31 janeiro 2025

Chico Buarque: "Bom Conselho"


Nicolau Von Rupp surfando uma onda gigante na Praia do Norte / Nazaré Big Wave Challenge 2024
© Carlos Barroso/LUSA
(in https://desporto.sapo.pt/)


«O repórter fotográfico Carlos Barroso, da agência Lusa, deu asas a um olhar de ave marinha, e deixou-se levar na crina dos mais altos ventos, acima dos magotes que seguiam, nas arribas da Praia do Norte, a dança dos surfistas com a tempestade Ivo, na Nazaré. O Diário de Notícias dá-nos, esta manhã, uma das suas formidáveis imagens, uma primeira fila na última página, explicando que a Polícia Marítima cortou o trânsito para o farol, mas isso não impediu os amantes do surf de seguirem o português Nicolau Von Rupp enfrentando a tempestade Ivo. O jornal Público abre um pouco mais o mar da página para acolher os desafiadores da tempestade.
Poucos dias antes, o jornal Globo seguiu, na Nazaré, em plena tempestade Hermínia, o combate corpo a corpo entre o sergipano William Santana e um muro de água de trinta metros. Podia ser um cenário para a peça shakespeariana.
A Tempestade estava, aliás, em cena, há dias, no mais antigo teatro de Inglaterra, quando dois activistas de um grupo ambientalista invadiram o palco, protestando contra a inacção dos dirigentes políticos face às alterações climáticas. Este grupo tem desenvolvido acções semelhantes, nos lugares mais inesperados, em Wimbledon ou junto ao túmulo de Darwin. Não consta que tenham tentado anular as ondas da Nazaré, prejudicando assim a actuação de William Santana.
O nome William, no teatro das ondas, puxa mesmo a tempestade.
Tal como na peça, ele grita que é da mesma substância de que são feitos os sonhos, as ondas e a tempestade são a sua ilha de Próspero.
E por isso, ele sonha a onda de Santana, é o seu epónimo salgado.
Como se, no areal, a prancha debaixo do braço, ele fosse já repetindo o estribilho de uma canção de Chico, "vou para a rua a bebo a tempestade".
Os jornais dão notícia de ventos muito fortes e de agitação marítima nos municípios litorais da sua Sergipe, Aracaju, Japaratuba, Nossa Senhora do Socorro. Ele semeou o vento na sua cidade e atravessou o mar para subir ao alto de uma parede de água, mais veloz do que um cavalo-marinho, devagar é que não se vai longe.
O repórter fotográfico Carlos Barroso sobe também à mais alta arriba seguindo a dança na prancha. Caliban abraça em espuma a bela Ariel. Não tenhas medo, a praia está cheia de ruídos. Barroso merece mesmo uma caldeirada na mesa de McNamara, na Celeste.» [Fernando Alves, "Na onda mais alta da tempestade", in "Os Dias que Correm", 31 Jan. 2025]


O verso de Chico Buarque citado por Fernando Alves pertence à canção "Bom Conselho" e não seria difícil identificá-la já que uma das gravações abre o alinhamento de um dos mais conhecidos e aclamados álbuns do categorizado cantautor brasileiro: "Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo" (1972). Esse registo teria sido o perfeito remate à crónica quando foi radiodifundida no programa da manhã da Antena 1 mas tal aconteceu, uma vez mais, denotando que a direcção de programas do canal generalista da rádio do Estado se está mesmo a marimbar para os ouvintes/contribuintes, muito especialmente para os que ficam com vontade de ouvir algo de música e/ou poesia sugerido pelo reputado cronista ou tematicamente relacionado com o teor da crónica. A passagem da referida canção de Chico seria igualmente uma maneira de celebrar, ainda que singelamente, a maior figura da música popular brasileira e um dos vultos mais proeminentes da canção de língua portuguesa (também por isso lhe foi outorgado, e com inteira justiça, o Prémio Camões). Eis, pois, o irónico "Bom Conselho", de e por Chico Buarque. Boa escuta!



Bom Conselho



Letra e música: Chico Buarque (Francisco Buarque de Holanda)
Intérprete: Chico Buarque* (in LP "Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo", Philips/Phonogram, 1972, reed. Philips/Polygram, 1988, 1993)




Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça:
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado
Quem me espera nunca
Alcança

Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio vento na minha cidade
Vou p'rà rua e bebo a tempestade [3x]


* Chico Buarque – violão e voz
Perinho Albuquerque – violão
Tutty Moreno – bateria
Bira da Silva – percussão
Moacyr Albuquerque – baixo eléctrico
Antônio Perna Fróes – teclados

Produzido por Roni Berbert e Guilherme Araújo
Gravado ao vivo no Teatro Castro Alves, Salvador, Bahia, nos dias 10 e 11 de Novembro de 1972, por Ary Carvalhaes
URL: https://www.chicobuarque.com.br/
https://www.facebook.com/ChicoBuarque/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Chico_Buarque
https://altamont.pt/caetano-veloso-e-chico-buarque-caetano-e-chico-juntos-e-ao-vivo/
https://music.youtube.com/channel/UC0KFB-23-1AeWp1pOi6bvpQ



Capa da 1.ª edição do LP "Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo" (Philips/Phonogram, 1972)
Fotografia – Marcos Maciel.

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José Mário Branco: "Inquietação"

29 janeiro 2025

José Mário Branco: "Inquietação"


«Um exocórtex, formado por meio de software, serviria como uma nova fonte de pensamento, inspiração e imaginação», segundo o cientista norte-americano Kevin G. Yager. (in https://techxplore.com/)
[Para ver a imagem em ecrã inteiro, noutra janela, clicar aqui]


«O abalo provocado pela DeepSeek no mercado norte-americano da Inteligência Artificial está a ser entendido em Pequim como uma vantagem competitiva irreparável na guerra tecnológica com os Estados Unidos.
Entro desarmado em território desconhecido, imaginando os generais desta guerra – os estrategas da frente tecnológica – tirando partido não já dos infindáveis recursos da inteligência artificial, mas da imaginação artificial. Imagina.
Tanto quanto leio no jornal digital brasileiro Inovação Tecnológica, estamos no limiar de um estádio superior de luta. Kevin Yager, um cientista norte-americano, propõe a passagem a essa etapa da designada "imaginação artificial" em que tudo acontece no que ele chama o "exo-córtex científico".
Lido na ligeireza com que é explicado parece simples. É como o xadrez para iniciados. Mexemos convictamente as peças até não termos recuo. É um fascínio assustador, até ao rápido xeque-mate. Por outro lado, não é necessário entrarmos no cérebro de um cientista para o qual somos remetidos pelo professor norte-americano. Não chegaremos à ignição do exo-córtex, por mais imaginativos.
Nem o Álvaro de Campos, cuja imaginação – ele o proclama – é "um Arco do Triunfo" que "assenta de um lado sobre Deus e do outro sobre o quotidiano". Nem o heterónimo atraído pela engenharia mecânica e pela engenharia naval, voando na asa do exo-córtex com os dados científicos do seu tempo, teria chegado ao abismo para que nos desafia o professor Kevin Yager.
Ou teria? Tomai lá, do Pessoa: "Dizem que finjo ou minto/ tudo o que escrevo. Não./ Eu simplesmente sinto/ com a imaginação. / Não uso o coração."
Deixai que pergunte: poderá o artificial imaginador sentir com a imaginação, como o poeta? Ou apenas imagina que sente?
Escutai o Pessoa: "Tudo o que sonho ou passo, / o que me falha ou finda / é como que um terraço / sobre outra coisa./ Essa coisa é que é linda".
Este último verso do Pessoa – "essa coisa é que é linda" – leva-nos à "Inquietação" de José Mário Branco. "Há sempre qualquer coisa que está para acontecer / qualquer coisa que eu devia perceber. / Porquê, não sei. / Mas sei / que não sei ainda".» [Fernando Alves, "Qualquer coisa", in "Os Dias que Correm", 29 Jan. 2025]


