21 maio 2010

Rádio Amália, rádio minha gente

Por: Óscar Mascarenhas (jornalista, ex-presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas)



«A posição 92.0 FM há muito que está fixa no rádio do meu automóvel, muito antes de Luís Montez a ter genialmente baptizado de Rádio Amália, a 6 de Outubro de 2009, dez anos após a morte da diva que universalizou o fado.
Chamava-se, creio, Rádio Nova Antena, emitia (e ainda emite) a partir de Odivelas, partilhava umas horas da noite com uma comunidade eslava, e tinha (e tem) um alcance restrito à região de Lisboa.
Fui-me transferindo para aquela rádio devido ao meu cada vez mais bilioso divórcio da Antena 2, sequestrada há uns anos por uns iluminados, possuídos de uma erudição peneirenta e de uma arrogância que lhes tem permitido replicar com revoltante sobranceria aos dois provedores que aquela rádio já teve.
Mudei. Para a Rádio Amália – mesmo antes de assim se chamar. Emociono-me mais com o Fado da Meia-Laranja – "Meio-Inferno de Lisboa, onde a morte anda a viver" – de José Manuel Osório, do que com as elucubrações onanistas de um presunçoso a explicar-me não sei que dores de alma de Aaron Copland pelos "índios apalaches" no seu "Appalachian Spring" que – já agora – o compositor começou por lhe chamar "Ballet for Martha", que não consta que fosse índia – e muito menos apalache!
O que a Rádio Amália me proporciona não é só fado, mas toda a música portuguesa de qualidade, dispensando-me de Rutes Marlenes e das brejeiradas pimbas e pisca-pisca. Mas a Rádio Amália é muito mais do que isso: está a repovoar os bairros, entrelaçá-los, gerir comunidades de vizinhos que se dedicam mutuamente as músicas pedidas, tudo isto num caldo de formidáveis gargalhadas prazenteiras desse distribuidor nato de boa disposição chamado Joaquim Maralhas – com vénia para todos os outros que trabalham naquela rádio.
A alegria que é ouvir um vizinho declamar quase todos os nomes dos inquilinos do seu prédio e da sua rua, ressuscitando o Bairro da Bela Vista e retirando-lhe a condição de soturno dormitório de Lisboa. Ou outro a prestar homenagem ao "presidente da república popular de Moscavide" (Viva ele!). A Rádio Amália está a desempenhar o melhor papel de uma rádio: a tecer comunidades.
Por que me lembrei de vos falar da Rádio Amália? Porque estive até há pouco retido duas semanas na China pela fuligem islandesa e a Rádio Amália me fez companhia pela internet o tempo todo. E como estou a escrever num jornal onde a maioria dos leitores só pode ouvir a Rádio Amália como eu a ouvi na China – pela internet – queria com eles partilhar este segredo: ainda há uma rádio que nos diz que é possível os portugueses se entenderem – e serem amigos.
Bem-haja Rádio Amália, rádio minha gente!» [Óscar Mascarenhas, in "Jornal de Notícias", 10.05.2010]


