25 março 2025

António Gedeão: "Poema do Coração"


(in https://www.hospitaldaluz.pt/)


«Soube-se recentemente que, pela primeira vez na História, um homem saiu de um hospital caminhando sem coração. Aconteceu na Austrália. O homem viveu mais de três meses com um coração de titânio, até chegar o dia do transplante e poder sentir de novo o batimento do "pedaço de carne inexplicado", se posso usar o modo como a grande Yourcenar se referiu ao músculo que nos bate no peito.
Há tipos que ameaçam falar-nos com "o coração nas mãos". É uma bengala tão frequente como aquela que leva os editores de notícias a dizerem dos temas destacados no alinhamento que eles estão "em cima da mesa". Os seus entrevistados tentam escapar ao cerco das perguntas argumentando que o tema não "está em cima da mesa". É uma expressão que me irrita particularmente, embora não me faça cair o coração aos pés.
O cientista Rómulo de Carvalho tratou deste caso na sua circunstância de poeta António Gedeão. No "Poema do Coração" ele começa por lamentar não poder falar-nos com o coração nas mãos. "Mas o meu coração é como o dos compêndios/ Tem duas válvulas (a tricúspide e a mitral) / e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos)".
Lembrei-me do homem que caminhou com o seu coração de titânio e lembrei-me do coração poético de Gedeão, lendo hoje no "El País" a entrevista com Natalia Trayanova, biofísica e especialista em cardiologia computacional numa universidade norte-americana. O jornal apresenta-a como "criadora de corações virtuais", explicando que ela cria "gémeos digitais" para cada paciente e que isso facilita cirurgias em casos de problemas cardíacos graves.
Já não posso conversar, de novo, com o gentil, ainda que austero, professor Rómulo de Carvalho a quem entrevistei há muitos anos, coração aos saltos, na sua qualidade de poeta António Gedeão. Talvez ele me respondesse diferentemente do poema: "Por vezes acontece/ ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados / e uma lâmina baça e agreste, que endurece/ a luz dos olhos em bisel cortados. / Parece então que o coração estremece./ Mas não./ Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático,/ que esse vento que sopra e ateia os incêndios/ é coisa do simpático./ Vem tudo nos compêndios".
Procurei pegadas anteriores da mesma investigadora Natalia Trayanova. Há uns dois anos, ela procurava uma luz que incidisse no coração e pudesse substituir os choques dos desfibrilhadores e do bypass.
Pareceu-me poético, ela falava afinal de uma luz que seria transportada até ao coração por fibra óptica, alta engenharia, aguenta, coração.
Mas logo os últimos versos do poema me chamam para a realidade: "Então, meninos!/ Vamos à lição!/ Em quantas partes se divide o coração?"» [Fernando Alves, "Corações virtuais", in "Os Dias que Correm", 25 Mar. 2025]


Entre os que escutaram a crónica, aquando da radiodifusão, hoje de manhã, os amantes de poesia, pelo menos, depois de ouvirem Fernando Alves citar versos do "Poema do Coração", teriam certamente apreciado que a Antena 1 os presenteasse com a transmissão do poema completo, preferencialmente dito pelo autor, logo que o cronista se calasse. Mais uma vez, e infelizmente, Nuno Galopim de Carvalho e o seu homem de mão, Ricardo Soares, não mexeram uma palha, mostrando a desconsideração em que têm quem lhes paga o salário.
Eis, pois, o "Poema do Coração", de António Gedeão, na voz do autor. O registo saiu primeiramente no EP "A Poesia de António Gedeão dita pelo Autor" em 1969 (Colecção 'A Voz e o Texto', Decca/VC) e teve reedição em disco compacto no ano de 2018 pelas Edições Valentim de Carvalho no âmbito da colecção "...Dizem os Poetas". Boa escuta!



Poema do Coração



Poema de António Gedeão [in "Linhas de Força", Coimbra: Edição do autor, 1967 – p. 9-10; "Poesias Completas (1956-1967)", Col. Poetas de Hoje, N.º 17, 2.ª edição, Lisboa: Portugália Editora, 1968 – p. 235-236, 5.ª edição, Lisboa: Portugália Editora, 1975 – p. 235-236; "Poemas Escolhidos: Antologia Organizada pelo Autor", Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997 – p. 58-59; "Poesia Completa", Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997; Obra Poética", Lisboa: Edições João Sá da Costa, 2001; "Obra Completa", Lisboa: Relógio d'Água Editores, 2004, 2007, 2022]
Recitado pelo autor (in EP "A Poesia de António Gedeão dita pelo Autor", Col. 'A Voz e o Texto', Decca/VC, 1969; CD "António Gedeão", Col. '...Dizem os Poetas', Vol. 3, Edições Valentim de Carvalho, 2018)




Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração,
e também a Bondade,
e a Sinceridade,
e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração.
Então poderia dizer-vos:
«Meus amados irmãos,
falo-vos do coração»,
ou então:
«com o coração nas mãos».

