entrando de supetão e assumindo-se como manifesto. "Bocas do Inferno" surge já com o caminho aberto pelo reconhecimento, da parte do público, das regras e funções que regem a conduta estética dos Gaiteiros. Com este reconhecimento surgiu a tranquilidade. Por isso, "Bocas do Inferno" trocou, de forma feliz a tensão e a explosão por um articulação mais complexa e menos impositiva do som, atenuando-lhe os extremos mas ganhando na elaboração de novas pistas sonoras, algumas das quais simplesmente deslumbrantes. Como se os Gaiteiros tivessem deixado de habitar um castelo, para ocuparem um palácio, dedicando todo o tempo a mobilá-lo e a decorá-lo.
Em termos vocais, as polifonias sintetizam o que há de mais arcaico na tradição das músicas antigas com a sofisticação que resulta de tal contaminação do tempo – pela tecnologia, pela saudável "impureza" dos ouvidos, pela assimilação da História e pela atenção a uma nova sensibilidade na forma de perceber o legado tradicional. Dois exemplos: "Leva-Leva", conectando o Algarve a Trás-os-Montes, ostenta o selo Hedningarna mas também, na alusão a um ritual da pesca, o mesmo balanço de ondas recriado por José Mário Branco em "Cantiga de alevantar", provando que as marcas deixadas por este músico nos Gaiteiros fizeram sulcos; "Milho grosso" tema popular da Beira Baixa, ganha, por seu lado, as cores africanas de umas marimbas e de um tambor de cordas, formulando um enunciado "world music".
Esta simbiose do antigo e do novo, das raízes e da inovação, está também presente nas composições dos dois Gaiteiros que, neste segundo álbum, se destacam como os pólos criativos do grupo: Carlos Guerreiro e José Manuel David. É algo que se torna evidente em "Trângulo-Mângulo", do primeiro, uma polifonia estruturada com requinte, e "Agora Que Eu Vou Cantar", do segundo, "cante" alentejano transformado, paradoxalmente, em cadência sideral e em refúgio uterino no ventre de uma sanfona.
De um registo ainda mais contemporâneo e suspiro pós-moderno nasce a "Trompa da Moda", a meio caminho entre o progressivo-urbano de uma trompa e o verde de uma gaita galega. "Segadinhas", um instrumental com base num tema popular de São João do Campo, na Serra do Gerês, deve ouvir-se muitas vezes, com devoção. Duas ocarinas oram numa igreja no alto do monte. Os sinos repicam no remanso do silêncio.
"Ciau Xau Macau" e "Wash Post", um original do norte-americano [de ascendência portuguesa] John Philip de Sousa, introduzem uma nota de humor que mais não é senão outra forma, esta socialmente aceite, da transgressão. Vozes chinesas, flauta chinesa, tambor chinês, pratos chineses, tamborete chinês, "shawm" (da família das bombardas) chinesa. Anabela Assis é a "China girl" de serviço. O final tem foguetes. "Ciau Xau Macau", até à vista. A marcha de Philip de Sousa é um brinquedo nas mãos dos Gaiteiros, que nem os Residents...
Bem português e mais ortodoxo é "Folia do Espírito", recolhido pelos Gaiteiros nos Açores. Se neste tema a cromorna é utilizada como simples ornamento, já no tema seguinte, "Cromórnia", ocupa o centro das atenções, inserindo-se na vertente da "música antiga", cada vez mais entendida como uma espécie de raiz nobre da "folk". "Condessa", um original de Carlos Guerreiro sobre um romance popular de Lisboa, é pura sátira. Instrumental, ao modo dos Incredible String Band (sons de svina dragão, serafina, flauta de bisel...), e textual, fazendo reviver o espírito (já não era sem tempo) da ilustre Filarmónica Fraude. "Nós Daqui e Vós Dali" (Trás-os-Montes) traz a ancestral combinação dos bombos, paus e gaita-de-foles, sem ferir susceptibilidades. E a reforçar esta nota de uma certa condescendência com a delicadeza, as derradeiras bocas não vêm do Inferno. Ou talvez venham. Malditas chulas que não nos largam. Não largaram nem os Gaiteiros de Lisboa, só que a sua "Chula Gaiteira" tem dedicatória a Zeca Afonso e ri-se de si própria, com uma espécie de pregão a publicitar o disco. Leve agora e pague depois, não perca esta oportunidade... Gaita!» (Fernando Magalhães, in "Público", 1997).


