27 março 2022

Dia Mundial do Teatro: mensagem de Jean Cocteau (1962)


"The Versatile Jean Cocteau"
© Philippe Halsman / Magnum Photos, 1949


INSTITUTO INTERNACIONAL DO TEATRO
DIA MUNDIAL DO TEATRO – 27 DE MARÇO DE 1962
MENSAGEM INTERNACIONAL DE JEAN COCTEAU

Acontece, pelo privilégio do teatro, este paradoxo: a História, que se deforma com o tempo, e o mito, que com o tempo se fortifica, encontram a sua verdadeira realidade sobre as tábuas de um palco.
Seria, sem dúvida, vantajoso que um faquir viesse hipnotizar uma sala de teatro para a convencer de ter visto um espectáculo sublime, mas, infelizmente, esse faquir não existe e é ao dramaturgo que compete provocar, pelos seus modestos meios, a hipnose colectiva e compartilhar o seu sonho, pois o sono e o sonho põem ao alcance de todas as bolsas uma espécie de génio.
O teatro, imitando este fenómeno, exige do público uma credulidade quase infantil — o melhor público é ainda o das "marionnettes", e o nosso seria igual se conseguisse perder a sua resistência orgulhosa e se se encontrasse, por exemplo, em estado de gritar a Édipo: «Não cases com Jocasta! É a tua mãe!»
Mas, sem ir tão longe, o fenómeno produz-se; e acontece que um grupo de espectadores perde a sua individualidade, em benefício de um pensamento estranho que ele adopta e com o qual colabora. Esse grupo transforma-se numa só pessoa, de alma quase infantil, que deixa as suas crenças no vestiário, pronta a retomá-las à saída.
A verdadeira admiração não é a que se exprime por um encontro de ideias comuns, mas sim a que assenta numa partilha de ideias que não são as nossas, mas que nos conquistam até ao ponto de nos convencerem que nós poderíamos ter sido o autor delas. É, portanto, uma das formas do amor: no amor, os antagonismos unem-se, e não é um exemplo desta osmose o papel do teatro? Porque, ao fim e ao cabo, o grande intérprete é o artista que dá a impressão de improvisar, de inventar o seu texto, de o inventar e de o improvisar de acordo com a personalidade de cada espectador.
A própria França, reticente em se deixar adormecer e que resiste, à força de individualismo, ao fenómeno da hipnose do espectáculo, acaba de demonstrar, no Teatro das Nações, a sua sede e a sua fome de se distrair sem a menor frivolidade.
Companhias de primeira categoria levam até lá as obras-primas do seu idioma e, unicamente pela intensidade da interpretação dos actores, conseguem encantar, com o seu repertório, públicos que nunca imaginaríamos capazes de esquecer o seu próprio idioma e os seus próprios temas para se interessarem pelos dos outros povos.
O Dia Mundial do Teatro assinala o acontecimento extraordinário dessas núpcias profundas, entre o singular e o plural, o objectivo e o subjectivo, o consciente e o inconsciente, apresentando ao mundo os monstros prestigiosos que daí resultam.
Muitas das discórdias do mundo provêm do afastamento dos espíritos e da muralha erguida pelos idiomas: é esse afastamento que o vasto mecanismo teatral se propõe evitar e é essa muralha que ele se propõe transpor.
Os povos, graças aos Dias Mundiais do Teatro, tomarão, finalmente, consciência das suas respectivas riquezas, e trabalharão juntos num grandioso empreendimento de paz.
Nietzsche dizia: «As ideias que mudam a face do mundo vêm até nós nas patas das pombas». É, talvez, em virtude de um meio que se limitou tantas vezes a ser um simples pretexto de divertimento que a juventude virá a beneficiar de uma Universidade brilhante e viva, de diálogos de carne e osso, substituindo assim as fadigas de um estudo que enfraquecia as obras-primas, fazendo-as perder a sua violência de origem.
Eu acrescento: disseram que a máquina daria o golpe de misericórdia ao teatro. Não acredito e, uma vez que o Instituto Internacional do Teatro me encarrega de falar em seu nome, grito, como antigamente se gritava para os nossos reis (alterando um pouco a fórmula): «Se o teatro morreu, viva o teatro!».

