01 janeiro 2025
José Gomes Ferreira: "O general entrou na cidade", por Carmen Dolores
Pablo Picasso, "Guernica", 1937, óleo sobre tela, 349 x 776 cm, Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madrid.
A obra retrata o sofrimento e a agonia dos habitantes da vila basca de Guernica após o violento bombardeamento por uma esquadrilha de 40 aviões nazis da Legião Condor, a 26 de Abril de 1937, em apoio dos franquistas, no âmbito da Guerra Civil Espanhola, e é um magistral manifesto artístico contra a guerra.
[Para ver o quadro em ecrã inteiro, noutra janela, clicar aqui]
Quando o papa Francisco e o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, o nosso compatrício António Guterres, apregoam aos sete ventos a importância de se pugnar pela Paz e a urgência de se calarem as armas na Ucrânia, na Palestina, no Sudão, em Myanmar (antiga Birmânia) e noutras partes do mundo, sabe-se de antemão que lhes vão fazer orelhas moucas os dirigentes dos países/das facções beligerantes e, claro está, todos aqueles que lucram com o fabrico e o mui rendoso comércio/tráfico de armamento. E as populações dos países não (directamente) envolvidos em guerras, como encaram elas as palavras sensatas e avisadas das duas personalidades acima mencionadas? Há, sem dúvida, gente que as toma em muito boa conta e adopta comportamentos pró-activos a favor da Paz, mas na maioria das pessoas, sobretudo naquelas que nunca sofreram na pele os horrores da guerra, a mensagem arrisca-se a não ser (devidamente) apreendida. E a sua repetição também não ajuda porque dá-se o efeito perverso da banalização e aí a mensagem não é mesmo escutada: entra por um ouvido e sai logo pelo outro a 340,5 m/s (a velocidade do som no ar a 15 ºC). As palavras que falam da Paz tornam-se, assim, inócuas e estéreis. Mas se em vez dessas palavras já gastas se optar pelas que são a sua antítese, isto é, as que exprimem, cruamente e sem eufemismos, aquilo em que consiste a ausência da Paz, a repercussão no espírito das pessoas comuns poderá ser diferente. Ora no que respeita a palavras, quaisquer que elas sejam (e ainda mais aquelas que nos interpelam com a irracionalidade da devastação e dos morticínios que o monstro acéfalo da guerra deixa como rasto onde passa), as dos poetas são sempre as que melhor transmitem a mensagem e surtem o efeito desejado que é, neste caso, o repúdio veemente e absoluto da guerra. "O general entrou na cidade" é o título de um desses poemas e foi escrito por José Gomes Ferreira em 1940-41, quando a águia hitleriana tinhas as garras engalfinhadas em quase toda a Europa. Sessenta anos mais tarde, no rescaldo da Guerra da ex-Jugoslávia e quando em algum lugar à face da Terra as metralhadoras não paravam de cantar (parafraseando livremente um verso de Manuel Alegre), Carmen Dolores achou por bem dar voz àquele impressivo/expressivo texto para ficar fixado em fonograma, concretamente no CD "Felizmente as Palavras: Poemas de José Gomes Ferreira", e assim, depois de envolvido por apropriada sonoplastia da responsabilidade de Luís Machado, facilitar a sua divulgação a um público mais vasto. Irmanado no mesmo propósito, o blogue "A Nossa Rádio" dá-lhe destaque neste Dia Mundial da Paz, na esperança de que, se não todas, algumas das pessoas que o ouvirem e lerem assimilem e retenham perpetuamente a mensagem, de tal sorte que jamais se deixem seduzir pelo canto das sereias do belicismo (arautos disfarçados da destruição e da morte) e nunca abdiquem do supremo valor da Paz e da Vida. Boa escuta pró-activa!
O registo áudio do poema aqui e agora apresentado poderia chegar aos ouvidos de muitas mais pessoas se na Antena 1 existisse um apontamento diário (ou, pelo menos, durante os dias úteis da semana) de poesia dita/recitada que divulgasse o precioso património de gravações disponíveis, seja as publicadas em disco, seja as existentes no arquivo histórico da estação pública de radiodifusão. Tendo o canal generalista da rádio do Estado tantos pergaminhos nessa área cultural, é confrangedor assistirmos ao árido e inóspito deserto de poesia que hoje é! Ninguém se dá ao incómodo de fazer algo para que um pequeno oásis seja possível?
