25 abril 2017

Miguel Torga: "Flor da Liberdade"



Neste aniversário (o quadragésimo terceiro) da eclosão da Revolução dos Cravos, que devolveu a Liberdade a Portugal, apresentamos o poema "Flor da Liberdade", de e por Miguel Torga. O texto veio a lume no ano de 1958, em plena autocracia salazarista, mas a mensagem não perdeu actualidade. Se "recusar", naquele tempo, significava contestar e resistir à opressão, hoje consiste em exercer plenamente a Liberdade. Deixar de exercê-la – por medo, comodismo ou apatia –, é abrir caminho ao despotismo de uns quantos sobre todos.

No caso concreto da rádio pública, quando os ouvintes não se revêem no serviço (ou falta dele) que lhes é apresentado, de que modo podem dar expressão à sua recusa? Duas vias se lhes oferecem: uma é desligar a sintonia e sem mais nada fazer, dando o caso como perdido; a outra é intervir civicamente no sentido da debelação das mazelas e, consequentemente, que o "doente" se torne um ente saudável e útil à sociedade, fazendo assim jus à nobre missão de serviço público que lhe cabe prestar: informar com isenção e pluralismo, cultivar e entreter com enlevo. Optámos pela segunda via e dela não nos iremos desviar, apesar do autismo com que nos temos deparado da parte dos decisores.
Reportando-nos à Antena 1, que é dos três canais de cobertura nacional o que se encontra, presentemente, em estado de maior enfermidade, apontamos três deficiências gritantes (por ordem crescente de importância):
  1. Ausência de uma rubrica diária de poesia tendo como âmbito os autores de língua portuguesa, seja na voz dos próprios, seja na de reputados recitadores;
  2. Ausência de teatro radiofónico, que foi durante muitos anos uma marca de excelência no serviço público de radiodifusão e que constitui um património de valor inestimável que urge resgatar;
  3. Falta de pluralismo estilístico e estético na lista de difusão musical de continuidade, vulgo 'playlist', e inerente exclusão de um extenso rol de artistas portugueses de reconhecida qualidade – que se traduz no obsceno favorecimento da produção pop e hip hop, a maioria da qual de baixíssimo quilate, e na criminosa marginalização de tudo o resto, mormente da música tradicional portuguesa e do valioso repertório dos cantautores.
    Podemos considerar razoável que, sob a alçada de um regime que se apregoa de democrático e pluralista, a pop e o hip hop desempenhem hoje na rádio estatal o mesmo papel que tinha o nacional-cançonetismo sob a vigência da ditadura?


FLOR DA LIBERDADE



Poema de Miguel Torga (in "Orfeu Rebelde", Coimbra: Edição do autor, 1958 – p.52-53; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, 2.ª edição, 2002 – p. 560)
Recitado pelo autor* (in 2LP "Miguel Torga: 80 Poemas": LP 1, EMI-VC, 1987, reed. EMI-VC, 1995)


Sombra dos mortos, maldição dos vivos.
Também nós... Também nós... E o sol recua.
Apenas o teu rosto continua
A sorrir como dantes,
Liberdade!
Liberdade do homem sobre a terra,
Ou debaixo da terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
A Deus, à tirania, à eternidade.

Sepultos insepultos,
Vivos amortalhados,
Passados e presentes cidadãos:
Temos nas nossas mãos
O terrível poder de recusar!
E é essa flor que nunca desespera
No jardim da perpétua primavera.


* Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, nos dias 31 de Junho, 1 e 31 de Julho de 1987
Engenheiro de som – Pedro Vasconcelos
Montagem – Miguel Gonçalves
Montagem digital (CD) – Fernando Paulo Boavida, nos Estúdios Valentim de Carvalho






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Outros artigos com canções alusivas à Revolução dos Cravos:
Contrabando: "Verdade ou Mentira?"
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde": "Grândola, Vila Morena"

13 abril 2017

Em memória de Fernando Campos (1924-2017)


Fernando Campos fotografado por António Pedro Ferreira


Eu sou assim: o que é histórico é histórico, o que a História não pode contar conto eu.

                        FERNANDO CAMPOS


Ficcionista, cronista e investigador português, Fernando da Silva Campos nasceu em Águas Santas, concelho da Maia, a 23 de Abril de 1924.
Filho do pintor Alberto da Silva Campos, fez os estudos universitários na Faculdade de Letras de Coimbra, onde se licenciou em Filologia Clássica. Tornou-se professor do ensino liceal, tendo sido docente do Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, cidade onde passou a residir definitivamente.
Paralelamente à actividade de docente, escreveu algumas obras didácticas e monografias de investigação etimológica e exegese literária, como "Prosadores Religiosos do Século XVI" (1950), "A Redacção" (1968), "A Vila de São Teotónio: uma Fonte de 'Os Lusíadas'?" (1972) e "O Arinteiro de El-Rei" (1972).
Fernando Campos iniciou já tarde o seu mister de ficcionista, pois só aos 62 anos de idade publicou o seu primeiro romance, "A Casa do Pó" (1986), que recebeu rasgados elogios da crítica e se tornou um êxito editorial, com sucessivas edições. Trata-se dum romance histórico cuja acção decorre em finais do século XVI e conta a saga das peregrinações de Frei Pantaleão de Aveiro, o autor de "Itinerário de Terra Santa" (1593). O enigma da identidade do frade franciscano, servindo de pretexto para, ao longo de todos os itinerários que percorre (Portugal, Espanha e toda a bacia mediterrânica dominada por Venezianos e Turcos, até à Palestina), esboçar um panorama mental sobre a cristandade ocidental e oriental, e sobre o contexto político português no fim de Quinhentos, tende, porém, a adquirir, desde as primeiras páginas, uma dimensão universal: mais do que rigorosa e documentada incursão pelo romance histórico, segundo o autor (cf. Notas a "A Casa do Pó", 5.ª ed., Lisboa: Difel, 1987, p. 436), «o que aí está são velhos problemas da Humanidade que, vindos de há séculos, ainda hoje persistem nos mesmos cenários e saltam para outros mais alargados e vastos». Nesta obra magistral, que logo catapultou Fernando Campos para a esfera dos escritores maiores da língua portuguesa, surgem diversas figuras históricas, entre as quais Luís Vaz de Camões. O autor levou cerca de onze anos a preparar o livro, dez dos quais em trabalho de pesquisa histórica.
Nas obras seguintes, o autor recorre mais uma vez à ficção como género privilegiado para uma indagação ontológica, religiosa ou metafísica, enriquecida com uma cultura invulgar, alargada na convivência de autodidacta com leituras clássicas, filosóficas e históricas, fazendo ainda prova de uma versatilidade de registos (lírico, trágico, épico), já manifestada em "A Casa do Pó". Para cada um dos seus romances históricos, Fernando Campos faz uma cuidada e meticulosa pesquisa para poder recriar ao pormenor o enredo e caracterizar as personagens com o máximo rigor. Só recorre à imaginação quando se depara com a falta de dados históricos.
Em 1987, o escritor publicou a novela satírica "O Homem da Máquina de Escrever" e o romance "Psiché", retrato cruel da decadência de um comediante do teatro ligeiro ante a feroz concorrência do cinema, na primeira metade do século XX. Seguiram-se, em 1990, "O Pesadelo de dEus", romance de pendor metafísico protagonizado por um estudante de Filosofia e um casal de fantoches, e, em 1995, o livro que lhe valeu o Prémio Eça de Queiroz desse mesmo ano, "A Esmeralda Partida", admirável reconstituição do período conturbado que se situa entre os reinados de D. João I e de D. João II.
Após dois anos e meio de intenso trabalho de investigação e escrita, o autor deu à estampa o romance "A Sala das Perguntas" (1998), que aborda a vida do humanista português Damião de Góis (1502-1574). Na obra, aparecem distintas personalidades coevas, como Martinho Lutero, Thomas More, Erasmo de Roterdão, João de Barros e Luís de Camões. Em 1999, saiu o livro de contos "Viagens ao Ponto de Fuga" e, no ano seguinte, o romance "A Ponte dos Suspiros", protagonizado por D. Sebastião que surge em Veneza, vinte anos depois da Batalha de Alcácer Quibir, almejando obter do papa, com a ajuda do arcebispo de Espálato, o reconhecimento como o legítimo rei de Portugal.
Já em 2001, o escritor apresentou o livro "...que o meu pé prende...", incursão no género fantástico, a partir do conto popular "A Formiga e a Neve", que alguém considerou uma síntese perfeita de todas as lutas da Humanidade, de todas as verdades e de todas as mentiras. Regressou ao romance histórico, dois anos mais tarde, com "O Prisioneiro da Torre Velha", em que relata os momentos cruciais que antecederam a conjura de 1640, servindo-se das palavras escritas pela figura central da obra, D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666). Fernando Campos já tinha em mente escrever sobre aquele vulto seiscentista desde os tempos de estudante em Coimbra, quando a convite do professor Correia de Oliveira trabalhou num projecto de edição crítica das "Cartas Familiares".
Em 2005, lançou "O Cavaleiro da Águia", romance histórico que tem como protagonista o guerreiro medieval D. Gonçalo Mendes da Maia, cognominado O Lidador. Seguiram-se: "O Lago Azul" (2007), em torno da descendência de D. António Prior do Crato; "A Loja das Duas Esquinas" (2009), revisitação da tragédia de Édipo pelos olhos de um antiquário; "A Rocha Branca" (2011), dando-nos a poetisa grega Safo entregue à paixão sob a égide das artes mágicas da deusa Afrodite; e "Revengar" (2012), o seu último romance, tendo como fonte de inspiração recortes do folhetim homónimo publicado pelo vespertino carioca "A Noite", por sua vez decalcado do filme "The Shielding Shadow" (1917), em 15 episódios, realizado por Louis J. Gasnier.
Fernando Campos está traduzido em francês, italiano e alemão.
Foi também colaborador do "JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias", com a série de crónicas "Os Trabalhos e os Dias".


BIBLIOGRAFIA ACTIVA:

Pedagogia, investigação literária e monografias:
- Prosadores Religiosos do Século XVI (antologia organizada em colaboração com Alcides Soares), Coimbra: Livraria do Castelo, 1950
- A Redacção (orientação e exercícios), Porto: Livraria Avis, 1968, 1970, 1972
- A Vila de São Teotónio: uma fonte de "Os Lusíadas"?, in "Panorama", n.º 44 e separata, Lisboa, 1972
- O Arinteiro de El-Rei (monografia de investigação etimológica), in "Armas e Troféus", III Série-tomo 1, Jul.-Set. 1972, n.º 2, p. 196-202.
- Portugal (monografia), fotografias de Jean-Charles Pinheira, Lisboa: Difel, 1989

Ficção:
- A Casa do Pó (romance), Lisboa: Difel, 1986; Lisboa: Objectiva/Alfaguara, 2011 [Prémio Literário Município de Lisboa, 1986]
- O Homem da Máquina de Escrever (novela satírica), Lisboa: Difel, 1987, 1997
- Psiché (romance), Lisboa: Difel, 1987, 1988
- O Pesadelo de dEus (romance), Lisboa: Difel, 1990
- Flor de Estufa (conto), in "Imaginários Portugueses: Antologia de Autores Portugueses Contemporâneos", Lisboa: Fora do Texto, 1992
- A Fonte da Paciência (conto), in "Boletim Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian: Memórias da Infância", VIII Série, n.º 1, Lisboa, Dez. 1994
- A Esmeralda Partida (romance), Lisboa: Difel, 1995, 2008 [Prémio Eça de Queiroz, da Câmara Municipal de Lisboa, 1995]
- Ritorni (conto em italiano), in "Europa Come: 15 Racconti per 15 Nazioni", Florença: Giunti, Gruppo Editoriale, 1996
- O Inferno e o Paraíso (conto), in "Contoário Cem", Lisboa: O Escritor, 1996
- A Sala das Perguntas (romance), Lisboa: Difel, 1998, 2000
- Viagem ao Ponto de Fuga (contos), Lisboa: Difel, 1999
- A Ponte dos Suspiros (romance), Lisboa: Difel, 2000
- ...que o meu pé prende... (romance), Lisboa: Difel, 2001, 2009
- O Prisioneiro da Torre Velha (romance), Lisboa: Difel, 2003
- O Cavaleiro da Águia (romance), Lisboa: Difel, 2005; Lisboa: Divina Comédia, 2013
- O Lago Azul (romance), Lisboa: Difel, 2007
- A Loja das Duas Esquinas (romance), Lisboa: Difel, 2009; Lisboa: Divina Comédia, 2014
- A Rocha Branca (romance), Lisboa: Objectiva/Alfaguara, 2011
- Ravengar (romance), Lisboa: Objectiva/Alfaguara, 2012


BIBLIOGRAFIA PASSIVA:

- Benedito, Silvério Augusto. Para uma Leitura de "A Casa do Pó" de Fernando Campos: Uma Busca Obsessiva das Origens, Lisboa: Editorial Presença, 1995
- Letria, José Jorge. Conversas com Letras: Entrevistas com Escritores, Lisboa: O Escritor, 1994
- Marinho, Maria de Fátima. O Romance Histórico em Portugal, Porto: Campo das Letras, 1999
- Vieira, Cristina Maria da Costa. O Universo Feminino n' "A Esmeralda Partida" de Fernando Campos, Lisboa: Difel, 2002


O que fez a rádio pública em memória do eminente escritor Fernando Campos?
Na Antena 2, há que louvar o cuidado que Luís Caetano teve em recuperar a entrevista que o escritor lhe concedeu em 2007, a propósito da publicação do romance "O Lago Azul", que inseriu, logo que a notícia da morte foi veiculada, n' "A Ronda da Noite" [>> RTP-Play] e depois também no programa "A Força das Coisas" [>> RTP-Play].
Na Antena 1, e tirando a simples notícia do falecimento, nada me constou. Daria assim tanto trabalho ir ao arquivo buscar uma entrevista e transmiti-la? Eu tenho a ideia de ter ouvido, certa vez na Antena 1, Fernando Campos a ser entrevistado por Graça Vasconcelos, mas se fosse escolhida outra entrevista que porventura exista no arquivo histórico, não haveria a mais pequena objecção da minha parte. O mesmo direi a respeito da leitura intercalar, ao longo de um ou mais dias, de excertos da obra ficcional do autor. Nada ser feito, como se Fernando Campos fosse uma figura insignificante das letras portuguesas, é que jamais se poderá tolerar no canal de maior audiência da rádio do Estado.

Quem também entrevistou Fernando Campos, a pretexto da edição do romance "A Ponte dos Suspiros", foi o saudoso Carlos Pinto Coelho, para o programa radiofónico "Agora... Acontece!". Uma agradabilíssima entrevista que o blogue "A Nossa Rádio" proporciona, com a maior das honras, à audição dos seus leitores/visitantes.


"Agora... Acontece!" N.º 111, de 15 Jan. 2001



Fernando Campos entrevistado por Carlos Pinto Coelho [a partir de 9':15'']



Capa da primeira edição do romance "A Casa do Pó" (Difel, 1986)
Concepção gráfica de Rogério Petinga.