Hoje, Fernando Alves deu-se ao cuidado de não deixar margem para dúvidas acerca daquele que seria o óbvio remate poético-musical à sua crónica: "Inquietação", de e por José Mário Branco. Mas nem assim Ricardo Soares e o seu chefe, Nuno Galopim de Carvalho, mexeram uma palha no sentido daquela pérola do repertório do categorizado e saudoso cautautor funcionar como corolário à mensagem assaz inquietante (o termo não podia ser mais apropriado) que Fernando Alves achou por bem comunicar aos seus ouvintes atentos e admiradores.
Não somos dotados de poderes para perscrutar a mente do distinto cronista sobre o que acha e pensa da reiterada ausência de remate musical e/ou poético à sua crónica desde que, em Setembro passado, reapareceu no éter nacional, concretamente na Antena 1, em completo contraste com o que se fazia (e bem) na TSF-Rádio Jornal onde nunca faltava o tal remate, mesmo quando não era nomeado qualquer artista ou autor, nem citada uma ou mais passagens de determinada(s) obra(s). Mesmo assim, estamos muito em crer que se alguém inquirisse Fernando Alves a tal respeito, a sua resposta não andaria longe dos seguintes termos: «Sim, gostaria que a minha crónica tivesse um criterioso remate poético-musical, ou só poético ou só musical, que a ilustrasse e complementasse, e pudesse também funcionar como um tempo de reflexão e de 'ruminação' do que acabei de enunciar, em vez de ser logo sequenciada pela burocrática e enfadonha ladainha da meteorologia e das temperaturas máximas previstas para o dia em todas as capitais de distrito (mais nas Penhas Douradas!)». Pois da mesma opinião e do mesmo sentir comunga o escrevente destas linhas e pode asseverar que não é um caso isolado. Impõe-se perguntar: para quem manda no canal generalista da estação pública de rádio, esses ouvintes mais exigentes não contam? Acaso não pagam também eles a contribuição do audiovisual, esperando legitimamente que em troca a Antena 1 lhes dê motivos de satisfação e não razões de queixa por o dinheiro que lhes é (coercivamente) cobrado servir para sustentar indivíduos preguiçosos e negligentes?



Inquietação



Letra e música: José Mário Branco
Intérprete: José Mário Branco* (in 2LP "Ser Solidário": LP 2, Edisom, 1982, reed. EMI-VC, 1996, Parlophone/Warner Music Portugal, 2017, 2018)




[instrumental]

A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazes

São flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalha

       Cá dentro inquietação, inquietação
       É só inquietação, inquietação
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei – ainda

       Há sempre qualquer coisa que está p'ra acontecer
       Qualquer coisa que eu devia perceber
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei – ainda

[instrumental]

Ensinas-me a fazer tantas perguntas
Na volta das respostas que eu trazia
Quantas promessas eu faria
Se as cumprisse todas juntas?

Não me largues esta mão no torvelinho
Pois falta sempre pouco p'ra chegar
Eu não meti o barco ao mar
P'ra ficar pelo caminho

       Cá dentro inquietação, inquietação
       É só inquietação, inquietação
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei – ainda

       Há sempre qualquer coisa que está p'ra acontecer
       Qualquer coisa que eu devia perceber
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei – ainda

       Cá dentro inquietação, inquietação
       É só inquietação, inquietação
       Porquê, não sei
       Mas sei
       É que não sei ainda

       Há sempre qualquer coisa que está p'ra acontecer
       Qualquer coisa que eu devia perceber
       Porquê, não sei
       Mas sei
       É que não sei ainda

       Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
       Qualquer coisa que eu devia resolver
       Porquê, não sei
       Mas sei
       Que essa coisa é que é linda!


* José Mário Branco – voz
Pedro Wallenstein – contrabaixo
Zé da Cadela – bateria
Pedro Luís – piano
Júlio Pereira – guitarra portuguesa e viola acústica
Rui Cardoso – saxofone alto

Direcção musical – José Mário Branco
Arranjos – José Mário Branco, com a colaboração de Rui Cardoso, Júlio Pereira, Pedro Luís, Fernando Júdice, Zé da Cadela, Pedro Wallenstein, António Chainho e Trindade Santos
Produção artística – José Mário Branco e Trindade Santos
Gravado e misturado no Angel Studio, Lisboa, de 4 de Janeiro a 12 de Março de 1982
Captação de som – José Manuel Fortes, com a colaboração de Rui Novais
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2007
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_M%C3%A1rio_Branco
https://arquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/
https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/posts/725849500857765/
https://expresso.pt/cultura/2019-11-19-O-momento-antes-de-disparar-a-seta-a-entrevista-de-Jose-Mario-Branco
https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/jose-mario-branco-a-eterna-inquietacao
https://www.nit.pt/cultura/musica/morte-lenda-momentos-marcantes-vida-jose-mario-branco
https://www.esquerda.net/topics/dossier-303-jose-mario-branco-voz-da-inquietacao
https://www.publico.pt/jose-mario-branco
https://www.youtube.com/channel/UChQPBSV5W6kL-jw1Tp08g_w
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=jose+mario+branco



Capa do duplo LP "Ser Solidário", de José Mário Branco (Edisom, 1982)
Fotografia – Luiz Carvalho
Concepção – Artur Henriques

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A infância e a música portuguesa
Celebrando Natália Correia
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
José Mário Branco: "Zeca (Carta a José Afonso)"
Gina Branco: "Cantiga do Leite" (José Mário Branco)
Camões recitado e cantado (VI)
José Mário Branco: "Do Que um Homem É Capaz"
José Mário Branco: "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades"
Camões evocado por Sophia
José Mário Branco com Fausto: "Canto dos Torna-Viagem"

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Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)

28 janeiro 2025

Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)


Cardo-coalheiro em estado selvagem
(in https://flora-on.pt/)

«Conhecido por cardo-coalheiro ou cardo-leiteiro, consoante a zona do país, o cynara cardunculus (nome científico) é um parente da alcachofra, pertencente à extensa família Asteraceae [Asteráceas], que tem raízes profundas nas regiões oeste e central da região mediterrânica, mas também pode ser encontrado em quase toda a costa atlântica da Europa, incluindo a Grã-Bretanha e a Irlanda.
É uma planta herbácea de folha perene e flores roxas que pode atingir 1,5 metros de altura. Pouco exigente em termos de solo, é fácil encontrá-la na forma selvagem em terrenos rochosos e barrentos.
Em Portugal, é considerada uma planta autóctone. Pode ser encontrada nas regiões centro e sul do país, onde é conhecida e usada como coagulante natural na produção de queijo. As flores são colhidas durante os meses de Junho e Julho e armazenadas em locais secos para serem usadas durante o Inverno.
O queijo da serra da Estrela DOP, o queijo amarelo da Beira Baixa DOP, o queijo do Rabaçal DOP, o queijo de Nisa DOP, bem como outros queijos oriundos das regiões da Beira Baixa e do Alentejo são alguns dos queijos que usam o cardo como coagulante do leite que lhes dá origem.
Além da utilização na produção de queijo e na indústria (biomassa), o cardo-coalheiro é também conhecido como uma poderosa planta medicinal. Rico em cinarina, uma enzima que lhe confere um sabor amargo, em taninos, inulina, sais de potássio e provitamina A, é conhecido pelas suas propriedades desintoxicantes e indicado para problemas de fígado, rins, colesterol, gota e arteriosclerose.
Possui também uma acção inibidora do nível de glucose no sangue, o que o torna interessante para diabéticos.
Embora parentes e igualmente usados na medicina tradicional, o cardo santo e o cardo mariano possuem algumas propriedades distintas do primo cardo-coalheiro. A principal é que não têm efeitos coagulantes.
Usados deste a Idade Média, acredita-se que o cardo santo e o cardo mariano são plantas galactagogas – estimulantes da produção de leite materno. Embora existam estudos que atestem esta percepção em relação ao cardo santo, não é recomendável o consumo de ambos por mulheres grávidas ou em período de amamentação.»
(in https://www.inature.pt/)


