21 março 2024
Luís de Camões: "Os Lusíadas" (dois excertos), por Carlos Wallenstein
Roque Gameiro, "A Partida de Vasco da Gama para a Índia em 1497", c. 1900, litografia, Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa
Não sendo conhecida a certidão de nascimento nem o assento de baptismo de Luís de Camões, vários estudiosos têm aventado hipotéticas datas (exactas ou aproximadas) para a sua nascença com base em referências de cariz biográfico encontradas na sua obra. Uma delas aparece na primeira quadra do soneto "O dia em que nasci morra e pereça" e deu recentemente azo a que académicos da Universidade de Coimbra estabelecessem uma data precisa: 23 de Janeiro de 1524, um ano antes do eclipse solar que se supõe ser o que o poeta tinha no pensamento quando escreveu a palavra 'eclipse' no poema em questão. Embora com outras datas, o ano 1524 é o mais apontado entre as várias hipóteses já esboçadas, pelo que podemos tomá-lo em boa conta para efeitos da celebração do quinquicentenário do nascimento. Assim sendo, no presente Dia Mundial da Poesia não podia faltar algo que saiu da pena do maior vulto da Literatura (de Língua) Portuguesa. E o que escolher da sua vasta produção? Ora a efeméride do 530.º aniversário do Tratado de Tordesilhas que ocorre no próximo 7 de Junho remete-nos para a Expansão Portuguesa e, necessariamente, para a viagem marítima de Vasco da Gama até à Índia, narrada a letras de ouro nesse colossal monumento literário a que Camões deu o título de "Os Lusíadas". É pois apresentando dois excertos da genial epopeia – os referentes à Partida das Naus (Canto IV) e ao Fogo-de-Santelmo e à Tromba Marítima (Canto V) –, admiravelmente recitados pelo actor Carlos Wallenstein, que celebramos o Dia da Poesia de 2024. Boa escuta!
Vem a talhe de foice fazer um ponto de situação da poesia na radio pública...
Na Antena 2, graças aos cuidados de Paulo Alves Guerra (no programa da manhã) e, sobretudo, de Luís Caetano (na rubrica "A Vida Breve" e, ocasionalmente, nos programas "A Força das Coisas" e "A Ronda da Noite"), vai sendo possível ouvir boa poesia. Não obstante, temos sentido a falta do apontamento "O Som Que os Versos Fazem ao Abrir" que Luís Caetano vinha mantendo em colaboração com Ana Luísa Amaral, que acabou por um motivo de força maior: o falecimento da distinta poetisa e professora de literatura. Faz muito sentido existir no canal (mais) cultural da rádio pública um espaço de poesia comentada (abarcando diferentes épocas), e não duvidamos que haja em Portugal alguém que possa continuar o trabalho de Ana Luísa Amaral, ainda que o título possa ser outro (isso é de somenos importância). Fica lançado o repto a Luís Caetano e à direcção de programas da Antena 2. Igualmente no segundo canal, fazemos ainda menção a duas rubricas que também dão guarida à poesia, se bem que não exclusivamente: "Ambos na Mesma Página", de Raquel Marinho, que peca pela leitura excessivamente 'branca' dos textos; "Páginas de Português", de José Manuel Matias, com a actriz Maria Henrique na leitura (pouco cativante) de poemas; e "Palavras de Bolso", de Ana Isabel Gonçalves e Paula Pina, direccionada para o público mais jovem.
E nas Antenas 1 e 3? Só pela mão de David Ferreira, no seu imperdível programa dominical "A Cena do Ódio" (Antena 1), aparece um ou outro poema dito/recitado, de vez em quando. A inexistência de uma rubrica regular de poesia é chocante, e podia muito bem ser garantida a sua existência sem se gastar um chavo: bastaria fazer uso da arca do tesouro que é o arquivo da RDP. E não se tem feito por uma simples razão: Nuno Galopim de Carvalho e Nuno Reis são indivíduos com a sensibilidade embotada para a poesia. Mas será admissível que o serviço público de rádio seja prejudicado por causa disso?
