29 janeiro 2025

José Mário Branco: "Inquietação"


«Um exocórtex, formado por meio de software, serviria como uma nova fonte de pensamento, inspiração e imaginação», segundo o cientista norte-americano Kevin G. Yager. (in https://techxplore.com/)
[Para ver a imagem em ecrã inteiro, noutra janela, clicar aqui]


«O abalo provocado pela DeepSeek no mercado norte-americano da Inteligência Artificial está a ser entendido em Pequim como uma vantagem competitiva irreparável na guerra tecnológica com os Estados Unidos.
Entro desarmado em território desconhecido, imaginando os generais desta guerra – os estrategas da frente tecnológica – tirando partido não já dos infindáveis recursos da inteligência artificial, mas da imaginação artificial. Imagina.
Tanto quanto leio no jornal digital brasileiro Inovação Tecnológica, estamos no limiar de um estádio superior de luta. Kevin Yager, um cientista norte-americano, propõe a passagem a essa etapa da designada "imaginação artificial" em que tudo acontece no que ele chama o "exo-córtex científico".
Lido na ligeireza com que é explicado parece simples. É como o xadrez para iniciados. Mexemos convictamente as peças até não termos recuo. É um fascínio assustador, até ao rápido xeque-mate. Por outro lado, não é necessário entrarmos no cérebro de um cientista para o qual somos remetidos pelo professor norte-americano. Não chegaremos à ignição do exo-córtex, por mais imaginativos.
Nem o Álvaro de Campos, cuja imaginação – ele o proclama – é "um Arco do Triunfo" que "assenta de um lado sobre Deus e do outro sobre o quotidiano". Nem o heterónimo atraído pela engenharia mecânica e pela engenharia naval, voando na asa do exo-córtex com os dados científicos do seu tempo, teria chegado ao abismo para que nos desafia o professor Kevin Yager.
Ou teria? Tomai lá, do Pessoa: "Dizem que finjo ou minto/ tudo o que escrevo. Não./ Eu simplesmente sinto/ com a imaginação. / Não uso o coração."
Deixai que pergunte: poderá o artificial imaginador sentir com a imaginação, como o poeta? Ou apenas imagina que sente?
Escutai o Pessoa: "Tudo o que sonho ou passo, / o que me falha ou finda / é como que um terraço / sobre outra coisa./ Essa coisa é que é linda".
Este último verso do Pessoa – "essa coisa é que é linda" – leva-nos à "Inquietação" de José Mário Branco. "Há sempre qualquer coisa que está para acontecer / qualquer coisa que eu devia perceber. / Porquê, não sei. / Mas sei / que não sei ainda".» [Fernando Alves, "Qualquer coisa", in "Os Dias que Correm", 29 Jan. 2025]


Hoje, Fernando Alves deu-se ao cuidado de não deixar margem para dúvidas acerca daquele que seria o óbvio remate poético-musical à sua crónica: "Inquietação", de e por José Mário Branco. Mas nem assim Ricardo Soares e o seu chefe, Nuno Galopim de Carvalho, mexeram uma palha no sentido daquela pérola do repertório do categorizado e saudoso cautautor funcionar como corolário à mensagem assaz inquietante (o termo não podia ser mais apropriado) que Fernando Alves achou por bem comunicar aos seus ouvintes atentos e admiradores.
Não somos dotados de poderes para perscrutar a mente do distinto cronista sobre o que acha e pensa da reiterada ausência de remate musical e/ou poético à sua crónica desde que, em Setembro passado, reapareceu no éter nacional, concretamente na Antena 1, em completo contraste com o que se fazia (e bem) na TSF-Rádio Jornal onde nunca faltava o tal remate, mesmo quando não era nomeado qualquer artista ou autor, nem citada uma ou mais passagens de determinada(s) obra(s). Mesmo assim, estamos muito em crer que se alguém inquirisse Fernando Alves a tal respeito, a sua resposta não andaria longe dos seguintes termos: «Sim, gostaria que a minha crónica tivesse um criterioso remate poético-musical, ou só poético ou só musical, que a ilustrasse e complementasse, e pudesse também funcionar como um tempo de reflexão e de 'ruminação' do que acabei de enunciar, em vez de ser logo sequenciada pela burocrática e enfadonha ladainha da meteorologia e das temperaturas máximas previstas para o dia em todas as capitais de distrito (mais nas Penhas Douradas!)». Pois da mesma opinião e do mesmo sentir comunga o escrevente destas linhas e pode asseverar que não é um caso isolado. Impõe-se perguntar: para quem manda no canal generalista da estação pública de rádio, esses ouvintes mais exigentes não contam? Acaso não pagam também eles a contribuição do audiovisual, esperando legitimamente que em troca a Antena 1 lhes dê motivos de satisfação e não razões de queixa por o dinheiro que lhes é (coercivamente) cobrado servir para sustentar indivíduos preguiçosos e negligentes?



