01 outubro 2021

Luiza Todi por Carmen Dolores segundo Margarida Lisboa



LUIZA TODI, uma das maiores cantoras líricas do seu tempo, nasceu em Setúbal, a 9 de Janeiro de 1753, e faleceu em Lisboa, a 1 de Outubro de 1833. Filha de Ana Joaquina de Almeida e do mestre de música Manuel José de Aguiar, recebeu no baptismo o nome de Luísa Rosa de Aguiar.
Ainda na sua terra natal, entre 1758 e 1763, Luísa e três dos seus irmãos familiarizam-se com a arte de representação frequentando a residência de uma dama setubalense que organizava espectáculos teatrais em privado. Com dez anos de idade, ingressou no teatro profissional por mão de seu pai. Por contrato firmado a 6 de Julho de 1763, Manuel José de Aguiar e quatro dos seus filhos mais velhos (Cecília Rosa, António José, Isabel Ifigénia e Luísa Rosa) passavam a integrar a companhia do Teatro do Bairro Alto (Teatro do Conde de Soure).
Da prestação de Luísa no teatro declamado, que se cingiria à fase inicial do seu percurso artístico, há registo do seu desempenho como Faustina em "Tartufo" (versão da comédia de Molière realizada por Manuel de Sousa, sob encomenda do Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Mello), provavelmente em 1768. Casou-se, a 28 de Julho de 1769, com o napolitano Francesco Saverio Todi, primeiro violinista da orquestra do Teatro, que enviuvara dois meses antes. Pouco tempo depois, a cantora sadina, com a sua voz de mezzosoprano, seguiria a via operática. Na temporada de 1770-1771 do Teatro do Bairro Alto, cantou em três drammi giocosi per musica, dois dos quais musicados por Giuseppe Scolari. Na sequência de uma querela que surgiu, durante a execução de "Il bejglierbei di Caramania", entre aquele compositor e Francesco Todi, este e a mulher desligaram-se da Casa da Ópera do Bairro Alto. Contratada pelo Teatro do Corpo da Guarda, a cantora apresentou-se naquela casa de espectáculos do Porto entre 1771 e Janeiro de 1776, com um interregno no período compreendido entre Setembro de 1774 e finais de Janeiro do ano seguinte, em que, de regresso à capital, permaneceu incorporada no elenco do Teatro da Rua dos Condes, composto quase em exclusivo por artistas italianos. Em Lisboa cantou apenas em "Il Calandrano", saindo do Condes a meio dos ensaios de outra ópera cómica, em virtude de desentendimentos com os corpos directivos da Sociedade instituída para a subsistência dos Teatros Públicos da Corte. A última actuação de Luiza Todi em salas públicas do território português ocorreria na cidade do Porto, em 1775. Antes disso, em Junho de 1772, os frequentadores do Teatro do Corpo da Guarda puderam assistir ao seu desempenho em "Demoofonte", uma ópera do género sério a que melhor se ajustavam as suas características vocais e a expressão do seu canto. Para trabalhar e apurar os dotes canoros de Luiza terá contribuído o próprio marido e, acima de tudo, outro napolitano, o compositor David Perez, seu mestre dos tempos do Teatro do Bairro Alto e autor da partitura daquele "Demoofonte" de 1772.
Os Todi saíram de Portugal em 1777 a fim de Luiza atender a convites que lhe chegavam do país vizinho para se exibir em recitais privados, o que viria a suceder com relativa frequência noutros países ao longo do seu percurso artístico. A estreia pública no estrangeiro só viria a ocorrer em Londres, no King’s Theatre (Haymarket), no mês de Novembro do mesmo ano de 1777. Aí actuou, até Junho de 1778, em seis drammi giocosi per musica. Após o exórdio londrino, começou a dedicar-se ao género operático sério vindo posteriormente a pôr termo aos desempenhos na ópera cómica.
Durante vinte e dois anos, a contar de 1777, a Todi construiu uma brilhante carreira internacional, acumulando sucessos de público e aclamações da crítica nas muitas cidades europeias de diferentes áreas linguístico-culturais onde a sua voz se fez ouvir. Em França participou em quatro temporadas dos Concerts Spirituels parisienses (1778-1779; 1779-1780; 1783, 1789) e realizou uma digressão pelo sul do país que se estenderia também a terras suíças (1779). Na área de língua alemã, actuou em cidades austríacas (Viena, entre outras) e germânicas (1781-1782), tendo sido contratada duas vezes por Frederico II para cantar na capital da Prússia, Berlim (1783-1784; 1787-1789). Na Rússia apresentou-se em Sampetersburgo e Moscovo (1784-1787) ao serviço da czarina Catarina II, a quem dedicou a festa teatrale per musica "Pollibia" (1784), com libreto da sua autoria. Após uma curta digressão nos Países-Baixos, durante alguns meses da Primavera de 1790, a Todi chegava a Veneza, no Outono desse ano, mas a sua estreia na Península Itálica tivera lugar na cidade de Turim, cerca de oito anos antes. A temporada veneziana (1790-1791) no Teatro di San Samuele, que registou um tão memorável triunfo a ponto de ficar conhecida como "anno Todi", marcava o início da digressão italiana da cantora, que a levaria a Pádua, Bérgamo (1791) e novamente a Turim (1791-1792).
Antes de concluir o périplo italiano e assim, também, a sua carreira internacional, viajou até à Península Ibérica, a fim de cumprir um contrato para actuar num teatro madrileno por duas temporadas (1792-1793; 1793-1794). Entre estas duas estações teatrais, deslocou-se a Lisboa onde cantou na Real Casa Pia, a 14 de Maio de 1793, num espectáculo integrado nas festas pelo nascimento da infanta Maria Teresa, e participou, ainda em Maio, num sarau no palácio de Anselmo José da Cruz Sobral. No dia 12 de Janeiro de 1799, Luiza Todi terá actuado pela última vez numa sala pública estrangeira, na récita que rematava três temporadas triunfais (de 1796 a 1799) no Teatro di San Carlo. Foi isto em Nápoles, uma das mais importantes praças operáticas da Europa.
Ainda em 1799, os Todi regressaram a Portugal, fixando residência no Porto. Aí, cerca de quatro anos mais tarde, a 28 de Abril de 1803, Luiza perdeu o amado marido, e veio a sofrer, a 29 de Março de 2009, outro enorme revés: a perda nas águas do Douro dos seus mais valiosos pertences (dinheiro e jóias) quando caiu ao rio, onde por pouco não morreu afogada, ao tentar entrar numa barca para fugir da soldadesca francesa que, comandada por Soult, invadia Portugal pela segunda vez. Em finais de 1811, Luiza Todi instalou-se definitivamente em Lisboa. Cerca de dez anos antes da morte, cegou por completo, derradeira manifestação de uma grave doença ocular que se declarara durante a temporada veneziana e já lhe fizera perder a visão de um olho (1813). Vitimada, ao que se supõe, pelas sequelas de um acidente vascular cerebral, faleceu no 2.º andar do n.º 2 da Travessa da Estrela (Rua Luísa Todi, desde 1917), situada bem perto do local onde outrora se erguera a casa de espectáculos onde se apresentara pela primeira vez em público, o Teatro do Bairro Alto. Foi sepultada numa dependência da Igreja da Encarnação, ao Chiado, posteriormente transformada em loja de comércio. [adaptado do texto publicado no site do Instituto Camões].


