01 janeiro 2024

Natália Correia: "Ode à Paz", por Afonso Dias


Julie Joy, "World Peace", p. 23 Jan. 2018 (in "Fine Art America")


                A paz é a única maneira de nos sentirmos
                verdadeiramente humanos.

                                          ALBERT EINSTEIN


A Paz, filha dilecta da Justiça e do Bem, é, todavia, frágil e soçobra quando acometida pelo monstro feroz da destruição e da morte que, nas línguas românicas ocidentais, tem o nome de guerra/guerre. Sendo esse monstro uma manifestação da faceta mais animalesca da espécie homo sapiens sapiens, a História já nos mostrou que pode ser contido/inactivado, se nesse nobilíssimo propósito a Humanidade se empenhar, de alma e coração. Assim aconteceu na Europa (continente que desde o colapso do Império Romano sempre fora palco de confrontos bélicos entre povos e nações) nas décadas que se seguiram à colossal hecatombe de 1939-45 – paz essa que só foi interrompida, em 1992, pela guerra da Bósnia-Herzegovina e, em Fevereiro de 2022, pela invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin. É verdade que noutras paragens, mormente no Próximo Oriente e em África, se sucederam guerras, mas quase todas de feição étnico-tribal-religiosa, em resultado da malévola herança dos colonizadores europeus (que traçaram fronteiras a régua e esquadro, sem o mínimo respeito pelos povos e culturas locais), e que têm sido bastante fomentadas pelo muito lucrativo negócio de armas, cuja indústria – é bom ter noção disso – se situa maioritariamente na América do Norte e na Europa. Tudo confrontos que, por estarem relativamente longe do Ocidente, tendiam a ser desconsiderados e esquecidos pelos governos e também sem especial impacto nas opiniões públicas. A inesperada invasão da Ucrânia por um déspota saudosista do grandioso passado do Império Russo e, mais recentemente, a reactivação da guerra na Palestina, decorrente da continuada e inqualificável opressão israelita sobre o povo palestino, despertaram muitos ocidentais da modorra em que parecia terem caído e espicaçaram-lhes as consciências para a necessidade de pugnarem pela defesa e promoção da Paz. Antes, distintos escritores e poetas já haviam escrito romances e poesia de denúncia dos horrores da guerra e em exaltação da benéfica Paz. Entre esses poemas conta-se a "Ode à Paz", de Natália Correia, talvez o mais lapidar libelo de repúdio da terrífica e mortífera guerra e de suplicante invocação da benigna e vivificante Paz. Atendendo à preocupante e perigosa situação a que o mundo chegou, este Dia Mundial da Paz, que é o 60.º primeiro de Janeiro após a publicação da encíclica Pacem in Terris, do bom papa João XXIII, afigurou-se-nos a oportunidade perfeita para revisitarmos a referida ode nataliana e darmos-lhe aqui destaque na voz de Afonso Dias. Sentir-nos-emos gratificados se a leitura/audição de tão lúcidas e sábias palavras ajudar os leitores/visitantes do blogue "A Nossa Rádio" a valorizarem (mais) a Paz e a empenharem-se em acções concretas a seu favor. Não haja ilusões: a Paz mundial só se alcançará se as massas, sobretudo dos países económica e tecnologicamente mais desenvolvidos, se manifestarem de modo veemente e persistente pressionando os dirigentes políticos a tomarem decisões efectivas e justas que façam calar as armas e propiciem a conciliação dos povos desavindos!

Se o programa "Lugar ao Sul" ainda estivesse em antena, é certo que os ouvintes do primeiro canal da rádio pública teriam a oportunidade de escutar poesia recitada por Afonso Dias e, bem assim, canções suas. Hoje em dia, só muito esporadicamente surge uma ou outra canção do cantautor no espaço "Alma Lusa" e com a agravante da transmissão ser a desoras (entre a meia-noite de domingo e as 2h:00 da madrugada de segunda-feira, que é dia de trabalho). Importa, pois, que, sem prejuízo de passar a haver (e não há razão para que não haja) um espaço consagrado à exploração da vasta e preciosa discografia de música popular portuguesa – a de raiz tradicional e o repertório dos cantautores –, seja reformada a 'playlist' (cujo peso na programação musical do canal é descomunal) de modo a dar visibilidade (ou audibilidade, melhor dizendo) à melhor música portuguesa de vários géneros (e não apenas da que se inscreve na área 'pop'), e se crie, também, um apontamento diário de poesia, a fim de dar divulgação radiofónica ao rico património discográfico de poesia dita/recitada de língua portuguesa. Aliás, a poesia dita sempre foi, desde os primórdios da estação pública de rádio, uma das suas marcas distintivas de excelência, e só por leviana e desatinada decisão do "subalimentado do sonho" António Luís Marinho é que foi suspensa, já lá vão vinte anos.



ODE À PAZ



Poema de Natália Correia (in "Drujba – Amizade", revista da Associação Portugal-Bulgária, Julho/Setembro de 1989; De "Inéditos (1985/1990)", in "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 311; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 559-560)
Recitado por Afonso Dias* (in CD "Poesia de Natália Correia", col. Selecta, Música XXI, 2007)
Música de fundo: Piotr Ilitch Tchaikovski, "O Quebra-Nozes", Op. 71, Acto I: 9. Valsa dos Flocos de Neve, por Baltimore Symphony Orchestra, dir. Sergiu Comissiona (Turnabout, 1979)


Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
                      deixa passar a Vida!


* Afonso Dias – voz
Organização, selecção e apresentação – Afonso Dias
Captação de som, mistura e masterização – Adriano St. Aubyn
URL: https://www.algarvios.pt/members/afonso-dias/info/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Dias
https://www.tsf.pt/programa/onde-nos-levam-os-caminhos/afonso-dias-fundador-do-gac-poeta-deputado-honorario-nao-vos-esquecais-da-constituicao-16109037.html
https://www.facebook.com/afonso.dias.31
https://www.youtube.com/@afonsodias4584/videos
https://music.youtube.com/channel/UCChoajupsYfGsG5uIGj8XMA



Sobrecapa do livro "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II", de Natália Correia (Lisboa: Círculo de Leitores, 1993)
Concepção – Clementina Cabral



Capa da 1.ª edição do livro "Poesia Completa", de Natália Correia (Col. Poesia do Século XX, Vol. 32, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999)



Capa do CD "Poesia de Natália Correia", de Afonso Dias, com a colaboração de Isabel Afonso Dias, Meguy, Rita Neves, Tânia Silva e Telma Veríssimo (Col. Selecta, Música XXI, 2007)

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