02 janeiro 2025
A tristeza lusitana
"O Triste", escultura em granito (44 x 14 x 13 cm) da autoria de José Prior (Celorico da Beira).
(in https://www.maolusitana.com/)
A tristeza lusitana
Por: Aquilino Ribeiro
Triste o português e dum modo geral não creio que o seja. Eu sei, a tristeza é uma emoção cómoda para cantar em verso e os poetas tornaram-na em lugar-comum, que, se não passou para lá dos Pirenéus, onde les portugais sont toujours gais, corre na praça como propriedade só nossa.
Tristeza é uma degeneração do temperamento, moléstia de natureza física ou vento infausto da fortuna. Embora as influências de meio e das raças que pisaram o território pretendam convencer-nos da melancolia do alentejano, como invocar as mesmas causas quanto ao homem do Norte? Esse homem criado num meio, por via de regra, ridente e embalado por atavismos onde é difícil descortinar a tristeza? O minhoto é uma cigarra a cantar; o trasmontano activo e impaciente; o beirão vivaz e maleável; entre estas virtudes poder-se-ia aninhar a molície, o enfado, a descrença de que a tristeza é mortalha?
Um pouco de superstição, mediocridade, vida dura, a mesma eterna perspectiva podem favorecer mas não determinar um estado comatoso como esse que vozes aziagas se aprazem em ver no português. Mas em todos os tempos, em todas as latitudes, o homem oscila entre o fatal dilema da dor e da alegria. Não é condição nossa; é a condição de todos os humanos. A poesia que em Portugal teve os foros de ars prima, fixou de preferência os estados de alma, bem demarcados, porque é essa a tendência do espírito artístico, sempre que a matéria é mais dúctil, mais rica, e mais colorida. O Dante do Inferno e o Dante do Paraíso documentam este meu asserto. O negrume do inferno é cheio de fulgor; as claridades do paraíso um reverbero mortiço, sem graça.
Creio, assim, que a tristeza portuguesa é acima de tudo literária.
Em verdade, o português tem contra si, como geradores da «apagada e vil tristeza» a sensualidade e o impaludismo. Pragas contraídas por esses mundos que correu e varejou e lhe deixaram o rescaldo no sangue. Mas tudo leva a crer que essa morbidez não tenha ultrapassado as fronteiras das cidades, sobretudo desta Lisboa onde nasceu, raiou e se obscureceu o grande sonho dos conquistadores.
Por extensão desta pecha, acrescida da insatisfação moral do homem culto que sente ante o círculo de potenciais que oferecem os grandes centros, o retrécissement da sua personalidade, creio o homem culto, o português de gravata, mais triste que jovial. Mas daí até o chorão derretido dos poetas, a distância é grande.
As formas que a tristeza reveste, como cepticismo, descrença, pessimismo, mordacidade, eu as creio mais defeitos da educação que dotes intrínsecos à índole.
Como na literatura o gosto sápido do nostálgico, do funéreo, do sombrio, do desesperado, nos centros de cavaco, na boca dos homens de escol, tornou-se elegante, ganhou foros de moda dizer mal de tudo e de todos.
A primeira reacção a tentar deve ser contra o profissional de mal dizer.
Depoimento recolhido oralmente de
Aquilino Ribeiro
[in "Diário de Lisboa", 27 Dez. 1924 – p. 1]
A tristeza lusitana
Por: Teixeira de Pascoaes
O meu ilustre confrade e amigo, dr. Joaquim Manso, deseja saber a minha opinião acerca da tristeza lusitana.
Esta frase pode exprimir, sobretudo, a feição sentimental dos nossos grandes elegíacos, desde Bernardim a António Nobre e a Correia d'Oliveira. Trata-se então da tristeza da saudade, que é uma luz divina, conforme cantou Frei Agostinho da Cruz:
Ah, saudade minha! Luz divina!
A lembrança é uma fonte de actividade. Só procuramos aquilo de que nos lembramos com amor: Deus, Pátria, Família, Justiça, Liberdade, etc...