Todo Este Céu, de Né Ladeiras
(CD, Sony, 1997)


É lançado, pela Sony, o álbum "Todo Este Céu", de Né Ladeiras. A cantora realiza assim um sonho antigo ("de há vinte e tal anos"): gravar um álbum dedicado às canções de Fausto Bordalo Dias, que se caracteriza por uma abordagem «muito próxima do lado místico de Fausto, mas também do seu lado interventivo, porque ele tem uma forma única de intervir, que em muitos casos continua actual e não se perdeu no tempo». E o resultado é brilhante: "Todo Este Céu" é um simplesmente o melhor tributo que até hoje se fez ao autor de "Por Este Rio Acima" e, sem duvida alguma, um dos mais belos discos dos anos 90.
Com produção, em alguns temas, de Eduardo Paes Mamede (que produzira alguns dos álbuns mais importantes de Fausto) e noutros da própria cantora, a execução instrumental é assinada por Amadeu Magalhães (guitarra acústica, viola braguesa, ponteiras, cavaquinho, flautas de lata), Miguel Veras (guitarra acústica, guitarra solo, baixo), João Balão (percussão), João Nuno Represas (percussão), Eduardo Paes Mamede (sequenciação), João Luís Lobo (bateria), José Mira (contrabaixo), Carlos Falcão (guitarra acústica), Paulo Marinho (gaita-de-foles, flauta de lata), Lúcio Vieira (baixo), Joaquim Paulo (violino), Abidula (atabaque), Miguel Madureira (conga), Ricardo Sousa (bongô), Américo Paiva (caxixi), Mãe Mariana (adejá).
"Lembra-me Um Sonho Lindo", "Diluídos numa luz", "Porque não me vês", "Ao longo de um claro rio de água doce", "Eu tenho um fraquinho por ti", "Uma cantiga de desemprego", "Flagelados do vento leste", "Ó pastor que choras", "Rosalinda", "Atrás dos tempos" (em dueto com Jorge Palma), "De ocidente a oriente" e "Todo este céu" são os temas de Fausto recuperados por Né Ladeiras. E diga-se que nalguns casos de forma nada inferior às regravações que o próprio Fausto fez, presumivelmente por pressões editoriais, no álbum "Atrás dos Tempos Vêm Tempos", editado meses antes também pela Sony. Refira-se ainda que Fausto já colaborara estreitamente com Né Ladeiras cantando em dueto com ela no tema "Linda Pastorica", incluído no álbum "Traz os Montes" (Alma Lusa/EMI-VC, 1994), galardoado com o Prémio José Afonso. Né Ladeiras que se estreou na Brigada Victor Jara (álbum "Eito Fora", Mundo Novo, 1977) e que depois passa pelos Trovante (single "Toca a Reunir", 1979) e pela Banda do Casaco (álbuns "No Jardim da Celeste", VC, 1981; e "Também Eu", VC, 1982), é em 1982 que publica o seu primeiro disco em nome próprio, o maxi-single "Alhur" (Valentim de Carvalho), sobre poemas de Miguel Esteves Cardoso, e com bom acolhimento da crítica. Com "Todo Este Céu", o seu quarto álbum a solo, Né Ladeiras atinge o ponto mais alto da sua discografia.
Segundo José Manuel Simões, «Né Ladeiras consegue, de maneira única, estar em perfeita sintonia com tudo o que pertence à natureza e ao humano. Sente uma grande alegria de viver e mostra-se optimista em relação ao futuro. Acredita na necessidade de uma nova consciência colectiva e vê esta vida como uma passagem de aperfeiçoamento. Um discurso pleno de amor, fé, divindades e espíritos.
Produzido por Eduardo Paes Mamede e, pela primeira vez, pela própria Né, tendo a participação de convidados especiais como Jorge Palma, voz, em "Atrás dos tempos", e Paulo Marinho, gaita-de-foles e flauta, em "Porque não me vês" e "Todo este céu", este disco tem a particularidade de se debruçar sobre o lado mais místico e mitológico de Fausto. A cantora, nascida no Porto a 10 de Agosto de 1959, cumpre assim um sonho que dura há mais de 20 anos. Um sonho lindo, diluído na luz, em que ao longo de um claro rio de água doce se descobre Rosalinda atrás dos tempos. Tempos que percorrem todo este céu de ocidente a oriente. Um disco que é um acto de amor. Céu infinito. Missão. (José Manuel Simões, in "Jornal de Notícias", 01.06.1997)