       JEAN COCTEAU (trad. Rogério Paulo, actor e encenador)


Foi no IX Congresso do Instituto Internacional do Teatro, realizado a 10 de Junho de 1961, em Viena, que se escolheu o 27 de Março para celebrar, a cada ano, o teatro, considerado como «instrumento de compreensão e paz». E a primeira celebração à escala internacional aconteceu logo no ano seguinte, não só nos 43 países que então eram membros do Instituto como em vários outros, perfazendo mais de meia centena. Para escrever e ler a mensagem internacional desse dia inaugural foi convidado o multifacetado autor-artista francês Jean Cocteau. E porque as suas palavras continuam perfeitamente actuais, decorridos que são 60 anos certos, entendemos por bem recuperá-las.
Mesmo dispondo hoje das mais avançadas tecnologias (e talvez Cocteau estivesse longe de sonhar com a inteligência artificial), o Homem continua a precisar da Arte, enquanto manifestação da liberdade criativa do espírito humano. E entre essas expressões artísticas, o teatro afirma-se como absolutamente imprescindível à Humanidade num "admirável mundo novo" progressivamente dominado por máquinas 'inteligentes'. Qual Fénix, que renasce das cinzas a cada representação, o bom teatro possui o miraculoso poder de transformar interiormente o espectador/ouvinte, tornando-o um ser mais liberto da primeva e atávica condição animal – mais pessoa, em suma. E quanto menos animal e mais pessoa o homem for, maior será o seu empenho em estabelecer a concórdia entre todos os povos da Terra, cultivando assim o supremo valor da Paz. Viva o Teatro!

Por ser uma arte efémera, o espectáculo teatral morre quando o pano tapa, pela última vez, a boca de cena, mas tem o sortilégio de perdurar na memória daqueles que o viram/ouviram acontecer num palco. Foi assim ao longo dos séculos e ainda o é, independentemente de se poder efectuar a gravação áudio/vídeo para memória futura. A invenção, na primeira metade do século XX, da rádio e, depois, da televisão, ofereceu a possibilidade de se fazer chegar as peças representadas em cena a um público não presencial e significativamente mais vasto. No entanto, rapidamente se percebeu que a fruição desses espectáculos, quer via rádio quer via televisão, não era plenamente satisfatória, devido às dificuldades técnicas que havia de captar convenientemente o som e de se filmar, com bons planos, o que se passava no palco. Tais condicionantes impuseram a necessidade de se produzir teatro especificamente destinado à radiodifusão ou à transmissão televisiva. E nos primeiros tempos, tudo se fazia em tempo real, como no palco. No entanto, não era raro ocorrer um problema de ordem técnica (por exemplo, um microfone que se avariava) e também podia suceder que um(a) actor/actriz fosse acometido(a) de um espirro ou de um acesso de tosse ou, mesmo, que se enganasse no texto – e tais percalços eram de evitar em meios de comunicação de massas. A solução seria a pré-gravação, que se tornará regra. E assim se foram formando apreciáveis e preciosos acervos de teatro radiofónico e televisivo: preciosos em razão do valor cultural intrínseco e por serem os repositórios documentais da arte de representar de tantas figuras gradas do teatro português do século XX, já que foram poucas as que, estando activas nos anos 50, 60, 70 e 80, se recusaram a trabalhar na rádio ou na televisão. Privilegiados e sortudos os ouvintes e telespectadores que já tinham atingido a idade da razão nesse período áureo do teatro radiofónico e televisivo e comungaram de tanta e boa arte de Talma! Quem veio ao mundo mais tarde, mormente quem tem hoje menos de 35-40 anos de idade, nunca tomou contacto com o grosso desse fabuloso património, simplesmente porque a divulgação nos meios para os quais foi produzido – rádio e televisão – tem sido muitíssimo parca e esporádica e também por estar ainda muito incompleto o acervo de registos disponibilizados na plataforma RTP-Arquivos.
Na RTP-Memória, por exemplo, só de tempos a tempos aparece uma ou outra peça avulsa. E como é assaz incompreensível e surreal que no canal televisivo especialmente vocacionado para os conteúdos do arquivo não haja um espaço regular reservado ao teatro!
Na rádio, se não existisse na grelha da Antena 2 o programa "Ecos da Ribalta" a ausência de teatro produzido antes de 2005 seria total. Temos de agradecer ao realizador João Pereira Bastos pelo mui louvável cuidado que vem tendo de resgatar das catacumbas do silêncio autênticas pérolas de teatro do imaginário (para citar a feliz expressão que o próprio João Pereira Bastos, na qualidade de director de programas da Antena 2, propôs a Eduardo Street). Dessas pérolas fazemos questão de destacar a que voltou a resplandecer no éter nacional em Fevereiro passado, assinalando o primeiro ano de saudade de Carmen Dolores: "Stella", de Goethe, numa soberba produção da Emissora Nacional de Radiodifusão e transmissão no respectivo segundo canal, em Abril de 1966, no âmbito da rubrica "Noite de Teatro" [1.ª parte >> RTP-Play / 2.ª parte >> RTP-Play]. Admirável a tradução e adaptação de Ruy Furtado (que não interveio, como actor, nesta produção mas que tivemos o gratíssimo prazer de ouvir, com a sua castiça e inconfundível voz, na segunda metade dos anos 80, no primeiro e segundo canal da RDP, em várias e memoráveis peças e adaptações de obras romanescas), notável a realização de Eduardo Street e magistrais as interpretações de Carmen Dolores (Stella), de Brunilde Júdice (Cecília) e de Álvaro Benamor (Fernando)! Estas preciosidades radiofónicas, além do superlativo prazer espiritual que proporcionam aos amantes da arte de Talma, são um excelente elixir de língua portuguesa, mormente nas vertentes do léxico e da prosódia, qual antídoto à indigência linguística que hoje impera nos media, com a televisão à cabeça. Por todas estas razões, que não são de somenos, e uma vez que o programa "Ecos da Ribalta" não se pode restringir ao teatro declamado (pois tem de abarcar as demais artes de palco e o cinema) é imperioso que, sem prejuízo da disponibilização do acervo completo na plataforma RTP-Arquivos, seja criado na grelha da Antena 2, dado ser o canal da rádio pública mais vocacionado para a Cultura, um espaço, que poderá ter periodicidade semanal, reservado ao que de melhor se fez entre nós em matéria de teatro radiofónico, dando-se primazia aos clássicos, desde os gregos antigos (Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes) até ao teatro de pendor existencialista (Albert Camus, Sartre) e ao teatro do absurdo (Beckett, Ionesco). Merecem-no os ouvintes, sobretudo os mais jovens e os cegos de qualquer idade (que continuam a ser impiedosamente desconsiderados pela rádio que também financiam), e reclamam-no os autores e todos os profissionais – tradutores, adaptadores, directores artísticos, actores, realizadores, técnicos de captação, sonorização e montagem – que tornaram possíveis tantas e magníficas produções e aos quais o país ainda não saldou (alguma vez saldará?) a dívida de gratidão que tem para com eles!

