27 março 2024

Teatro camoniano em versão radiofónica


Camões, por André Letria, ilustração da capa do livro "Barbi-Ruivo: O Meu Primeiro Camões", de Manuel Alegre (Publicações Dom Quixote, Dez. 2007)


A HERANÇA VICENTINA

Por: Luiz Francisco Rebello



A crítica oitocentista, na esteira de Teófilo Braga, agrupou sob a designação de «escola vicentina» aqueles autores que, refractários à influência da estética renascentista, se mantiveram fiéis às formas tradicionais do auto vicentino. É, no entanto, duvidoso que, em rigor, de «escola» se possa falar, ainda que muitos dos seus contemporâneos por modelo o hajam tomado, embora nenhum o haja excedido, ou sequer igualado: como disse Jorge de Sena, foi «menos uma escola que uma formulação epocal do gosto teatral». A maioria dos que se tem dito serem seus discípulos limitaram-se a uma fruste imitação que, em muitos casos, chegou a raiar as fronteiras do plágio. E raros foram os depositários da herança vicentina que souberam enriquecê-la e acrescentá-la, contentando-se quase todos com repeti-la. Mas, repetindo-a, esvaziaram-na do seu conteúdo polémico (ao que a Inquisição, é certo, não terá sido estranha) e até da sua teatralidade. As obras que integram a chamada «escola vicentina» acusam assim uma nítida regressão relativamente ao seu protótipo: a acção dramática dilui-se numa sucessão mera de diálogos estereotipados e num desfile de personagens que apenas o capricho do autor reúne; e essas personagens perdem a sua individualidade própria até se converterem em tipos que transitam, imutáveis e idênticos, de auto para auto, designados por um nome genérico (o fidalgo, o escudeiro, a regateira, o dono de casa, a negra, o ratinho)... Permanece, mais acentuada, a distinção entre um teatro de inspiração profana — mais acentuada porque, excepto em um ou dois casos, os cultores de um dos géneros não cultivaram o outro. Simplesmente, enquanto na obra vicentina as moralidades ocupam, entre os autos religiosos, quer pelo número, quer pelo grau de perfeição artística a que o autor as elevou, o lugar predominante, na obra dos seus epígonos são os autos baseados na vida dos santos (de que, em Gil Vicente, se depara um único exemplo no breve Auto de São Martinho) que preenchem esse lugar. E, escusado seria aditar, a veemência crítica e a densidade dramática dos autos vicentinos cedem aqui o passo a uma intenção declaradamente apologética, que não só respeita como toma a defesa explícita das hierarquias eclesiásticas. Por tudo isto foi que pôde Carolina Michaëlis de Vasconcelos dizer que «longe de serem verdadeiros continuadores que aperfeiçoassem, diferenciassem, acrisolassem os elementos heterogéneos da obra vicentina, os seus sucessores imobilizaram o auto, quanto à forma; e, quanto aos assuntos e à essência, rebaixaram-no, banalizaram-no, tirando-lhe as arestas e os espinhos pungentes da crítica social e pessoal, mas também os trechos líricos e os voos aos astros».

[...]