Inquietação



Letra e música: José Mário Branco
Intérprete: José Mário Branco* (in 2LP "Ser Solidário": LP 2, Edisom, 1982, reed. EMI-VC, 1996, Parlophone/Warner Music Portugal, 2017, 2018)




[instrumental]

A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazes

São flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalha

       Cá dentro inquietação, inquietação
       É só inquietação, inquietação
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei – ainda

       Há sempre qualquer coisa que está p'ra acontecer
       Qualquer coisa que eu devia perceber
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei – ainda

[instrumental]

Ensinas-me a fazer tantas perguntas
Na volta das respostas que eu trazia
Quantas promessas eu faria
Se as cumprisse todas juntas?

Não me largues esta mão no torvelinho
Pois falta sempre pouco p'ra chegar
Eu não meti o barco ao mar
P'ra ficar pelo caminho

       Cá dentro inquietação, inquietação
       É só inquietação, inquietação
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei – ainda

       Há sempre qualquer coisa que está p'ra acontecer
       Qualquer coisa que eu devia perceber
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei
       Porquê, não sei – ainda

       Cá dentro inquietação, inquietação
       É só inquietação, inquietação
       Porquê, não sei
       Mas sei
       É que não sei ainda

       Há sempre qualquer coisa que está p'ra acontecer
       Qualquer coisa que eu devia perceber
       Porquê, não sei
       Mas sei
       É que não sei ainda

       Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
       Qualquer coisa que eu devia resolver
       Porquê, não sei
       Mas sei
       Que essa coisa é que é linda!


* José Mário Branco – voz
Pedro Wallenstein – contrabaixo
Zé da Cadela – bateria
Pedro Luís – piano
Júlio Pereira – guitarra portuguesa e viola acústica
Rui Cardoso – saxofone alto

Direcção musical – José Mário Branco
Arranjos – José Mário Branco, com a colaboração de Rui Cardoso, Júlio Pereira, Pedro Luís, Fernando Júdice, Zé da Cadela, Pedro Wallenstein, António Chainho e Trindade Santos
Produção artística – José Mário Branco e Trindade Santos
Gravado e misturado no Angel Studio, Lisboa, de 4 de Janeiro a 12 de Março de 1982
Captação de som – José Manuel Fortes, com a colaboração de Rui Novais
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2007
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_M%C3%A1rio_Branco
https://arquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt/
https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/posts/725849500857765/
https://expresso.pt/cultura/2019-11-19-O-momento-antes-de-disparar-a-seta-a-entrevista-de-Jose-Mario-Branco
https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/jose-mario-branco-a-eterna-inquietacao
https://www.nit.pt/cultura/musica/morte-lenda-momentos-marcantes-vida-jose-mario-branco
https://www.esquerda.net/topics/dossier-303-jose-mario-branco-voz-da-inquietacao
https://www.publico.pt/jose-mario-branco
https://www.youtube.com/channel/UChQPBSV5W6kL-jw1Tp08g_w
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=jose+mario+branco



Capa do duplo LP "Ser Solidário", de José Mário Branco (Edisom, 1982)
Fotografia – Luiz Carvalho
Concepção – Artur Henriques

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