Mas o meu coração é como o dos compêndios.
Tem duas válvulas (a tricúspida e a mitral)
e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos).
O sangue ao circular contrai-os e distende-os
segundo a obrigação das leis dos movimentos.

Por vezes acontece
ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados,
e uma lâmina baça e agreste, que endurece
a luz dos olhos em bisel cortados.
Parece então que o coração estremece.
Mas não.
Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático,
que esse vento que sopra e que ateia os incêndios,
é coisa do simpático.
Vem tudo nos compêndios.

Então, meninos!
Vamos à lição!
Em quantas partes se divide o coração?


* António Gedeão – voz
URL: http://cvc.instituto-camoes.pt/figuras/antoniogedeao.html
https://www.romulodecarvalho.net/
https://purl.pt/12157/1/index.html
https://dererummundi.blogspot.com/2019/10/poesia-e-ciencia-em-antonio-gedeao.html
https://music.youtube.com/channel/UCLAfs1EWokoUvjDzwdkC8QQ



Capa do livro "Linhas de Força", de António Gedeão (Coimbra: Atlântida Editora, 1967)



Capa da 2.ª edição do livro "Poesias Completas (1956-1967)", de António Gedeão (Col. Poetas de Hoje, N.º 17, Lisboa: Portugália Editora, 1968)
Concepção – João da Câmara Leme



Capa da 4.ª edição do livro "Poesias Completas (1956-1967)", de António Gedeão (Col. Poetas de Hoje, N.º 17, Lisboa: Portugália Editora, 1972)
Concepção – João da Câmara Leme



Capa da 8.ª edição do livro "Poesias Completas", de António Gedeão (Lisboa: Sá da Costa, 1982)
Concepção – Sebastião Rodrigues



Capa da 1.ª edição do livro "Poemas Escolhidos: Antologia Organizada pelo Autor", de António Gedeão (Lisboa: Edições João Sá da Costa, Mar. 1997)
Concepção e direcção gráfica – João Machado



Capa de outra edição do livro "Poemas Escolhidos: Antologia Organizada pelo Autor", de António Gedeão (Col. Cadernos de Poesia, Série Maior, Lisboa: Glaciar, Jun. 2022)
Concepção – Laura Quina



Sobrecapa do livro "Poesia Completa", de António Gedeão (Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997)
Pintura – Júlio Pomar



Capa do livro "Obra Poética", de António Gedeão (Lisboa: Edições João Sá da Costa, 2001)



Capa da 1.ª edição do livro "Obra Completa", de António Gedeão (Lisboa: Relógio d'Água Editores, Nov. 2004)



Capa da 3.ª edição do livro "Obra Completa", de António Gedeão (Lisboa: Relógio d'Água Editores, Mai. 2022)



Capa do EP "A Poesia de António Gedeão dita pelo Autor" (Col. 'A Voz e o Texto', Decca/VC, 1969)



Capa do CD "António Gedeão" (Col. "...Dizem os Poetas", Vol. 3, Edições Valentim de Carvalho, 2018)
Concepção – Maria Mónica

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Outros artigos com poesia de António Gedeão:
Adriano Correia de Oliveira: um grande cantor silenciado na rádio pública
António Gedeão: "Dia de Natal", por Afonso Dias
Carlos Mendes: "Calçada de Carriche" (António Gedeão)

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"

23 março 2025

Herberto Helder: "Fonte" (II), por Luísa Cruz


© John Oliveira, 2021
(in https://www.instagram.com/arte.johnoliveira/)


Completou-se hoje (de madrugada) um decénio exacto sobre a data em que partiu, para o Olimpo dos Poetas, Herberto Helder, figura grada da poesia (de língua) portuguesa contemporânea pós-pessoana. Assinalamos a efeméride pondo em destaque a segunda parte do poema "Fonte", ou, se se preferir, o segundo poema do ciclo assim intitulado (não sabemos qual das duas formulações corresponde, em maior rigor, à intenção do poeta quando deu o título genérico de "Fonte" aos seis admiráveis nacos de poesia em homenagem às mães que publicou, no ano de 1961, em "A Colher na Boca", um dos seus livros mais fundamentais).
Quanto ao registo áudio, e uma vez que incluímos o lido pelo autor no artigo "Em memória de Herberto Helder (1930-2015)", achámos por bem ir respigar o recitado pela actriz Luísa Cruz do CD n.º 2 do antológico audiolivro "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX", que a Assírio & Alvim editou em 2004, no âmbito da sua colecção "Sons".
Aproveitamos o ensejo para recomendar (vivamente) a audição da edição do programa "A Ronda da Noite" da passada sexta-feira, Dia Mundial da Poesia, que Luís Caetano (a nossa vénia!) dedicou à poética de Herberto Helder, na voz do autor, intercalada com sublimes trechos musicais bachianos, em comemoração do 340.° aniversário do nascimento do divino Johann Sebastian Bach [>> RTP-Play].
Boas celebrações herbertiana e bachiana!