Ao Vivo em 1997, de José Mário Branco
(EMI-VC, 1997)


Em resultado dos concertos dados por José Mário Branco, em Junho de 1997, no Coliseu do Porto, no Teatro da Trindade (Lisboa) e no Teatro Gil Vicente (Coimbra), surge o duplo CD "Ao Vivo em 1997". Era um registo que faltava na discografia de José Mário Branco até à data ainda não incluía nenhuma gravação ao vivo das suas canções.
Com letras e músicas de José Mário Branco, excepto onde indicado, o alinhamento dos discos apresenta-se da seguinte forma: Disco 1: "Eh companheiro" (letra de Sérgio Godinho), "Uma vez que já tudo se perdeu" (poema de Ruy Belo), "Inquietação", "Cantiga de trabalho" (letra de João Lóio), "Engrenagem", "Elogio da corporação", "Remendos e côdeas", "Moncorvo torre e gente", "Shalom Palestina (Carta a Hannah Arendt)", Arrocachula", "Margem de certa maneira", "Ser solidário"; Disco 2: "1900 (Carta a Anton Tchekov)" (poema "Alexandre" de Mário Jorge Bonito), "De pé (Saudação a Antero)", "Menina dos meus olhos", "Teu nome Lisboa" (letra de Manuela de Freitas), "Capotes pretos, capotes brancos", "Terra quente", "As canseiras desta vida", "Emigrantes da quarta dimensão", "Queixa das almas jovens censuradas" (poema de Natália Correia), "A noite" e "Cantiga de alevantar ("leva-leva")".
Nos concertos, José Mário Branco (guitarra e acordeão) fez acompanhar de Carlos Bica (contrabaixo), João Pires (violoncelo), José Peixoto (guitarra clássica), Rui Júnior (percussões) e ainda do Tetvocal (Carlos Pedro, João Rodrigues), Paulo Lourenço e Pedro Gonçalves.
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Missangas, de João Afonso
(CD, Polygram, 1997)