                                                   Autos profanos

Quanto às farsas e comédias, se é certo que a quantidade não diminui (no século XVIII assistir-se-á a uma verdadeira inflação destas duas espécies), o mesmo não pode já dizer-se quanto à qualidade. Mas o facto de nenhum dos comediógrafos posteriores a Gil Vicente ter alcançado a craveira deste, não significa, claro está, que todos eles mereçam, indiscriminadamente, o esquecimento definitivo. Nomes como os de António Ribeiro Chiado e, sobretudo, Camões e António Prestes devem recordar-se com interesse, pelos vários aspectos positivos da sua obra, ainda hoje susceptível de encontrar audiência.
ANTÓNIO RIBEIRO CHIADO, «bargante, dizedor, poeta», nascido nos arredores de Évora e falecido em Lisboa no ano de 1591, depois de uma vida dissoluta que o levou do convento à cadeia, deixou, além de alguns textos menores, quase todos de tipo aforístico, cinco composições teatrais, de que apenas se conservam quatro: as Práticas de Oito Figuras e dos Compadres e os Autos das Regateiras e da Natural Invenção. (O auto que se perdeu intitulava-se Auto de Gonçalo Chambão, e dele há notícia de três edições entre 1613 e 1630.) É muito débil a estrutura dramática de todos eles, simples pretextos para uma sucessão de diálogos (ou «práticas») que as várias personagens travam entre si. Mas nessa limitação — em que, talvez com excesso de boa vontade, já se quis ver «uma consciente opção estilística» — reside, precisamente, o seu maior atractivo: através de rixas conjugais, de discussões familiares, de brigas de vizinhos, que se esteiam numa linguagem de um realismo coloquial por vezes cru, mas sempre colorido e pitoresco, é a fauna dos bairros pobres da cidade, da beira-rio, das tabernas e dos mercados lisboetas, que nos seus autos pulula e aparece expressivamente caracterizada. Ao mesmo tempo, um dos seus autos — o da Natural Invenção, que Chiado teria escrito à volta de 1550 —, de concepção curiosamente pirandelliana (seu tema é a representação de um auto em casa de um fidalgo, a qual nunca chega a concluir-se, interrompida e adiada como vem a ser, a cada passo, por toda a sorte de incidentes), dá-nos valiosas notícias acerca da praxis teatral na sociedade portuguesa da segunda metade de Quinhentos. Por ele — como aliás também pelo prólogo do Auto d'El-Rei Seleuco, de Camões, ou pelo anónimo Auto dos Sátiros — ficamos a saber da existência de companhias ambulantes, que, transportando em canastras os seus adereços e guarda-roupa, representavam em casas particulares as comédias do seu repertório, a troco de alguns cruzados. Assim como saiu da igreja, o teatro sai da corte e vai ganhando, pouco a pouco, o seu espaço próprio na cidade.
A delicada sensibilidade poética de ANTÓNIO PRESTES, que foi seu contemporâneo, e de quem apenas se sabe que nasceu em Torres Vedras, exerceu em Santarém as funções de inquiridor do cível e residia por 1565 em Lisboa, contrasta com a veia chocarreira de Chiado, embora um e outro recolham a herança vicentina no que respeita à forma do auto popular. As sete composições de sua autoria que chegaram até nós, todas elas incluídas num volume colectivo de «autos e comédias portuguesas» impresso em Lisboa em 1587, compreendem uma espécie de auto sacramental, o Auto da Ave-Maria, a que já fizemos referência, e seis autos de um realismo doméstico, que por vezes se é quase tentado a classificar de burguês, mas que todavia não exclui uma crítica subtil dos costumes e das instituições (os autos do Procurador, do Desembargador, dos Dois Irmãos, da Ciosa, do Mouro Encantado e das Cantarinhas). Mas se a forma destes autos é vicentina — ele próprio, na «representação» ou prólogo que antecede o Auto dos Dois Irmãos, critica os que «seguem Ariosto italiano, imitam Petrarca, lêem Sannazaro, escrevem Garcilaso, para com estes zombarem de nós outros, autores formigueiros» de autos a que, ironicamente, chama «coscorões», isto é, cozinhados com os tradicionais ingredientes domésticos —, o espírito e, em vários passos, o estilo anunciam, discretamente, o conceptismo seiscentista. Seria talvez por isso que um dos engenhos mais argutos do século XVII, D. Francisco Manuel de Mello, que foi também dramaturgo, admitiu no seu Hospital das Letras que Prestes se tivesse «avantajado» ao próprio Gil Vicente. Juízo que, evidentemente, ninguém hoje perfilha mas que justificaria uma atenção mais interessada pela obra do que é, sem dúvida, o mais dotado e mais original de entre os sucessores do autor das Barcas.
Na mesma colectânea em que foram publicados os autos de Prestes incluíam-se cinco composições teatrais de autoria diversa: o Auto do Físico, de JERÓNIMO RIBEIRO, a Cena Policiana, de HENRIQUE LOPES, O Auto de Rodrigo e Mendo, de JORGE PINTO, os Anfitriões e o Filodemo, de LUÍS DE CAMÕES. Deixemos estes dois últimos para um exame ulterior e salientemos, dos restantes, o Auto do Físico, pelo maior equilíbrio da sua construção, que habilmente combina uma intriga amorosa (a que não terá sido estranha a leitura da Celestina) com a pintura, em segundo plano, dos usos e costumes da burguesia lisboeta na segunda metade do século XVI. Nos autos de Henrique Lopes e Jorge Pinto, como em vários outros textos seus contemporâneos, tais o Auto dos Dois Ladrões, de Frei ANTÓNIO DE LISBOA, a Farsa Penada e o Auto das Capelas, ambos anónimos, avulta o retrato de uma personagem que bem pode considerar-se arquetípica de uma condição nacional comum a todas as épocas da História Pátria: o fidalgo pobre, «que não tem renda nem nada / [mas] quer ter muitos aparatos», como se diz na vicentina Farsa dos Almocreves, e que vem das cantigas medievais de escárnio e maldizer, atravessa todo o teatro cómico de Gil Vicente, ressurge no século XVII nos autos de Francisco Rodrigues Lobo e D. Francisco Manuel de Mello e vai alimentar grande parte do teatro de cordel setecentista.
É ainda a Gil Vicente, aos seus autos romanescos a que as novelas de cavalaria serviram de matriz inspiradora, que se reconduzem o Auto de Florença, do frade músico JOÃO DE ESCOBAR (representado na corte do rei D. Sebastião em 1561), o já citado Auto da Bela Menina, de SEBASTIÃO PIRES, e os anónimos Autos dos Cativos, também denominado de D. Luís e dos Turcos, impresso em 1572, de D. André e da Donzela da Torre (todos atribuídos, sem fundamentos sérios, a um neto de Gil Vicente), dos Sátiros, do Duque de Florença, de D. Fernando e de Florisbel. Como eles anónimo, o engenhoso Auto de Vicenteanes Joeira aproxima-se, pela classe social e a linguagem das personagens, das «práticas» do Chiado.
Um lugar à parte ocupa o teatro de LUÍS DE CAMÕES (1524?-1580), limitado a três peças — o Auto dos Anfitriões e o Filodemo, que figuram na já citada colectânea de 1587, juntamente com os autos de Prestes, e o Auto d'El-Rei Seleuco, postumamente publicado em 1645, na 1.ª parte da suas Rimas. Com efeito, se o esquema estrófico e métrico nelas geralmente adoptado e se a linguagem falada por algumas das suas personagens, em particular as de extracção humilde, se situam na zona de influência vicentina, o seu espírito é acentuadamente renascentista, não só pela escolha dos temas e a dialéctica sentimental a que a sua reelaboração dramática obedece, como pela mensagem, que transmite, de que a Natureza é mais forte que a vontade dos deuses e as convenções sociais. Justamente observou, por isso, Teófilo Braga que a «superior capacidade estética» de Camões o levou a «conciliar os dois espíritos da Idade Média e da Renascença, pelo modo como aliou as formas populares do auto, fixadas por Gil Vicente, com os temas mitológicos imitados dos escritores greco-romanos». Todavia, o teatro exerceu nele apenas uma juvenil e efémera atracção, o que não lhe terá permitido atingir o equilíbrio desejável entre essas duas tendências, nem a altura a que se elevou com as suas líricas e a sua epopeia.
Escritos de 1542 para 1555, os autos de Camões situam-se no alvor da sua vida literária. Os Anfitriões datam, ao que se crê, dos seus anos de estudante da Universidade de Coimbra, cujos estatutos postulavam a representação anual obrigatória de uma comédia de Plauto ou Terêncio. Tais representações tê-lo-iam levado a eleger o tema de uma das mais célebres comédias plautinas, que dois séculos depois inspirou a António José da Silva uma das suas «óperas» e de que, outros dois séculos volvidos, Giraudoux afirmaria ter escrito a 38.ª versão. Uma narração de Plutarco (que Camões teria conhecido através da referência que lhe é feita no Espelho de Casados, de João de Barros, impresso em 1540), e talvez os Trionfi, de Petrarca, estão por sua vez na base do Rei Seleuco, representado em Lisboa entre 1542 e 1549, em casa de um fidalgo da corte de D. João III. Quanto ao Filodemo, que se sabe ter sido levado à cena na Índia, em 1555, por ocasião das cerimónias de investidura do governador Francisco Barreto, é uma comédia romanesca que tanto evoca a Rubena, de Gil Vicente, como a Celestina, de Rojas, e precede os dramas pastoris italianos de Tasso e Guarini, ou, entre nós, a Pastora Alfeia, de Simão Machado. De estrutura mais complexa que as suas antecessoras, nos seus cinco actos contesta-se subtilmente o «regimento do mundo» e opõe-se ao amor contemplativo o amor «pela activa», que zomba das hierarquias e dos preconceitos — ao mesmo tempo que por eles fluentemente circula aquele admirável lirismo que impregna toda a obra do maior poeta de que a História da Literatura Portuguesa se ufana.

(in "História do Teatro Português", 4. edição, revista e ampliada, Col. Saber, vol. 68, Mira-Sintra: Publicações Europa-América, 1989 – p. 44-45 e 49-53)



O TEATRO CLÁSSICO: OSCILAÇÕES DO TEXTO E DO ESPECTÁCULO

Por: Duarte Ivo Cruz



                                 O introdutor: Sá de Miranda

O Renascimento português e os seus prolongamentos até ao início do século XVIII marcaram uma evolução do classicismo que, no teatro, nos surge irregular, desigual na qualidade e, sobretudo, extremamente errático na maior ou menor ortodoxia de escola. Desde logo, não é de mais repetir a influência de Gil Vicente, a permanência da sua força e o alcance da sua voz: as referências a Camões e a António Prestes, entre outros, eloquentemente ilustram esta afirmação.
De qualquer maneira, porém, a evolução histórica e estética é irreversível, e a mentalidade da Renascença acaba por influenciar o hesitante teatro português. Vimos já como os ecos do novo ritmo se fazem sentir nos autos profanos da retardada Escola Vicentina. Pois veremos agora a ostensiva afirmação desses métodos, feita por Sá de Miranda, com o quase ingénuo entusiasmo dos teorizadores.
A partir daqui, e durante cerca de dois séculos, verifica-se uma evolução modernizante e tendencialmente erudita, mas, não é demais repeti-lo, profundamente desigual no plano estilístico, no plano da qualidade e da produção de textos e espectáculos. Daí, um registo vasto e heterogéneo, que culminará pelo menos até ao Barroco, e onde se destacam sobretudo Sá de Miranda, como introdutor, Camões e António Ferreira.
[...]