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21 março 2022

Maria Teresa Horta: "Mulher-Poetisa"


Retrato (óleo sobre tela) de D. Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre, 4.ª Marquesa de Alorna, pintado em Viena, por Franz Joseph Pitschmann, em 1780 (acervo da Palácio Fronteira/Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, Lisboa)



                          MULHERES IMPOSSÍVEIS
                            por Helena Vasconcelos


                                                                         «E a escrita vai
                                                              modulando a história»
                                                                           in
«Invenção»

Quando perguntei a Maria Teresa Horta quando tinha escrito, pela primeira vez, sobre a sua antepassada, Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna, respondeu-me que tinha sido num teste no Liceu Filipa de Lencastre. Mais tarde, em 1998, começou a pensar num romance biográfico dedicado a essa mulher ilustre, figura marcante do Iluminismo. As Luzes de Leonor acabou por ser publicado em 2011, depois de anos de pesquisa e labor intenso. Rigorosa e intimista, arrebatada e minuciosa, exaustiva e encantatória, esta obra ímpar provocou uma autêntica revolução e reafirmou o formidável talento da autora, a sua capacidade de escrever uma prosa invulgarmente rica e melódica que se desenrola como uma partitura musical com as suas marcações, os seus compassos, figuras e pausas, próprias das cadências também utilizadas em poesia.
Não é de estranhar, embora a sua aptidão para nos surpreender seja infinita, que um ano depois Maria Teresa Horta publique estes Poemas para Leonor, versos concebidos ao longo da maturação do romance, uma espécie de «respiração», de toada entre o sonho e a realidade, entre a luz e a sombra, entre o dia e a noite, que se foi enovelando e desdobrando à medida que Leonor era invocada e chamada, não só à grade do convento de Chelas, às alcovas dos seus amantes ou aos salões das cortes europeias onde brilhou e encantou, mas também ao nosso trato, à nossa contemporaneidade.