"Missangas", editado em 1997, é o primeiro álbum em nome próprio de João Afonso. Em nome próprio, porque antes, em 1995, o cantor publicara em parceria com José Mário Branco e Amélia Muge, o duplo álbum ao vivo "Maio, Maduro Maio" com versões de temas de José Afonso, por sinal seu tio pelo lado materno. Edição essa que resultou de três concertos realizados no Teatro de S. Luiz em Dezembro de 1994 e que seria galardoada com o Prémio José Afonso, em 1996. Tal como havia acontecido com Amélia Muge, também João Afonso (que nasceu em Moçambique e aí viveu até aos 13 anos de idade) teve um grande percurso musical antes de se lançar na gravação de discos. Na seu currículo contam-se diversas homenagens a Zeca Afonso, designadamente na Aula Magna de Lisboa (1987), em Frankfurt, na Alemanha (1989), em Vigo e Montevedra, na Galiza (1991) e em Amesterdão (1991); espectáculo de José Mário Branco, no Teatro Villaret, em Lisboa (1987), concerto organizado pela Associação SOS-Racismo, no Pavilhão Carlos Lopes, em Lisboa (1990) e actuações no âmbito da Europália (1991), em Kortbeck, Brouges e Lovaina (na Bélgica) e ainda participação nas comemorações do 10 de Junho de 1993, em Macau. Da sua ligação a músicos espanhóis, resultou em 1996, a realização em diversas localidades do país vizinho, entre as quais Madrid, Múrcia e Barcelona, de concertos com o cantor/compositor Luis Pastor, interpretando canções de ambos e de Zeca Afonso. Participou ainda nos álbuns "Janelas Verdes" (1990) e "Acústico" (1994), de Júlio Pereira, e no disco "Lua Extravagante" (1991), do grupo com o mesmo nome. Com todo este rol de experiências acumuladas não admira que "Missangas" apresente uma qualidade pouco frequente em discos de estreia, o que, aliás, seria amplamente reconhecido pela crítica.
Com letras e composições de João Afonso Lima, salvo onde indicado, são treze os temas do alinhamento: "Carteiro de Bicicleta", "A Sesta", "Fugir com o Cientista", "Entre Sodoma e Gomorra" (letra de José Afonso), "Segredos de Cozinha", "Na Machamba" (letra e música de Tomás Vieira Mário), "Buganvília", "Com a Minha Toada", "Mano Pedro", "Eu Não Sei Que Faz o Sol" (letra de José Afonso), "Fala de Índio", "Cavalos Pintados" (música de Júlio Pereira) e "Coral de Missangas" (música de Júlio Pereira). A produção, direcção musical e arranjos têm também a assinatura de Júlio Pereira, que também toca viola, sintetizador, bandolim, cavaquinho e faz voz no tema "Buganvília". Participam ainda o irmão do cantor, Toninho Afonso (vozes), Mafalda Serrano (voz no tema "Buganvília") e Hijas del Sol (vozes no tema "Na machamba").
Segundo João Lisboa, «"Missangas" é um disco que, em território nacional, revê as muito boas lições de Paul Simon, Peter Gabriel, José Afonso (inevitavelmente) e, de forma mais próxima, Amélia Muge. As canções inscrevem-se nesse eixo poético-cultural e, entre outras virtudes, colocam em evidência o superior trabalho de produção de Júlio Pereira, capaz de inventar o quase-rap de "Segredos de Cozinha" ou a magnífica colagem-recapitulação do álbum inteiro em "Coral de Missangas". De resto, encontram-se neste disco melodias redondas, textos inteligentes e concisos e contrapontos vocais felizes, numa música festivamente mestiça e transcultural» (in "Expresso": Suplemento "Cartaz", 03.05.1997).
Consonantes com estas, são as palavras de Miguel Gaspar: «João Afonso começou bem e dá-nos um álbum de estreia com alguns momentos de puro encantamento e onde evitou as armadilhas mais óbvias. Júlio Pereira conduziu-o da melhor forma, com toda a experiência e talento que lhe conhecemos. Não há na música exercício mais fútil do que a futurologia, mas João Afonso não só confirmou um potencial que se adivinhava enquanto compositor, como deixa abertas as melhores expectativas» (in "Diário de Notícias", 10.04.1997)


Vagabundo do Mar, de Carlos Mendes
(CD, Movieplay, 1997)


Em "Não Me Peças Mais Canções" (Strauss, 1994), Carlos Mendes musicara e cantara grandes nomes da poesia portuguesa, tais como Miguel Torga, Fernando Pessoa, Carlos de Oliveira, Camões, Antónia Brito e ainda um inédito de Mário Soares ("Para Ti, Meu Amor"). Em 1997, com "Vagabundo do Mar", Carlos Mendes segue o mesmo caminho, mas agora em torno de uma temática dominante – o mar e o que com ele está relacionado. Com arranjos, direcção musical e composições da sua autoria, e contando com a participação de Manuel Jorge (acordeão e coros), António Pinto (guitarra acústica, guitarra de 12 cordas e coros), Cristóvão Martinho (saxofone soprano), Yuri Daniel (contrabaixo), Quiné (percussões), Teresa Brito e Elsi (coros), Carlos Mendes canta a poesia de Manuel da Fonseca ("Vagabundo do Mar"), José Jorge Letria ("Porto de Abrigo", "Línguas de Mar", "Em Vez de Mar Portugal"), José Fanha ("Na Volta do Mar Grande", "Postal de Lisboa", "Toni"), Sofia de Mello Breyner Andresen ("Vi as águas os cabos vi as ilhas"), Joaquim Pessoa ("Somos Felizes"), Carlos de Oliveira ("A Capela") e Ary dos Santos ("Cavalo de Palavras").
«Este trabalho marca o reencontro de Carlos Mendes com os poetas e com as canções. O milagre da simplicidade, do encontro do poema com a voz na sua função essencial que é a de transmitir algo, contar uma história ou dar notícia. O sugestivo nome de "Vagabundo do Mar" traz-nos histórias relacionadas com o mar. Um mar que é nosso, belo e misterioso. Fala-nos ainda do Tejo, dos barcos no rio com as redes vazias, da faina e dos homens que nela procuram sustento. Lisboa, as suas gentes e ideais, o amor e a saudade são igualmente retratados neste disco pela bela voz de Carlos Mendes, cantando como só ele sabe» (in "Promúsica", Fevereiro de 1998).