                                       Camões ou o hibridismo

O teatro de Luís de Camões (1524-1580) tem sido «prejudicado» pela projecção ímpar da épica e da lírica. Bem sabemos que os três autos camonianos ficam aquém daqueles valores ultra-excepcionais. Mas, de qualquer forma, não podemos também ignorar o vigor, a frescura, a graça de tantas passagens, a qualidade teatral e sobretudo literária da dramaturgia de Camões.
Em particular, importa lembrar os aspectos de transição, aliás já aludidos. Refere Teófilo Braga «a superior capacidade estética de Camões, conciliando os dois espíritos da Idade Média e da Renascença, pelo modo como alia as formas populares do auto, fixadas por Gil Vicente, com os temas mitológicos imitados dos escritores grego-romanos».
Assim é, na verdade: e a natural conciliação da alegre métrica vicentina com o voo sublime que a lírica de Camões imortaliza, dá origem a um dos mais curiosos aspectos desta breve obra teatral.
É questionável a razão do descaso de Camões pelo teatro. Na verdade, aquele espírito irrequieto, extremamente criativo e aventuroso, desbravador de tantas sendas secretas do nosso idioma, da nossa cultura e da nossa arte, só se fixou no teatro em três momentos fogosos e descontínuos.
Assim, temos o Auto dos Enfatriões ou Anfitriões que tudo indica ter sido criado e representado no contexto curricular da Universidade, pois os estudos superiores obrigavam a representação anual de um clássico. Pode-se, portanto, situar a sua criação ao longo da década de 1540-1550, e a representação no quadro universitário.
O Auto de El-Rei Seleuco foi representado entre 1543 e 1549, e o próprio contexto da peça, com a curiosa simulação de teatro dentro do teatro, revela-nos onde se concretizou a representação — em casa de Estácio da Fonseca, Cavaleiro Fidalgo de D. João III, almoxarife e recebedor das aposentadorias da corte.
E, finalmente, sabe-se que o Auto de Filodemo foi representado na Índia, por ocasião dos festejos da investidura do governador Francisco Barreto, o que atira a data de criação para 1555. Já que a data do nascimento de Camões se situa provavelmente em torno de 1524, temos que o teatro só o interessaria na juventude: mas, curiosamente, surge esporádico em três fases muito características da vida aventurosa e agitada de Camões — estudante, cortesão, funcionário na Índia.
De qualquer forma, a análise do teatro camoniano começa a ganhar interesse a partir do momento em que se descobrem alguns sinais do seu sopro criador e das características do próprio teatro que se fazia em Portugal no século XVI.
Do ponto de vista do espectáculo, as cenas introdutórias do Seleuco que adiante recordaremos e cruzaremos com cenas semelhantes de um auto de António Ribeiro Chiado, dão luz aos hábitos da época, ao menos na expressão cortesã: amigos que se juntam para celebrar umas bodas, e assistem, em casa de um deles, à representação de um «Auto com grande fogueira».
O teatro de Camões guarda simultaneamente factores da tradição medieval portuguesa, que comodamente apelidamos de escolas vicentinas (apesar de remontar a séculos atrás), e factores da renovação renascentista de linguagem e de concepção cénica, que Sá de Miranda introduziu em Portugal. Constituiu uma pequena mas pujante dramaturgia-síntese.
Trata-se de uma assimilação muito inteligente — e não é demais insistir na grande inteligência de Camões — de dois mundos culturais que coexistiram, na área teatral, com grande impacto. De tal forma que, no seu tempo, eram ambos modernos — e ainda hoje, em rigor, o são, quando chegam até nós marcados pelo talento.
[...]

(in "História do Teatro Português", Lisboa: Editorial Verbo, 2001 – p. 51 e 55-56)


Prosseguindo a celebração camoniana, neste ano do quinto centenário do nascimento do maior vulto das Letras Portuguesas, o presente Dia Mundial do Teatro afigura-se a oportunidade perfeita para darmos enfoque às adaptações (integrais e parcelares) dos três autos conhecidos que em boa hora se fizeram para a rádio pública. Fazemo-lo reunindo nesta página as fichas artísticas/técnicas de cada uma dessas produções juntamente com os links de acesso directo à plataforma RTP-Arquivos onde foram recentemente disponibilizados os fonogramas respectivos. Um património precioso que importa fruir, em escuta atenta, pois não é pequeno o deleite intelectual que tal experiência proporciona. Registos que testemunham, cabal e perfeitamente, como o teatro puramente sonoro é o que melhor serve e valoriza os grandes textos dramáticos, desde que – obviamente – se utilize capital humano de primeira categoria, como foi o caso do que participou nas versões apresentadas. Citamos alguns nomes (por ordem alfabética): Álvaro Benamor, Alves da Costa, Ana Paula, Ângela Ribeiro, Arminda Taveira, Assis Pacheco, Branco Alves, Canto e Castro, Carlos Cabral, Carmen Dolores, Catarina Avelar, Costa Ferreira, Gina Santos, Henriqueta Maia, Hermínia Tojal, Igor Sampaio, Irene Cruz, João Lourenço, João Mota, Jorge de Sousa Costa, Luís Santos, Madalena Braga, Manuel Coelho, Manuel Lereno, Maria Dulce, Maria José, Mário Pereira, Mário Sargedas, Paulo Renato, Pedro Lemos, Ruy de Carvalho, Ruy Furtado, Varela Silva...
Em vez da apresentação cronológica indiferenciada das várias produções, entendemos que seria preferível agrupá-las pelos títulos, colocando no início as que têm índole mais didáctica, feitas para os programas "Teatro de Todos os Tempos" e "História do Teatro Português", da autoria, respectivamente, de Eurico Lisboa (Filho) e de Duarte Ivo Cruz.
Boas audições camonianas!


HISTÓRIA DO TEATRO PORTUGUÊS | 13 Jul. 1972 [>> RTP-Arquivos]
  1. Auto de Filodemo e Auto dos Anfitriões (excertos), de Luís de Camões
    Adaptação e comentários críticos: Duarte Ivo Cruz
    Direcção: Manuel Lereno
    Intérpretes (e personagens): [AUTO DE FILODEMO] Canto e Castro (Filodemo), Ana Paula (Dionisa); [AUTO DOS ANFITRIÕES] Ana Paula (Almena, mulher de Anfitrião), Irene Cruz (Brómia, sua criada), Varela Silva (Feliseu), Canto e Castro (Júpiter), João Lourenço (Mercúrio), João Perry (Sósia, moço de Anfitrião), Mário Pereira (Anfitrião), Jorge Vale (Belferrão, patrão)
    Narração: Maria Natália Bispo e Gustavo Rosa
    Assistência técnica: Justiniano Vargues
    Realização: José Ribeiro.

TEATRO DAS COMÉDIAS | 11 Jun. 1967 [>> RTP-Arquivos]
  1. Auto Chamado dos Anfitriões, de Luís de Camões [>> texto integral]
    Adaptação: Leopoldo Araújo
    Direcção: Álvaro Benamor
    Intérpretes (e personagens): Catarina Avelar (Almena, mulher de Anfitrião), Maria José (Brómia, sua criada), Morais e Castro (Feliseu), Paulo Renato (Júpiter / Anfitrião), Canto e Castro (Mercúrio / Sósia, moço de Anfitrião), Jorge Vale (Calisto), Luís Filipe (Belferrão, patrão), Rui Pedro (Aurélio, primo de Almena)
    Assistência técnica: Fernando Pires
    Montagem: Castela Esteves.

TEATRO DAS COMÉDIAS | 6 Jun. 1971 [>> RTP-Arquivos]
  1. Auto dos Anfitriões, de Luís de Camões [>> texto integral]
    Adaptação: Leopoldo Araújo
    Direcção e ensaio: Álvaro Benamor
    Intérpretes (e personagens): Carmen Dolores (Almena, mulher de Anfitrião), Ângela Ribeiro (Brómia, sua criada), Alexandre Vieira (Feliseu), Álvaro Benamor (Júpiter), Morais e Castro (Mercúrio), Canto e Castro (Sósia, moço de Anfitrião), Igor Sampaio (Calisto), Ruy de Carvalho (Anfitrião), Branco Alves (Belferrão, patrão), Carlos Rosa (Aurélio, primo de Almena)
    Assistência técnica: Moreira de Carvalho
    Realização: Horácio Gonzaga.

TEMPO DE TEATRO | 10 Jun. 1980 [>> RTP-Arquivos]
  1. Auto dos Anfitriões, de Luís de Camões [>> texto integral]
    Adaptação: Filipe La Féria
    Direcção de actores: Pedro Lemos
    Intérpretes (e personagens): Hermínia Tojal (Almena, mulher de Anfitrião), Henriqueta Maia (Brómia, sua criada), Varela Silva (Júpiter), Igor Sampaio (Mercúrio), Manuel Cavaco (Sósia, moço de Anfitrião), Victor Ribeiro (Anfitrião), António Sarmento (Belferrão, patrão), Carlos Daniel (Aurélio, primo de Almena)
    Captação e registo de som: Rui Remígio
    Sonorização e montagem: Serra Morais
    Realização: Eduardo Street.