«Leio no Jornal do Centro que mais de duas mil plantas de cardo cuidadas nos últimos anos por uma equipa académica liderada pelo professor Paulo Barracosa, da Escola Agrária de Viseu, em terrenos do Instituto Politécnico, correm o risco de ser arrancadas e transferidas para lugar incerto. Um conjunto de interesses, a que se associa a Câmara [Municipal] de Viseu, pretende instalar no campo de cardos um parque de estacionamento. A situação inquieta e indigna a comunidade científica e cidadãos mobilizados num abaixo-assinado a que aderiram, a esta hora, mais de duas mil pessoas.
Ouvido pelo Jornal do Centro, o professor Paulo Barracosa lamenta que esta decisão desconsidere um muito inspirador trabalho de investigação de década e meia que fez, aliás, da Escola Agrária de Viseu uma referência internacional no estudo e valorização de uma planta multifuncional que tem tanto ainda para dar. Ainda recentemente o queijo da Soalheira, que utiliza a flor do cardo como agente coagulante, foi considerado o melhor do mundo, num certame internacional realizado justamente em Viseu.
Em Abril do ano passado fui a Viseu conversar, para o programa "Tão Longe, Tão Perto", que realizei aqui na Antena 1 [>> RTP-Play], com o investigador Paulo Barracosa, cujo livro "Cardo Máximo" surpreendeu a comunidade científica e empresarial ao revelar as potencialidades de uma das plantas mais resistentes às alterações climáticas e da qual tanto se pode esperar, em áreas tão diferenciadas como a dos aglomerados ou a fitossanitária. Na ocasião, o cultivo do cardo fazia parte de uma experiência prometedora numa quinta de Santar, revelando resultados muito interessantes no acompanhamento preventivo de todo o ciclo vegetativo da vinha. O cultivo do cardo faz ainda parte de um projecto inclusivo no estabelecimento prisional de Viseu que tem dado bom resultado.
Nunca esquecerei o entusiasmo do professor e dos seus alunos que me deram a provar nesse dia mel de cardo, licor de cardo, cerveja de cardo, alheira e cogumelos de cardo. Nas notas que tomei desse dia em Viseu e em Santar retive a pergunta feita pelo próprio investigador sugerindo o tanto que ainda há a esperar do trabalho realizado pela equipa da Escola Agrária de Viseu: "Que planta é esta que se dá toda?".
Tenho estima pessoal pelo presidente da Câmara de Viseu que considero uma pessoa sensata. Creio que Fernando Ruas deveria conversar com o professor Paulo Barracosa, diante do campo de cardos agora ameaçado. Brindo, com licor de cardo, a que essa conversa possa ocorrer e se possa evitar um tão rude golpe numa experiência da qual a região de Viseu deve orgulhar-se.» [Fernando Alves, "Não deixemos murchar a flor do cardo", in "Os Dias que Correm", 28 Jan. 2025]


Canções e peças instrumentais que aludem a cardos, ainda que metaforicamente, há várias. Cingindo-nos a canções, uma vez que no presente caso as palavras são importantes, aquela que, quase de certeza, acorre imediatamente à mente de mais gente (portuguesa, bem entendido) é "Foram Cardos, Foram Prosas", com letra de Miguel Esteves Cardoso e música do saudoso Ricardo Camacho, gravada por Manuela Moura Guedes, em 1981 [>> YouTube]. Não indicamos qualquer das versões que entretanto foram feitas porque ficam a anos-luz, em qualidade, do original.
De repertório que refere a flor do cardo, fazendo mais jus ao título e ao teor da crónica de Fernando Alves, temos o fado "Flor do Cardo", com belos versos em quintilhas de João Monge sobre a melodia do Fado Tango concebida por Joaquim Campos, cantado por Aldina Duarte (gravação que escolhemos para aqui destacar), "Flor de Cardo", pelo argentino Carlos Gardel [>> YouTube Music], "El Cardo Azul", também por Gardel [>> YouTube], e "La Flor del Cardo" pelo chileno (radicado em Barcelona) Josemaría Moure com a participação da compatriota Florencia Gallardo [>> YouTube Music]. E o rol está longe de ser exaustivo, pelo que não tem desculpa a ausência do desejado remate poético-musical à crónica de Fernando Alves quando foi radiodifundida hoje de manhã. Devido a tal inércia e falta de brio profissional, o canal generalista da rádio do Estado ficou, uma vez mais, aquém dos "mínimos olímpicos" deixando novamente defraudados os ouvintes que teriam apreciado revisitar ou descobrir uma canção alusiva a cardos ou à sua flor.

Nota: A respeito de alcachofras e de cardos, além do programa "Tão Longe, Tão Perto", acima referenciado, recomendamos vivamente o excerto do "Lugar ao Sul" em que Mestre Rafael Correia esteve à conversa com D. Maria Silva, no Monte da Torre Vã, concelho de Ourique, em Junho de 1997 [>> RTP-Arquivos].



Flor do Cardo



Letra: João Monge
Música: Joaquim Campos (Fado Tango)
Intérprete: Aldina Duarte* (in CD "Crua", EMI Music Portugal, 2006)




Dói-me ser a flor do cardo,   | bis
Não ter a mão de ninguém;  |
Tenho a estranha natureza  | bis
De florir com a tristeza       |
E com ela me dar bem.      |

Dói-me o Tejo e dói-me a Lua,
Dói-me a luz dessa aguarela;
Tudo o que foi criação        | bis
Se transforma em solidão  |
Visto da minha janela.       |

O tempo não me diz nada,
Já nada em mim se consome;
Não sou princípio nem fim, | bis
Já nada chama por mim,    |
Até me dói o meu nome.    |

Dói-me ser a flor do cardo,  | bis
Não ter a mão de ninguém; |
Hei-de ser cravo encarnado   | bis
Que vive em pé separado      |
E acaba na mão de alguém.   |


* Aldina Duarte – voz
José Manuel Neto – guitarra portuguesa
Carlos Manuel Proença – viola

Produção – João Monge
Produtor executivo – Paulo Salgado / Vachier & Associados
Gravado por Samuel Henriques, nos Estúdios MDL, Paço d'Arcos
Misturado e masterizado por Fernando Abrantes, nos Estúdios MDL, Paço d'Arcos
URL: https://aldinaduarte.blogspot.com/
https://www.facebook.com/aldinaduarteoficial/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Aldina_Duarte
https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/aldina-duarte
https://www.infopedia.pt/$aldina-duarte
https://www.portaldofado.net/content/view/392/280/
https://lisboanoguiness.blogs.sapo.pt/125887.html
https://www.youtube.com/channel/UCPp7DENsGVLeUWzGCVF6BXw
https://music.youtube.com/channel/UCuBIOvc8-k_j5D3Q7kSFKxA



Capa do CD "Crua", de Aldina Duarte (EMI Music Portugal, 2006)
Fotografia – Isabel Pinto
Design – Rui Garrido



Capa do livro "Cardo Máximo", de Paulo Barracosa (Edição do autor, 2024).

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19 janeiro 2025

Fernanda Maria: "Fado da Consagração"


Fernanda Maria e Alfredo Marceneiro


O escrevente destas linhas não nasceu a tempo de apanhar a fadista Fernanda Maria no seu auge – anos 60 e 70 –, mas quando a descobriu, nos inícios do presente século, logo se apercebeu de que se tratava de uma magnífica intérprete de fado, impecavelmente afinada, com excelente dicção e dona de uma voz muito bela e cativante de se ouvir. Retirada há largos anos, partiu na passada segunda-feira, a menos de um mês de completar 88 anos de idade. Na estatal Antena 1, só pela mão de Edgar Canelas, no seu programa semanal "Alma Lusa" (depois da meia-noite de domingo), se pode escutar, uma vez por outra, algo do vasto repertório de Fernanda Maria. Hoje, de manhã, embora por um motivo triste, também foi possível ouvi-la a cantar uma série de fados, em sequência cronológica e zelosamente referenciados por João Carlos Callixto, no seu programa "Gramofone", iniciativa que muito apreciámos e da qual aqui damos a devida nota. Quem não ouviu a emissão ou desejar reouvi-la poderá fazê-lo a qualquer hora na plataforma RTP-Play (basta clicar no link).
Também o blogue "A Nossa Rádio" faz questão de homenagear Fernando Maria, ainda que muito singelamente, dando destaque ao "Fado da Consagração" que a artista cantou ao vivo, em estreia absoluta, na Festa de Homenagem a Alfredo Marceneiro, que decorreu no Teatro Municipal de S. Luiz, depois da meia-noite de 25 de Maio de 1963. Com letra de Guilherme Pereira da Rosa e música Frederico Valério, propositadamente concebidas para aquele espectáculo, este "Fado da Consagração", uma brilhante definição poética do fado de Lisboa, é um óptimo testemunho da arte interpretativa e da garra fadista da grande cantadeira Fernando Maria. Foi-nos dado a conhecer por Edgar Canelas na edição de 23 de Dezembro de 2011 da sua rubrica "Alma Lusa" [>> RTP-Play], de boa memória, pelo que aproveitamos o ensejo para reivindicar o seu regresso à grelha da Antena 1, acreditando que o seu autor esteja disponível para retomá-la. Oxalá!