Navegantes, de Rão Kyao
(CD, Polygram, 1997)


Em 1997, na véspera da Expo-98, subordinada ao tema dos Oceanos, Rão Kyao grava o álbum "Navegantes". "Uma viagem interior", nas palavras do músico, o disco inclui doze temas, todos da autoria de Rão Kyao: "Rota dos Navegantes", "No Balanço", "Nas Asas do Sonho", "Arab", "Na Vindima", "Jhínjhoti", "Festa do Vinho", "Moda Lusa", "Sa-Ní-Sa", "Oca", "Lençóis de Trigo" e "Ecos Tribais". Com produção e arranjos de Luís Pedro Fonseca, Rão Kyao (flautas de bambu, ocarinas, zither), conta a com a colaboração de uma plêiade de músicos bem diversa: Christian Schonberg (piano acústico, tarolas), Filú (baixo), Alexandre Frazão (bateria), Luís Pedro Fonseca (guizos, tarolas, bongo, triângulo), Renato Júnior (acordeão, piano acústico), Subash Chandra (violino), João Maló (guitarra), Quim M’Jojo (cabaça, pandeireta, chicos, bongos, shaker, triângulo), Bondó (bilha, daga, darbuka, tablas), Carlos Gonçalves (guitarra portuguesa), José Barros (cavaquinho, bandolim e viola braguesa), e ainda uma secção de cordas constituída por Aníbal Lima, Cecília Lima, Jorge Teixeira, Pedro dos Santos, António Miranda, David Wahnon (violinos), Alexandre Mendes, Joaquim Lima (violetas), João Murcho e Francisco Lima (violoncelos). Nota ainda para a participação especial de Filipa Pais que faz vocalizos no tema "Na Vindima".
[colocar citação]


O Paraíso,de Madredeus
(CD, EMI-VC, 1997)


"O Paraíso", editado em 1997, é o primeiro trabalho discográfico dos Madredeus, depois da saída de Rodrigo Leão, Francisco Ribeiro e Gabriel Gomes. A Teresa Salgueiro (voz), Pedro Ayres Magalhães (guitarra clássica) e José Peixoto (guitarra clássica), juntaram-se Carlos Maria Trindade (sintetizadores) e Fernando Júdice (baixo acústico). Gravado nos Estúdios Condulmer, em Veneza, em Julho e Agosto de 1997, a produção é de Pedro Ayres Magalhães, que também assina as letras e as músicas, excepto onde indicado, das 14 canções do disco: "Haja o Que Houver", "Os Dias São à Noite", "A Tempestade" (letra e música de Carlos Maria Trindade), "A Andorinha da Primavera" (música de Carlos Maria Trindade), "Claridade" (música de José Peixoto), "A Praia do Mar" (música de José Peixoto), "O Fim da Estrada" (música de José Peixoto), "Agora (Canção aos Novos)", "À Margem", "Carta para Ti" (letra e música de José Peixoto), "Coisas Pequenas", "Não Muito Distante", "O Sonho" e "O Paraíso".
Com este belíssimo álbum, Pedro Ayres Magalhães e companhia, mau grado a dissenção de alguns elementos fundadores e apesar dos consequentes receios e apreensões quanto ao futuro do grupo, vieram provar que os Madredeus continuavam a ser um projecto viável e com muitas cartas ainda para dar.
«"O Paraíso" dos Madredeus é o caminho em direcção a um azul do céu num barco capitaneado por Pedro Ayres Magalhães com a voz de Teresa Salgueiro a servir de farol. Não é fácil descobri-lo. Talvez tudo funcione como um palimpsesto que, a pouco e pouco, vai revelando níveis de compreensão diferentes e sobrepostos, numa progressão até ao âmago da música do grupo. Está próximo da "new age", do "easy listening" espiritual e do neoclassicismo com laivos bucólicos. "O Paraíso" é acima de tudo um naipe de canções em estado de graça.» (in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa", Público/FNAC, 1998).