FONTE (II)



Poema de Herberto Helder (in "A Colher na Boca", Lisboa: Edições Ática, 1961; "Poesia Toda", Vol. 1, Lisboa: Plátano Editora, 1973; "Poesia Toda", Lisboa: Assírio & Alvim, 1981; "Poesia Toda", Lisboa: Assírio & Alvim, 1990 – p. 43-44; "Ofício Cantante: Poesia Completa", Lisboa: Assírio & Alvim, 2009; "Poemas Completos", Porto: Porto Editora, 2014 – p. 47-48)
Recitado por Luísa Cruz* (in livro/2CD "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX": CD 2, Col. Sons, Assírio & Alvim, 2004)


                           II

No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.


* Luísa Cruz – voz

Selecção de poemas e direcção de actores – Gastão Cruz
Coordenação editorial – Teresa Belo
Gravado e masterizado por Artur David e João Gomes, no Estúdio Praça das Flores, Lisboa, em Outubro de 2004
Supervisão de gravação – Vasco Pimentel
URL: https://www.facebook.com/actrizluisacruz/
https://www.alexandregoncalves.eu/luisa-cruz.html
https://wikidobragens.fandom.com/pt/wiki/Lu%C3%ADsa_Cruz



Capa do livro "A Colher na Boca", de Herberto Helder (Lisboa: Edições Ática, 1961)
Concepção – António Domingues



Capa da 1.ª edição do livro "Poesia Toda", Vol. 1, de Herberto Helder (Lisboa: Plátano Editora, 1973)



Capa da 2.ª edição do livro "Poesia Toda", de Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim, 1981)



Capa da 3.ª edição do livro "Poesia Toda", de Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim, Nov. 1990)



Capa do livro "Ofício Cantante: Poesia Completa", de Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim, Jan. 2009)
Pintura de Ilda David (2008)



Capa do livro "Poemas Completos", de Herberto Helder (Porto: Porto Editora, Out. 2014)



Capa do livro (com 2 CD) "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX" (Col. Sons, Assírio & Alvim, 2004).

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Outro artigo com poesia de Herberto Helder:
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)

21 março 2025

Maria Teresa Horta: "Minha Senhora de Mim" e "O Corpo"



Uma das peculiaridades (talvez a mais fulcral) da poesia de Maria Teresa Horta é a clara assumpção pelo sujeito poético do género feminino (não por acaso a autora fazia questão de identificar-se como poetisa, evitando a apropriação de "poeta", substantivo masculino ou, segundo algum uso mais recente, sem género definido), sendo que na produção de feição erótica está bem explícita a sua heterossexualidade e a afirmação plena (sem peias) do seu direito enquanto mulher ao prazer em interacção corporal com um (o seu) homem. Os poemas "Minha Senhora de Mim" (glosando um verso de Francisco Sá de Miranda, "Comigo me desavim") e "O Corpo" exemplificam cabalmente o que acabámos de enunciar e dado que se contavam entre os favoritos da autora, que fez questão de gravá-los para serem incluídos num disco colectivo patrocinado pela SPA – "A Voz dos Poetas", 2017 –, afigurou-se-nos que era de elementar justiça dar-lhes destaque no presente Dia Mundial da Poesia, o primeiro que acontece sem a presença (física) de Maria Teresa Horta entre nós. O primeiro faz parte do livro homónimo, publicado em 1971 e logo apreendido pela PIDE/DGS, e o segundo integra "Educação Sentimental" (título tomado do romance de Gustave Flaubert), volume que não teve a mesma desditosa sorte porque já foi editado depois da Revolução dos Cravos (em 1976). Mesmo assim a obra não deixou de constituir, nas palavras da autora, «um acto de pura insubordinação» e «um dos meus livros mais subversivos». E valha a verdade que ainda hoje é uma obra desafiante para muitas cabeças...
A pensar naqueles que fiquem com o desejo de ouvir mais gravações, deixamos os links das múltiplas edições da rubrica "A Vida Breve" respeitantes a poesia de Maria Teresa Horta dita pela própria, que Luís Caetano escolheu para render-lhe homenagem depois da triste ocorrência da sua morte, em Fevereiro passado. Boas audições poéticas!


A VIDA BREVE | 5 Fev. 2025 [>> RTP-Play]
Maria Teresa Horta: Pequenos dizeres sobre a mulher

A VIDA BREVE | 6 Fev. 2025 [>> RTP-Play]
Maria Teresa Horta: As Bibliotecas

A VIDA BREVE | 7 Fev. 2025 [>> RTP-Play]
Maria Teresa Horta: Poema

A VIDA BREVE | 10 Fev. 2025 [>> RTP-Play]
Maria Teresa Horta: A Leitora

A VIDA BREVE | 11 Fev. 2025 [>> RTP-Play]
Maria Teresa Horta: Carta a Maria

A VIDA BREVE | 12 Fev. 2025 [>> RTP-Play]
Maria Teresa Horta: Trajecto na escrita

A VIDA BREVE | 13 Fev. 2025 [>> RTP-Play]
Maria Teresa Horta: Verso e veia

A VIDA BREVE | 14 Fev. 2025 [>> RTP-Play]
Maria Teresa Horta: Ponto de honra

A VIDA BREVE | 18 Fev. 2025 [>> RTP-Play]
Maria Teresa Horta: Anunciações (excerto)

A VIDA BREVE | 19 Fev. 2025 [>> RTP-Play]
Maria Teresa Horta: Três poemas

A VIDA BREVE | 20 Fev. 2025 [>> RTP-Play]
Maria Teresa Horta: Português

A VIDA BREVE | 21 Fev. 2025 [>> RTP-Play]
Maria Teresa Horta: Escrever

A VIDA BREVE | 25 Fev. 2025 [>> RTP-Play]
Maria Teresa Horta: Cavalo da Memória



MINHA SENHORA DE MIM



Poema de Maria Teresa Horta (in "Minha Senhora de Mim", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1971 – p 17; "Poesia Reunida", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009; "Eu Sou a Minha Poesia: Antologia Pessoal", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2019)
Recitado pela autora* (in livro/CD "A Voz dos Poetas", Sociedade Portuguesa de Autores/Ovação, 2017)




Comigo me desavim
minha senhora
de mim

sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

recusando o que é desfeito
no interior do meu peito



O CORPO



Poema de Maria Teresa Horta (in "Educação Sentimental", Lisboa: A Comuna, 1976 – p. 93-94; "As Palavras do Corpo: Antologia de Poesia Erótica", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2012 – p. 89-90; "Poesia Reunida", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009 – p. 400-401)
Recitado pela autora* (in livro/CD "A Voz dos Poetas", Sociedade Portuguesa de Autores/Ovação, 2017)




Digo do corpo,
o corpo:
e do meu corpo,

digo no corpo
os sítios e os lugares

de feltro os seios
de lâminas os dentes
de seda as coxas
o dorso, em seus vagares.

Lazeres do corpo:
os ombros,
as lisuras — o colo alto
a boca retomada

o fim das pernas
a porta da ternura,
dentro dos lábios
o fim da madrugada.

Digo do corpo,
o corpo:
e do meu corpo,

as ancas breves
ao gosto dos abraços

os olhos fundos
e as mãos ardentes
com que me prendes
em súbitos cansaços

Vício do corpo:
o teu
com seu veneno

que bebo e sugo
até ao mais amargo,
ao mais cruel grau
do esgotamento
e onde em silêncio
nado
em cada espasmo

Digo do corpo,
o corpo:
o nosso corpo

Digo do corpo
o gozo
do que faço

Digo do corpo
o uso
dos meus dias

e a alegria do corpo
sem disfarce


* Maria Teresa Horta – voz
URL: https://www.facebook.com/Maria-Teresa-Horta-P%C3%A1gina-Oficial-163002943815613/
http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=10201



Capa da 1.ª edição do livro "Minha Senhora de Mim", de Maria Teresa Horta (Col. Cadernos de Poesia, N.º 18, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1971)
Orientação gráfica – Fernando Felgueiras



Capa da 2.ª edição do livro "Minha Senhora de Mim", de Maria Teresa Horta (Col. Nova Visão Futura, Lisboa: Editorial Futura, 1974)



Capa da 3.ª edição do livro "Minha Senhora de Mim", de Maria Teresa Horta (Col. Poesia, Lisboa: Gótica, 2001)



Capa da 4.ª edição do livro "Minha Senhora de Mim", de Maria Teresa Horta (Lisboa: Publicações Dom Quixote, Mai. 2015)



Capa do livro "Educação Sentimental", de Maria Teresa Horta (Lisboa: A Comuna, 1976)



Capa do livro "As Palavras do Corpo: Antologia de Poesia Erótica", de Maria Teresa Horta (Lisboa: Publicações Dom Quixote, Fev. 2012)



Capa do livro "Poesia Reunida", de Maria Teresa Horta (Lisboa: Publicações Dom Quixote, Fev. 2009)



Capa do livro "Eu Sou a Minha Poesia: Antologia Pessoal", de Maria Teresa Horta (Lisboa: Publicações Dom Quixote, Abr. 2019)
Fotografia – Luís Barros (marido da poetisa)



Capa do livro/CD "A Voz dos Poetas" (Sociedade Portuguesa de Autores/Ovação, 2017)

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Outros artigos com poesia de Maria Teresa Horta:
Dialecto: "Instrumentos de Trabalho" (Maria Teresa Horta)
Maria Teresa Horta: "Mulher-Poetisa"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)

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Outros artigos com poesia dita/recitada:
Mário Viegas: 10 anos de saudade
Miguel Torga: "Natal"
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Galeria da Música Portuguesa: Carlos Paredes
Arte e poesia
Poesia na rádio (II)
A infância e a música portuguesa
Jorge de Sena: "Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya", por Mário Viegas
Sebastião da Gama: "Poesia", por Carmen Dolores
João Villaret: centenário do nascimento
Camões recitado e cantado
Eugénio de Andrade por Eugénio de Andrade
Ser Poeta
Pedro Barroso: "Palavras Mal Ditas" ou "Palavras Malditas"?
Em memória de Guilherme de Melo (1931-2013)
Celebrando Natália Correia
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
Celebrando Vinicius de Moraes
Fernando Pessoa por João Villaret
Miguel Torga: "Ode à Poesia", por João Villaret
Celebrando Agostinho da Silva
Camões recitado e cantado (II)
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Al-Mu'tamid: "Evocação de Silves"
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
Celebrando Eugénio de Andrade
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Dois Excertos de Odes", por Mário Viegas
Cesário Verde: "De Tarde"
Cesário Verde por Mário Viegas
António Gedeão: "Dia de Natal", por Afonso Dias
Camilo Pessanha: "Singra o navio", por Mário Viegas
Miguel Torga: "Flor da Liberdade"
Camões recitado e cantado (III)
Sebastião da Gama: "Louvor da Poesia", por José Nobre
"Ecos da Ribalta": homenagem a Carmen Dolores
Natália Correia: "Rascunho de uma Epístola", por Ilda Feteira
Camões recitado e cantado (IV)
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Aniversário", por Luís Lima Barreto
Miguel Torga: "Natividade"
António Botto: "Homem que vens de humanas desventuras"
Fernando Namora: centenário do nascimento
Camões recitado e cantado (V)
Miguel Torga: "A um Negrilho"
Camões recitado e cantado (VI)
Mário Dionísio: "Solidariedade", por Carmen Dolores
Manuel Alegre: "País de Abril", por Mário Viegas
Camões recitado e cantado (VII)
Florbela Espanca: "À Morte", por Eunice Muñoz
Camões recitado e cantado (VIII)
Eugénio de Andrade por João Perry
A Natalidade de Natália Natália Correia: "A Casa do Poeta", por Afonso Dias
Camões recitado e cantado (IX)
Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia
Natália Correia: "Ode à Paz", por Afonso Dias
Nuno Júdice: "O Sentido do Poema"
Luís de Camões: "Os Lusíadas" (dois excertos), por Carlos Wallenstein
Camões por Carmen Dolores
Camões recitado e cantado (X)
"Em Memória de uma Camponesa Assassinada"
Luís de Camões: "Endechas a Bárbara Escrava"
Luís de Camões: "Perdigão perdeu a pena"
Pablo Neruda: "Ode ao Pão", por Mário Viegas
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
José Gomes Ferreira: "O general entrou na cidade", por Carmen Dolores

20 março 2025

Carlos Paredes: "Canto da Primavera"


Primavera, iluminura do códice Tacuinum Sanitatis, finais do séc. XIV, pertencente à Biblioteca Casanatense, Roma (MS 4182) [in https://commons.wikimedia.org/].
Este tratado em latim sobre saúde e bem-estar, profusamente ilustrado, baseia-se no Taqwim al-Sihha ("Calendário de Saúde"), escrito em árabe pelo médico e teólogo cristão (nestoriano) Ibn Butlān (Bagdad, c.1001 - Antioquia, 1066).


Estando a decorrer as comemorações do centenário do nascimento de Carlos Paredes, impõe-se que escolhamos, para assinalar a chegada da estação do renascimento e das flores de 2025 (que vem acompanhada de sol, aplacando a fúria do ciclone Martinho), o "Canto da Primavera" que fecha o alinhamento da edição em CD do álbum "Espelho de Sons", lançado em Março de 1988 pela PolyGram sob o selo Philips (na edição em LP, de conteúdo mais reduzido, aquele trecho não consta), e incluído também no LP/CD "Asas sobre o Mundo" (Philips/PolyGram, 1989). Refira-se, a título de curiosidade, que, a exemplo da maior parte do material integrante do CD "Espelho de Sons", este "Canto da Primavera" não é uma composição inédita. Já saíra em dois LPs, a saber: "Meister der Portugiesischen Gitarre" (Amiga/RDA, 1977) fechando a suite "Das Gold und das Getreide" ("O Oiro e o Trigo"), aparecendo aí com a designação de "Erster Mai" ("Primeiro de Maio"); e "Concerto de Frankfurt" (Philips/PolyGram, 1983), encerrando a suite "Seis Guitarradas sobre uma Fábula", onde surge com o título de "Festa da Primavera".
Boa escuta, com votos de uma soalheira e sadia Primavera!

Na Antena 1, durante a semana que antecedeu o dia do centenário do nascimento de Carlos Paredes (16 de Fevereiro, domingo), foi possível ouvir música de Carlos Paredes, em apontamentos e em programas especiais consagrados ao genial guitarrista, iniciativa que apreciámos e de que damos boa nota. Volvido pouco mais de um mês, já nada da produção de Carlos Paredes se consegue apanhar na emissão do primeiro canal da rádio do Estado. Nem sequer algo de repertório cantado por outrem sobre música do criador de "Verdes Anos"!... Quem manda na programação da Antena 1 deve achar que Carlos Paredes é "vinha vindimada", mas em contrapartida não se coíbe de dar insistente promoção a quantidades industriais de lixo sonoro, quer velho (sobretudo anglo-saxão), quer novo (maioritariamente de fabrico interno). Pergunta óbvia e pertinente: valerá mesmo a pena os consumidores de electricidade continuarem a honrar o pagamento da contribuição do audiovisual?



Canto da Primavera



Música: Carlos Paredes
Intérprete: Carlos Paredes* (in CD "Espelho de Sons", Philips/PolyGram, 1988; CD "Asas sobre o Mundo", Philips/PolyGram, 1989; livro/8CD "O Mundo Segundo Carlos Paredes: Integral 1958-1993": CD 6 – "Asas", EMI-VC, 2003; 2CD "Carlos Paredes: Antologia 62/98": CD 1 e CD 2, Universal Music Portugal, 2007)




(instrumental)


* Carlos Paredes – guitarra portuguesa
Luísa Amaro – guitarra clássica (cordas de nylon)

Produção – Tozé Brito
Gravado no Angel Studio 2, Lisboa, em 1987
Técnico de som – José Manuel Fortes
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2008
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Paredes
https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/carlos-paredes
https://viriatoteles.com/dispersos/colaboracoes/153-o-mundo-segundo-carlos-paredes.html
https://www.youtube.com/channel/UCh5tYA07B0Uur5Mo1gbPmYQ/videos?query=carlos+paredes
https://music.youtube.com/channel/UCj1y__qVlbJZwynbWv22eoQ



Capa do CD "Espelho de Sons", de Carlos Paredes (Philips/PolyGram, 1988)
Desenho – Carlos Martins Pereira



Capa do CD "Asas sobre o Mundo", de Carlos Paredes (Philips/PolyGram, 1989)



Capa da edição (livro com 8 CD) "O Mundo Segundo Carlos Paredes: Integral 1958-1993" (EMI-VC, 2003)



Capa da compilação em 2 CD "Carlos Paredes: Antologia 62/98" (Universal Music Portugal, 2007)

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Outros artigos com repertório alusivo à Primavera:
Cantos d'Aurora: "Primavera"
Roda Pé: "Primavera Alentejana"
Grupo Coral "Os Ceifeiros de Cuba": "No Tempo da Primavera"
Amália Rodrigues: "Primavera" (David Mourão-Ferreira)
Francisco Filipe Martins: "Canção da Primavera"
Grupo Coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração: "É Lindo na Primavera"
Celina da Piedade: "Primavera"
Rão Kyao & Lu Yanan: Primavera

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Outros artigos com música de Carlos Paredes:
Galeria da Música Portuguesa: Carlos Paredes
Em memória de Vasco Graça Moura (1942-2014)
Celebrando Carlos Paredes
Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia
"Em Memória de uma Camponesa Assassinada"

17 março 2025

Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"



«Depois de ter lido, ontem, no Público a magnífica entrevista de Sérgio C. Andrade a José Manuel de Oliveira, conservador da Casa de Camilo, anotei como tarefa prioritária a encomenda das mais de 600 páginas de "Vivências de Camilo Castelo Branco a Partir da sua Correspondência" ao livreiro e camilianista Edgar Santos, presumivelmente regressado de São Miguel de Seide à sua Almedina do Rato. Depois entreguei-me à deliciada releitura d' "A Queda de um Anjo" (que o autor dedicou a Rodrigues Sampaio, etiquetando-a na categoria das "bagatelas") e dei comigo a pensar no quanto a figura de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda maquilhou os modos, desde então.
Encontrados os Passos Perdidos, os Calistos de hoje já não se obrigam a tosquenejar as noites sobre os "bacamartes pulvéreos", nem soltam impropérios contra Lucrécia Bórgia, à saída do teatro (quando vão ao teatro, se é que vão).
Os Calistos Elói de hoje iniciam as frases pelo infinitivo ("Dizer ainda que... Saudar, antes de mais, quem nos escuta"). Já não pescam no latim, tiktokam a esmo um vocabulário sem étimo.
Ao partirem para a capital, não mandam, "adiante, por almocreves, duas cargas de livros", nem "uma carga de ancoretas de vinho velho". Os Calistos de hoje estreiam-se de imediato num canal de notícias, logo tratados pelo nome próprio, sem morgadio.
A primeira intervenção parlamentar de Calisto Elói provocou "hiperbólico estrondo". Os Calistos de hoje passam a legislatura em discreto silêncio, aplaudindo, aplaudindo.
Camilo delicia-nos com a descrição de um homem cuja "sensível e dissimétrica saliência do abdómen" resultava do "uso destemperado da carne de porco e outros alimentos intumescentes". Já a inclinação do tronco denunciaria "o arqueamento da espinha por efeito da incansável leitura e minguado exercício". Mas é no traje do barão que Camilo detecta o desaire: "Calisto Elói vestia de briche da Golegã e dos alfaiates de Miranda". Até Camilo desconhecia a razão "por que o morgado de Agra se afeiçoara às calças rematando em polainas abotoadas de madrepérola" que em Lisboa provocaram "razoável impressão no espírito observador dos gaiatos".
Já não se distingue, nos dias de hoje, o figurão de seus confrades de bancada, sequer na fatiota. Ou terá sido o espírito observador dos gaiatos que, tão preso ao fascínio dos ecrãs, deixou de se impressionar com a estética dos Calistos?
"A Queda de um Anjo" é, o próprio autor o anuncia, uma história de corrupção. Talvez isso te aguce a curiosidade, leitor bissexto que de Camilo te possas ter perdido. Tens uma campanha à porta. O anjo cairá?» [Fernando Alves, "Um café com Calisto Elói", in "Os Dias que Correm", 17 Mar. 2025]


Quem se der ao cuidado de ler a obra-prima camiliana "A Queda d'um Anjo", seguindo a boa e avisada sugestão de Fernando Alves, não perderá o seu tempo, tanto pelo deleite intelectual que experimentará, como pela oportunidade de ficar a dominar melhor a língua portuguesa, cada vez mais maltratada nas televisões, nas rádios e até em jornais. Ainda assim, já não seria mau de todo que os menos dados à leitura (e também os demais, porque não?) ouvissem a versão radiofónica feita em 1976, em 17 episódios, com adaptação de Costa Ferreira e direcção de actores a cargo de Rui Mendes, emitida pelo Rádio Clube Português, então já nacionalizado. No elenco contaram-se, entre outros, os actores Jacinto Ramos e José de Castro (como Camilo Castelo Branco), Canto e Castro (como Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado miguelista trasmontano, o anjo oriundo da aldeia de Caçarelhos caído na liberal capital do Reino), Maria Albergaria (como D. Teodora Barbuda de Figueiroa, a esposa de Calisto) e Lia Gama (como Ifigénia, a jovem viúva brasileira e amante de Calisto).
O espólio fonográfico do Rádio Clube Português foi incorporado no arquivo histórico da RDP, mas verifica-se que o mencionado folhetim ainda não está disponível na plataforma RTP-Arquivos. Fica expresso o nosso desejo de que tal se concretize no âmbito das comemorações camilianas em curso.

A respeito do desejado remate poético-musical à crónica, que esteve ausente uma vez mais na emissão da Antena 1, e tendo em conta as palavras com que Fernando Alves a concluiu, em modo de lúcida interrogação, remetendo para a situação política degradada e lamacenta em que Portugal presentemente está (e corre o sério risco de nela continuar), uma boa escolha seria a canção "Barca em Chão de Lama", de e por Pedro Barroso, que abre o alinhamento do álbum "Criticamente" (Lusogram, 1999). Não estando o saudoso cantautor representado na 'playlist', por arbitrária e discricionária vontade de Nuno Galopim de Carvalho, a transmissão daquele trecho seria uma maneira da rádio pública evocar, ainda que singelamente, Pedro Barroso, cinco anos após o seu desaparecimento que se completaram ontem.