Fado da Consagração



Letra: Guilherme Pereira da Rosa
Música: Frederico Valério
Intérprete: Fernanda Maria* (grav. 1963, in CD "Grande Noite de Fados: Festa de Homenagem a Alfredo Marceneiro", EMI-VC, 1998)




[instrumental]

O fado, fado nascido em Lisboa,
É voz de pena que soa,
Mágoa que do peito vem;
O fado é bairro velho que chora,
Alfama que se enamora
E contra o amor que tem.

O fado é canto de feiticeiro,
É Alfredo Marceneiro,
É um dom, uma expressão;
E é fado guitarra que nos murmura
Tudo aquilo que perdura
Bem dentro do coração.

Ao fado Lisboa diz o que sente,
Vai nele a alma da gente
Pois é ele o seu condão.

O fado, fado que invade a cidade,
É nostalgia, saudade,
Mal e bem, sorte a azar;
O fado é rumo de caravelas,
E somos nós e são elas
Que andamos a namorar.

O fado é modo da nossa gente,
O passado e o presente,
O porvir, esse também;
Pois fado é este jeito, esta briga
De chorar numa cantiga
Um amor, tudo e ninguém.

E é fado aquele encanto profundo
Que vai daqui pelo mundo
E que ao mundo soa bem.

[instrumental]

O fado é canto de feiticeiro,
É Alfredo Marceneiro,
É um dom, uma expressão;
E é fado guitarra que nos murmura
Tudo aquilo que perdura
Bem dentro do coração.

Ao fado Lisboa diz o que sente,
Vai nele a alma da gente
Pois é esse o seu condão.


* Fernanda Maria – voz
Francisco Carvalhinho – guitarra portuguesa
Pais da Silva – viola

Gravado ao vivo no Teatro Municipal de São Luiz, Lisboa, depois da meia-noite de 25 de Maio de 1963
Engenheiro de gravação – Hugo Ribeiro
Transferência digital – Artur David, nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Restauro e masterização digitais – Ron Hill, nos Estúdios de Abbey Road, Londres, usando o sistema CEDAR Audio Restoration, em Março de 1997
Montagem e pós-produção digitais – Paulo Jorge Ferreira
Edição coordenada e produzida por Jorge Mourinha e José Pracana
URL: https://www.museudofado.pt/index.php/fado/personalidade/fernanda-maria
https://www.portaldofado.net/content/view/1607/280/
https://www.infopedia.pt/$fernanda-maria
https://lisboanoguiness.blogs.sapo.pt/207094.html
https://music.youtube.com/channel/UC_fnY2uJs3NGyZONTZsGoVQ



Capa do CD "Grande Noite de Fados: Festa de Homenagem a Alfredo Marceneiro" (EMI-VC, 1998)
Design – Fátima Rolo Duarte

17 janeiro 2025

Miguel Torga e Fernando Lopes-Graça: "História Trágico-Marítima"


Ilustração (gravura) do tomo I, p. 39, da obra "História Trágico-Marítima", compilada por Bernardo Gomes de Brito e publicada em 1735 e 1736 (dois tomos).
[Para ver a imagem em ecrã inteiro, noutra janela, clicar aqui]
A gravura representa o naufrágio da nau S. Bento, a 24 de Abril de 1554, ao largo da Terra do Natal, perto da foz do rio Msikaba, a meio caminho entre Port Edward e Port St. Johns, na costa oriental da actual África do Sul. Capitaneada por Fernão de Álvares Cabral, filho de Pedro Álvares Cabral, a nau S. Bento, com carga excessiva de especiarias, sedas, porcelanas, tecidos de algodão, pedras preciosas e outros bens de luxo, fazia a viagem entre Cochim e Lisboa. Das quase 500 pessoas que iam a bordo morreram 150, mas a maioria das que se salvaram acabou por sucumbir no longo e demorado (de quase um ano) caminho para norte, por terra, em direcção à costa moçambicana, em consequência de subnutrição, desidratação, doenças, acidentes, clima e geografia adversos, ataques de indígenas hostis, etc.. Manoel de Mesquita Perestrelo, um desses sobreviventes e o autor da "Relação Sumária da Viagem Que Fez Fernão d'Álvares Cabral" (1564) dá-nos o seu impressivo testemunho nos seguintes termos:

A este tempo andava o mar todo coalhado de caixas, lanças, pipas, e outras diversidades de cousas, que a desventurada hora do naufrágio faz aparecer; e andando tudo assim baralhado com a gente, de que a maior parte ia nadando à terra, era cousa medonha de ver, e em todo o tempo lastimosa de contar, a carniçaria que a fúria do mar em cada um fazia e os diversos géneros de tormentos com que geralmente tratava a todos, porque em cada parte se viam uns que não podendo mais nadar andavam dando grandes e trabalhosos arrancos com a muita água que bebiam, outros, a que as forças ainda abrangiam menos, que encomendando-se a Deus nas vontades se deixavam a derradeira vez cair ao fundo; outros a que as caixas matavam, entre si entalados, ou, deixando-os atordoados, as ondas os acabavam, marrando com eles em os penedos; outros a que as lanças, ou pedaços de nau, que andavam a nado, os espedaçavam por diversas partes com os pregos que traziam, de modo que a água andava em diversas partes manchada de uma côr tão vermelha como o próprio sangue, do muito que corria das feridas aos que assim acabavam seus dias.
Andando a cousa como digo, o que ainda havia da nau se partiu em dois pedaços, convém a saber: os castelos a uma parte e o chapitéu a outra, em os quais lugares estavam recolhidos todos os que não sabiam nadar, sem ousarem cometer o mastro nem o mar, por verem quão atribuladamente acabavam os que por cada uma destas partes se aventuravam à terra; e tanto que estes pedaços ficaram assim apartados, e o mar se pôde melhor ajudar
deles, começou de os trazer no escarcéu, aos tombos de uma parte para a outra; e dessa maneira, ora por baixo da água, ora por cima, andávamos até que prouve a Nosso Senhor virem três ou quatro mares muito grossos, que vararam estes pedaços em seco, onde ficaram encalhados, sem a ressaca os tornar a sorver como outras vezes tinha feito, e neles se salvou a maior parte da gente que ficou viva.
Escapados assim os que Nosso Senhor foi servido, despois que gastámos algum espaço em lhe dar as graças devidas a tantas mercês, começou cada um de bradar por cima daqueles penedos pelas pessoas que lhe mais doía, as quais acudindo dos lugares aonde sua ventura fizera portar, e manifestando bem com os olhos o sobejo contentamento que daquela não esperada vista recebiam, se tornaram a abraçar de novo; e preguntando uns aos outros pelos que faltavam, soubemos onde estavam alguns tão maltratados das dificuldades e contrastes que tiveram em sua salvação, que se não podiam bulir donde jaziam, pelo que foi buscado tudo tão miudamente que se acabaram de juntar os vivos, e nós certificados que não eram falecidos.
E porque entre estes penedos e a terra firme havia ainda um braço de mar, que os fazia ficar em ilhéu, e a maré começava já de repontar, receando que nos tolhesse passámos a vau à outra banda, levando os mais sãos às costas aos mais feridos, posto que todos o estávamos pouco ou muito, uns dos desastres que no mar tiveram, e outros da aspereza dos penedos em que saíram, que eram ásperos e pontiagudos, que nenhum se pôde livrar, sem ficar assinalado.
Tanto que todos fomos passados à terra firme, mandou o capitão saber os que faltavam, e acharam-se menos cento e cinquenta pessoas; convém a saber: passante de cem escravos, e quarenta e quatro portugueses
[...]
[...] depois de haver um ano que partíramos donde nos perdêramos, e termos andado tanta parte da estranha, estéril, e quási não conhecida costa da Etiópia e atravessado com tão pouca, fraca, e mal apercebida gente por entre tantas bárbaras nações, tão conformes nos desejos de nossa destruição, e passando por tantas brigas, por tantas fomes, calmas, frios e sêdes, nas serras, vales e barrancos, e finalmente, por tudo aquilo que se pode imaginar contrário, medonho, pesado, triste, perigoso, grande, mau, desditoso, imagem da morte e cruel, onde tantos homens, mancebos, rijos e robustos, acabaram seus dias, deixando os ossos insepultos pelos campos e as carnes sepultadas em alimárias e aves peregrinas, e com suas mortes a tantos pais e irmãos, a tantos parentes, a tantas mulheres e filhos, cobertos de luto neste reino. [...]