Segredo, de Amália Rodrigues
(CD, EMI-VC, 1997)


Editado pela EMI-VC, em 1997, "Segredo" é, pode dizer-se, o último grande álbum de gravações inéditas de Amália Rodrigues, se bem que realizadas vinte a trinta anos antes, quando a voz da cantora estava no seu apogeu de sublimidade. São estes os doze temas do alinhamento: "Medo" (Reinaldo Ferreira / Alain Oulman), "Primavera" (David Mourão-Ferreira / Pedro Rodrigues), "As Mãos Que Trago" (Cecília Meireles / Alain Oulman), "Longe Daqui" (Hernâni Correia / Arlindo de Carvalho), "Minha Boca Não Se Atreve" (D. R. / José Fontes Rocha), "Amor em Casa" (D. R. / Alain Oulman), "Verde Pino, Verde Mastro" (Alexandre O’Neill / Alain Oulman), "Não É desgraça Ser Pobre" (Norberto de Araújo / Fado Menor do Porto, arr. José Fontes Rocha), "É da Torre Mais Alta" (José Carlos Ary dos Santos / Alain Oulman) "Abril" (Manuel Alegre / Alain Oulman), "Procura" (António de Sousa / Alain Oulman) e "Cansaço" (Luís de Macedo / Joaquim Campos). No acompanhamento, contam-se: em guitarra portuguesa, Raul Nery, José Fontes Rocha e Carlos Gonçalves; em viola, Júlio Gomes e Pedro Leal; e em viola baixo, Joel Pina.
Citemos Rui Vieira Nery: «"Segredo" é um disco com doze gravações de estúdio inéditas de Amália no auge absoluto da sua carreira e na plenitude da sua maturidade artística, entre 1965 e 1975. Dito isto, a presente edição não necessitaria certamente de qualquer outra justificação. Mas dito isto, também, surgem desde logo perguntas inevitáveis, a começar, naturalmente, pela mais óbvia de todas elas: de onde vem – e como é possível que só agora, vinte ou trinta anos mais tarde, nos surja – aquele que passa a constituir, em minha opinião, um dos grandes discos de Amália? A resposta está, antes de mais, no verdadeiro ritual que eram, nos anos 60 e 70, as sessões de gravação de Amália nos estúdios de Paço d’Arcos da Valentim de Carvalho, experiência que até hoje ficou marcada na memória de todos os que tiveram o privilégio de nelas estarem presentes e cujas descrições tantas vezes ouvi, fascinado. A própria Amália explica essas sessões no seu estilo pragmático inconfundível: "havia um ambiente de grande amizade. Eu levava o jantar de casa, com carnes minhas, carapaus meus, havia amigos à volta, comíamos e quando começava a gravar estava completamente à vontade e gravava noite fora". E, de facto, quando as gravações começavam estava já criada uma atmosfera de empatia profunda entre ela e esse seu público de amigos fiéis, para quem começava então a cantar com a mesma entrega com que poderia estar em palco, como se os microfones não fossem senão ouvidos de mais um espectador atento. Amália, como é bem sabido, sempre foi visceralmente incapaz de cantar duas vezes seguidas da mesma maneira o mesmo fado. Por conseguinte, a noção de take, no sentido hoje corrente, da recolha de sucessivas execuções da cada número, susceptíveis de uma posterior operação de retalho e montagem, às mãos de produtores e engenheiros de som, até se chegar à colagem final de uma versão melhorada era, claro está, não só inexistente como impossível. De um modo geral, ensaiava pouco (ou muitas vezes nada) antes de passar à gravação, como se não quisesse desperdiçar a energia da sua entrega sempre total e precisasse da tensão do tempo real de fita para se concentrar integralmente. Por isso mesmo, cada execução registada era uma versão absolutamente autónoma, longe