Esta lembrança, que é triste por incluir a ausência da causa desejada, é heróica e forte porque nos leva a conquistá-la. Não é, de modo algum, um sentimento depressivo. A saudade, síntese da lembrança e da esperança, é uma força divina da alma portuguesa; tornou-a mística e aventurosa. Devemos-lhe o Brasil e a Elegia Pastoril, a mais delicada flôr de poesia europeia. Sim, a tristeza da saudade é uma força divina da alma portuguesa, porque a alma portuguesa é a alma dos seus grandes poetas representativos: D. Diniz, Bernardim, Camões, Frei Agostinho.
De resto, a tristeza da saudade aparece, com o mesmo relevo, nas cantigas populares:
Chamaste-me tua vida;
Tua alma quero ser.
A vida acaba com a morte,
A alma não pode morrer.
Há um acordo absoluto entre o povo e os poetas.
Quanto à apagada e vil tristeza que choraminga em certos fados e em certos poetas inferiores, lastimo-a, como lastimo a alegria, quando ela foge do coração e se converte em palavras falsas, como lastimo as almas depenadas que não podem voar e odeiam as almas que têm asas.
A tristeza lusitana é, portanto, a maior virtude da nossa raça. Foi ela que lhe deu alma e beleza; suavizou-lhe os aspectos broncos e duros, como as sombras de crepúsculo enternecem os fraguedos dos montes e a ramagem esquelética das árvores.
É uma auréola espiritual nimbando uma cabeça de granito.
Teixeira de Pascoaes
[in "Diário de Lisboa", 2 Jan. 1925 – p. 1]
ALEGRIA E TRISTEZA
Por: José de Almada Negreiros
Ao meu ilustre amigo sr. Joaquim Manso
com muita admiração pelo seu belo e jovem
entusiasmo, cheio de alegria e confiança
O Homem é variável como o próprio Tempo, o Grande Mestre. Pessoas tristes ou alegres não as há. E o que se refere a indivíduos também diz respeito às raças: alegres ou tristes são os dias e as horas e não as raças nem as pessoas.
Há tanta diferença entre o riso e a alegria, como entre a alegria e a tristeza. De uma maneira geral a diferença está em que o que é alegre não faz rir, nem entristece: faz bem!
Por mais espontânea que pareça a alegria é sempre uma claridade que surge em compensação do tempo injusto. Os dias terríveis são afinal as vésperas dos dias admiráveis. Mas também é certo que acabada a festa volta de novo cada um a sua casa.
A alegria é o prémio dos longos dias sem fim: é aquela hora propícia aos que a souberam esperar.
A tristeza é o modo debilitado daqueles que indiscretamente se mostram afastados da hora feliz. E não será talvez porque a tivessem querido por mais tempo do que ela era durável?
Para nós, Portugueses, o único caminho que vai desde a tristeza até à alegria chama-se a Saudade: a Saudade do que já passou e a Saudade do que há-de vir!
Se não houver esperança nem fé que nos entretenha, a vida escurece, torna-se tédio e desperta a dor; mas com a luz da fé e a côr da esperança, a tristeza parece indispensável para que seja bem recebida a alegria.
Sempre que vejo a «Melancolia» de Dürer fico, como ele, com a convicção de que «intenta de medir mal sem medida»; todavia a esperança não nos larga apesar de tudo, nem se nos acaba a fé diante de nós!
Por minha parte não enjeito tristeza nem alegria, e ambas me servem como venham, para me ensinarem a viver. Se estou triste, digo logo: Mea culpa! Se estou alegre, era esse o meu desejo.
Porém, se a alguém compete inventar alegria para aqueles que a não sabem procurar, confesso que era com o maior prazer que ia oferecer-me para ser esse invejável intermediário!
Não quer isto dizer que ela me sobeje, mas é tão caprichosa e condicional a alegria que parece dar-se melhor no meio de muitos do que com uma pessoa só:
— A alegria é de toda a gente, só a tristeza é nossa!
Não há dúvida que a Humanidade é por agora, evidentemente, pouco alegre, e como acontece quando alguém está enfraquecido, é necessário reanimá-lo com bons remédios e melhores palavras que lhe restituam o natural, e, por isso, deve-se, excepcionalmente, hoje em dia, forçar a nota do agradável e do risonho, em franco optimismo artificial, para tuer le cafard e os inimigos pessoais da Alegria, Irmã Querida da Lua e Amante do Sol!
