10 junho 2022

Camões recitado e cantado (VIII)


© Felipe Restrepo Acosta, 16 Out. 2018 (Wikimedia Commons)
Estátua de Luís de Camões, em pedra lioz, esculpida por Simões de Almeida, em 1883, integrante da fachada do Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro [mais imagens >> ao fundo]


Neste ano do bicentenário da independência do Brasil (o histórico Grito do Ipiranga aconteceu a 7 de Setembro de 1822), entendemos que faria bastante sentido apresentar no presente 10 de Junho poesia de Camões dita por um brasileiro, no caso pelo embaixador (e também actor) Lauro Moreira. Esses espécimes camonianos são os três sonetos presentes na edição, em duplo CD, "Mãos Dadas: Lauro Moreira interpreta Poemas da Língua Portuguesa" (EMC Digital, 1998). De poesia musicada/cantada escolhemos os "Três Sonetos de Camões", Op. 27, de Fernando Lopes-Graça, interpretados pelo tenor Fernando Serafim acompanhado ao piano por Filipe de Sousa e publicados no CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões" (PortugalSom/Strauss, 1995). Dá-se o caso – feliz coincidência – de dois sonetos ("Sete anos de pastor Jacob servia" e "Alma minha gentil, que te partiste") que Lauro Moreira escolheu terem sido também musicados por Fernando Lopes-Graça, o que nos permite fazer a audição sequencial: a forma recitada seguida da musicada/cantada. Uma celebração camoniana luso-brasileira que nos deu imenso prazer preparar e nos deixará redobradamente gratificados se for do agrado dos leitores/visitantes do blogue "A Nossa Rádio"!

E como tem a rádio pública celebrado Luís de Camões neste dia que lhe é devotado? Apesar do incómodo, desde as 07h:00 até às 20h:00, andámos a fazer 'zapping' entre os três canais nacionais, Antenas 1, 2 e 3. Ouvimos duas pequenas resenhas biográficas: uma no programa da manhã da Antena 3, por Hugo van der Ding, na sua rubrica "Vamos Todos Morrer" [>> RTP-Play] e outra na Antena 2, baseada no livro de José Hermano Saraiva "Vida Ignorada de Camões" (1978), lida por Ana Isabel Gonçalves e Paula Pina, no apontamento "Palavras de Bolso" [>> RTP-Play]. Também escutámos no espaço "Boulevard", da Antena 2, pela mão do seu animador André Pinto, a Sinfonia «À Pátria», de José Vianna da Motta, cujos andamentos são precedidos por epígrafes retiradas d' "Os Lusíadas", interpretada pela Orquestra Filarmónica Real de Liverpool, sob a direcção de Álvaro Cassuto. De poesia camoniana, lográmos ouvir apenas a introdução do soneto apócrifo "Com que voz chorarei meu triste fado", cantado por Amália Rodrigues sobre música de Alain Oulman, que serviu de fundo musical na rubrica de Hugo van der Ding e, citados pelo Prof. Jorge Miranda, no seu discurso das cerimónias oficiais do Dia de Portugal transmitidas pela Antena 1, o verso «Da Lusitana antiga liberdade» (segundo da 6.ª estrofe d' "Os Lusíadas") e os versos 'incipit' de alguns dos sonetos mais conhecidos, entre os quais os dois acima referenciados. Nada mais! Quer dizer: quem chefia os três canais nacionais da rádio pública portuguesa, além de nada fazer no sentido de proporcionar aos seus ouvintes a revisitação ou a audição em primeira mão de registos camonianos de poesia e de teatro existentes no arquivo histórico, limitou-se a ignorar o valioso património discográfico – quer recitado quer musical (popular e erudito) – a que podia deitar mão para celebrar o vulto maior da nossa Língua. No caso das Antenas 1 e 3 nem sequer houve a preocupação de reformular as respectivas 'playlists' ou de dar instruções aos locutores de continuidade para que a oferta musical, fora dos programas de autor (pré-gravados), fosse exclusivamente cantada em português. Absolutamente indecente e vergonhoso!



Sete anos de pastor Jacob servia



Poema (soneto) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 15)
Recitado por Lauro Moreira (in 2CD "Mãos Dadas: Lauro Moreira interpreta Poemas da Língua Portuguesa": CD 1, EMC Digital, 1998)


Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
que a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la:
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe deu a Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
assi lhe era negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida,

começou a servir outros sete anos,
dizendo: — Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida!


Nota:
Jacob – patriarca bíblico, filho de Isaac e de Rebeca, irmão gémeo de Esaú.
Serviu seu tio Labão durante sete anos com a condição de, findo esse período, casar-se com a mais bela das suas filhas, Raquel. No dia das bodas, Labão trocou Raquel pela filha mais velha, Lia. Como, segundo o rito hebraico de então, a noiva era oferecida ao noivo completamente envolvida num véu, Jacob só deu pelo logro no dia seguinte. O tio justificou-se dizendo que não era costume casarem-se as filhas mais novas primeiro e contratou com Jacob mais sete anos, após o que lhe deu Raquel em casamento.
De Lia, de Raquel e das suas duas escravas, Zilfa e Bila, Jacob teve doze filhos que fundaram as doze tribos de Israel.



Sete anos de pastor Jacob servia



Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 15)
Música: Fernando Lopes-Graça (1.ª peça de "Três Sonetos de Camões", Op. 27, LG 168, 1939)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)




Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
que a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la:
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava a Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
assi lhe era negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida,

começa de servir outros sete anos,
dizendo: — Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida!


* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano



Alma minha gentil, que te partiste



Poema (soneto) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 9)
Recitado por Lauro Moreira (in 2CD "Mãos Dadas: Lauro Moreira interpreta Poemas da Língua Portuguesa": CD 1, EMC Digital, 1998)


Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida, descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na Terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma coisa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.


Nota: «Vindo de lá [da China] se foi perder na costa de Sião [Tailândia], onde se salvaram todos despidos e o Camões por dita escapou com as suas "Lusíadas", como ele diz nelas, e ali se afogou ũa moça china muito fermosa com que vinha embarcado e muito obrigado, e em terra fez sonetos à sua morte em que entrou aquele que diz: Alma minha gentil, que te partiste...» (excerto do manuscrito da "Década VIII", atribuído a Diogo do Couto, c.1542-1616)



Alma minha gentil, que te partiste



Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 9)
Música: Fernando Lopes-Graça (2.ª peça de "Três Sonetos de Camões", Op. 27, LG 168, 1939)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)




Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida, descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na Terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.


* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano



Busque Amor novas artes, novo engenho



Poema (soneto) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 7)
Recitado por Lauro Moreira* (in 2CD "Mãos Dadas: Lauro Moreira interpreta Poemas da Língua Portuguesa": CD 1, EMC Digital, 1998)


Busque Amor novas artes, novo engenho
para matar-me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
pois mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Pois não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que na alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.


Notas:
Esquivanças – manobras
Perigosas – efémeras
Contrastes – contrariedades
Lenho – barco

* Lauro Moreira – voz
Concepção, selecção de textos e direcção – Lauro Moreira
Produção – Júlio Heilbron
Produção executiva – Gilberta Mendes
Coordenação – Cristina Barros
Gravado e masterizado no EG Studio, em Outubro de 1998
Técnicos de som – Gilberto Suano, Florência Saraiva e Geraldo Brandão
URL: https://www.cepese.pt/portal/pt/publicacoes/autores/lauro-moreira
https://pgl.gal/lauro-moreira-embaixador-do-brasil-na-cplp/



Oh! Como se me alonga de ano em ano



Poema: Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 21)
Música: Fernando Lopes-Graça (3.ª peça de "Três Sonetos de Camões", Op. 27, LG 168, 1939)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)




Oh! Como se me alonga de ano em ano
a peregrinação cansada minha!
Como se encurta e como ao fim caminha
este meu breve e vão discurso humano!

Minguando a idade vai, crescendo o dano;
perdeu-se-me um remédio, que inda tinha;
se por experiência se adivinha,
qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;
no meio do caminho me falece;
mil vezes caio e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e na tardança,
se os olhos ergo, a ver se inda aparece,
da vista se me perde e da esperança.


* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano
Supervisão artística – Fernando Lopes-Graça
Direcção musical – Jorge Costa Pinto
Produção – Secretaria de Estado da Cultura (Direcção-Geral de Acção Cultural)
Gravado nos Estúdios Jorsom, Lisboa, nos dias 12, 13 e 15 de Dezembro de 1983
Técnico de som – João Magalhães
Remasterização digital – Fernando Abrantes (Strauss Studio, Lisboa)
URL: https://www.meloteca.com/portfolio-item/fernando-serafim/
https://www.facebook.com/FernandoSerafimMusic
https://www.meloteca.com/portfolio-item/filipe-de-sousa/



Capa da caixa (contendo dois CDs e livrete) de "Mãos Dadas: Lauro Moreira interpreta Poemas da Língua Portuguesa" (EMC Digital, 1998)
Gravura – Patrícia de Oliveira
Fotografia – Mônica Moreira



Capa do CD 1 de "Mãos Dadas: Lauro Moreira interpreta Poemas da Língua Portuguesa" (EMC Digital, 1998)
Gravura – Patrícia de Oliveira
Fotografia – Mônica Moreira



Capa do CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", de Fernando Serafim e Filipe de Sousa (PortugalSom/Strauss, 1995)
Pintura de Andrea Mantegna (c.1474) retratando Bárbara Gonzaga, filha de Ludovico III Gonzaga, Marquês de Mântua, e de sua esposa Bárbara de Brandemburgo (pormenor de um fresco existente na Camera degli Sposi, no torreão nordeste do Castelo de S. Jorge, em Mântua)



Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro: fachada em estilo neomanuelino, segundo projecto do arquitecto português Rafael da Silva e Castro. A primeira pedra do edifício foi lançada a 10 de Junho de 1880, pelo imperador D. Pedro II, e a inauguração aconteceu a 22 de Dezembro de 1888.



Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro: mosaico no piso de entrada.



Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro: biblioteca e parte do tecto.
Com um acervo de aproximadamente 350 mil volumes, parte dos quais verdadeiras preciosidades bibliográficas, como um exemplar da edição 'princeps' d' "Os Lusíadas" (1572), esta biblioteca foi considerada pela revista "Time", em 2014, uma das vinte mais belas do mundo.





Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro: biblioteca e respectivo tecto encimado por clarabóia octogonal.



Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro: retrato de Luís de Camões (medalhão) pintado num dos quatro cantos abaixo da clarabóia.

Mais informação sobre o monumento em:
https://historiacomgosto.blogspot.com/2019/06/rio-de-janeiro-o-real-gabinete.html

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Outros artigos com poesia de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
Camões recitado e cantado (IV)
Camões recitado e cantado (V)
Camões recitado e cantado (VI)
Camões recitado e cantado (VII)

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