TEATRO DE TODOS OS TEMPOS | 10 Jun. 1971 [>> RTP-Arquivos]
  1. Auto d'El-Rei Seleuco, de Luís de Camões [>> texto integral]
    Adaptação e comentários críticos: Eurico Lisboa (Filho)
    Direcção artística: José Gamboa
    Intérpretes (e personagens): [PRÓLOGO] Pedro Pinheiro (Estácio da Fonseca, o Dono da Casa), Mário Sargedas (Lançarote, seu moço), Tomás de Macedo (Martim Chinchorro); [COMÉDIA] Luís Santos (El-Rei Seleuco), Ana Paula (A Rainha Estratónica, sua mulher), Jorge de Sousa Costa (O Príncipe Antíoco), Mário Sargedas (Leocádio, pajem do Príncipe Antíoco), Lurdes Lima (Uma moça de câmara / Frolalta, criada da Rainha Estratónica), Tomás de Macedo (Um porteiro da cana), Pedro Pinheiro (Um físico)
    Narração: Manuela Patrocínio
    Assistência técnica: Fernando Pires
    Realização: Castela Esteves.

HISTÓRIA DO TEATRO PORTUGUÊS | 15 Jun. 1972 [>> RTP-Arquivos]
  1. Auto d'El-Rei Seleuco (excertos), de Luís de Camões [>> texto integral]
    Adaptação e comentários críticos: Duarte Ivo Cruz
    Direcção: José Gamboa
    Intérpretes (e personagens): [PRÓLOGO] Luís de Campos (Estácio da Fonseca, o Dono da Casa), João Lourenço (Lançarote, seu moço); [COMÉDIA]: Pedro Lemos (El-Rei Seleuco), Catarina Avelar (A Rainha Estratónica, sua mulher), Canto e Castro (O Príncipe Antíoco), Irene Cruz (Uma moça de câmara), João Lourenço (Um porteiro da cana), Ana Paula (Frolalta, criada da Rainha Estratónica), Luís de Campos (um físico)
    Narração: Maria Natália Bispo e Gustavo Rosa
    Assistência técnica: Leonel da Silva
    Realização: Carlos Fernandes.

TEATRO DAS COMÉDIAS | 11 Jun. 1959 [>> texto integral]
  1. Auto d'El-Rei Seleuco, de Luís de Camões [>> texto integral]
    Adaptação: Leopoldo Araújo
    Direcção e ensaio: Álvaro Benamor
    Intérpretes (e personagens): [PRÓLOGO] Alves da Costa (O Mordomo, ou Dono da Casa), Manuel Lereno (Lançarote, seu moço), Salles Ribeiro (Martim Chinchorro), Santos Gomes (Ambrósio, seu escudeiro), Canto e Castro (Representador); [COMÉDIA] Costa Ferreira (El-Rei Seleuco), Gina Santos (A Rainha Estratónica, sua mulher), Álvaro Benamor (O Príncipe Antíoco), João Lourenço (Leocádio, pajem do Príncipe Antíoco), Maria José (Uma moça de câmara / Frolalta, criada da Rainha Estratónica), Canto e Castro (Um porteiro da cana), Santos Gomes (Alexandre da Fonseca, um dos músicos), Manuel Lereno (Um físico)
    Assistência técnica: Francisco Vicente
    Montagem: Jorge Santos.

TEATRO DAS COMÉDIAS | 11 Jun. 1972 [>> RTP-Arquivos]
  1. Auto d'El-Rei Seleuco, de Luís de Camões [>> texto integral]
    Adaptação: Eduardo Jacques
    Direcção e ensaio: Álvaro Benamor
    Intérpretes (e personagens): Assis Pacheco (El-Rei Seleuco), Carmen Dolores (A Rainha Estratónica, sua mulher), Mário Pereira (O Príncipe Antíoco), João Perry (Leocádio, pajem do Príncipe Antíoco), Maria Dulce (Frolalta, criada da Rainha Estratónica), Luís Filipe (1.º físico), Ruy Furtado (2.º físico), Carlos Rosa (1.º criado), Mário Sargedas (2.º criado)
    Assistência técnica: Fernando Pires
    Realização: Horácio Gonzaga.

TEATRO DAS COMÉDIAS | 8 Jun. 1969 [>> RTP-Arquivos]
  1. Auto de Filodemo, de Luís de Camões [>> texto integral]
    Adaptação: Eduardo Jacques
    Direcção e ensaio: Álvaro Benamor
    Intérpretes (e personagens): Canto e Castro (Filodemo), João Mota (Vilardo, seu moço), Maria José (Solina, moça de Dionisa), Assis Pacheco (Dom Lusidardo, pai de Venadoro e de Dionisa), João Perry (Venadoro), António Anjos (Monteiro de Venadoro), Carmen Dolores (Dionisa), Santos Gomes (Um pastor), Irene Cruz (Florimena, pastora e irmã de Filodemo)
    Assistência técnica: Clídio de Carvalho
    Realização: Castela Esteves.

TEMPO DE TEATRO | 4 Jun. 1978 [>> RTP-Arquivos]
  1. Auto de Filodemo, de Luís de Camões [>> texto integral]
    Adaptação: Jorge Figueiredo de Barros
    Selecção e direcção de actores: Jacinto Ramos
    Intérpretes (e personagens): Manuel Coelho (Filodemo), Carlos Cabral (Vilardo, seu moço), Madalena Braga (Solina, moça de Dionisa), Carlos Daniel (Venadoro), Benjamim Falcão (Monteiro de Venadoro), Carlos Veríssimo (Duriano, amigo de Filodemo), Arminda Taveira (Dionisa), Luís Mata (Um pastor), Lurdes Lima (Florimena, pastora e irmã de Filodemo), Carlos Duarte (Dom Lusidardo, pai de Venadoro e de Dionisa), Andrade e Silva (Doloroso, amigo de Vilardo)
    Diálogo preambular, intercalar e final: Luz Franco (Adolescente), Ruy de Carvalho (Avô)
    Assistência técnica: Rui Remígio
    Sonorização: Horácio Gonzaga
    Realização: Teles Gomes.


Frontispício da "Comedia dos Enfatriões", de Luís de Camões, impressa em Lisboa, por Vicente Alvarez, em 1615.



Frontispício da "Comedia de Filodemo", de Luís de Camões, impressa em Lisboa, por Vicente Alvarez, em 1615.



Fronstispício da edição das "Rimas" (1.ª Parte), de Luís de Camões, impressa em Lisboa, na oficina de Paulo Craesbeeck, em 1645, e primeira página da "Comedia d'El-Rey Seleuco".

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"Ecos da Ribalta": homenagem a Eunice Muñoz

22 março 2024

Luís Cília: "Se me Levam Águas" (Luís de Camões)


Fraga da Pena, na Mata da Margaraça, Serra do Açor
Fotografia extraída do site "Alma de Aventureiros"


Em maré de celebração camoniana neste quinquicentenário do nascimento do nosso Poeta-Maior (considerando que veio ao mundo em 1524, provavelmente a 23 de Janeiro), assinalamos este Dia Mundial da Água com um dos mais belos poemas já escritos em língua portuguesa tendo como motivo o precioso líquido: o vilancete em redondilha menor "Se me levam águas", na encantadora versão cantada por Luís Cília com música da sua autoria. Serve também para homenagear, ainda que muito singelamente, o categorizado compositor/intérprete neste ano que é o 60.º da edição do seu primeiro álbum, "Portugal-Angola: Chants de Lutte", que aconteceu em França, pela editora Le Chant du Monde, em finais de 1964. Boa escuta!