[in "História Trágico-Marítima", em que se oferecem cronologicamente os Naufrágios que tiveram as naus de Portugal, depois que se pôs em exercício a Navegação da Índia, Tomo I, por Bernardo Gomes de Brito, Lisboa Ocidental: Na Oficina da Congregação do Oratório, MDCCXXXV; "História Trágico-Marítima", por Bernardo Gomes de Brito, Nova edição publicada sob a direcção de Damião Peres, Volume I, Porto: Portucalense Editora, 1942 – p. 61-63 e 146 >> https://purl.pt/]

O naufrágio da nau S. Bento ocorreu perto do local onde se dera, dois anos antes, o célebre naufrágio do galeão grande S. João, capitaneado por Manoel de Sousa Sepúlveda, tragédia também narrada na "História Trágico-Marítima" transcrevendo o relato anónimo publicado em 1555, o qual terá sido, supõe-se, a fonte em que Camões se baseou para evocar, nas estrofes 46 a 48 do Canto V d' "Os Lusíadas", pela boca do Adamastor, a desventura daquele «liberal, cavaleiro, enamorado» e da sua «formosa dama», Dona Lianor de Sá, que «verão morrer com fome os filhos caros» e, por fim, «abraçados as almas soltarão / da formosa e misérrima prisão».


«Vila Nova, 3 de Dezembro de 1935 — Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.»
Foi com estas exactas palavras que Miguel Torga assinalou, no primeiro volume do seu "Diário", o desaparecimento de Fernando Pessoa, que a 30 de Novembro havia sido subtraído ao número dos vivos. E estando então a maior parte da produção do genial poeta dos heterónimos ainda inédita (guardada dentro da famosa arca), para o juízo que Miguel Torga fez do seu colossal par bastou a obra que havia sido editada: a poesia avulsa saída em revistas literárias, entre as quais a coimbrã "Presença" da qual Adolpho Rocha (ainda antes de adoptar o pseudónimo de Miguel Torga) também fora colaborador, e, sobretudo, "A Mensagem", dada à estampa, simbolicamente, a 1 de Dezembro de 1934, Dia da Restauração da Independência de Portugal. A leitura desse único livro que Pessoa publicou em vida calou tão fundo no espírito de Miguel Torga que logo em 1935 e 1936 se abalançou à escrita de quase todos os poemas que viriam a constituir a colectânea "Alguns Poemas Ibéricos" (1952) e que integrariam igualmente, ainda que modificados, o volume mais avantajado "Poemas Ibéricos" (1965). Uns quantos desses poemas, porém, já não eram inéditos pois o autor fizera-os publicar em revistas, ainda na década de 1930. Foi o caso dos sete que formam o ciclo "História Trágico-Marítima" (título sugestivo que remete o leitor informado para a compilação levada a cabo por Bernardo Gomes de Brito, na primeira metade do séc. XVIII), publicados em Julho de 1938 no N.º 5 da Revista de Arte e Crítica "Manifesto", dirigida pelo próprio Miguel Torga. Em ambos os livros mencionados, o poeta fez anteceder aquele ciclo de um outro denominado "História Trágico-Telúrica", para mostrar que a resposta afirmativa do povo português ao chamamento insidioso do mar e a tragédia daí decorrente radicam na tragédia associada à terra madrasta. A respeito dessa sequência interligada de "Histórias Trágicas" lusas e ibéricas, assim discorreu Isabel Ponce de Leão no ensaio "A matriz etnológica de Poemas Ibéricos" (in "A minha verdadeira imagem está nos livros que escrevi", Vol. I, Porto: Edições da Universidade Fernando Pessoa, 2007 – p. 92):

«Em "História Trágico-Telúrica" (p. 9), o "Povo vasco, andaluz, / Galego, asturiano, / Catalão, português" (p. 14), nascido da e para "A Terra" (p. 11), agita-se em silêncio, sujeito ao seu "Fado" (p. 13), num percurso de "Vida" (p. 14) para alcançar, com dor e esforço, "O Pão" (p. 15) e "O Vinho" (p. 16) que escasseiam; neste percurso de dor, o optimismo assola, porventura demandado numa qualquer "Miragem" (p. 17).
Deste iberismo telúrico passa a um iberismo marítimo em "História Trágico-Marítima" (p. 19), onde evoca, de forma dorida, as várias etapas de uma aventura oceânica sonhada e gerada em "Sagres" (p. 21), e rapidamente concretizada apesar da "Espera" (p. 23) e da "Tormenta" (p. 27). Numa encenação dramática, subsiste pontualmente "O Achado" (p. 26), mas é um cântico plangente, apostrofando o "Mar" (p. 29), que encerra esta parte da obra, reiterando a tragicidade que a titula:

              [...]
              Mar!
              Enganosa sereia rouca e triste!
              Foste tu quem nos veio namorar,
              E foste tu depois que nos traíste!

              Mar!
              E quando terá fim o sofrimento!
              E quando deixará de nos tentar
              O teu encantamento!»

A "História Trágico-Marítima" torguiana, escassos anos após a primeira edição em 1938, viria a ter o bendito condão de motivar um grande compositor amante de boa poesia, Fernando Lopes-Graça, a vesti-la com música sob a forma de cantata. A primeira versão, composta em 1942-43, apesar de ter sido premiada não satisfazia plenamente o compositor, pelo que tratou se revê-la e assim resultou, em 1959, a versão definitiva e canónica, doravante executada em concerto e/ou registada para edição fonográfica. E deu-se a circunstância curiosa de a cantata "História Trágico-Marítima" ter sido, em 1977, a primeira obra musical editada no âmbito da colecção Discoteca Básica Nacional, sob a égide da Direcção-Geral da Acção Cultural, cuja divisão de música era chefiada pelo arquitecto Romeu Pinto da Silva, por nomeação do secretário de Estado da Cultura de então, o poeta e professor de literatura David Mourão-Ferreira. A gravação havia decorrido em Outubro de 1974, na Hungria, com o Coro da Radiodifusão Húngara e a Orquestra Sinfónica de Budapeste, sob a direcção do maestro Gyula Németh, tendo o solista sido o barítono José Oliveira Lopes. Em 1987, sob o novel selo PortugalSom, surgiria nova edição em LP e a edição em CD, neste caso juntamente com as duas suites de "Viagens na Minha Terra", também de Lopes-Graça. Tantos anos decorridos, essa gravação da "História Trágico-Marítima" não deixou de ser de absoluta referência daquela que é, sem a mais pequena sombra de dúvida, uma das mais admiráveis e fascinantes obras de Fernando Lopes-Graça. Uma boa razão para lhe darmos o merecido destaque e assim assinalarmos o trintenário da morte de Miguel Torga, menos de dois menos passados sobre igual efeméride respeitante ao compositor. E também porque não é fácil – nada fácil! – apanhá-la hoje em dia na Antena 2, devido à clamorosa e absurda inexistência de um espaço regular reservado à música portuguesa. Votos de boa escuta e de boa leitura!