Mário Moreau, na sua biografia de Luiza Todi, editada em 2002, lamentava-se, e com inteira razão, que «esta extraordinária figura da nossa arte lírica ainda não teve a consagração merecida, muito embora seja, de todos os cantores portugueses e só a par de Tomás Alcaide, quem menos ficou no esquecimento.»
A distinta realizadora de rádio Margarida Lisboa também nutria por ela uma inexcedível admiração, evocando a sua memória em vários programas que manteve na Antena 2 e não se poupando a esforços no sentido de ser rendida à maior cantora lírica nascida em terras lusas a devida e justa homenagem nacional, que poderia ser levada a cabo no ducentésimo quinquagésimo aniversário do seu nascimento (2003). Infelizmente, os políticos que então estavam no poder foram moucos aos seus apelos. Atitude que, aliás, está em perfeita consonância com a falta de reconhecimento que Luiza Todi recebeu de quem governava Portugal quando viveu, confirmando a desditosa tradição lusitana, de que Camões já se queixava e bem sofreu na pele, em que se vota ao desprezo os mais valorosos e se premeia com comendas e mordomias os medíocres que bajulam os poderes e interesses instalados.
No programa "Quem?", que começou em Janeiro de 2000, foi justamente à ilustríssima cantora que Margarida Lisboa deu honras de abertura com um ciclo de vários episódios (seis, pelo menos). E para desfiar as memórias da cantora, que a realizadora redigira servindo-se dos dados biográficos compilados por Mário Moreau, foi convidada Carmen Dolores.
Quando a emérita actriz nos deixou, em Fevereiro passado, a direcção da Antena 2 bem podia ter resgatado esse admirável ciclo composto por palavras ditas (Carmen Dolores dando voz às 'memórias' da cantora, Elisa Lisboa interpretando a czarina Catarina II da Rússia, André Maia representando Napoleão Bonaparte, Álvaro Faria encarnando Beethoven, etc.), envoltas em primorosa sonorização, intercaladas com palavras cantadas (excertos de óperas que Luiza Todi interpretou). Lamentavelmente, não o fez. O realizador João Pereira Bastos, ao invés, teve a mui louvável iniciativa de preencher duas edições do seu programa "Ecos da Ribalta", emitidas em Maio, com a versão condensada e remontada desse ciclo, que Margarida Lisboa, em 2004, havia editado em CD com o título "Luísa Todi: A Cantora da Nação" e oferecera à insigne actriz.
Aqui deixamos os links dessas duas edições do programa de João Pereira Bastos, em evocação de Luiza Todi, neste Dia Mundial da Música em que se completam 188 anos sobre a sua morte, e em reiterada homenagem a outras duas distintas mulheres portuguesas: Carmen Dolores e Margarida Lisboa. Boa audição!