A PARTIDA DAS NAUS
Versos de Luís de Camões (estrofes 84 a 93 do Canto IV d' "Os Lusíadas", Lisboa, 1572; "Os Lusíadas", Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 1972 – p. 151-154; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 1234-1236)
Recitados por Carlos Wallenstein* (in LP "Camões: Antologia", Série "Disco Falado", Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Col. Palavras, Strauss, 2002)
E já no porto da ínclita Ulisseia,
C'um alvoroço nobre e c'um desejo
(Onde o licor mistura e branca areia
Co'o salgado Neptuno o doce Tejo)
As naus prestes estão; e não refreia
Temor nenhum o juvenil despejo,
Porque a gente marítima e a de Marte
Estão para seguir-me a toda a parte.
Pelas praias vestidos os soldados
De várias cores vêm e várias artes,
E não menos de esforço aparelhados
Para buscar do mundo novas partes.
Nas fortes naus os ventos sossegados
Ondeiam os aéreos estandartes.
Elas prometem, vendo os mares largos,
De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos.
Depois de aparelhados, desta sorte,
De quanto tal viagem pede e manda,
Aparelhámos a alma para a morte,
Que sempre aos nautas ante os olhos anda.
Para o sumo Poder, que a etérea Corte
Sustenta só co'a vista veneranda,
Implorámos favor que nos guiasse
E que nossos começos aspirasse.
Partimo-nos assim do santo templo
Que nas praias do mar está assentado,
Que o nome tem da terra, para exemplo,
Donde Deus foi em carne ao mundo dado.
Certifico-te, ó Rei, que, se contemplo
Como fui destas praias apartado,
Cheio dentro de dúvida e receio,
Que apenas nos meus olhos ponho o freio.
A gente da cidade, aquele dia,
(Uns por amigos, outros por parentes,
Outros por ver somente) concorria,
Saudosos na vista e descontentes.
E nós, co'a virtuosa companhia
De mil Religiosos diligentes,
Em procissão solene, a Deus orando,
Para os batéis viemos caminhando.
Em tão longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam,
As mulheres c'um choro piedoso,
Os homens com suspiros que arrancavam.
Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam
A desesperação e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo.
Qual vai dizendo: Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Porque me deixas, mísera e mesquinha?
Porque de mim te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento
Onde sejas de peixes mantimento?
Qual em cabelo: Ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Porque is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha e não é vossa?
Como, por um caminho duvidoso,
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento,
Quereis que com as velas leve o vento?
Nestas e outras palavras que diziam
De amor e de piedosa humanidade,
Os velhos e os meninos as seguiam,
Em quem menos esforço põe a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quase movidos de alta piedade;
A branca areia as lágrimas banhavam,
Que em multidão com elas se igualavam.
Nós outros, sem a vista alevantarmos
Nem a Mãe, nem a Esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assim nos embarcarmos,
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
* Carlos Wallenstein – voz
Selecção de textos/poemas – Carlos Wallenstein
Direcção literária – Alberto Ferreira
Assistente de produção – Carmen Santos
Produção – Sassetti
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa
Captação de som e montagem – Moreno Pinto
Remasterização – Jorge d'Avillez (Strauss Studio, Lisboa)
Roque Gameiro, "Partida de Vasco da Gama para a Índia", ilustração inclusa no livro "Quadros da História de Portugal", de Chagas Franco e João Soares (Lisboa: Papelaria Guedes, 1917)
FOGO-DE-SANTELMO e TROMBA MARÍTIMA
Versos de Luís de Camões (estrofes 16 a 23 do Canto V d' "Os Lusíadas", Lisboa, 1572; "Os Lusíadas", Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 1972 – p. 164-166; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 1244-1245)
Recitados por Carlos Wallenstein* (in LP "Camões: Antologia", Série "Disco Falado", Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Col. Palavras, Strauss, 2002)
Contar-te longamente as perigosas
Coisas do mar, que os homens não entendem,
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpagos que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões, que o mundo fendem,
Não menos é trabalho que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.