Nota: Na referenciação dos poemas às fontes bibliográficas, além de "Alguns Poemas Ibéricos" (1952) que foi a edição considerada por Fernando Lopes-Graça para a versão definitiva da cantata "História Trágico-Marítima", indica-se a revista "Manifesto" N.º 5 (Jul. 1938), mas somente nos casos em que os textos são totalmente coincidentes. No livro "Poemas Ibéricos" (1965) todos os sete poemas surgem com alterações.


HISTÓRIA TRÁGICO-MARÍTIMA

Por: Nuno Barreiros (musicólogo, crítico de música e director do Programa 2 da RDP)



A obra de Fernando Lopes-Graça (nascido em 1906) reflecte, no seu conjunto, uma visão ou abordagem, por assim dizer, sincrética dos problemas e das (possíveis) soluções que se apresentam a um compositor português novecentista suficientemente apetrechado e consciente. O que não obsta a que duas linhas de força se divisem na evolução do autor de Poema de Dezembro: uma incidindo sobre a assimilação de novas conquistas de vocabulário ou a apropriação de tendências que se corporizam nas obras de algumas das mais influentes e decisivas personalidades da música deste século (v.g. Stravinski, Schönberg, Bartók); outra inclinando-se a uma arte especificamente nacional e partindo, em larga medida, de pressupostos colhidos na matéria folclórica, nas sugestões que ela oferece e nos estudos das respectivas virtualidades (melódicas, harmónicas, rítmicas, ambienciais colorísticas). Esta última orientação não se fica, porém, num folclorismo meramente exterior. Pelo contrário: visa e consegue transcender a superficialidade pitoresca, em favor da prospecção e captação dos caracteres profundos de um portuguesismo essencial, quiçá de um iberismo fundamental.
Mas os dois sentidos genéricos apontados não constituem compartimentos estanques na produção de Lopes-Graça. Mesmo nas fases mais recentes em que é sensível — nas palavras do próprio compositor — «um certo desprendimento da influência dos dados imediatos da música folclórica portuguesa e um consequente alargamento do campo tonal e rítmico» assim como uma maior concentração quanto à elaboração motívica e aos critérios de estruturação, o autor de Quatro Bosquejos está longe de recusar o contacto com a matéria folclórica. Isto pode observar-se tanto em obras de linguagem mais depurada (é o caso. por ex., de Suite Rústica n.º 2, para quarteto de cordas) como em realizações de feição mais singela ou em arranjos ou «versões de concerto» de canções populares (para voz e piano ou para coro a capella).
Não há, a bem dizer, referência directa a material folclórico na cantata que Lopes-Graça escreveu sobre o ciclo de poemas de Miguel Torga intitulado História Trágico-Marítima que fez parte do volume Alguns Poemas Ibéricos. Mas o portuguesismo (ou, porventura, o iberismo) do compositor está patente da primeira à última dessas páginas, nas quais se verifica um processo muito subtil de assimilação dos caracteres populares e de certos elementos tradicionais, inclusive quanto às inflexões da declamação musical do texto. Por outro lado, na referida cantata espelha-se uma atitude relevante e muito significativa: o interesse de Lopes-Graça compositor pela melhor e mais representativa poesia nacional e a atenção que lhe tem merecido a consideração prática de determinados problemas, nomeadamente prosódicos, que põe o tratamento musical da língua pátria. Neste campo, Lopes-Graça levou a efeito, ao longo da sua actividade criadora, uma substancial cobertura da poesia portuguesa, desde o lirismo trovadoresco às mais representativas correntes modernas.
A primeira versão da cantata História Trágico-Marítima é de 1942-43. O autor sujeitou-a a revisão, que ficou pronta em 1959. A partitura sofreu assim alterações: a parte solista, originalmente destinada a tenor, foi confiada a um barítono: e os dois trechos extremos passaram a integrar um coro de contraltos que apenas vocaliza para lá de algumas remodelações de pormenor atinentes à orquestração e mesmo à composição. Conforme esclareceu o próprio compositor, «do ponto de vista formal a obra é articulada como um ciclo de sete Lieder (seguindo a ordem e esgotando o número dos poemas de Torga publicados com o mesmo titulo), o primeiro e o último correspondem-se, na matéria e nas intenções expressivas, por assim dizer, como prelúdio e epílogo da acção ou do drama, que enquadram. Uma espécie de ideia fixa, ou motivo recorrente, assegura de certa maneira a unidade temática da obra».
A despeito do título, o ciclo de poemas de Torga não segue de perto as famosas narrativas de naufrágios e eventos dramáticos referentes ao século XVI e princípios do século XVII, tais como se encontram na célebre compilação de Bernardo Gomes de Brito publicada em 1735. É antes uma evocação, mais meditativa que épica, de carácter não triunfalista e situando-se numa perspectiva anticolonialista, de um dos aspectos maiores da História de Portugal. Os elementos líricos e dramáticos fundem-se aí, num estilo literário de vigorosas pinceladas e de alusões ao romanceiro popular. E a presença do Mar, sem prejuízo para o sopro da evocação, surge-nos desmistificada.
O conteúdo da transposição musical de Lopes-Graça insere-se perfeitamente nestas coordenadas, ampliando as fundas ressonâncias universalistas do texto poético. Este é confiado exclusivamente ao barítono solista, quase sempre através de um recitativo melódico que nalgumas passagens se reveste de acentos bastante dramáticos. O conjunto vocal (de contraltos), que não articula palavras, integra-se no complexo orquestral, trazendo por via do seu timbre particular, uma dimensão expressiva que sublinha persuasivamente o carácter ora envolvente ora de «sereia rouca e triste» atribuído ao Mar.


SAGRES

Pormenorizando um pouco, anote-se que o trecho inicial é exórdio:

              Vinha de longe o mar...
              Vinha de longe, dos confins do medo...
              Mas vinha azul e brando, a murmurar
              aos ouvidos da terra o tal segredo...


e a exposição nítida de um aspecto essencial do poema, consubstanciado nesta passagem:

              Era o resto do mundo que faltava
              (Porque faltava mundo!)
              E o agudo perfil mais se aguçava
              E o mar jurava cada vez mais fundo.


A própria música, em andamento moderado (Largo) encerra duas componentes que correspondem aos elementos postos em jogo pela evocação poética: uma certa brandura murmurante e uma rugosidade ou perfil aguçado, o todo como que envolvido num halo de «distância».
Dois elementos musicais muito caracterizados podem referir-se: um efeito ondulante (ondegiando) nas cordas, e um motivo de textura bastante simples, mas que emerge com relevo no discurso sonoro.


A LARGADA

No segundo número o andamento torna-se mais vivo (Allegro moderato), o ritmo mais vincado e sacudido, servindo de suporte ao tema abertamente melódico que as madeiras lançam em tom alegre e decidido.
Mas a determinação no projecto do «grande sonho» não exclui o «adeus» com as mãos terrosas, calejadas da «pobre mãe». E o trecho dilui-se num pp com as cordas em surdina.


À ESPERA

É o trecho mais curto do ciclo. O seu carácter impõe-se-nos logo de início com um efeito orquestral muito singelo mas eficaz e verdadeiramente expectante, em que os timbres da flauta e da celesta se conjugam no intervalo melódico de 5.ª ascendente, sobre um fundo molemente ritmado de instrumentos de sopro, harpa e pizzicati das cordas em surdina.


O REGRESSO

No quarto número o canto adquire sabor popular de romance, em relação aliás com o texto literário, mas não despreza inflexões mais dramáticas. Há aqui, na narrativa poética, dois planos claramente sugeridos — temporais e espaciais, dramáticos e psicológicos (com qualquer coisa de distanciação brechtiana, diríamos hoje) — que ora se contrapõem ou alternam ora se interpenetram: terra e mar, lar e tormenta, fé esperançosa e episódios de tragédia, realismo quase descritivista e simbolismo transfigurador. E o discurso musical, tanto no clima como no estilo, leva em conta toda esta dialéctica expressiva. A orquestra joga, não raro, com sonoridades agrestes e não deixa, por vezes, de se tomar de uma grande agitação.