A Poesia e a Música estão, desde tempos imemoriais, estreitamente interligadas. O mito grego de Orfeu e Eurídice – mencionado nestes Poemas para Leonor – é um dos mais belos, complexos e evocativos exemplos desta simbiose perfeita. O desfecho trágico da história e a intrigante ligação aos «mistérios órficos» enfatizam a ideia do exercício poético como representação do ciclo perene de criação e morte. Os Poemas para Leonor, aqui reunidos, são o testemunho palpitante desse ciclo, o registo de uma conversa nunca acabada entre uma extraordinária mulher poeta dos séculos XVIII-XIX e uma não menos extraordinária mulher poeta dos séculos XX-XXI. Porque Maria Teresa Horta, ao longo dos anos de gestação do romance, redigiu versos – «escrevia todos os dias e atirava para o lado os poemas, para dentro de uma gaveta» – encontrando nessa linguagem «espontânea», ditada pelo bater do coração, pelo pulsar do sangue, pelas visões assombradas e persistentes de Leonor, o lugar ideal para os encontros (e embates) com a sua antepassada, essa mesma avó remota que se senta (ainda) à sua mesa, que lhe fala e a desafia, que a olha por cima do ombro à secretária, enquanto a autora, palavra a palavra, a ressuscita uma e outra vez, cabelo a cabelo, gesto a gesto, olhar a olhar, movimento a movimento, sorriso a sorriso, desobediência a desobediência, desafio a desafio, fio a fio, quilómetro a quilómetro – calcorreado por essa Europa fora – de casa em casa, de quarto em quarto, de sombra em sombra, de luz em Luz. É a própria Maria Teresa que enfatiza o seu papel de «neta, detective, espia, atrás da Leonor, seguindo as suas pegadas, os seus passos, pondo o meu pé na marca deixada pelo seu...»

Quando Maria Teresa Horta me falou na hipótese de escrever estas breves linhas – sabendo eu que a relação entre Teresa e Leonor nem sempre foi pacífica e conciliadora, o que é próprio de mulheres fortes, inteligentes e desafiadoras – quis saber desde quando Leonor ocupava um lugar tão determinante na sua vida e na sua mente. Contou-me, com a sua generosidade habitual, como tinha sido o dia em que conheceu Leonor, figura mítica na sua família, trisavó do pai de sua mãe: «... no meu princípio, o paraíso era o escritório do meu pai, encantatório e misterioso. Mas, nas prateleiras das estantes com tantos livros, não havia um único volume escrito por uma mulher. A minha mãe, porém, um dia chamou-me à salinha onde recebia as amigas e ouvia música, apontou para um livro que estava sobre uma mesinha baixa, junto das suas longas pernas que nos seduziam nas suas meias de vidro, e disse-me, apontando para uma página onde estava o retrato de uma mulher fascinante no seu vestido antigo, sorriso de fatalidade, pérolas entrançadas nos cabelos e olhar de enigma: "Esta mulher é tua avó e foi uma grande poetisa." Nesse dia, a Leonor entrou na minha vida.»
Se Leonor entrou na vida de Teresa nesse dia ou se sempre aí habitou não é assunto para ser analisado neste momento. Importa, isso sim, apontar o facto de a autora ter feito História com a Biografia e Mito com a Poesia. Como uma Sibila, postada no limiar do oráculo, pronta a revelar os mistérios da Grande Deusa, Maria Teresa Horta desfia, em nome de Leonor e em nome dela própria, o rosário das contas de Eurídice, fugindo dos sátiros para cair no ninho de víboras, de Cassandra, amaldiçoada pelo dom da profecia, de Afrodite, que conhecia a infinita alegria do prazer, de Deméter, que presidia à fertilidade triunfante, e de Atena, que não recuava perante os perigos, antes se lançava na refrega, com ardor e sabedoria.
A palavra grega poiesis significa, literalmente, «fazer», ou seja, a Poesia foi, desde sempre, a arte de expressar outra coisa «para além de», de cantar o mundo e os seres que habitam o planeta, de uma forma distinta, diversa, nobre e grandiosa. Diotima, no diálogo socrático Symposium, registado por Platão, descreve como os seres humanos se debatem na ânsia da imortalidade através da Poesia, forma privilegiada de diálogo com a divindade, veículo de expressão, e também de um desejo antigo de heroicidade, de excelência e de compromisso com os mais elevados princípios, aqui personificados por estas mulheres exemplares. Porque Maria Teresa Horta exalta um universo feminino onde há, também, lugar cativo para os amantes, eternamente enlaçados em carne e espírito, em ardor e sabedoria. E Heidegger, entre outros críticos e filósofos, explicou a poiesis como um acto de transformação – de larva para borboleta – ligado a um momento de êxtase, de comunhão e de transcendência. Esse processo é esplendorosamente cantado nestes Poemas para Leonor, ao ritmo de cada gesto, enquanto a poetisa delineia cada frase, cada imagem, cada som.
No entanto, estes versos não são a mera «ilustração» de uma relação profunda e inabalável, os «desenhos» ou esquissos de preparação para a grande obra, a vasta pintura que se desdobra em As Luzes de Leonor. Para além de constituírem uma espécie de «Diário» poético são, ainda, uma grande lição de construção narrativa – através do desdobramento em «Prólogo», «Personagem – Leonor», «Poetisa – Luz», «Mulher – Fogo», «In Aevum» e «Epílogo» – que apontam para os sucessivos estados de Leonor/ Teresa, de menina a mulher, de Mulher a Sábia o que constitui, na sua essência, um cântico, um dueto, um permanente sussurro e grito, um movimento de corridas e enlaces, de ventos e calmarias, de «embalos» e de «colos». A inexorável passagem do tempo não afasta estas duas mulheres notáveis – sem esquecer outra trágica Leonor, a de Távora – antes as aproxima numa intimidade cálida, graças ao opulento legado de uma e à memória e genialidade de outra. Porque não basta escrever a História, reavivar uma época e as personagens que aí desempenharam os seus papéis. O génio de Maria Teresa Horta levou-a mais além, para uma conversa infinita e vital que se prolonga através do tempo e do espaço, num constante desafio ao esquecimento, numa permanente batalha heróica. E a linguagem escolhida é, evidentemente, a da Poesia, essa forma de comunicar própria dos deuses (e das deusas).
[...]

