27 março 2019

Dia Mundial do Teatro: mensagem de João de Freitas Branco (1981)



DIA MUNDIAL DO TEATRO
27 de Março de 1981
Mensagem

Mensagem deste "dia mundial", qualquer ela for, terá que envolver todas as pessoas dramáticas que jamais existiram. Todas as Medeias, Columbinas, Margaridas, Júlias, todos os Orfeus, Arlequins, Telémacos, Woyzecks. E os demais "Cocus", imaginários ou não, de mistura com as Respeitosas adjectivantes de substantivos Pês. E Henriques, Filipes, Ricardos-reis, Césares, Ivans, Carlos-quintos imperadores. E vigários, inquisidores, papas. E até Joana d'Arc. E seis personagens em busca de autor. E o inapagável Tenente Kije, na companhia de dois outros Ninguéns, estes de Portugal, como se Todo-o-Mundo não bastasse.
Mensagem que há-de abranger todas as paixões, desde lutos que tão bem ficam a Electra como a Bernarda "la vieja", até à suprema de quantas flamengas alegrias explodiram em horas de desmoronamento de Albas. Todos os mitos, recalques, complexos, desde logo o de Édipo, mas também o de Bartholo. Todos os tratos com a vida, desde o contínuo estar Volpone cobrando o seu próprio seguro de morte até ao estar perpetuamente à espera de Godot. Todas as guerras que imaginar se possam, muitas mais que as de Montecchi e Capuleti, de Alecrim e Manjerona, de Cabeças Redondas e Cabeças Bicudas. Todas as artes de comunicar pela vista e pelo ouvido, encenando, pintando, esculpindo, arquitectando, iluminando, projectando, cantando, tangendo, mimando, bailando. E falando.
Mensagem que necessariamente saúda os que, filhos de qualquer civilização, mantêm fecunda a linhagem dos Ésquilo, Gil Vicente, Shakespeare, Racine, Claudel, Brecht; dos Monteverdi, Mozart, Schönberg; dos Noverre, Pétipa, Fokine, quer aumentando-a com obras, quer afirmando-se, como Garrick e Talma, como a Todi e a Callas, como a Pavlova e Nijinsky, tanto mais inconfundíveis quanto mais se forem metamorfoseando sob crismas e caracterizações. E todos os que, dos palcos da lusitana revista ao mais além-Taprobana dos retábulos Wayang, dos hiper-sofisticados estúdios radiofónicos e televisivos à mais humilde barraca de feira, de outros modos participam no mágico oscilar entre realidade e ilusão, corrente alterna de tensão sem limites, sequiosa de verdade absoluta genialmente inventada.
Mensagem que oxalá abraçasse todas as mulheres e homens, os jovens e crianças de todas as raças, cores e linguagens, como público efectivo de um espectáculo universal. Público efectivo, porque honestamente estatístico, concretamente verificável. Público não congregado por coacção ou fingimento de cultura, senão que movido pela liberdade de vividamente conhecer para bem amar, e de amar para plenamente viver.
Por hoje, 27 de Março de 1981, contentemo-nos com a certeza de que um dia há-de vir, em que "Everyman" se reconheça, de corpo inteiro e coração ao alto, num espelho de ele mesmo que dará ainda, e sempre, pelo nome de TEATRO.