Os casos vi que os rudos marinheiros,
Que tem por mestra a longa experiência,
Contam por certos sempre e verdadeiros,
Julgando as coisas só pela aparência,
E que os que têm juízos mais inteiros,
Que só por puro engenho e por ciência
Vêem do mundo os segredos escondidos,
Julgam por falsos ou mal entendidos.
Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por Santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e cousa, certo, de alto espanto,
Ver as nuvens, do mar com largo cano,
Sorver as altas águas do Oceano.
Eu o vi certamente (e não presumo
Que a vista me enganava): levantar-se
No ar um vaporzinho e subtil fumo
E, do vento trazido, rodear-se;
De aqui levado um cano ao Pólo sumo
Se via, tão delgado, que enxergar-se
Dos olhos facilmente não podia;
Da matéria das nuvens parecia.
Ia-se pouco e pouco acrescentando
E mais que um largo mastro de engrossava;
Aqui se estreita, aqui se alarga, quando
Os golpes grandes de água em si chupava;
Estava-se com as ondas ondeando;
Em cima dele ũa nuvem se espessava,
Fazendo-se maior, mais carregada,
Co'o cargo grande d'água em si tomada.
Qual roxa sanguessuga se veria
Nos beiços da alimária (que, imprudente,
Bebendo a recolheu na fonte fria)
Fartar co'o sangue alheio a sede ardente;
Chupando, mais e mais se engrossa e cria,
Ali se enche e se alarga grandemente:
Tal a grande coluna, enchendo, aumenta
A si e a nuvem negra que sustenta.
Mas, depois que de todo se fartou,
O pé que tem no mar a si recolhe
E pelo céu, chovendo, enfim voou,
Por que co'a água a jacente água molhe;
Às ondas torna as ondas que tomou,
Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe.
Vejam agora os sábios na escritura
Que segredos são estes de Natura.
Se os antigos Filósofos, que andaram
Tantas terras, por ver segredos delas,
As maravilhas que eu passei, passaram,
A tão diversos ventos dando as velas,
Que grandes escrituras que deixaram!
Que influição de signos e de estrelas,
Que estranhezas, que grandes qualidades!
E tudo, sem mentir, puras verdades.
* Carlos Wallenstein – voz
Selecção de textos/poemas – Carlos Wallenstein
Direcção literária – Alberto Ferreira
Assistente de produção – Carmen Santos
Produção – Sassetti
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa
Captação de som e montagem – Moreno Pinto
Remasterização – Jorge d'Avillez (Strauss Studio, Lisboa)
URL: http://www.cinept.ubi.pt/pt/pessoa/2143690279/Carlos+Wallenstein
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/perfil-carlos-wallenstein/
https://music.youtube.com/channel/UCAB5mYWk4Z9tVkwp-RrXdgQ
Frontispício da 1.ª edição d' "Os Lusíadas", de Luís de Camões (Impressos em Lisboa: em casa de Antonio Gõçaluez Impressor, 1572)
Capa do LP "Camões: Antologia", de Carlos Wallenstein (Série "Disco Falado", Guilda da Música/Sassetti, 1973)
Concepção – Soares Rocha
Capa da reedição em CD do álbum "Camões: Antologia", de Carlos Wallenstein (Col. Palavras, Strauss, 2002)
Retrato de Camões – Soares Rocha
Grafismo – João P. Cachenha
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Outros artigos com poesia de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
Camões recitado e cantado (IV)
Camões recitado e cantado (V)
Camões recitado e cantado (VI)
Camões recitado e cantado (VII)
Camões recitado e cantado (VIII)
Camões recitado e cantado (IX)
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Outros artigos com poesia dita/recitada:
Mário Viegas: 10 anos de saudade
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Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Arte e poesia
Poesia na rádio (II)
A infância e a música portuguesa
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Sebastião da Gama: "Poesia", por Carmen Dolores
João Villaret: centenário do nascimento
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Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
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Miguel Torga: "Ode à Poesia", por João Villaret
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Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
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