(primeiro prefácio ao livro "Poemas para Leonor", de Maria Teresa Horta, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2012 – p. 9-13)


Lendo em página avulsa ou ouvindo, na forma recitada, o poema "Mulher-Poetisa", sem se saber que Maria Teresa Horta o escreveu a pensar na sua ilustre pentavó, D. Leonor de Almeida Portugal, também ela uma distinta poetisa à qual o seu coevo Filinto Elísio deu o nome arcádico de Alcipe, poderia supor, com inteira legitimidade, que seria autobiográfico. Extrapolando: o teor do poema poderia aplicar-se igualmente a outras insignes poetisas que arrostando incompreensões e até perseguições nunca abdicaram da sua liberdade e lograram afirmar-se como criadoras de poesia de alta estirpe, como foram os casos de Florbela Espanca, Natália Correia e Sophia de Mello Breyner Andresen, apenas para referir as três maiores do século XX português. A criação poética, e artística em geral, sempre foi e nunca deixará de ser um acto de liberdade, mesmo que o reconhecimento do valor da obra não aconteça em vida do sujeito criador, trate-se de homem, mulher ou transgénero.
A todas as poetisas de mérito, enquadradas ou não no cânone literário vigente, sem esquecer as populares que, apesar de não terem recebido esmerada instrução, fizeram poesia digna de apreço, manifestamos a nossa penhorada gratidão pelo seu legado, neste Dia Mundial da Poesia, pondo em destaque o poema "Mulher-Poetisa", de e por Maria Teresa Horta, com a devida vénia à autora.

Na rádio pública, temos na Antena 2 duas rubricas de poesia dita, ambas realizadas por Luís Caetano: "A Vida Breve", de segunda a sexta-feira, consagrada à poesia na voz dos autores [>> RTP-Play], e "O Som Que os Versos Fazem ao Abrir", de periodicidade semanal, que tem âmbito mais abrangente e conta com a avalizada colaboração da professora, poetisa e tradutora Ana Luísa Amaral [>> RTP-Play]. Ainda na Antena 2, podemos parar, uma vez por semana, na "Estação do Oriente" e refrescar a mente com balsâmicos eflúvios de poesia (em verso ou em prosa), pensamento e meditação trazidos do milenar Oriente por João Rodrigues Pedro, envoltos em primoroso contexto musical criteriosamente escolhido pelo realizador [>> RTP-Play]. Cumpre-nos, pois, enaltecer Luís Caetano e João Rodrigues Pedro pelo profissionalismo com que vêm mantendo aqueles luminosos recantos do éter nacional consagrados à palavra dita que alimenta o espírito. O que não podemos deixar de lamentar é a persistente e incompreensível ausência de um apontamento diário de poesia nas Antenas 1 e 3. Por que motivo tão gritante lacuna não foi ainda colmatada, havendo ao dispor um avultado acervo de registos no arquivo histórico da RDP e ainda boas edições discográficas? Só encontramos uma explicação: as pessoas que dirigem aqueles canais não gostam de poesia ou, escrevendo com mais acerto, julgam que não gostam, porque ninguém lhes fomentou a sensibilidade para a arte poética. Mesmo faltando-lhes tal sensibilidade deviam ter a hombridade de não desconsiderar os ouvintes que apreciam poesia ou que aprenderiam, com a experiência auditiva, a apreciá-la. A estação pública de rádio existe para prestar serviço público àqueles que a financiam e não para afagar o umbigo de quem ocupa os lugares de chefia.