A propósito de Luís Cília, é oportuno referir que continua a ser criminosamente boicotado por quem gere a 'playlist' da Antena 1 (ou superintende a sua gestão, leia-se Nuno Galopim de Carvalho). A exclusão de nomes grandes da música portuguesa da referida lista nem seria especialmente grave se ela tivesse um peso residual no cômputo geral da programação musical, mas como acontece precisamente o inverso (não andaremos longe da verdade se apontarmos a cifra de 85 %) eles terão de estar lá representados. Caso contrário, torna-se legítimo questionar o financiamento público, seja pela contribuição do audiovisual seja por dotações do Orçamento do Estado. Mas gostaríamos de não ter de chegar aí porque preconizamos a existência de uma estação pública de rádio. Agora não pode (nem deve) é atraiçoar a sua nobre missão maltratando os valores maiores da nossa música (cantada na língua de Camões ou instrumental).



Se me Levam Águas



Poema (vilancete em redondilha menor): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 772-773)
Música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília* (in LP "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1", Moshé-Naïm, 1967; CD "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours", Moshé-Naïm/EMEN, 1996)


          MOTE ALHEIO

Se me levam águas,
nos olhos as levo.

          VOLTAS

Se de saudade
morrerei ou não,
meus olhos dirão
de mim a verdade.
Por eles me atrevo
a lançar as águas
que mostrem as mágoas
que nesta alma levo.

As águas que em vão
me fazem chorar,
se elas são do mar
estas de amor são.
Por elas relevo
todas minhas mágoas;
que, se força de águas
me leva, eu as levo.

Todas me entristecem,
todas são salgadas;
porém as choradas
doces me parecem.
Correi, doces águas,
que, se em vós me enlevo,
não doem as mágoas
que no peito levo.


Nota:
a lançar as águas – alcançar as águas

* Luís Cília – voz e guitarra
Marc Vic – guitarra
François Rabbath – contrabaixo
Produção – Moshé Naïm
Gravado nos Studios Europa-Sonor, Paris
URL: http://www.luiscilia.com/
https://www.youtube.com/user/LeoMOV/videos
https://music.youtube.com/channel/UCqL_T8TPQ2ffVAKn-v4kN_A



Frontispício da primeira edição das "Rimas", de Luís de Camões, org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita (Lisboa, 1595).



Capa do LP "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 1", de Luís Cília (Moshé-Naïm, 1967).
Fotografia – Ludwik Lewin.
Concepção – Henri Matchavariani.



Capa da antologia em CD "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours", de Luís Cília (Moshé-Naïm/EMEN, 1996).
Pintura (à esquerda) – Maria Helena Vieira da Silva.
Fotografia (à direita) – Alain Appéré.

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Outros artigos com poesia de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
Camões recitado e cantado (IV)
Camões recitado e cantado (V)
Camões recitado e cantado (VI)
Camões recitado e cantado (VII)
Camões recitado e cantado (VIII)
Camões recitado e cantado (IX)
Luís de Camões: "Os Lusíadas" (dois excertos), por Carlos Wallenstein

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Outros artigos com repertório interpretado por Luís Cília ou da sua autoria:
Em memória de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)
Celebrando Eugénio de Andrade
Camões recitado e cantado (V)
José Saramago: "Dia Não"
Adriano Correia de Oliveira: "Exílio" (Manuel Alegre)
Luís Cília: "Tango Poluído"
Luís Cília: "O Cavador" (Guerra Junqueiro)

21 março 2024

Luís de Camões: "Os Lusíadas" (dois excertos), por Carlos Wallenstein


Roque Gameiro, "A Partida de Vasco da Gama para a Índia em 1497", c. 1900, litografia, Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa


Não sendo conhecida a certidão de nascimento nem o assento de baptismo de Luís de Camões, vários estudiosos têm aventado hipotéticas datas (exactas ou aproximadas) para a sua nascença com base em referências de cariz biográfico encontradas na sua obra. Uma delas aparece na primeira quadra do soneto "O dia em que nasci morra e pereça" e deu recentemente azo a que académicos da Universidade de Coimbra estabelecessem uma data precisa: 23 de Janeiro de 1524, um ano antes do eclipse solar que se supõe ser o que o poeta tinha no pensamento quando escreveu a palavra 'eclipse' no poema em questão. Embora com outras datas, o ano 1524 é o mais apontado entre as várias hipóteses já esboçadas, pelo que podemos tomá-lo em boa conta para efeitos da celebração do quinquicentenário do nascimento. Assim sendo, no presente Dia Mundial da Poesia não podia faltar algo que saiu da pena do maior vulto da Literatura (de Língua) Portuguesa. E o que escolher da sua vasta produção? Ora a efeméride do 530.º aniversário do Tratado de Tordesilhas que ocorre no próximo 7 de Junho remete-nos para a Expansão Portuguesa e, necessariamente, para a viagem marítima de Vasco da Gama até à Índia, narrada a letras de ouro nesse colossal monumento literário a que Camões deu o título de "Os Lusíadas". É pois apresentando dois excertos da genial epopeia – os referentes à Partida das Naus (Canto IV) e ao Fogo-de-Santelmo e à Tromba Marítima (Canto V) –, admiravelmente recitados pelo actor Carlos Wallenstein, que celebramos o Dia da Poesia de 2024. Boa escuta!

Vem a talhe de foice fazer um ponto de situação da poesia na radio pública...
Na Antena 2, graças aos cuidados de Paulo Alves Guerra (no programa da manhã) e, sobretudo, de Luís Caetano (na rubrica "A Vida Breve" e, ocasionalmente, nos programas "A Força das Coisas" e "A Ronda da Noite"), vai sendo possível ouvir boa poesia. Não obstante, temos sentido a falta do apontamento "O Som Que os Versos Fazem ao Abrir" que Luís Caetano vinha mantendo em colaboração com Ana Luísa Amaral, que acabou por um motivo de força maior: o falecimento da distinta poetisa e professora de literatura. Faz muito sentido existir no canal (mais) cultural da rádio pública um espaço de poesia comentada (abarcando diferentes épocas), e não duvidamos que haja em Portugal alguém que possa continuar o trabalho de Ana Luísa Amaral, ainda que o título possa ser outro (isso é de somenos importância). Fica lançado o repto a Luís Caetano e à direcção de programas da Antena 2. Igualmente no segundo canal, fazemos ainda menção a duas rubricas que também dão guarida à poesia, se bem que não exclusivamente: "Ambos na Mesma Página", de Raquel Marinho, que peca pela leitura excessivamente 'branca' dos textos; "Páginas de Português", de José Manuel Matias, com a actriz Maria Henrique na leitura (pouco cativante) de poemas; e "Palavras de Bolso", de Ana Isabel Gonçalves e Paula Pina, direccionada para o público mais jovem.
E nas Antenas 1 e 3? Só pela mão de David Ferreira, no seu imperdível programa dominical "A Cena do Ódio" (Antena 1), aparece um ou outro poema dito/recitado, de vez em quando. A inexistência de uma rubrica regular de poesia é chocante, e podia muito bem ser garantida a sua existência sem se gastar um chavo: bastaria fazer uso da arca do tesouro que é o arquivo da RDP. E não se tem feito por uma simples razão: Nuno Galopim de Carvalho e Nuno Reis são indivíduos com a sensibilidade embotada para a poesia. Mas será admissível que o serviço público de rádio seja prejudicado por causa disso?



A PARTIDA DAS NAUS



Versos de Luís de Camões (estrofes 84 a 93 do Canto IV d' "Os Lusíadas", Lisboa, 1572; "Os Lusíadas", Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 1972 – p. 151-154; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 1234-1236)
Recitados por Carlos Wallenstein* (in LP "Camões: Antologia", Série "Disco Falado", Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Col. Palavras, Strauss, 2002)




E já no porto da ínclita Ulisseia,
C'um alvoroço nobre e c'um desejo
(Onde o licor mistura e branca areia
Co'o salgado Neptuno o doce Tejo)
As naus prestes estão; e não refreia
Temor nenhum o juvenil despejo,
Porque a gente marítima e a de Marte
Estão para seguir-me a toda a parte.

Pelas praias vestidos os soldados
De várias cores vêm e várias artes,
E não menos de esforço aparelhados
Para buscar do mundo novas partes.
Nas fortes naus os ventos sossegados
Ondeiam os aéreos estandartes.
Elas prometem, vendo os mares largos,
De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos.

Depois de aparelhados, desta sorte,
De quanto tal viagem pede e manda,
Aparelhámos a alma para a morte,
Que sempre aos nautas ante os olhos anda.
Para o sumo Poder, que a etérea Corte
Sustenta só co'a vista veneranda,
Implorámos favor que nos guiasse
E que nossos começos aspirasse.

Partimo-nos assim do santo templo
Que nas praias do mar está assentado,
Que o nome tem da terra, para exemplo,
Donde Deus foi em carne ao mundo dado.
Certifico-te, ó Rei, que, se contemplo
Como fui destas praias apartado,
Cheio dentro de dúvida e receio,
Que apenas nos meus olhos ponho o freio.

A gente da cidade, aquele dia,
(Uns por amigos, outros por parentes,
Outros por ver somente) concorria,
Saudosos na vista e descontentes.
E nós, co'a virtuosa companhia
De mil Religiosos diligentes,
Em procissão solene, a Deus orando,
Para os batéis viemos caminhando.

Em tão longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam,
As mulheres c'um choro piedoso,
Os homens com suspiros que arrancavam.
Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam
A desesperação e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo.

Qual vai dizendo: Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Porque me deixas, mísera e mesquinha?
Porque de mim te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento
Onde sejas de peixes mantimento?

Qual em cabelo: Ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Porque is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha e não é vossa?
Como, por um caminho duvidoso,
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento,
Quereis que com as velas leve o vento?

Nestas e outras palavras que diziam
De amor e de piedosa humanidade,
Os velhos e os meninos as seguiam,
Em quem menos esforço põe a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quase movidos de alta piedade;
A branca areia as lágrimas banhavam,
Que em multidão com elas se igualavam.

Nós outros, sem a vista alevantarmos
Nem a Mãe, nem a Esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assim nos embarcarmos,
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.


* Carlos Wallenstein – voz
Selecção de textos/poemas – Carlos Wallenstein

Direcção literária – Alberto Ferreira
Assistente de produção – Carmen Santos
Produção – Sassetti
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa
Captação de som e montagem – Moreno Pinto
Remasterização – Jorge d'Avillez (Strauss Studio, Lisboa)



Roque Gameiro, "Partida de Vasco da Gama para a Índia", ilustração inclusa no livro "Quadros da História de Portugal", de Chagas Franco e João Soares (Lisboa: Papelaria Guedes, 1917)



FOGO-DE-SANTELMO e TROMBA MARÍTIMA



Versos de Luís de Camões (estrofes 16 a 23 do Canto V d' "Os Lusíadas", Lisboa, 1572; "Os Lusíadas", Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 1972 – p. 164-166; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 1244-1245)
Recitados por Carlos Wallenstein* (in LP "Camões: Antologia", Série "Disco Falado", Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Col. Palavras, Strauss, 2002)




Contar-te longamente as perigosas
Coisas do mar, que os homens não entendem,
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpagos que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões, que o mundo fendem,
Não menos é trabalho que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.

Os casos vi que os rudos marinheiros,
Que tem por mestra a longa experiência,
Contam por certos sempre e verdadeiros,
Julgando as coisas só pela aparência,
E que os que têm juízos mais inteiros,
Que só por puro engenho e por ciência
Vêem do mundo os segredos escondidos,
Julgam por falsos ou mal entendidos.

Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por Santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e cousa, certo, de alto espanto,
Ver as nuvens, do mar com largo cano,
Sorver as altas águas do Oceano.

Eu o vi certamente (e não presumo
Que a vista me enganava): levantar-se
No ar um vaporzinho e subtil fumo
E, do vento trazido, rodear-se;
De aqui levado um cano ao Pólo sumo
Se via, tão delgado, que enxergar-se
Dos olhos facilmente não podia;
Da matéria das nuvens parecia.

Ia-se pouco e pouco acrescentando
E mais que um largo mastro de engrossava;
Aqui se estreita, aqui se alarga, quando
Os golpes grandes de água em si chupava;
Estava-se com as ondas ondeando;
Em cima dele ũa nuvem se espessava,
Fazendo-se maior, mais carregada,
Co'o cargo grande d'água em si tomada.

Qual roxa sanguessuga se veria
Nos beiços da alimária (que, imprudente,
Bebendo a recolheu na fonte fria)
Fartar co'o sangue alheio a sede ardente;
Chupando, mais e mais se engrossa e cria,
Ali se enche e se alarga grandemente:
Tal a grande coluna, enchendo, aumenta
A si e a nuvem negra que sustenta.

Mas, depois que de todo se fartou,
O pé que tem no mar a si recolhe
E pelo céu, chovendo, enfim voou,
Por que co'a água a jacente água molhe;
Às ondas torna as ondas que tomou,
Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe.
Vejam agora os sábios na escritura
Que segredos são estes de Natura.

Se os antigos Filósofos, que andaram
Tantas terras, por ver segredos delas,
As maravilhas que eu passei, passaram,
A tão diversos ventos dando as velas,
Que grandes escrituras que deixaram!
Que influição de signos e de estrelas,
Que estranhezas, que grandes qualidades!
E tudo, sem mentir, puras verdades.


* Carlos Wallenstein – voz
Selecção de textos/poemas – Carlos Wallenstein

Direcção literária – Alberto Ferreira
Assistente de produção – Carmen Santos
Produção – Sassetti
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa
Captação de som e montagem – Moreno Pinto
Remasterização – Jorge d'Avillez (Strauss Studio, Lisboa)
URL: http://www.cinept.ubi.pt/pt/pessoa/2143690279/Carlos+Wallenstein
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/perfil-carlos-wallenstein/
https://music.youtube.com/channel/UCAB5mYWk4Z9tVkwp-RrXdgQ



Frontispício da 1.ª edição d' "Os Lusíadas", de Luís de Camões (Impressos em Lisboa: em casa de Antonio Gõçaluez Impressor, 1572)


Capa do LP "Camões: Antologia", de Carlos Wallenstein (Série "Disco Falado", Guilda da Música/Sassetti, 1973)
Concepção – Soares Rocha



Capa da reedição em CD do álbum "Camões: Antologia", de Carlos Wallenstein (Col. Palavras, Strauss, 2002)
Retrato de Camões – Soares Rocha
Grafismo – João P. Cachenha

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Outros artigos com poesia de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
Camões recitado e cantado (IV)
Camões recitado e cantado (V)
Camões recitado e cantado (VI)
Camões recitado e cantado (VII)
Camões recitado e cantado (VIII)
Camões recitado e cantado (IX)

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Outros artigos com poesia dita/recitada:
Mário Viegas: 10 anos de saudade
Miguel Torga: "Natal"
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Arte e poesia
Poesia na rádio (II)
A infância e a música portuguesa
Jorge de Sena: "Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya", por Mário Viegas
Sebastião da Gama: "Poesia", por Carmen Dolores
João Villaret: centenário do nascimento
Eugénio de Andrade por Eugénio de Andrade
Ser Poeta
Pedro Barroso: "Palavras Mal Ditas" ou "Palavras Malditas"?
Em memória de Guilherme de Melo (1931-2013)
Celebrando Natália Correia
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
Celebrando Vinicius de Moraes
Fernando Pessoa por João Villaret
Miguel Torga: "Ode à Poesia", por João Villaret
Celebrando Agostinho da Silva
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Al-Mu'tamid: "Evocação de Silves"
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
Celebrando Eugénio de Andrade
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Dois Excertos de Odes", por Mário Viegas
Cesário Verde: "De Tarde"
Cesário Verde por Mário Viegas
António Gedeão: "Dia de Natal", por Afonso Dias
Camilo Pessanha: "Singra o navio", por Mário Viegas
Miguel Torga: "Flor da Liberdade"
Ana Moura: "Creio" (Natália Correia)
Sebastião da Gama: "Louvor da Poesia", por José Nobre
"Ecos da Ribalta": homenagem a Carmen Dolores
Natália Correia: "Rascunho de uma Epístola", por Ilda Feteira
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Aniversário", por Luís Lima Barreto
Miguel Torga: "Natividade"
António Botto: "Homem que vens de humanas desventuras"
Fernando Namora: centenário do nascimento
Miguel Torga: "A um Negrilho"
Mário Dionísio: "Solidariedade", por Carmen Dolores
Manuel Alegre: "País de Abril", por Mário Viegas
Maria Teresa Horta: "Mulher-Poetisa"
Florbela Espanca: "À Morte", por Eunice Muñoz
Eugénio de Andrade por João Perry
A Natalidade de Natália
Natália Correia: "A Casa do Poeta", por Afonso Dias
Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia
Natália Correia: "Ode à Paz", por Afonso Dias
Nuno Júdice: "O Sentido do Poema"