                JOÃO DE FREITAS BRANCO


Este texto, lido pela actriz Josefina Silva, foi difundido pela RDP-Antena 1, a 27 de Março de 1981, no programa "Tempo de Teatro", antecedendo a peça "O Juiz da Beira", de Gil Vicente, com direcção de actores de Carlos Duarte e realização radiofónica de Eduardo Street.
Estamos em 2019. Perscrutamos os vários canais da rádio pública: e que oferta há da arte de Talma? Temos, na Antena 2, o programa "Ecos da Ribalta" [>> RTP-Play], da autoria de João Pereira Bastos, que, apesar de ter como principal objecto o teatro musical e a música de filmes, não deixa de apresentar, uma vez por outra, no âmbito da evocação de actores portugueses que foram grandes no palco, no cinema e na rádio, algumas peças de teatro falado guardadas no arquivo. E que mais? Apenas, e mesmo assim muito esparsamente, também na Antena 2, um arremedo de teatro denominado "Teatro sem Fios" [>> RTP-Play]. E grafamos 'arremedo' porque aquilo, em boa verdade, não se pode considerar verdadeiro teatro radiofónico: por ser desprovido de sonorização, por os textos serem quase sempre dramaturgicamente sensaborões (não raras vezes a roçar a náusea), e por as vozes não terem carisma radiofónico. Vozes com carisma são aquelas que possuem idiossincrasia tímbrica/interpretativa, isto é, têm uma identidade bem vincada, não se confundindo com quaisquer outras, e encarnam com verosimilhança uma determinada personagem. Eis alguns exemplos (por ordem alfabética dos nomes dos actores): Alberto Villar, Alina Vaz, Antonino Solmer, Assis Pacheco, Branco Alves, Canto e Castro, Carlos Paulo, Carmen Dolores, Eunice Muñoz, Henriqueta Maia, Irene Cruz, Jacinto Ramos, João Villaret, Joaquim Rosa, Luís Pinhão, Manuel Lereno, Manuela Cassola, Mário Pereira, Mário Viegas, Paiva Raposo, Paulo Renato, Raul de Carvalho, Ruy de Carvalho, Ruy Furtado, Santos Manuel, Varela Silva. E aqui somos inevitavelmente remetidos para essa autêntica arca de preciosidades que é o arquivo histórico da rádio pública.
Em face de tal riqueza, era expectável que as direcções de programas das três antenas nacionais e também da RDP-Internacional não a descurassem e atentassem nela com olhos de ver (e ouvidos de ouvir). Tal não tem acontecido ou acontecido de forma muito incipiente. Por exemplo: não compreendemos a não existência na Antena 1 de um espaço reservado a bons conteúdos do arquivo (teatro, contos, poesia, entrevistas a figuras da Cultura e da Ciência, programas de divulgação cultural, etc.), do mesmo modo que não entendemos qual o motivo da não inclusão no espaço "Memória", da Antena 2, de peças de teatro que foram produzidas antes de 2005 (ano em que terminou o "Teatro Imaginário"), bem como de programas de poesia e de ciclos temáticos (sobre compositores, escritores, cientistas, acontecimentos históricos, etc.). Nesse resgate, que urge ser feito pois o tempo é implacável na deterioração dos registos, a prioridade, no caso do teatro, deve ser dada ao grande repertório, porque esse é intemporal: desde o dos autores gregos clássicos (Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes) até ao teatro do absurdo (Beckett, Ionesco) passando por Shakespeare, Ben Jonson, Lope de Vega, Calderón de la Barca, Corneille, Molière, Racine, Marivaux, Goldoni, Beaumarchais, Schiller, Pushkin, Ibsen, Strindberg, Oscar Wilde, George Bernard Shaw, Tchekov, Pirandello, Federico García Lorca, Bertolt Brecht, Eugene O'Neill, Tennessee Williams, Arthur Miller, Edward Albee, Jean Cocteau, Jean-Paul Sartre, Jean Anouilh, sem esquecer os nossos Gil Vicente, Jorge Ferreira de Vasconcelos, António Ribeiro Chiado, António Ferreira, Luís de Camões, António José da Silva (O Judeu), Almeida Garrett, Raul Brandão, António Patrício, Alfredo Cortez, José Régio, Bernardo Santareno, Luiz Francisco Rebello e Luís de Sttau Monteiro.
O teatro e a sua irmã, a poesia, enquanto artes por excelência da oralidade (é bom ter presente que a "Ilíada" e a "Odisseia", obras primordiais da Civilização Ocidental, começaram por andar de boca a ouvido, antes de alguém se lembrar de passá-las a escrito), têm, além do valor cultural que lhes é intrínseco, a relevante virtude de mostrar a correcta prosódia da língua. Atendendo ao mau português que se vai ouvindo, devido à má influência da televisão e também aos efeitos nefastos que o AO90 já está a ter na pronúncia de algumas palavras, maior a premência de se resgatar o teatro radiofónico e a poesia dita.
Importa não esquecer que para os invisuais, essa é a única forma que lhes permite fruírem aquelas artes in acting (não substituível pela leitura em braille, que no caso de peças de teatro não será um exercício cativante, tal como o não é para os não cegos – o escrevente destas linhas pode testemunhar que a leitura do "Frei Luís de Sousa" nem por sombras teve no seu espírito o mesmo impacto que a memorável adaptação radiofónica que em 1992 ouviu na Antena 2).

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