MULHER-POETISA



Poema de Maria Teresa Horta (in "Poemas para Leonor", secção "Poetisa – Luz", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2012 – p. 71)
Recitado pela autora* (in livro/CD "A Voz dos Poetas", Sociedade Portuguesa de Autores/Ovação, 2017)




Pareces um mistério
intransponível

Alguém que se
esquivou
ao seu preceito

Na recusa
de obedecer à vida

Ao quererem-te domada
e desse jeito
dócil     obediente     submissa

«Impossível!» – respondeste
branda e esquiva

Sou mulher
Revoltosa
E poetisa


* Maria Teresa Horta – voz
URL: https://www.facebook.com/Maria-Teresa-Horta-P%C3%A1gina-Oficial-163002943815613/



Capa do livro "Poemas para Leonor", de Maria Teresa Horta (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2012)
Concepção – Rui Garrido
Reprodução parcial do quadro referenciado no topo.



Capa do livro/CD "A Voz dos Poetas" (Sociedade Portuguesa de Autores/Ovação, 2017)

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Outros artigos com poesia dita/recitada:
Mário Viegas: 10 anos de saudade
Miguel Torga: "Natal"
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Arte e poesia
Poesia na rádio (II)
Jorge de Sena: "Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya", por Mário Viegas
Sebastião da Gama: "Poesia", por Carmen Dolores
João Villaret: centenário do nascimento
Camões recitado e cantado
Ser Poeta
Pedro Barroso: "Palavras Mal Ditas" ou "Palavras Malditas"?
Em memória de Guilherme de Melo (1931-2013)
Celebrando Natália Correia
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
Celebrando Vinicius de Moraes
Fernando Pessoa por João Villaret
Miguel Torga: "Ode à Poesia", por João Villaret
Celebrando Agostinho da Silva
Camões recitado e cantado (II)
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Al-Mu'tamid: "Evocação de Silves"
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
Celebrando Eugénio de Andrade
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Dois Excertos de Odes", por Mário Viegas
Cesário Verde: "De Tarde"
Cesário Verde por Mário Viegas
António Gedeão: "Dia de Natal", por Afonso Dias
Camilo Pessanha: "Singra o navio", por Mário Viegas
Miguel Torga: "Flor da Liberdade"
Camões recitado e cantado (III)
Sebastião da Gama: "Louvor da Poesia", por José Nobre
"Ecos da Ribalta": homenagem a Carmen Dolores
Natália Correia: "Rascunho de uma Epístola", por Ilda Feteira
Camões recitado e cantado (IV)
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Aniversário", por Luís Lima Barreto
Miguel Torga: "Natividade"
António Botto: "Homem que vens de humanas desventuras"
Fernando Namora: centenário do nascimento
Camões recitado e cantado (V)
Miguel Torga: "A um Negrilho"
Camões recitado e cantado (VI)
Mário Dionísio: "Solidariedade", por Carmen Dolores
Manuel Alegre: "País de Abril", por Mário Viegas
Camões recitado e cantado (VII)

20 março 2022

Grupo Coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração: "É Lindo na Primavera"


© Manuela Abelho, 26 Abr. 2008 (https://www.flickr.com/photos/24565602@N07/2459510374/)


Celebramos a chegada da Primavera de 2022 contemplando uma florida paisagem alentejana e ouvindo a moda "É Lindo na Primavera", pelo Grupo Coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração. Este grupo do concelho de Moura, que foi fundado em 1934 (é, portanto, um dos mais antigos), mostra-nos com este primoroso espécime, que tem versos do cantador Bento Figueira e faz parte do disco duplo "O 'Cante' Alentejano" (Public-Art, 1998), porque é um dos mais categorizados do Alentejo e, mais especificamente, da margem esquerda do Guadiana, onde o cante é mais vigoroso e pujante do que na margem direita, quiçá por influência dos ritmos andaluzes.