Muito pertinente e assertivo é este artigo de opinião do jornalista Óscar Mascarenhas. Também eu, que era ouvinte da Antena 2 e, por vezes, da Antena 1, dou comigo a ouvir, cada vez mais amiúde, a Rádio Amália, embora o fado esteja longe de constituir exclusivamente o meu universo de fruição musical. A verdade é que a Rádio Amália, à parte a excessiva carga publicitária e a repetição algo massacrante de determinados anúncios, está a prestar um serviço que é de toda a justiça enaltecer. Estamos em presença de uma estação – e isso ouve-se e sente-se – onde os nossos artistas são respeitados e onde se acarinha a música que é visceralmente nossa, no caso o fado, sempre com uma assinalável fasquia de qualidade na oferta musical, envolta num prazenteiro trabalho de locução. Está, por isso, de parabéns o empresário Luís Montez por ter tido a ousadia e a visão estratégica de arrancar com a Rádio Amália e, bem assim, todos quantos nela trabalham e ela devotam o melhor do seu esforço. Mesmo tratando-se de uma estação privada e, nessa medida, com fins lucrativos, não escondo que ficarei muito satisfeito se a Rádio Amália se tornar a emissora mais ouvida na cidade de Lisboa e região metropolitana. O que teria também a vantagem de evidenciar, com mais ênfase, a degradação em que caiu o chamado serviço público de rádio, designadamente as Antenas 1 e 2, às mãos dos tais "iluminados" onanistas (e de quem lhes tem dado cobertura).
Os males de que padece a Antena 2 são sobejamente conhecidos e eu, em Julho de 2008, tive o ensejo de comunicar a quem de direito um conjunto de medidas a adoptar para os debelar (cf. Antena 0,2: a arte que destoca). E sei que muitos outros ouvintes se pronunciaram no mesmo sentido. Se quem tinha nas suas mãos o poder de as levar a efeito e, ao arrepio do mais elementar bom senso, optou por não o fazer, terá agora de prestar contas aos ouvintes/contribuintes.
Relativamente à Antena 1, e ressalvando os espaços (poucos) da responsabilidade de Armando Carvalhêda, Ana Sofia Carvalhêda e Edgar Canelas, é facilmente constatável que a actual direcção de programas tem em muito pouca conta a música portuguesa mais autêntica e qualificada (ao contrario do que seria expectável e razoável numa estação estatal), privilegiando ao invés os subprodutos pop que as multinacionais (Universal, EMI, Sony/BMG) e a editora do grupo Média Capital (Farol Música) querem vender. Basta atentar na vergonhosa 'playlist' para se perceber o que acabo de afirmar.
Com a Rádio Amália, o fado passou a ter uma antena onde é tratado com a dignidade que merece. Fica a faltar uma estação nos mesmos moldes para a grande música popular portuguesa (tradicional e de autor). Uma rádio onde se pudesse ouvir José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Carlos Paredes, Pedro Caldeira Cabral, Manuel Freire, Fausto Bordalo Dias, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Luís Cília, Vitorino, Janita Salomé, Teresa Silva Carvalho, Teresa Paula Brito, Pedro Barroso, Paco Bandeira, Carlos Mendes, João Lóio, Francisco Naia, Afonso Dias, Fernando Marques, Quarteto 1111, Banda do Casaco, Trovante, Charanga, Né Ladeiras, Teresa Salgueiro (no seio dos Madredeus ou com o Lusitânia Ensemble), Amélia Muge, João Afonso, Filipa Pais, Isabel Silvestre, Rão Kyao, Júlio Pereira, José Peixoto, Pedro Jóia, Manuel d'Oliveira, Joel Xavier, Norberto Lobo, Luís Baptis, Ricardo Parreira, Luísa Amaro, Eduardo Ramos, Francisco Raimundo (Reymundo), Brigada Victor Jara, Almanaque, Raízes, Pedra d'Hera, Terra a Terra, Ronda dos Quatro Caminhos, Vai de Roda, Maio Moço, Trigo Limpo, Alafum, Romanças, José Barros & Navegante, Real Companhia, Sebastião Antunes (no seio do grupo Quadrilha ou a solo), Gaiteiros de Lisboa, Frei Fado d'El Rei, Chamaste-m'Ó, Toque de Caixa, Galandum Galundaina, Lenga Lenga, Trasga, Tuna Popular Lousense, Vá-de-Viró, Dar de Vaia, Nem Truz Nem Muz, Arco da Velha, Marenostrum, Encontros da Eira, Xarabanda, Almma, Belaurora, Aníbal Raposo, Teresa Gentil, Helena Oliveira, Realejo, Danças Ocultas, Fol&ar, Lufa Lufa, Mendes Harmónica Trio, Trilhos, Mandrágora, Dazkarieh, Uxu Kalhus, Mu, Monte Lunai, Gnomon, Roncos do Diabo, Roldana Folk, Lúmen, Pé na Terra, Diabo a Sete, Chuchurumel, César Prata, Assobio, João Filipe, Origem, Andarilhos, Banda Futrica, Ginga, A Barca dos Castiços, Stockholm Lisboa Project, Notas & Voltas, Cantos d'Aurora, Modas à Margem do Tempo, Vento Suão, Sons do Vagar, Roda Pé, Contrabando, Musicalbi, Adufeiras de Monsanto, Cantares de Évora, Moçoilas, Segue-me à Capela, Vozes do Imaginário, etc., etc.
Ao contrário do que algumas pessoas poderão supor, a música popular portuguesa é de uma riqueza extraordinária, quer no número de intérpretes, quer na diversidade estilística, quer na discografia. Direi mesmo que, para muita gente, há aqui um mundo insuspeito e por revelar.
Dei-me ao trabalho de fazer uma escuta cruzada de dezenas de rádios locais, com emissão on-line, de norte a sul do país, e vi-me grego para ouvir alguns dos nomes acima citados nos alinhamentos de continuidade. Assiste-se, inclusive, a um preocupante fenómeno de mimetismo dos conteúdos musicais mais corriqueiros que pululam nas rádios de cobertura nacional (além da música ‘pimba’, evidentemente). Ressalvam-se alguns programas de autor, quase todos de periodicidade semanal, e mesmo esses num escasso número de estações (no caso do fado, há muito mais oferta). Em face de situação tão confrangedora relativamente à música de matriz tradicional no éter português, e estando a estação pública como está, o aparecimento de uma rádio temática dedicada àquela área musical, viria colmatar um importante lacuna no nosso panorama radiofónico, tornando-se, à partida, o refúgio de muitas pessoas que gostam de boa música portuguesa e não a encontram nas emissoras ao seu dispor.
Posto isto, atrevo-me a lançar um desafio a Luís Montez: e que tal uma rádio para a música popular portuguesa? Não digo em Lisboa, mas talvez no Porto, pois tem sido desta cidade que têm saído alguns dos mais interessantes projectos de música tradicional/folk.

Nota: Além da frequência 92.0 FM, para a região de Lisboa, a Rádio Amália pode ser ouvida em qualquer ponto do país e do mundo em: http://www.amalia.fm/?page_id=20

1 comentário:

crazy_violin disse...

Tenho a dizer que a sugestão de uma rádio dedicada a uma música de carácter mais étnico é de facto uma grande ideia, seria um veículo que permitiria assumir a nossa verdadeira identidade cultural. Pese embora o facto de me parecer financeiramente inviável, ou seja, as rádios privadas necessitam de financiamento, que é na sua maioria proveniente das receitas de publicidade, e parece-me que uma rádio com este público alvo não teria valores de audiência suficientes para ser sustentável. Infelizmente... O público só teria a ganhar...