O general entrou na cidade
Poema de José Gomes Ferreira [poema XVII de "Invasão" (1940-1941), in "Poesia II", Coimbra: Casa Minerva, 1950, 2.ª edição, Col. Poetas de Hoje, vol. 6, Lisboa: Portugália Editora, 1962 – p. 113-114, 3.ª edição, Lisboa: Portugália Editora, 1968; "Poeta Militante: Obra Poética Completa", Vol. I, Col. Círculo de Poesia, Lisboa: Moraes Editores, 1977, 4.ª edição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990 – p. 264-265]
Recitado por Carmen Dolores* (in livro/CD "Felizmente as Palavras: Poemas de José Gomes Ferreira", Associação Portuguesa de Escritores/Dito e Feito, 2001)
Sonoplastia: Luís Machado
(«Depois de fortemente bombardeada,
a cidade X foi ocupada pelas nossas tropas.»)
O general entrou na cidade
ao som de cornetas e tambores ...
Mas por que não há «vivas»
nem flores?
Onde está a multidão
para o aplaudir,
em filas na rua?
E este silêncio?
Caiu de alguma cidade da Lua?
Só mortos por toda a parte.
Mortos nas árvores e nas telhas,
nas pedras e nas grades,
nos muros e nos canos...
Mortos a enfeitarem as varandas
de colchas sangrentas
com franjas de mãos...
Mortos nas goteiras.
Mortos nas nuvens.
Mortos no Sol.
E prédios cobertos de mortos.
E o céu forrado de pele de mortos.
E o universo todo a desabar cadáveres.
Mortos, mortos, mortos, mortos...
Eh! levantai-vos das sarjetas
e vinde aplaudir o general
que entrou agora mesmo na cidade,
ao som de tambores e de cornetas!
Levantai-vos!
É preciso continuar a fingir vida.
E para multidão, para dar palmas,
até os mortos servem,
sem o peso de almas.
* Carmen Dolores – voz
Coordenador – José Manuel Mendes / Associação Portuguesa de Escritores
Produtor – Luís Machado
Gravado nos Estúdios Goya e Xangrilá, Lisboa, em Dezembro de 2000 e Janeiro/Fevereiro de 2001
Gravação e mistura de som – Nuno João Bastos (assistência de estúdio), Carlos Gonçalves Cruz, Nuno Pimentel (técnicos de som), Nuno Rebocho (pré-mastering)
Sonoplastia – Luís Machado
URL: http://cvc.instituto-camoes.pt/teatro-em-portugal-pessoas/carmen-dolores-dp6.html
https://visao.pt/jornaldeletras/2021-02-19-a-autobiografia-de-carmen-dolores/
https://espalhafactos.com/2014/12/30/boca-de-cena-4-carmen-dolores/
https://revistas.rcaap.pt/sdc/article/view/12691/9790
https://www.dn.pt/cultura/gostava-de-ter-feito-revista-mas-nunca-me-convidaram-8707527.html/
https://antena2.rtp.pt/em-antena/cultura/carmen-dolores/
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/entrevista-a-carmen-dolores-3/
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/entrevista-a-carmen-dolores/
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/search?query=carmen+dolores
Capa da 1.ª edição do livro "Poesia II", de José Gomes Ferreira (Coimbra: Casa Minerva, 1950)
Capa da 2.ª edição do livro "Poesia II", de José Gomes Ferreira (Col. Poetas de Hoje, vol. 6, Lisboa: Portugália Editora, 1962)
Capa da 3.ª edição do livro "Poesia II", de José Gomes Ferreira (Lisboa: Portugália Editora, 1968)
Capa da 1.ª edição do livro "Poeta Militante: Obra Poética Completa", Vol. I, de José Gomes Ferreira (Col. Círculo de Poesia, Lisboa: Moraes Editores, 1977)
Capa da 4.ª edição do livro "Poeta Militante: Obra Poética Completa", Vol. I, de José Gomes Ferreira (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990)
Capa do livro/CD "Felizmente as Palavras: Poemas de José Gomes Ferreira" (Associação Portuguesa de Escritores/Dito e Feito, 2001)
Concepção e direcção gráfica – João Nuno Represas
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Outros artigos com poemas apologéticos da Paz ou em repúdio da guerra:
Jorge de Sena: "Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya", por Mário Viegas
Abolição da pena de morte: um imperativo da Humanidade
Fernando Pessoa por João Villaret
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Primeira Grande Guerra: centenário do armistício
Natália Correia: "Ode à Paz", por Afonso Dias
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Outros artigos com registos na voz de Carmen Dolores (poesia e/ou teatro radiofónico):
Galeria da Música Portuguesa: Carlos Paredes
Sebastião da Gama: "Poesia", por Carmen Dolores
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
"Ecos da Ribalta": homenagem a Carmen Dolores
Mário Dionísio: "Solidariedade", por Carmen Dolores
Luiza Todi por Carmen Dolores segundo Margarida Lisboa
"Ecos da Ribalta": homenagem a Eunice Muñoz
Teatro camoniano em versão radiofónica
Camões por Carmen Dolores
Sophia de Mello Breyner Andresen: "A Fada Oriana" (em versão radiofónica)
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