Para começar um ano em
Lisboa 1 de Jan. de 1925
José Almada Negreiros
[in "Diário de Lisboa", 6 Jan. 1925 – p. 1]
«Passam hoje, precisamente, cem anos, Teixeira de Pascoaes escreveu, na primeira página do Diário de Lisboa, a convite do seu director, Joaquim Manso, um texto sobre "a tristeza lusitana".
Já Aquilino respondera, uns dias antes, ao desafio do Diário de Lisboa, sustentando que a tristeza portuguesa seria, "acima de tudo, literária". Mas Aquilino é, neste olhar de há cem anos, o autor de uma prosa da semana passada, mesmo se aos olhos de muitos de nós o seu olhar transporta mais futuro que o do poeta do Marão. Dispensemos etiquetas apressadas.
No texto com que saúda um novo ano na primeira página de um jornal de Lisboa, o autor de "A Arte de Ser Português" não está com floreados, estilísticos ou filosóficos. Vai ao ponto preciso, ao mesmo preciso ponto que irmana, num poema das "Elegias", os olhos "em lágrimas, beijando a terra" ao seu "espírito a sorrir".
Assim o imaginamos na solidão contemplativa do Marão, por mais que ilustres amigos o visitem.
No artigo de há cem anos, Pascoaes faz a vénia a Bernardim e ao Nobre e logo nos confronta com um conceito chave, o da tristeza da saudade, lembrando que a isso chamava Frei Agostinho da Cruz "luz divina". Ora esse não seria, longe disso, para Pascoaes, um "sentimento depressivo". No artigo breve do Diário de Lisboa, o poeta usa um traço grosso: "A saudade, síntese da lembrança e da esperança, é uma força divina da alma portuguesa; tornou-a mística e aventurosa. Devemos-lhe o Brasil e a Elegia Pastoril, a mais delicada flor da poesia europeia".
Pascoaes pretende sublinhar, nesses dias de mudança de página sugeridos pelo calendário, que "a alma portuguesa é a alma dos seus grandes poetas representativos, D. Diniz, Bernardim, Camões, Frei Agostinho", do mesmo passo lembrando que a tristeza da saudade aparece, com assinalável relevo, nas cantigas populares. Ora, isso há-de ser lido com subtil sagacidade, se tomarmos como pressuposto, e Teixeira de Pascoaes toma, o "acordo absoluto" que, a seus olhos, existe entre o povo e os poetas.
São estas as premissas para o remate do texto com que Teixeira de Pascoes se dirige aos leitores do Diário de Lisboa: "A tristeza lusitana é, portanto, a maior virtude da nossa raça. Foi ela que lhe deu alma e beleza; suavizou-lhe os aspectos broncos e duros, como as sombras do crepúsculo enternecem os fraguedos dos montes e a ramagem esquelética das árvores".
Um texto desta natureza pede tudo menos a resposta a perguntas de almanaque, cuidando de saber se o ano que termina deixou saudades. Saudemos o que lá venha, com céptico desvelo. Quase adivinhando o que um tal José de Almada Negreiros há-de escrever, no mesmo jornal, daqui a quatro dias de há cem anos, sobre o mesmo tema: "Para nós, Portugueses, o único caminho que vai desde a tristeza até à alegria chama-se Saudade: a Saudade do que já passou e a Saudade do que há-de vir".
Entretanto, regressemos, em havendo tempo, e não havendo façamos com que haja, à alegria, triste que seja, da obra de Pascoaes, e no fio que puxarmos, possam vir Bernardim, Camões, Frei Agostinho, Almada. E Aquilino, claro.»
Fernando Alves ["A tristeza lusitana", in "Os Dias que Correm", 2 Jan. 2025]
Na sua crónica de hoje, Fernando Alves não menciona nem sugere um poema ou uma canção concreta. Porém, nomeia autores dos quais (se não todos a maioria) há poesia dita e também cantada publicada em fonograma. Por outro lado, o tema abordado – a saudade – é imensamente pródigo no cancioneiro português gravado em disco, quer de origem popular (lisboeta e açoriana, sobretudo), quer de extracção mais erudita. Logo, não havia desculpa para a ausência do desejado remate poético ou poético-musical à crónica na emissão da Antena 1. E um desses inumeráveis registos bem poderia ser o que tem como título "Fado da Saudade", primorosamente cantado por Carlos do Carmo, com música do Fado Menor com versículo de Alfredo Duarte "Marceneiro" sobre versos inspirados do poeta Fernando Pinto do Amaral. Seria também uma maneira de evocar o distintíssimo intérprete, completados que foram ontem quatro anos sobre o seu desaparecimento...