Barca em Chão de Lama



Letra e música: Pedro Barroso
Intérprete: Pedro Barroso* (in CD "Criticamente", Lusogram, 1999)




[instrumental]

É quando um chão de lama
se instala e nos comanda
que a injustiça avança
e a raiva se proclama
é quando D. Quixote
o peito acende e brama
irreverente a espada
imorredoura a chama
é quando os homens longe
repousam distraídos
que a cobra traiçoeira
lhes tapará os ouvidos
e a boca e o saber
e a vida tutelar
e o mais que for preciso
p'ra não deixar pensar

Mas sopra a barca o vento
doutra razão de ser
e rasga o mar e alcança
e rompe e quer viver
da ilha p'ra que rumo
não há qualquer registo
mas diz que viver lá
é muito mais que isto

da ilha p'ra que rumo
não há qualquer registo
mas diz que viver lá
é muito mais que isto

[instrumental]

Que façam mil favores
em crónicas variadas
meus olhos e distâncias
nunca serão compradas
e comam futebol
e mostrai-vos ao mundo
e engulam três novelas
com tal não me deslumbro
ocupados de dia
com a bicha do guichet
entretidos à noite
com a santa mãe TV
matai-vos por um carro
ou p'ra ter lantejoulas
que aqui na minha terra
cavalgo entre as papoulas

Mas sopra a barca o vento
doutra razão de ser
e rasga o mar e alcança
e rompe e quer viver
da ilha p'ra que rumo
não há qualquer registo
mas diz que viver lá
é muito mais que isto

da ilha p'ra que rumo
não há qualquer registo
mas diz que viver lá
é muito mais que isto

[instrumental]

E a busca do sucesso
e o detergente ideal
aquilo é que é progresso
agora em Portugal
o creme adelgaçante
e outras coisas de interesse
a escola do miúdo
o IVA o IRS e a bolsa e o poder
aquilo é mesmo assim
se um dia o totoloto
ah me calhasse a mim
e o tipo aqui do lado
morreu ontem de enfarte
e uma vez por ano
Agosto em toda a parte!

Mas sopra a barca o vento
doutra razão de ser
e rasga o mar e alcança
e rompe e quer viver
da ilha p'ra que rumo
não há qualquer registo
mas diz que viver lá
é muito mais que isto

da ilha p'ra que rumo
não há qualquer registo
mas diz que viver lá
é muito mais que isto


* [Créditos gerais do disco:]
Pedro Barroso – voz, piano, viola, adufe, harmónica, teclados
Nuno Fernandes – tuba
Luís Sá Pessoa – violoncelo e arranjos para corda
Carlos Dâmaso – guitarra portuguesa, flautas, bandolim
Nuno barroso – piano, teclados, percussão
Jorge Nascimento – piano, acordeão, teclados

Arranjos – Pedro Barroso e todos os músicos
Produção, coordenação e direcção musical – Pedro Barroso
Técnicos de som – Carlos Dâmaso e António Silva
Gravado nos Estúdios Quinta da Voz, Riachos
Biografia e discografia em A Nossa Rádio
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Barroso
https://www.meloteca.com/portfolio-item/pedro-barroso/
https://pedro-sc-barroso.blogspot.pt/p/discografia.html
https://music.youtube.com/channel/UCObgev8wnn6NWUgsSQGTPYQ
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=pedro+barroso
https://www.youtube.com/@AlbanoCardosoLaranjeira/videos?query=pedro+barroso



Capa do CD "Criticamente", de Pedro Barroso (Lusogram, 1999)
Fotografia – Guilherme Silva
Design gráfico – Ossos do Ofício, Lda.



Frontispício da 1.ª edição do romance "A Queda d'um Anjo" (Lisboa: Livraria de Campos Júnior Editor, 1866)



Frontispício da 3.ª edição (definitiva, revista e corrigida pelo autor) do romance "A Queda d'um Anjo" (Lisboa: Campos & C.ª Editores, 1887)



Capa de outra edição do romance "A Queda dum Anjo" (Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1966)



Capa de outra edição do romance "A Queda dum Anjo" (Col. Biblioteca Universal Unibolso, n.º 6, Lisboa: Editores Associados, 1973)



Capa de outra edição do romance "A Queda dum Anjo" (Lisboa: Editora Ulisseia, 1986)



Capa de uma edição brasileira do romance "A Queda dum Anjo" (Série Bom Livro, São Paulo: Editora Ática, 1997)



Capa de outra edição brasileira do romance "A Queda dum Anjo" (Martin Claret, 2012)



Capa de outra edição do romance "A Queda dum Anjo" (Porto: Livraria Civilização Editora, 2012)



Capa de outra edição do romance "A Queda dum Anjo" (Lisboa: Âncora Editora, 2016)



Capa da edição em mirandês do romance "A Queda dum Anjo" (Vila Nova de Famalicão: Casa de Camilo - Centro de Estudos, 2016)
Tradução – Alfredo Cameirão.

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Outros artigos com repertório de Pedro Barroso:
Galeria da Música Portuguesa: Pedro Barroso
Ser Poeta
Pedro Barroso: "Palavras Mal Ditas" ou "Palavras Malditas"?
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Cesário Verde: "De Tarde"
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Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
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Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
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Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
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