de ser programada como uma aproximação progressiva a um resultado racionalmente pré-estabalecido, e muito menos como material bruto para posteriores manipulações de estúdio. Assim se explica que das muitas sessões de gravação realizadas tenha resultado um repertório muito mais extenso do que aquele que acabou por vir a público nos seus discos, abrangendo tantas versões alternativas dos fados neles editados quer, inclusive, obras experimentadas em estúdio e depois deixadas de fora da escolha final de cada álbum. [...] "Segredo" contém, portanto, um pouco de tudo isto, constituindo de algum modo uma espécie de antologia transversal do repertório típico de Amália da década a que se reporta».
É também pertinente citar um belo texto do pianista Nuno Vieira de Almeida, propositadamente escrito para esta edição: «Na história da interpretação musical do nosso século, o nome de Amália Rodrigues é incontornável. Os fados e canções que canta deixam, graças à força da sua interpretação, de pertencer apenas ao domínio da música popular para se transformarem em testemunhos universais dos nossos sentimentos mais profundos. De todas as intérpretes que conheço, Amália é a única que consegue esta proeza. Analisar o porquê deste facto é difícil, já que o génio não se analisa, e Amália "diz" sempre o que não é possível exprimir senão através da música. Aproveitando o aparecimento deste inadjectivável disco de inéditos, arrisco, mesmo assim, duas ou três pistas. Amália tem, como nenhuma outra, um sentido infalível de "rubato". O tempo musical para ela nunca é inflexível, e se a sua voz se adianta neste ou naquele momento, de modo a fazer sobressair alguma palavra ou frase musical, tal gesto é imediatamente compensado com um ligeiro "ritardando", de modo a manter orgânico o discurso musical. Conseguir fazer isto sem alterar de forma abrupta o tempo global, sentindo-se apenas o realce pretendido, leva, muitas vezes, a qualquer músico menos dotado, o tempo de uma vida inteira; para Amália, isso é uma evidência. Uma capacidade única de variar as cores da voz, de acordo com o sentido do poema, é outro atributo de Amália. Colorir as palavras de modo a que mesmo quem não perceba a língua em que se canta possa intuir o seu significado, era uma qualidade fundamental e exclusiva dos grandes cantores de "Lied". Amália chama-a a si, com rara felicidade, chegando mesmo ao ponto de se notar uma diferença de aproximação vocal de fado para fado; veja-se, neste disco, a diferença de atitude entre "Minha Boca Não Se Atreve" e "Amor em Casa". Se atentarmos no modo como Amália "diz" a palavra "cheiinha" ("cheiinha de frio") do fado "Longe Daqui" – qualquer coisa entre a criança desprotegida e mimada – parece-me que fica clara a noção de colorir a voz. A intensidade dramática conferida a todas as interpretações é outra característica importante, e o final do fado "Primavera", quando Amália repete "ninguém fale em Primavera", é suficientemente explícito deste fenomenal talento. Mas acima de tudo há essa voz, essa voz de uma beleza única nos seus arremessos de paixão, ironia, tristeza ou ternura, que parece ter-nos habitado sempre, que nos parece ancestral, tal é a força telúrica que a habita. Essa voz que reúne todas as qualidades, sem nenhum defeito, e que, ao unir-se à personalidade artística de Amália Rodrigues constitui, para mim, a prova irrefutável da existência de Deus».