Não estando o cante alentejano, assim como a música tradicional em geral, representado na 'playlist' da Antena 1 e tendo desaparecido a rubrica "Cantos da Casa", do Sr. Armando Carvalhêda, na sequência da aposentação deste emérito realizador da nossa rádio, sem que surgisse entretanto um espaço equivalente, é hoje impossível ouvir-se no canal generalista da rádio pública o quer que seja do precioso repertório que ao longo de décadas, sobretudo depois do 25 de Abril de 1974, foi sendo gravado por reputados grupos corais alentejanos (masculinos, femininos e mistos) e publicado em fonograma (vinil, cassete e CD). A situação é deveras absurda e descabida, ademais tendo o cante sido oficialmente reconhecido, pela UNESCO, como Património Cultural Imaterial da Humanidade! Havendo – e bem – espaços reservados ao fado, não se pode entender o silenciamento a que o cante está a ser sujeito na rádio que tinha/tem a obrigação de acarinhá-lo como nenhuma outra. Urge, pois, que se faça alguma coisa no sentido de alterar tão deplorável e intolerável estado de coisas. Sem prejuízo de ser incluído cante na 'playlist', a transmissão de uma moda de segunda a sexta-feira, inserida num apontamento de autor, já não seria mau, para começar. Fica lançado o apelo ao Sr. Nuno Galopim, na sua qualidade de actual director de programação da Antena 1.



É Lindo na Primavera



Letra: Bento Figueira
Música: Popular (Alentejo)
Intérprete: Grupo Coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração* (in 2CD "O 'Cante' Alentejano": CD 1, Public-Art, 1998)


[1.ª cantiga:]
Santo Aleixo és tão nobre,
Tão sincero, hospitaleiro...
És terra de gente pobre,
És terra de gente pobre,
Mas a virtude é dinheiro!

[Moda:]
É lindo na Primavera
A gente viver no campo:
Olhar e ver as flores,
Bonitas de várias cores,
Tão lindas é um encanto!

Ouvir as aves cantar,
Ver a vida à nossa espera,
Ver os ribeiros mandar
Água clara p'ra o mar:
É tão linda a Primavera!

[2.ª cantiga:]
Quem quer bem dorme na rua
À porta do seu amor:
Faz das pedras cabeceira,
Faz das pedras cabeceira,
Das estrelas cobertor.

[Moda:]
É lindo na Primavera
A gente viver no campo:
Olhar e ver as flores,
Bonitas de várias cores,
Tão lindas é um encanto!

Ouvir as aves cantar,
Ver a vida à nossa espera,
Ver os ribeiros mandar
Água clara p'ra o mar:
É tão linda a Primavera!


* Grupo Coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração
Ensaiador – Francisco Candeias Parra

Gravado na Primavera de 1998
Engenheiro de som – Heinz Frieden



Capa do duplo CD "O 'Cante' Alentejano" (Public-Art, 1998)
Design – Incograf

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Outros artigos com repertório alusivo à Primavera:
Cantos d'Aurora: "Primavera"
Roda Pé: "Primavera Alentejana"
Grupo Coral "Os Ceifeiros de Cuba": "No Tempo da Primavera"
Amália Rodrigues: "Primavera" (David Mourão-Ferreira)
Francisco Filipe Martins: "Canção da Primavera"

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Outros artigos com modas por grupos corais alentejanos:
O canto alentejano é património da Humanidade
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde": "Grândola, Vila Morena"
Grupo Coral "Os Ceifeiros de Cuba": "No Tempo da Primavera"

08 março 2022

João Lóio com Regina Castro: "Uma Criada para Todo o Serviço"


A criada Ilda, encarnada pela actriz Isabel Ruth, no filme "Os Verdes Anos" (1963), de Paulo Rocha.
Fotografia – Luc Mirot.