O ACHADO

Espécie de fanfarra anunciadora dá o tom a este trecho, em correlação com o poema.

              Traziam nova terra e nova luz
              Nos românticos olhos lusitanos.


Mas a outra face da situação também o texto literário no-lo dá:

              E uma cruz
              Que depois carregaram largos anos.


E a música não deixa de reflectir.


TORMENTA

O subtítulo do sexto número aponta logo o clima deste. Trata-se, de facto, do trecho mais agitado e de cores mais carregadas de todo o ciclo, conforme o deixam entrever os primeiros compassos.
A orquestra diversifica-se e assume dimensão fortemente dramática, comentando ou sublinhando o teor dos versos, animados de um descritivismo mais aparente que real, pois revestindo-se de carácter simbólico ou alegórico de largo alcance. A quarta estrofe é-nos transmitida pelo barítono num estilo de declamação falada, um pouco na linha do «sprechgesang» (ou «canto falado», muito utilizado a partir da escola schönberguiana — mas aqui mais falado que cantado). Na estrofe seguinte a intensificação dramática que se desprende do texto literário é notavelmente realçada pela orquestra.


MAR

O sétimo e último número estabelece correspondência musical com o trecho inicial do ciclo, ampliando-o de certo modo e retomando-lhe os motivos principais, a ambiência serena, o envolvimento, o «choro», o ímpeto «cheio de amor», a determinação e o desalento, a voz «enganosa» da «sereia rouca e triste» ou a bruma dos sonhos e da quimera combinam-se, numa osmose de simbolismo poético e expressão musical, neste painel impressionante sob a invocação do Mar.
Quase no fim erguem-se na orquestra uns assomos de apelo (donde? de quem?) projectando-se na distância — tempo e no espaço — para se resolverem num pp interrogativo de todo o conjunto instrumental — e do nosso próprio destino histórico tão fortemente moldado também pelo Mar...
É uma sobreposição dos acordes de tónica e de dominante de dó menor — que constituem, aliás, o substractum harmónico do efeito ondulante com que se inicia a cantata e que tão saliente papel desempenha no painel conclusivo — com uma apogiatura de mi bemol-lá bemol, marcando também a derradeira presença do coro de contraltos.

É o seguinte o contingente orquestral da partitura: flautas, oboés, clarinetes e fagotes a 3, trompas e trompetes a 4, três trombones e tuba, duas harpas, celesta, glockenspiel, timbales, bateria e cordas.
Com a História Trágico-Marítima, Lopes-Graça obteve, em 1943, o Prémio de composição do Circulo de Cultura Musical, instituição a que a obra é dedicada. No entanto, não foi no âmbito dos concertos desta Sociedade que a partitura se apresentou pela primeira vez. A estreia efectuou-se no decurso do 4.° Festival Gulbenkian de Música, no Coliseu de Lisboa, a 18 de Junho de 1960, sendo intervenientes o barítono Hugo Casaes e a Orquestra Sinfónica Nacional, sob a direcção de António de Almeida. Só 14 anos mais tarde é que voltaria a ser dada em público num concerto comemorativo do Movimento do 25 de Abril e preenchido com obras de Fernando Lopes-Graça, organizado pela ex-Emissora Nacional e realizado no Teatro Nacional de S. Carlos a 25 de Outubro de 1974. Intérpretes nessa ocasião: o barítono José Oliveira Lopes e a Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, sob a direcção de Silva Pereira.

[texto originalmente publicado no LP "História Trágico-Marítima", de Fernando Lopes-Graça, Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, e inserto no caderno do CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", de Fernando Lopes-Graça, Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987]



SAGRES



Poema: Miguel Torga (1.º poema de "História Trágico-Marítima", in "Manifesto: Revista de Arte e Crítica", N.º 5, Coimbra, Jul. 1938 – p. 2; "Alguns Poemas Ibéricos": Coimbra: Edição do autor, 1952 – p. 65-66)
Música: Fernando Lopes Graça (1.ª peça de "História Trágico-Marítima": Cantata para orquestra, barítono e coro de 36 vozes femininas, Op. 36a, LG 75a, 1959)
Intérpretes: José Oliveira Lopes, Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir.: Gyula Németh* (in LP "História Trágico-Marítima", Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, reed. Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987; CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)




Vinha de longe o mar...
Vinha de longe, dos confins do medo...
Mas vinha azul e brando, a murmurar
Aos ouvidos da terra o tal segredo...

E a terra ouvia, de perfil agudo,
O tal segredo que nem Deus lhe disse
Quando falava e revelava tudo
Para que Adão ouvisse...

— Era o resto do mundo que faltava
(Porque faltava mundo!).
E o agudo perfil mais se aguçava,
E o mar jurava cada vez mais fundo.

Sagres sagrou então a Descoberta
E partiu encoberto a descobrir.
Lá na distância o Novo Mundo, àlerta,
Esperava o Velho para se lhe unir.



A LARGADA



Poema: Miguel Torga (2.º poema de "História Trágico-Marítima", in "Manifesto: Revista de Arte e Crítica", N.º 5, Coimbra, Jul. 1938 – p. 2; "Alguns Poemas Ibéricos": Coimbra: Edição do autor, 1952 – p. 67-68)
Música: Fernando Lopes Graça (2.ª peça de "História Trágico-Marítima": Cantata para orquestra, barítono e coro de 36 vozes femininas, Op. 36a, LG 75a, 1959)
Intérpretes: José Oliveira Lopes, Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir.: Gyula Németh* (in LP "História Trágico-Marítima", Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, reed. Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987; CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)




Foram então as ânsias e os pinhais
Feitos navios de costado forte,
Onde a agulha a tremer dava sinais
Do caminho a seguir ser o da sorte.

Foram então os beijos desmedidos
Na Pátria-Mãe-Viúva que ficava
Na areia fria aos gritos e aos gemidos
Pela morte dos filhos que beijava.

Foram então as horas no convés
Do grande sonho que mandava ser
Cada homem tão firme nos seus pés
Que a nau tremesse sem ninguém tremer.

Foram então as velas enfunadas
Do sopro quente dessa pobre Mãe
Que com as mãos terrosas, calejadas,
Dizia adeus e apontava Além...



À ESPERA



Poema: Miguel Torga (3.º poema de "História Trágico-Marítima", in "Manifesto: Revista de Arte e Crítica", N.º 5, Coimbra, Jul. 1938 – p. 2; "Alguns Poemas Ibéricos": Coimbra: Edição do autor, 1952 – p. 69)
Música: Fernando Lopes Graça (3.ª peça de "História Trágico-Marítima": Cantata para orquestra, barítono e coro de 36 vozes femininas, Op. 36a, LG 75a, 1959)
Intérpretes: José Oliveira Lopes, Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir.: Gyula Németh* (in LP "História Trágico-Marítima", Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, reed. Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987; CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)




E, namorada em sonho, a nau partiu.
Partiu, e o coração da Mãe parou.
E parado de angústia assim viveu
Enquanto a caravela não voltou.