Das duas gravações de estúdio que Carlos do Carmo nos legou – a primeira feita para a banda sonora do filme "Fados", de Carlos Saura, e publicada no CD "Fados by Carlos Saura" (2007); e a segunda, incluída na 2.ª edição do álbum "À Noite" (2008) – escolhemos a última para aqui destacar e ficar como exemplo do que a Antena 1 podia (e devia) fazer mas não fez, desconsiderando torpe e tristemente aqueles que a pagam e têm a legítima expectativa de receber em troca um serviço modelar e irrepreensível.
Fado da Saudade
Letra: Fernando Pinto do Amaral
Música: Popular e Alfredo Duarte "Marceneiro" (Fado Menor com versículo)
Intérprete: Carlos do Carmo* (in CD "À Noite", 2.ª edição, Universal Music Portugal, 2008)
[instrumental]
Cai a noite na cidade, / que me encanta,
Na minha velha Lisboa, / de outra vida;
E com um nó de saudade, / na garganta, | bis
Escuto um fado que se entoa, / à despedida. |
Foi nas tabernas de Alfama, / em hora triste,
Que nasceu esta canção, / o seu lamento;
Na memória dos que vão, / tal como o vento, | bis
No olhar de quem se ama, / e não desiste. |
Quando brilha a antiga chama, / ou sentimento,
Oiço este mar que ressoa, / enquanto canta;
E da Bica à Madragoa, / num momento,
Volta sempre esta ansiedade, / da partida;
Cai a noite na cidade, / que me encanta,
Na minha velha Lisboa, / de outra vida.
Quem vive só do passado, / sem motivo,
Fica preso a um destino, / que o invade;
Mas na alma deste fado, / sempre vivo, | bis
Cresce um canto cristalino, / sem idade. |
É por isso que imagino, / em liberdade,
Uma gaivota que voa, / renascida;
E já nada me magoa, / ou desencanta,
Nas ruas desta cidade, / amanhecida;
Mas com um nó de saudade, / na garganta,
Escuto um fado que se entoa, / à despedida.
[instrumental]
* Carlos do Carmo – voz
José Manuel Neto – guitarra portuguesa
Carlos Manuel Proença – viola de fado
José Marino Freitas – baixo acústico
Produção – Carlos do Carmo
Gravação, mistura e masterização – Fernando Nunes, no Estúdio Pé-de-Vento, Salvaterra de Magos
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_do_Carmo
https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/carlos-do-carmo
https://music.youtube.com/channel/UCXqGi0cZitdJx1_A8s-NR6w
Capa do livro/CD "À Noite", de Carlos do Carmo (Universal Music Portugal/Tugaland, 2007, 2.ª edição, Universal Music Portugal, 2008)
Reprodução de um retrato do cantor pintado por Júlio Pomar, em 2007 (acrílico e carvão sobre tela).
Fotografia – Joaquim Justo.
____________________________________________
Outros artigos com repertório de Carlos do Carmo:
A infância e a música portuguesa
Em memória de Bernardo Sassetti (1970-2012)
Ser Poeta
Em memória de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)
Celebrando Lucília do Carmo
Em memória de Vasco Graça Moura (1942-2014)
Celebrando Carlos Paredes
Em memória de Fernando Alvim (1934-2015)
Em memória de Júlio Pomar (1926-2018)
António Botto: "Homem que vens de humanas desventuras"
Carlos do Carmo: "O Madrugar de um Sonho"
Carlos do Carmo: "A Voz Que Eu Tenho"
Carlos do Carmo: "Fado Varina" (Ary dos Santos)
Carlos do Carmo: "Gaivota" (Alexandre O'Neill)
___________________________________________
Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário