06 outubro 2019

«Do João Braga para a Amália»



Neste dia em que se completam 20 anos sobre o desaparecimento da maior cantora (da alma) portuguesa, rendemos homenagem ao "heterónimo feminino de Portugal", como lhe chamou David Mourão-Ferreira, destacando dois fados expressamente consagrados a Amália que João Braga gravou ainda em vida da homenageada: "Ai, Amália!", integrante do álbum "Do João Braga para a Amália" (1984), e "Amália", incluído no CD "Fado Fado" (1997).
Na esteira de Amália, João Braga sempre teve o mui louvável cuidado de resgatar poesia ao silêncio dos livros dando-a, em canto, à fruição do público não académico. Entre os poetas que tem gravado contam-se Pedro Homem de Mello, David Mourão-Ferreira, Alexandre O'Neill, Sophia de Mello Breyner Andresen, Miguel Torga, Vasco de Lima Couto, António Botto, Luís de Camões, Fernando Pessoa, e Manuel Alegre, a quem pertence o poema do segundo fado que aqui apresentamos. No dizer do próprio autor da "Trova do Vento Que Passa", «João Braga deu a volta ao fado. Despiu-o da pieguice e do marialvismo, tirou-o da viela e fê-lo respirar de novo o ar puro do mar largo. Renovou o fado, tal como por outros caminhos já havia feito Alain Oulman [com Amália], na fidelidade às raízes, que não são as do conformismo, mas as da permanente descoberta e reinvenção. Com João Braga o fado voltou a ser navegação e risco, passado e futuro, tradição e modernidade. Ele escolheu a dificuldade e a exigência. Remou muitas vezes contra a maré, compôs e cantou, talvez ao arrepio do seu próprio público, sem qualquer cedência à tentação da moda, do fácil, do já visto. Trouxe a poesia de novo ao fado e restituiu o fado à poesia. Não foi só um processo de renovação, foi também um trabalho de pedagogia.»
Além do amor pela grande poesia, uma circunstância (essa desditosa) o irmana a Amália: o boicote reiterado a que ambos têm sido sujeitos por parte de quem administra a 'playlist' da Antena 1, sonegando assim as respectivas obras aos ouvintes durante as largas horas da emissão de continuidade (diurnas e nocturnas). O único gueto em que os dois artistas são admitidos, com a passagem de canções integrais, é o programa semanal da autoria de Edgar Canelas que dá pelo nome de "Alma Lusa" (depois da meia-noite de domingo) [>> RTP-Play].
Perguntamos: será esta situação normal e aceitável na rádio que, por determinação legal, tem inalienáveis obrigações no domínio da língua portuguesa e naquele que é um dos seus principais veículos, a canção de base literária?



Ai, Amália!



Letra: Luísa Bivar
Música: João Braga
Intérprete: João Braga * (in LP "Do João Braga para a Amália", Diapasão/Lamiré, 1984; CD "João Braga", col. Fado Alma Lusitana, vol. 19, Levoir/Correio da Manhã, 2012)


[instrumental]

És Povo feito Mulher;
A cantar és toda a gente
que sabe aquilo que quer
e diz aquilo que sente.

As tuas caras são tantas:
mais de mil que Deus te deu...
Com mil corações tu cantas
e há mais mil dentro do teu.

Ai, Amália das mil caras
e mais de mil corações!
Ai, rio que nunca páras
até à foz das canções!...
[bis]

Nos ecos da tuz voz,
nos silêncios que a torturam
sofrem pedaços do nós,
pedaços que se procuram.

Levantas a tua voz,
o Fado nasce ao teu jeito!
E sentimos todos nós
que te cabemos no peito...

Ai, Amália das mil caras
e mais de mil corações!
Ai, rio que nunca paras
até à foz das canções!...
[bis]

[instrumental]

Ai, Amália das mil caras
e mais de mil corações!
Ai, rio que nunca paras
até à foz das canções!...


* João Braga – voz
José Fontes Rocha – guitarra portuguesa
Jaime Santos Jr. – viola
Joel Pina – viola baixo
Participação especial:
José Pracana – guitarra portuguesa
Gravado nos Estúdios Musicorde, Lisboa, em Março de 1984
Captação de som e misturas – Rui Remígio



Amália



Poema: Manuel Alegre
Música: José Fontes Rocha
Intérprete: João Braga* (in CD "Fado Fado", Ariola/BMG Portugal, 1997; CD "Fados Capitais", Impreopa/A Capital, 2002)




[instrumental]

Na tua voz há tudo o que não há,
há tudo o que se diz e não se diz;
Há os sítios da saudade em tua voz,
o passado, o futuro, o nunca, o já;
Há as sílabas da alma e há um país.
Porque tu, mais que tu, és todos nós.

[instrumental]

Na tua voz embarca-se e não mais,
não mais senão o mar e a despedida.
Há um rasto de naufrágio em tua voz,
onde há navios a sair do cais,
nessa voz por mil vozes repartida.
Porque tu, mais que tu, és todos nós.

[instrumental]

Há mar e mágoa, e a sombra de uma nau,
a gaivota de O'Neill e o rio Tejo,
saudade de saudade em tua voz,
um eco de Camões e o escravo Jau,
amor, ciúme, cinza e vão desejo.
Porque tu, mais que tu, és todos nós.

[instrumental]

Amor, ciúme, cinza e vão desejo.
Porque tu, mais que tu, és todos nós.


* João Braga – voz
José Fontes Rocha – 1.ª guitarra portuguesa
José Luís Nobre Costa – 2.ª guitarra portuguesa
Jaime Santos Jr. – viola de fado
Joel Pina – viola baixo de fado

Produção musical – João Braga
Produção executiva – Luís Ferreira de Almeida
Gravado no Estúdio Tcha Tcha Tcha, Miraflores - Oeiras, de 17 de Agosto a 2 de Setembro de 1997
Captação de som, misturas e masterização – Rui Dias
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Braga
http://www.museudofado.pt/personalidades/detalhes.php?id=231
http://joaobraga-fado.blogspot.com/2012/03/do-jao-braga-para-amalia.html



Capa do LP "Do João Braga para a Amália", de João Braga (Diapasão/Lamiré, 1984)
Fotografia – Carlos Delgado
Concepção e desenho da capa – L. Cunha e Joaquim Ribeiro



Capa do CD "Fado Fado", de João Braga (Ariola/BMG Portugal, 1997)
Fotografia – Marcelo Buainain
Concepção gráfica – João Tinoco (5 em Tempo, Design)

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Outro artigo com canções de tributo a Amália:
Amália: dez anos de saudade

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Artigos com repertório de Amália em voz própria:
Ser Poeta
Celebrando Vinicius de Moraes
Camões recitado e cantado (II)

01 outubro 2019

Sérgio Godinho: "Mão na Música"


Manossolfa: método de ensino do solfejo criado pelo compositor e pedagogo húngaro Zoltán Kodály (1882-1967).


Se é assaz difícil a tarefa de definir o amor (que o diga Camões), não menos árduo se afigura o exercício de exprimir, por palavras, em que consiste a música. Sérgio Godinho resolveu meter-lhe mãos (e cabeça) e assim nasceu o texto musicado "Mão na Música", inserto no álbum "Mútuo Consentimento" (2011). Uma notável dissertação em prosa poética com música sobre a arte dos sons que o autor de "Com um Brilhozinho nos Olhos" nos legou e à qual as rádios nacionais não fizeram a justiça de lhe dar a necessária e conveniente divulgação. Ao pôr-mo-la em destaque neste Dia Mundial da Música acreditamos estarmos a torná-la parte do imaginário dos leitores/ouvintes que a ignoravam e não são desprovidos de sensibilidade.
Esta função de divulgação do património musical português mais oculto mas de qualidade superior compete, em primeiro lugar, à estatal Antena 1. No entanto, a rádio que os portugueses financiam no pressuposto de prestar esse serviço público dá-se ao desplante de ocupar quase todo o tempo de difusão musical com os mais banais e reles produtos sonoros, boa parte dos quais vindos de fora. Será que as entidades que têm por competência escrutinar e avaliar a estação pública ainda não tomaram consciência dos efeitos altamente perniciosos que a situação vigente tem na cultura musical dos ouvintes e na vida dos nossos mais categorizados criadores de música não erudita?



Mão na Música



Letra e música: Sérgio Godinho
Arranjo: Hélder Gonçalves
Intérprete: Sérgio Godinho* (in CD "Mútuo Consentimento", Universal Music, 2011)




[instrumental]

A música é tamanha,
cabe em qualquer medida.
[4x]

Da sua mão sobe o ar ao infinito, de lá treme.
A música, por um lado, vê-se; por outro, não se vê.
Nada da música se improvisa por acaso.
A música corre nas gargantas e pode ser tocada com um só dedo.
A música mostra-se feia para os seus pares e bela para os seus ímpares.
A música emudece, por vezes, os cantores e deixa-os a sós nos camarins à espera do amigo do carrasco.
A música não é a mesma quando ouvida de longe ou quando ouvida de perto.
A música não tem explicações a dar a si mesma: isso explica tudo.
A música dá asas a quem voa: a quem tem asas para voar.
A música faz aos poemas aquilo que os poemas quiseram fazer dela: render-se. E aos outros propõe: rendam-se! Tréguas e batalhas sem ordem de aviso.

A música é tamanha,
cabe em qualquer medida.
[bis]

A música referenda a liberdade: sim ou não? A música depende dum botão da liberdade e desunha-se a mostrar os efeitos de num dedo a voz humana.
A música faz orelhas moucas. A música não se esquece no silêncio, por isso nos lembramos dela: permanece em mais que um som.
A música vai, por vezes, mais alto e duma torre afunda o eco no centro da Terra.
A música aguenta-se de pé, dorme sentada, dança e escorrega na cama.
A música pausa e pausa, faz das malas a viagem – mas se acena, já de longe...
A música atira os seus poemas ao mar e recebe-os nas ondas do dia seguinte, nas garrafas outro povo. A música perdeu muitos bons poemas no vento contrário (quem sabe, eram bons?).
A música é uma cópia duma cópia, cara aberta vai ao fundo e vem à tona por respiração.
A música é uma revolução de estilos, é do passarinho herdeira órfã. A música é órfã. Quando nasceu, os seus pais tinham morrido há pouco. É órfã.

A música é tamanha,
cabe em qualquer medida.
[4x]

A música esfrega os dedos em tudo o que der som.
A música nunca teve, em si mesma, uma moral; pensa que não pensa e que não perdura (diz-se que faz muito bem ouvi-la; alguém que pense e que perdure por ela).
A música não tem barreiras, mas o amor por ela sim.
A música prepara-se, destroçada mas vaidosa, para confessar tudo ao cair do sol.
A música chora e ri ao mesmo tempo: uma criança por razões não exactamente compreensíveis.
A música quer ser perfeita, sempre que por escolha é imperfeita. Por talento, dá-se a todas: a bondade, a presunção, ressentimento e, mais não fosse, a quatro tempos.
A música de repente é a mesma nota repetida e outras vezes.
A música mede-se com caneta e gravador; é maior e é menor.
A música quando se encontra já lá está.
A música nasceu antes de nós termos nascido com ela. A música segue a sua sombra e pela sombra é fácil, não há espelho. Ou é ritmo ou é pausa: ambos dúbios mas reconhecíveis.

A música é tamanha,
cabe em qualquer medida.
[bis]

A música é feita à janela e aberta vê-se da rua.
A música eriça-se ao menor vento, arranha-se a si mesma, ladra ao ar, risca a terra. Gosta mesmo.
A música quando a chuva cai com barulho de entre as nuvens vê-se o mar em dia de acalmia, o que não é explicável nem por norma nem por excepção dos deuses: digamos que são os sons em dia de ofertório.
A música vai de rio e desagua: aquece a água doce, rebenta no mar salgado, larga os seus bichos no mar.
A música tem duas mãos, é tocada com um só peito e um só dedo.
Da música sobe o ar ao infinito.
A música tem um só dedo e um só dedo. A música tem um só dedo e um só dedo.
Nada da música se improvisa por acaso.

A música é tamanha,
cabe em qualquer medida.
[6x]


* Sérgio Godinho – voz
Hélder Gonçalves – guitarra eléctrica, barítono, teclados, coros
Manuela Azevedo – coros, piano, glockenspiel, melódica
Produção e direcção musical – Nuno Rafael
Produção executiva – Paulo Salgado (Vachier & Associados)
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, P.R.E.C. e Tone of a Pitch, em Março e Abril de 2011, por Nelson Carvalho, Tiago de Sousa e Nuno Rafael, excepto a parte instrumental de "Mão na Música" (gravada por Hélder Gonçalves, no estúdio O Nosso Gravador)
Misturado por Nelson Carvalho, nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Masterizado por Andy Vandette, no Masterdisk



Capa do CD "Mútuo Consentimento", de Sérgio Godinho (Universal Music, 2011)
Fotografia – Sérgio Godinho
Grafismo – Mackintóxico

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