ECOS DA RIBALTA | 19 Mai. 2021 [>>  RTP-Play]
Carmen Dolores em "Luísa Todi: A Cantora da Nação I"

ECOS DA RIBALTA | 26 Mai. 2021 [>>  RTP-Play]
Carmen Dolores em "Luísa Todi: A Cantora da Nação II"



Sobrecapa do livro "Cantores de Ópera Portugueses: Volume I", de Mário Moreau (Livraria Bertrand, 1971)



Capa do livro "Luísa Todi: 1753-1833", de Mário Moreau (Hugin Editores, 2002)
Edição comemorativa do 250.º aniversário do nascimento de Luísa Todi.
Retrato de Luiza Todi (1785, óleo sobre tela, 61.7 cm x 78.8 cm) por Marie-Louise-Élisabeth Vigée Le Brun, actualmente em exposição no Museu Nacional da Música, Lisboa.

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Outros artigos com registos na voz de Carmen Dolores (poesia ou teatro radiofónico):
Galeria da Música Portuguesa: Carlos Paredes
Sebastião da Gama: "Poesia", por Carmen Dolores
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
"Ecos da Ribalta": homenagem a Carmen Dolores
Mário Dionísio: "Solidariedade", por Carmen Dolores

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Outros artigos comemorativos do Dia Mundial da Música:
Fernando Tordo: "Bendita Música"
Pedro Barroso: "Música de Mar"
Sérgio Godinho: "Mão na Música"
José Barros e Navegante: "Músicos, Cravos e Rosas"