20 março 2024

Rão Kyao & Lu Yanan: Primavera


© Xinhua News
Festival da Primavera 2024 no centro histórico de Macau (Praça do Leal Senado)


O Festival da Primavera: a festa mais importante para os chineses

O Festival da Primavera é sinónimo do Ano Novo Chinês e é a festa tradicional mais importante da China, que marca o reencontro das famílias. Logo desde o Festival de Laba, os chineses já começam a preparar os festejos da nova data, que em 2024 [Ano do Dragão] recai a 10 de Fevereiro.
Sabe de onde provém o Festival da Primavera? Reza a lenda que existia um monstro de nome Nian (significa ano) que, na véspera do último dia do ano lunar, surgia para semear a destruição, arruinando colheitas e edifícios. Com o passar do tempo, descobriu-se que o monstro temia a cor vermelha, a luz das chamas e ruídos estrondosos. Por conseguinte, as famílias passaram a adornar as suas residências com dísticos de papel vermelho e janelas de papel recortado, bem como a detonar panchões, e finalmente conseguiram repelir o monstro. Estas práticas tornaram-se tradições consagradas das festividades de Ano Novo Chinês.
[...]
Hoje em dia, o Festival da Primavera não é um feriado exclusivo apenas para os chineses a nível nacional, é-o também para os emigrados. Em 22 de Dezembro de 2023, a Assembleia-Geral das Nações Unidas estabeleceu o festival como um feriado oficial das Nações Unidas. Em 2016, o estado do Rio de Janeiro, no Brasil, designou-o como um feriado oficial estadual.
Pode constatar-se sempre uma série de actividades festivas neste festival, como as danças de leões e dragões, espectáculos de fogo-de-artifício e de lanternas, bem como o desfile de carros alegóricos e outras celebrações, que ocorrem nas ruas e praças da Chinatown ou no centro de cidades em muitos países e regiões.
Como exemplo, o Feliz Ano Novo Lunar em Portugal teve lugar consecutivamente em 10 edições desde 2014. Devido às relações históricas e culturais únicas entre Macau e Portugal, a Região Administrativa Especial de Macau também participa no evento com grupos folclóricos. No Brasil, Timor-Leste e nos países de língua portuguesa em África também há celebrações do Festival da Primavera. [in "Diário de Notícias", 8 Fev. 2024]

Em 2024, o equinócio da Primavera aconteceu hoje de madrugada, na Europa Ocidental (03h:06, hora de Portugal de Continental). O mesmo ano em que se comemora o centenário da primeira viagem aérea entre Portugal (Vila Nova de Milfontes) e Macau, realizada pelos aviadores Sarmento de Beires e Brito Paes auxiliados pelo mecânico Manuel Gouveia, de 7 de Abril a 20 de Junho de 1924, a bordo de um velho biplano monomotor Breguet 16 que baptizaram de "Pátria". E também o ano em que se assinala o 25.º aniversário da transferência da soberania de Macau de Portugal para a República Popular da China, que ocorreu oficialmente a 20 de Dezembro 1999. Duas efemérides que nos servem de bom pretexto para saudarmos este ano a chegada da estação do renascimento da Natureza com um espécime musical tradicional chinês: "Primavera", interpretado pelo português Rão Kyao (em flauta de bambu) e pela chinesa Lu Yanan (em pi'pa). Faz parte do CD "Porto Interior" (Fundação Jorge Álvares, 2008), um álbum que é uma espécie de terceiro tramo da ponte musical luso-chinesa ou sino-portuguesa, como se queira, que Rão Kyao encetou com o LP "Macau: O Amanhecer" (1984) e continuou com "Junção Macau" (1999), gravado precisamente para assinalar a passagem do território macaense para a administração chinesa. Boa escuta!

Rão Kyao é, incontestavelmente, uma figura de primeiro plano da Música Portuguesa dos últimos 50 anos. Atestam-no a vasta e meritória discografia em nome próprio (que compreende mais de 25 álbuns, sem contar com as compilações), o reconhecimento pelos seus pares (traduzido num sem-número de participações em trabalhos alheios) e o aplauso do público [alguns dos seus álbuns foram êxitos comerciais, tendo dois deles – "Fado Bailado" (1983) e "Estrada da Luz" (1984) – sido discos de platina, por vendas superiores a 60 mil exemplares]. Com tantos pergaminhos, era da mais elementar justiça que o artista estivesse representado na 'playlist' da Antena 1. Mas não está! E porquê? Poderia supor-se que é pelo facto de se tratar de um instrumentista. O boicote à música instrumental jamais se pode aceitar num canal público generalista, mas o motivo não é propriamente esse já que na discografia de Rão Kyao também há canções, interpretadas por artistas convidados, designadamente nos álbuns "Fado Virado a Nascente" (2001) e "Em'Cantado" (2009). Portanto, se nada existe do repertório de Rão Kyao na 'playlist' da Antena 1 é por única e exclusiva vontade de quem manda na programação, de seu nome Nuno Galopim de Carvalho. E aqui chegados, uma pergunta se impõe: é lícito e tolerável que o serviço público de rádio fique condicionado aos caprichos umbilicais de quem, num determinado período, ocupa a direcção de programas?



Primavera



Música: Tradicional chinesa
Adaptação: Lu Yanan
Intérpretes: Rão Kyao & Lu Yanan (in CD "Porto Interior", Fundação Jorge Álvares, 2008)


(instrumental)


* Rão Kyao – flauta de bambu e palmas
Lu Yanan – pi'pa

Produtor musical – Rão Kyao
Produtor executivo – António Avelar de Pinho
Gravação e mistura – Estúdio Sonic State, Miraflores (Oeiras), por Luís Delgado
URL: https://www.facebook.com/officialraokyao/
https://music.youtube.com/channel/UCBmfzPfU1WrOCjmXI8KxGHQ



Capa do CD "Porto Interior", de Rão Kyao & Lu Yanan (Fundação Jorge Álvares, 2008)



Fausto Sampaio, "Porto Interior de Macau", 1936, óleo sobre tela, Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa

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Outros artigos com repertório alusivo à Primavera:
Cantos d'Aurora: "Primavera"
Roda Pé: "Primavera Alentejana"
Grupo Coral "Os Ceifeiros de Cuba": "No Tempo da Primavera"
Amália Rodrigues: "Primavera" (David Mourão-Ferreira)
Francisco Filipe Martins: "Canção da Primavera"
Grupo Coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração: "É Lindo na Primavera"
Celina da Piedade: "Primavera"

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Outros artigos com repertório interpretado por Rão Kyao:
A infância e a música portuguesa
A vitória do azeite
"Quando os Lobos Uivam"
Em memória de Fernando Alvim (1934-2015)

19 março 2024

Nuno Júdice: "O Sentido do Poema"


Henri Martin, "Moissonneuse à la gerbe de blé" ("Ceifeira com feixe de trigo"), 1916, óleo sobre tela, 54,5 x 70 cm, Colecção particular


Quem gosta de poesia não é raro encontrar, lendo ou ouvindo, textos que lhe suscitem a exclamação: «Este poema fascina-me! Quem me dera ter sido eu a escrevê-lo!». No caso de Nuno Júdice, aconteceu-nos isso com "O Sentido do Poema", dito (primorosamente) pelo autor, quando o ouvimos pela mão de Luís Caetano numa memorável edição especial d' "A Força das Coisas", transmitida no Dia Mundial da Poesia de 2009. Esse registo também já foi divulgado no apontamento "A Vida Breve", pelo mesmo realizador da nossa rádio, o que nos possibilita disponibilizar o respectivo link, a pensar naqueles que, tal como nós, apreciam a dimensão oral da poesia. Homenageamos assim, ainda que muito singelamente, o grande poeta Nuno Júdice, aproveitando para deixar expressa a vontade de nos debruçarmos, com maior fôlego, sobre a sua valiosa produção.
Para já, damos nota, com elevado apreço a Luís Caetano, da edição d' "A Ronda da Noite" de ontem inteiramente consagrada a Nuno Júdice, com uma esmerada sequência de registos em voz própria intercalados com boa música [>> RTP-Play].