As criadas de servir, instaladas na casa dos patrões, que há não muitas décadas eram numerosas em Portugal, são hoje uma raridade. Deram lugar às empregadas domésticas e às chamadas 'mulheres a dias'. Isto, evidentemente, nas classes média, média-alta e alta. Nas classes média-baixa e baixa, as lides domésticas continuam a ser, na maioria dos casos, executadas inteiramente (ou em grande parte) pela 'dona' da casa, mesmo que ela exerça uma actividade profissional fora de portas. A esse trabalho rotineiro e quase escravo somam-se as ditas obrigações conjugais, isto é, ter a mulher de estar sempre pronta a dispor do seu corpo como objecto sexual do marido ou companheiro. Em suma: uma criada para todo o serviço. A estas serviçais da actualidade e às que foram criadas de servir à moda antiga (as quais, apesar de muito exploradas e, não raras vezes, vítimas de abuso por libidinosos patrões, talvez não fossem tão sobrecarregadas de trabalho) rendemos, neste Dia Internacional da Mulher, a nossa solidária homenagem pondo em destaque a canção "Uma Criada para Todo o Serviço", interpretada por João Lóio e Regina Castro, com letra de José Carretas e música do próprio João Lóio. Será uma boa descoberta para a maioria dos visitantes desta página pois o cantautor matosinhense é um artista completamente ostracizado pelos fazedores das 'playlists' das rádios portuguesas, Antenas 1 e 3 incluídas.

A Antena 1, agora sob a direcção de Nuno Galopim, tem transmitido, de hora a hora, após a ladainha do trânsito que se segue aos noticiários, uma canção escolhida por uma das locutoras dos vários canais da rádio pública. Apesar da maioria dos espécimes postos no ar deixar muito a desejar, temos de reconhecer que é alguma coisa. Mas não o suficiente! Sem prejuízo de outras iniciativas, no dia que à mulher é dedicado toda a oferta musical da Antena 1 (bem como da Antena 3, da RDP-Internacional e da RDP-África) devia reflectir a condição feminina, independentemente de alguns intérpretes poderem ser homens. E para escolher o repertório, embora sem se enjeitar o contributo de funcionárias da casa (locutoras, realizadoras, produtoras, etc.), devia dar-se primazia a mulheres da sociedade civil que se têm empenhado na emancipação feminina. Fica apresentada a sugestão para o próximo ano e seguintes.



Uma Criada para Todo o Serviço



Letra: José Carretas
Música: João Lóio
Intérprete: João Lóio* com Regina Castro (in CD "Canções de Amor e Guerra", João Lóio, 2002)


Cozinho tão bem
como a minha mãe
ou outra qualquer.
Decorei receitas,
todas elas feitas
para ser mulher.
Sei espanar o pó,
limpar o cócó,
faço meia-liga.
Sei fazer a cama
como grande dama,
eu sou rapariga.

Às vezes, sonho em fugir,
mas penso no qu' há-de vir
e sei que só vou servir
p'ra criada de servir:
[bis]

lavar pacientemente,
esfregar eternamente,
arrolar constantemente
as trouxas;
abrir só um bocadinho,
apartar devagarinho,
brandamente, de mansinho
as coxas.

Eu já sei tecer,
consigo fazer
renda da mais fina.
Já sei pôr a mesa,
ter a chama acesa,
sou uma menina.
Deito lustro ao chão,
lenha no fogão,
faço os meus recados.
Sei fazer favores,
arranjos de flores
aos meus namorados.

Às vezes, sonho em fugir,
mas penso no qu' há-de vir
e sei que só vou servir
p'ra criada de servir:
[bis]

lavar pacientemente,
esfregar eternamente,
arrolar constantemente
as trouxas;
abrir só um bocadinho,
apartar devagarinho,
brandamente, de mansinho
as coxas.


* [Créditos gerais do disco]:
Carlos Rocha – guitarras acústica e eléctrica
João Lóio – voz e guitarra acústica
Firmino Neiva – baixo eléctrico
Arnaldo Fonseca – acordeão
Mário Teixeira – caixa de rufo
Regina Castro e Guilhermino Monteiro – coros

Arranjos e direcção musical – Carlos Rocha, Firmino Neiva e João Lóio
Gravado por Fernando Rangel, nos Estúdios Fortes & Rangel, Porto, em Abril de 2002
Mistura – Fernando Rangel, Carlos Rocha, Firmino Neiva e João Lóio
Masterização – Fernando Rangel
URL: https://www.joaoloio.com/
https://youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=joao+loio



Capa do CD "Canções de Amor e Guerra", de João Lóio (2002)
Fotografia – Renato Roque.

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Outros artigos de homenagem à mulher:
João Lóio: "Cicatriz de Ser Mulher"
Carlos Mendes: "Calçada de Carriche" (António Gedeão)
Teresa Silva Carvalho: "Mulher da Erva"