10 junho 2020

Camões recitado e cantado (VI)


Estátua de Luís de Camões, em bronze, sita na praça com o mesmo nome, em Lisboa. Concebida pelo escultor Victor Bastos, foi inaugurada pelo rei D. Luís, a 9 de Outubro de 1867.


Se alguém tomasse a iniciativa de fazer um inquérito de rua em Portugal, pedindo aos transeuntes que dissessem o primeiro verso que lhes viesse à cabeça, os dois mais citados seriam muito provavelmente os camonianos «As armas e os barões assinalados» e «Amor é (um) fogo que arde sem se ver». O soneto cujo incipit é este verso já foi apresentado neste blogue, recitado por João Villaret [cf. Camões recitado e cantado] e por Eunice Munõz [cf. Camões recitado e cantado (II)], mas a estância primeira d' "Os Lusíadas" ainda não. Surgiu hoje a oportunidade de colmatarmos essa lacuna e de celebrarmos as primeiras estrofes da Proposição do monumental poema épico, mediante a apresentação de três registos: o primeiro recitado (por Afonso Dias), o segundo cantado (por António Pinto Basto, com música de José Cid) e o terceiro também cantado (por José Mário Branco, com música dele próprio e uma melodia popular). No último, o saudoso cantautor não se restringe ao cultivo da poesia do genial vate, antes utiliza-a como o mais elevado referencial da literatura de língua portuguesa e o ponto de partida para denunciar a tresloucada 'reforma' ortográfica que em meados dos anos 80 se estava a cozinhar e que estipulava a abolição total dos acentos gráficos. Os mixordeiros e os politiqueiros da língua recuaram nesse ponto, em parte, mas não desistiram de aprovar a bo(u)rrada que é o AO90, cujos efeitos perniciosos são hoje bem notórios em Portugal, não só na escrita como na pronúncia de muitas palavras. «As palavras estão em crise», como bem assertivamente escreveu e cantou José Mário Branco, pelo que a inclusão da sua "Arrocachula" nesta celebração camoniana se afigura inteiramente pertinente.

Apesar do incómodo e do desconforto, andámos hoje com a Antena 1 'debaixo de ouvido'. Em primeiro lugar, registamos com agrado o surgimento – finalmente! – de um apontamento de poesia, chamado "Palavra de Ordem" [>> RTP-Play]: tivemos o ensejo de ouvir, em momentos diferentes, um poema de Eugénio de Andrade, dito por Beatriz Batarda, e outro de Alexandre O'Neill, na voz de Rui Morisson. E também nos foi grato notar a ausência, na 'playlist', do corriqueiro lixo sonoro anglo-saxão (mau grado subsistir ainda muita escória endógena), mas duvidamos que tal situação seja para durar. O que nos deixou assaz desgostosos foi não nos 'sair na rifa' um naco, por pequeno que fosse, da poesia de Camões, na forma cantada ou recitada. Como é possível tal desconsideração àquele que mais alto alevantou a Língua Portuguesa, no dia que o País escolheu para o celebrar, pela rádio do próprio Estado?



Os Lusíadas: Canto I (estrofes 1.ª e 2.ª)



Versos de Luís de Camões (in "Os Lusíadas", Lisboa, 1572; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 1121)
Recitados por Afonso Dias* (in CD "Cantando Espalharey: Vol. I", Edere, 2001)


As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.


* Afonso Dias – voz
Pesquisa e produção – Afonso Dias e André Dias
Gravado no Estúdio InforArte, Chinicato, Lagos
Técnicos de som – Fernando Guerreiro e Joaquim Guerreiro



As Armas e os Barões Assinalados



Versos: Luís de Camões (estrofes 1.ª, 2.ª, 3.ª e 6.ª do Canto I d' "Os Lusíadas", Lisboa, 1572; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 1121-1122) [texto integral em "Jornal de Poesia"]
Música: José Cid
Intérprete: António Pinto Basto (in LP/CD "Camões, as Descobertas... e Nós", de José Cid* e Amigos, Mercury/Polygram, 1992)




As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
E em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

E vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade,
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
(Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Pera do mundo a Deus dar parte grande);

As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana...