Outras Índias, de Carlos Martins e Vasco Martins
(CD, EMI-VC, 1997)


Em termos de jazz, surge em 1997, um disco de grande interesse: "Outras Índias", do português Carlos Martins e do cabo-verdiano Vasco Martins. Com a produção assegurada pelos próprios músicos, que em saxofones tenor e soprano (Carlos Martins), e em guitarras e sintetizadores (Vasco Martins), tocam nove músicas: "Um Porta Aberte" (Vasco Martins), "Reflexos" (Carlos Martins), "Fado (de estar sem ti)" (Carlos Martins), "Verde" (Vasco Martins), "Canto Rouco I: Canto Iluminado" (Carlos Martins), "Chandra" (Vasco Martins), "Valsa Tranquila" (Vasco Martins), "Conversas" (entre Veneza e Mindelo)" (Carlos Martins) e "Canto Rouco II: Outras Índias" (Carlos Martins).
O saxofonista Carlos Martins, apresenta-nos assim o disco: «Ao princípio era uma curiosidade, quase infantil, de comunicar com alguém que, sabemos sem explicação, possui mistérios e riquezas em comum. Depois o acaso, esse magnífico catalizador temporal, juntou-nos à volta de um debate sobre cultura para aqueles que são emigrantes, mesmo no seu próprio país. Foi com a alma seca, ao sol do Alentejo e São Vicente, que mergulhámos na poesia e na sensualidade musical de Cabo Verde. Foi com a humildade, salgada pelo mar, que sentimos a solidariedade e a fraternidade como na canção do Zeca, sobre Grândola. E sentimo-lo ainda mais no Mindelo, como por acaso...
A nossa música é muito intimista; escolhemos, por agora, exprimirmo-nos assim: Íntimos, tranquilos quase meditativos, sem pressas, à procura desse lugar onde "mora a beleza", a beleza como nostalgia, nunca como tristeza. No Alentejo como em Cabo Verde, a aridez e o sol reduzem a importância de algumas outras formas exuberantes de viver. No Alentejo como em Cabo Verde, o tempo passa reduzido à sua importância e a naturalidade não é apressada: O Fado aqui é o mesmo, morno e suave, revolto e calmo, duro e dócil, porque são pelo menos dois. O Conhecimento, essa luz comparada ao sol, o espírito em viagem constante, essa inquietação e calma dos poetas do Alentejo e de Cabo Verde estão na nossa música, sem dúvida, na procura de Outras Índias.
O que cada um de nós tem para dar abertamente aos outros, é imenso, mas é necessário muito esforço e dedicação para dar esse pequeno passo. O respeito e a amizade ao encontrarem-se com os seus sinónimos musicais, tornaram a música simples de ouvir e simultaneamente difícil de executar e não há palavras no meio...
... seria fechar numa gaiola de sinónimos e adjectivos todas as emoções e imagens que trazíamos e com as quais construímos este disco» (Carlos Martins, 11.04.1997)


Fontes:
- Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa (1960-1997), coord. Jorge Dias e Luís Maio, Público/FNAC, 1998
- Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida, Mário Correia, Centelha/Mundo da Canção, 1984
- Enciclopédia da Música Ligeira Portuguesa, dir. Luís Pinheiro de Almeida e João Pinheiro de Almeida, Círculo de Leitores, 1998
- Literatura inclusa nos discos citados
- Jornais/revistas referenciados no texto


E o que tem feito a direcção da Antena 1 para assinalar estas edições discográficas, muitas das quais de primordial importância para a música portuguesa? Nada, se exceptuarmos os programas realizados no âmbito das efemérides das mortes de José Afonso e de Adriano Correia de Oliveira e um programa sobre o álbum "Mestre" (1973), de Petrus Castrus. Neste capítulo, a "desatenção" e a passividade de Rui Pêgo e dos seus adjuntos não teriam grande importância se estivéssemos a falar de uma rádio privada (regida por estritos critérios comerciais) mas assumem particular gravidade na rádio do Estado que deste modo faz letra morta de uma das mais importantes disposições estatutárias e contratuais de prestação de serviço público – a defesa e promoção da música portuguesa de qualidade. Aliás, a actual direcção da Antena 1 não se limita a ignorar importantes eventos da história da música portuguesa. Faz uma coisa ainda pior: marginaliza e silencia, deliberada e reiteradamente, boa parte dos intérpretes portugueses mais significativos e relevantes. Nem é preciso ir mais longe: dos discos acima citados, quantos é que têm temas incluídos na 'playlist'? Faça-se uma monitorização à referida 'playlist' e depressa se confirmará a situação de criminoso ostracismo a que o nosso património musical/discográfico mais valioso vem sendo vítima na rádio de todos nós.

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