17 maio 2010

Antena 1: uma emissora católica e apostólica?



Quando iniciei a colaboração neste sítio prometi a mim mesmo que nem política, nem religião nem futebol (domínios em que a paixão se sobrepõe à razão) seriam aqui abordados.
O modo como a rádio e a televisão públicas se envolveram na recente visita pastoral do papa Bento XVI impelem-me a quebrar esse compromisso e a vir dizer de minha justiça. Quero, em primeiro lugar, deixar claro que não me move qualquer espécie de animosidade contra a Igreja Católica ou contra outra confissão religiosa (cristã ou não cristã). Nesta ordem de ideias, a visita a Portugal de um papa ou de qualquer outro líder religioso não me suscita objecções. Sendo agnóstico e, como tal, não perfilhando qualquer credo, nem por isso deixo de respeitar todas as manifestações religiosas e as pessoas que, de livre vontade, a elas aderem. Reciprocamente, espero que as instituições confessionais e os respectivos fiéis respeitem o meu agnosticismo e a minha liberdade de consciência. O mesmo se aplica ao Estado, constitucionalmente republicano e laico, e aos organismos por ele tutelados que jamais se devem envolver em acções de proselitismo a favor de qualquer confissão. Mas foi exactamente o contrário disto o que fez a Rádio e Televisão de Portugal, com os seus canais de maior audiência – RTP-1 e Antena 1 –, durante a visita de Joseph Ratzinger, visita essa que, como o próprio publicamente afirmou, teve o propósito de reevangelizar a sociedade portuguesa. Na verdade, o que se passou não foi a cobertura noticiosa da visita oficial de um chefe de Estado (no caso, do Estado do Vaticano), o que se podia aceitar em órgãos de comunicação sob tutela estatal, mas uma autêntica e empenhada acção apostólica por parte da empresa pública de rádio e televisão, ao acompanhar, passo por passo, todos os actos de natureza estritamente cultual do chefe da Igreja Católica Romana. Sexta-feira, por volta das 10:30, ao ligar para a Antena 1, já sabia que ia apanhar quase de certeza com a cobertura do périplo pontifício, mas ao ouvir um jornalista/repórter proferir repetidamente a expressão "santa missa", confesso que me senti violentado na minha liberdade de consciência. Estaria a ouvir uma rádio laica ou uma emissora católica e apostólica? Foi a gota que fez transbordar o copo e me levou a manifestar, com estas linhas, a minha indignação.
Eu não quero ser reenvangelizado (ou melhor dizendo, recatolicizado) e ainda menos por uma estação para a qual desembolso uma contribuição obrigatória! Em tenra idade, a exemplo do que aconteceu (e continua a acontecer) com muitas outras crianças, também me inculcaram os dogmas do catolicismo – Santíssima Trindade, Ressurreição, Ascensão, Imaculada Conceição, etc. – e me quiseram fazer crer que a "mãe de Deus" (pode Deus ter mãe ou pai?) tinha aparecido a três humildes pastorinhos na Cova da Iria. Graças a leituras que fiz, já na idade da razão, e à minha própria reflexão, consegui libertar-me desse fardo. Por isso, dispenso todas as prédicas, imbuídas de sincera ou falsa beatice, com que me querem voltar a pôr o fardo às costas. Não, muito obrigado!
Já sei que os manda-chuvas da Rádio e Televisão de Portugal se vão justificar com um argumento do tipo: «o povo português professa, na sua maioria, a fé católica romana e a empresa não podia ficar alheia ao acontecimento». Pois não só não ficou alheia ao acontecimento, como nele se envolveu de corpo e alma, coisa que, pelas razões que atrás aduzi, jamais se pode aceitar numa entidade pública, que depende de um Estado laico e não confessional. Por outro lado, ao argumentar-se que a maioria dos portugueses é católica não se está a ser rigoroso, porque, na verdade, a população que é efectivamente católica (aferível pela prática dos sacramentos da eucaristia e da confissão) não chega a perfazer um quinto do todo populacional. Dos restantes quatro quintos, uma pequena percentagem professa outras confissões. O grosso não pratica qualquer culto, embora muita gente, tenha recebido uma educação de matriz católica. Aí radica o equívoco: não se é católico por se ter nascido e crescido numa sociedade em que a cultura dominante tem a marca ancestral do catolicismo, mas por uma convicção íntima e bem alicerçada. Muitos portugueses até continuam a casar-se pela igreja e a baptizar os filhos, mas a maior parte – não errarei ao afirmá-lo –, não o faz por convicção religiosa mas por mero hábito cultural e social (porque os pais assim fizeram e porque... parece bem e até dá algum status).
O objectivo da Igreja Católica é arrebanhar para o seu seio todas essas pessoas culturalmente católicas (não praticantes) e nesse âmbito se inserem as viagens apostólicas papais. Será um esforço em vão, ainda que com o apoio obsceno de organismos públicos, porque é remar contra a História. A Europa já foi maioritariamente católica mas nunca mais voltará a sê-lo, mesmo sabendo-se que as depressões económicas incrementam a devoção religiosa. A Europa do futuro será, numa parte (a económica e culturalmente mais favorecida) ateia ou agnóstica, e noutra parte (a mais humilde), crente mas não católica – protestante, muçulmana, animista. O grande desafio para a estabilidade social, além da questão económica, será justamente a convivência pacífica dessas duas realidades.

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