O SENTIDO DO POEMA

Poema de Nuno Júdice (in "A Matéria do Poema", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2008 – p. 117)
Dito pelo autor* (2008, registo do arquivo da RDP) ["A Vida Breve", 8 Abr. 2022 >> RTP-Play]


Há um sentido nas frases em que o verão passa,
e que vai espigando na seara do poema – para
que um dia a ceifeira do Outono o colha com
a sua foice mais sombria, deixando vazio o campo
e cinzento o horizonte. Mas vou abrindo,
com o arado do poema, os sulcos de onde outros
sentidos irão nascer; e espero que o Inverno
passe, e voltem os primeiros pássaros da
primavera com o canto matinal em que desperta
a natureza. E vejo a ceifeira pousar a foice,
tirar o chapéu de palha para que os seus
cabelos se confundam com o amarelo
das flores, e beber a luz solar com os seus
olhos ávidos de azul. Já não é a deusa
que transporta ao colo a morte; nem
a sombra que empurra, com os seus braços
de gelo, o carro do dia para ocidente. Estende
no chão o linho do instante; e é nele
que celebro a missa do poema, para
que não se perca o sentido das frases
em que o que o verão permanece.


* Nuno Júdice – voz
URL: https://aaz-nj.blogspot.com/



Capa do livro "A Matéria do Poema", de Nuno Júdice (Publicações Dom Quixote, 2008)

08 março 2024

Margarida Bessa: "Fala da Mulher Sozinha"



Algumas partes da letra da canção "Fala da Mulher Sozinha" sugerem que o seu autor, o poeta Eduardo Olímpio, tinha no pensamento uma prostituta de rua sofrendo quase até à loucura de solidão, porém animada pela esperança e pela vontade indómita de rasgar essa solidão e «chegar ao cume, ao cimo, ao alto» do lugar de bem-estar e felicidade a que todo o ser humano tem direito. Nesse desiderato muitas outras mulheres (a solidão não escolhe género mas segundo estudos efectuados afecta mais as mulheres) se sentem irmanadas, de tal sorte que esta canção pode ser considerada o seu "grito do Ipiranga" de libertação da solidão. Aliás, as múltiplas versões que já teve, depois da gravação original por Paco Bandeira, publicada em 1976 (pela Valentim de Carvalho, sob o selo Decca, no LP "Cara ou Coroa"), todas cantadas por intérpretes femininas, maioritariamente fadistas, são um bom sinal do quanto a mensagem nela expressa significa para as mulheres livres e emancipadas do nosso tempo. E sendo a interpretação de Margarida Bessa a melhor, a nosso ouvir, escolhemo-la para assinalar poético-musicalmente o presente Dia Internacional da Mulher. Boa escuta!

E de que modo a estação pública de rádio homenageou a Mulher neste dia que lhe é dedicado?
Começamos por dar boa nota da rubrica "Vamos Todos Morrer" (Antena 3), na qual o seu autor, Hugo van der Ding, continuando a boa tradição de homenagear figuras femininas no dia 8 de Março, escolheu para hoje a primeira rainha reinante da Europa, Urraca I e Leão (1080-1126), cognominada 'A Temerária' e tia do nosso D. Afonso Henriques [>> RTP-Play].
Na Antena 2, e porque é sexta-feira, tivemos, por volta das 10h:45, com repetição cerca das 15h:45, mais uma edição da rubrica semanal "Virtuosas: as Mulheres na História da Música", hoje consagrada à compositora irlandesa Ina Boyle (1889-1967) [>> RTP-Play]. Fazemos questão de exprimir, uma vez mais, o nosso apreço e o nosso louvor ao seu autor, João Rodrigues Pedro, pelo trabalho sério e diligente com que vem mantendo aquele apontamento que representa verdadeiro serviço público na nossa rádio. Relativamente ao mesmo profissional, apraz-nos enaltecer o cuidado que teve, a exemplo do que fez nos anos anteriores, de levar ao seu espaço vespertino "Baile de Máscaras" somente música de compositoras, no caso da francesa Louise Farrenc (1804-1875) e da inglesa Ethel Smyth (1858-1944).
E que mais? Nas incursões que andámos a fazer às emissões das três antenas nacionais, mau grado o incómodo, nada mais apanhámos digno de nota na programação. Nem sequer houve a preocupação de mexer na oferta musical, de maneira que fosse inteiramente de autoras e intérpretes femininas ou que, o não sendo, tivesse como temática o eterno feminino e as múltiplas questões e problemáticas relacionadas com a mulher na sociedade moderna. Seria de bom-tom e não daria assim tanto trabalho pois é abundante o repertório de qualidade (endógeno e exógeno) a que se podia deitar mão. O facto dos directores de programação das Antenas 1, 2 e 3 serem homens não é certamente alheio à clamorosa inacção. Só resta saber se se tratou de puro desleixo (o que não deixa de ser grave) ou se a causa radica em machismo/misoginia (o que é ainda mais grave e absolutamente intolerável na rádio estatal portuguesa, ademais no ano do 50.º aniversário da Revolução dos Cravos que tornou possível o reconhecimento à mulher de muitos direitos que lhe estavam coarctados).



Fala da Mulher Sozinha



Letra: Eduardo Olímpio
Música: Paco Bandeira
Intérprete: Margarida Bessa* (in CD "Fado", Movieplay, 1995)


[instrumental]

Já estou louca de estar só,
Acompanhada de nada;
Já estou cheia de ser rua
Tão corrida, tão pisada;
Já estou prenhe de amizades,
Tão barriga de saudades...

Ai eu ainda um dia irei rasgar a solidão
E nela entrelaçar o olhar duma canção:
Chegar ao cume, ao cimo, ao alto,
Mais longe e mais além,
Mas a saber que sou alguém!

Na cidade sou loucura,
Sou begónia, sou ciúme...
E eu que sonhava ser lume,
Caminho, atalho e lonjura,
Não tenho assento na festa,
Sou a migalha que resta...

Ai eu ainda um dia irei rasgar a solidão
E nela entrelaçar o olhar duma canção:
Chegar ao cume, ao cimo, ao alto,
Mais longe e mais além,
Mas a saber que sou alguém!

[instrumental]

Chegar ao cume, ao cimo, ao alto,
Mais longe e mais além,
Mas a saber que sou alguém!


* Margarida Bessa – voz
António Parreira e Paulo Parreira – guitarras portuguesas
Francisco Gonçalves – viola
Joel Pina – viola baixo

Produção – Paco Bandeira
Gravado no Estúdio Profissom, Massamá-Queluz
Técnicos de som – António Cordeiro e José Marinho
URL: https://www.facebook.com/margarida.bessa.50
https://lisboanoguiness.blogs.sapo.pt/240794.html
https://www.youtube.com/user/4FadoLisbon/videos?query=margarida+bessa



Capa do CD "Fado", de Margarida Bessa (Movieplay, 1995)
Fotografia – Mário Cabrita Gil
Design gráfico – Dupla

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