O REGRESSO



Poema: Miguel Torga (4.º poema de "História Trágico-Marítima", in "Alguns Poemas Ibéricos": Coimbra: Edição do autor, 1952 – p. 70-72)
Música: Fernando Lopes Graça (4.ª peça de "História Trágico-Marítima": Cantata para orquestra, barítono e coro de 36 vozes femininas, Op. 36a, LG 75a, 1959)
Intérpretes: José Oliveira Lopes, Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir.: Gyula Németh* (in LP "História Trágico-Marítima", Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, reed. Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987; CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)




«Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar.
Ouvi, agora, Senhores
Uma história de pasmar...»
A Mãe correu à varanda
E ficou horas a olhar,
Mas os seus olhos disseram
Que era um ceguinho a cantar:
«Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar...»
A Mãe quando tal ouviu
Rezou e pôs-se a chorar,
Porque a sola era tão rija
Que a não puderam tragar...
«Deitam sortes à ventura
Qual se havia de matar.»
(A Mãe tinha pão na arca
E não lho podia dar!)
«Logo foi cair a sorte...»
(Que sorte tão singular!)
O gajeiro olhava, olhava,
Mas só via céu e mar.
A Mãe chorava e gemia,
O vento norte a soprar,
E o gajeiro lá no topo
Do mastro grande a sondar...
«Alvíçaras, Capitão...»
E a Mãe sem reparar
Se era o gajeiro na gávea,
Se era o ceguinho a cantar!
«A minha alma é só de Deus,
O corpo dou-o eu ao mar...»
E a Mãe a dizer que sim,
Com a sua mão a acenar...
«Deu um estoiro o demónio,
Acalmaram vento e mar.»
E quando o cego acabou
Estavam em terra a varar...



O ACHADO



Poema: Miguel Torga (5.º poema de "História Trágico-Marítima", in "Manifesto: Revista de Arte e Crítica", N.º 5, Coimbra, Jul. 1938 – p. 3; "Alguns Poemas Ibéricos": Coimbra: Edição do autor, 1952 – p. 73-74)
Música: Fernando Lopes Graça (5.ª peça de "História Trágico-Marítima": Cantata para orquestra, barítono e coro de 36 vozes femininas, Op. 36a, LG 75a, 1959)
Intérpretes: José Oliveira Lopes, Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir.: Gyula Németh* (in LP "História Trágico-Marítima", Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, reed. Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987; CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)




Traziam nova terra e nova luz
Nos românticos olhos lusitanos;
E uma cruz
Que depois carregaram largos anos.

Traziam quanta dor o mar gerou
Desde que Deus o fez;
E traziam a Fé que lhes sobrou
Da Fé sem fim dessa primeira vez.

Traziam a promessa de voltar
A ver se a cor do sonho se mantinha...
Vinho dos Deuses, tinha de tornar
À vinha.



TORMENTA



Poema: Miguel Torga (6.º poema de "História Trágico-Marítima", in "Alguns Poemas Ibéricos": Coimbra: Edição do autor, 1952 – p. 75-77)
Música: Fernando Lopes Graça (6.ª peça de "História Trágico-Marítima": Cantata para orquestra, barítono e coro de 36 vozes femininas, Op. 36a, LG 75a, 1959)
Intérpretes: José Oliveira Lopes, Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir.: Gyula Németh* (in LP "História Trágico-Marítima", Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, reed. Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987; CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)




Noite medonha aquela!
O mar tanto engolia a caravela
Como a exibia à tona, desmaiada!
No abismo do céu nem uma estrela!
E a cruz de Cristo, a agonizar na vela,
Suava sangue sem poder mais nada!

A fúria cega dum tufão raivoso
Vinha das trevas desse Tenebroso
E varria a quimera do convés...
O mastro grande que Leiria deu
Era um homem de pinho, mas caiu
Quando um raio o abriu de lés-a-lés...

Novo guarda dos rumos da Nação,
O piloto guiava a perdição
Como um pai os destinos do seu lar...
Até que o lar inteiro se desfez,
Até que ao pai chegou também a vez
De fazer uma prece e descansar...

O gajeiro sem gávea, dessa altura
Que a alma atinge ao rés da sepultura,
Olhou ainda a bruma em desafio...
Mas a Sereia Negra, que cantava
No coração do mar, tanto chamava,
Que ele deu-lhe aquele olhar cansado e frio.

O naufrágio cresceu a sua dor.
E o corpo morto de um herói, senhor
Do maior infantado deste mundo,
No dorso frio duma onda irada,
Mandou aos mortos, com a mão na espada,
Boiar o sonho, que não fosse ao fundo.



MAR



Poema: Miguel Torga (7.º poema de "História Trágico-Marítima", in "Alguns Poemas Ibéricos": Coimbra: Edição do autor, 1952 – p. 78-79)
Música: Fernando Lopes Graça (7.ª peça de "História Trágico-Marítima": Cantata para orquestra, barítono e coro de 36 vozes femininas, Op. 36a, LG 75a, 1959)
Intérpretes: José Oliveira Lopes, Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir.: Gyula Németh* (in LP "História Trágico-Marítima", Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977, reed. Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987; CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)




Mar!
Tinhas um nome que ninguém temia:
Era um campo macio de lavrar
Ou qualquer sugestão que apetecia...

Mar!
Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
Nem aumentar nem sufocar o pranto...

Mar!
Fomos então a ti cheios de amor!
E nem eras um campo de lavrar,
Nem um corpo a gemer a sua dor!

Mar!
Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!

Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de navegar
Sobre as ondas azuis o nosso pensamento!


* José Oliveira Lopes – voz solista (barítono)
Coro da Radiodifusão Húngara
Orquestra Sinfónica de Budapeste
Direcção – Gyula Németh

Supervisão artística – Fernando Lopes-Graça
Assistente musical – András Szekely
Produção – Sassetti, SARL
Direcção de produção – Mário Vieira de Carvalho
Gravação – HUNGAROTON, Budapeste, Outubro de 1974
Técnico de som – Lászlo Csintalan
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_de_Oliveira_Lopes
https://www.meloteca.com/portfolio-item/jose-de-oliveira-lopes/



Frontispício do tomo I de "História Trágico-Marítima", em que se oferecem cronologicamente os Naufrágios que tiveram as naus de Portugal, depois que se pôs em exercício a Navegação da Índia, por Bernardo Gomes de Brito (Lisboa Ocidental: Na Oficina da Congregação do Oratório, MDCCXXXV)



Capa do vol. I de "História Trágico-Marítima", Nova edição publicada sob a direcção de Damião Peres (Porto: Portucalense Editora, 1942)



Capa do N.º 5 de "Manifesto: Revista de Arte e Crítica", direcção de Miguel Torga (Coimbra, Jul. 1938)



Capa do livro "Alguns Poemas Ibéricos", de Miguel Torga (Coimbra: Edição do autor, 1952)



Capa da 1.ª edição do LP "História Trágico-Marítima", de Fernando Lopes-Graça, por José Oliveira Lopes (barítono), Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir. Gyula Németh (Col. Discoteca Básica Nacional, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura/Diapasão/Sassetti, 1977)



Capa da 2.ª edição do LP "História Trágico-Marítima", de Fernando Lopes-Graça, por José Oliveira Lopes (barítono), Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir. Gyula Németh (Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)
Concepção – Dimensão 6
Execução gráfica – Estúdios Gráficos, Lda.



Capa do CD "História Trágico-Marítima / Viagens na Minha Terra", de Fernando Lopes-Graça, por José Oliveira Lopes (barítono), Coro da Radiodifusão Húngara e Orquestra Sinfónica de Budapeste, dir. Gyula Németh / Orquestra Filarmónica de Budapeste, dir. Gyula Németh (Col. PortugalSom, Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de Estado da Cultura, 1987)
Concepção – Dimensão 6
Execução gráfica – Estúdios Gráficos, Lda.

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Outros artigos com poesia de Miguel Torga:
Miguel Torga: "Natal"
Música portuguesa de Natal
A infância e a música portuguesa
Miguel Torga: "Ode à Poesia", por João Villaret
Miguel Torga: "Flor da Liberdade"
Miguel Torga: "Natividade"
Miguel Torga: "A um Negrilho"

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Outros artigos com canções musicadas ou harmonizadas por Fernando Lopes-Graça:
Música portuguesa de Natal
A infância e a música portuguesa
A vitória do azeite
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Celebrando Eugénio de Andrade
Camões recitado e cantado (VII)
Canções portuguesas de Natal harmonizadas/musicadas por Fernando Lopes-Graça
Camões recitado e cantado (VIII)
Eugénio de Andrade e Fernando Lopes-Graça: "Aquela Nuvem e Outras"
Camões recitado e cantado (IX)
Camões recitado e cantado (X)
Camões musicado por Fernando Lopes-Graça (obras corais 'a cappella')