* António Pinto Basto – voz
Músicos participantes:
Pedro Caldeira Cabral – guitarra portuguesa
Francisco Martins – viola de 12 cordas solo baixo
Francisco Cardoso – bateria e percussões
José Cid – sintetizadores, cítara indiana e coros
João Veiga – viola acústica
José Luís Nobre Costa – guitarra portuguesa

Arranjos e produção – José Cid
Gravado e misturado em casa de José Cid, Mogofores, Anadia
Engenheiros de som – Vítor Moreira e Jorge Barata
Montagem digital – Jorge Hipólito



Arrocachula



Versos: Luís de Camões (1.ª estrofe d' "Os Lusíadas") e José Mário Branco
Música: José Mário Branco e Popular
Intérprete: José Mário Branco* (in LP "A Noite", de José Mário Branco*, UPAV, 1985, reed. Schiu!/Transmédia, 1987, EMI-VC, 1996, Warner Music Portugal, 2017)




As armas e os barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram.
[bis]

[instrumental]

O problema é que agora já conheçu
Todas as regrâs
Do novo jogu

E verdade verdadinhâ
Já não é fácil
Ser-se musicu

São as mesmíssimas palavrâs
Só os assentus
É que mudarão

O agudo é exdruxulu
E o exdruxulu
Agora é gra

Ai, as palavras estão em crise
E não é só pelo que elas querem dizer [bis]
Ai, as palavras têm raízes
Que começam no som que eles estão a perder [bis]

La larai laraio
La larai laraio
La larai laraio

[instrumental]

Arrocachula, arrocachula
Arrocachula na espinal-medula
[10x]

[instrumental]

O problema é que agora já conheçu
Todas as regrâs
Do novo jogu

E verdade verdadinhâ
Já não é fácil
Ser-se musicu

São as mesmíssimas palavrâs
Só os assentus
É que mudarão

O agudo é exdruxulu
E o exdruxulu
Agora é gra

Não faz sentido que as palavras
Percam música na música que aparecer [bis]
Ai, o sentido que é perdido
É o ouvido que as palavras estão a perder [bis]

La larai laraio
La larai laraio
La larai laraio

[instrumental / coro]


* Viola eléctrica – Rui Veloso
Viola "raspada" e voz – José Mário Branco
Roland JX-8P – António Emiliano
Bateria – Henry Sousa
Baixo – Paulo Jorge
Trompete – Tomás Pimentel
Saxofone tenor – Rui Cardoso
Trombone – José Oliveira
Clarinete – Artur Moreira
Pífaro – José Pedro Calado
Violino "rabecado" – Luís Cunha
Viola acústica, viola braguesa e cavaquinhos – Júlio Pereira
Bombos e caixas – Rui Júnior e José Mário Branco
Ferrinhos – Rui Júnior
Coro – Formiga, Isabel Campelo, Madalena Leal, Graça e Necas Moreira, Rui Vaz e Gustavo Sequeira
Coro do refrão – Rui Veloso e José Mário Branco
Arranjo de metais – Tomás Pimentel e José Mário Branco

Arranjos e direcção musical – José Mário Branco
Produção artística – Manuela de Freitas, José Manuel Fortes, Trindade Santos e José Mário Branco
Produção executiva – Carlos Batista
Gravado no Angel Studio II, Lisboa, de 8 a 22 de Abril de 1985
Captação de som – José Manuel Fortes
Misturas – José Manuel Fortes e José Mário Branco
Transferência e remasterização para CD (edição de 1996) – José Manuel Fortes



Frontispício da 1.ª edição d' "Os Lusíadas", de Luís de Camões (Impressos em Lisboa: em casa de Antonio Gõçaluez Impressor, 1572)



Capa do CD "Cantando Espalharey: Vol. I", de Afonso Dias (Edere, 2001)
Concepção – Tiago Silva



Capa do CD "Camões, as Descobertas... e Nós", de José Cid e Amigos (Mercury/Polygram, 1992)
Ilustração – Miguel Levy
Design – Álvaro Reis



Capa do LP "A Noite", de José Mário Branco (UPAV, 1985)
Fotografia – Luiz Carvalho
Concepção – Artur Henriques

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Outros artigos com poesia de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
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