22 outubro 2024

Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)


Ilustração do francês Thierry Murat, para a sua adaptação em banda desenhada do romance "O Velho e o Mar", de Ernest Hemingway ("Le Vieil Homme et la Mer", Paris: Futuropolis, 2014 – p. 9)


«Num 22 de Outubro de há cem anos redondos, o "Diário de Lisboa" consagra uma coluna ao peixe "que está a apodrecer em Cezimbra e falta em Lisboa". O título propaga o fedor de um problema de "transportes e subsistências" para que o antetítulo remete o leitor, embora com menor destaque do que aquele conferido, na mesma página, em duas largas colunas, à sorte do cão "Tejo", "o amigo mais fiel que Sidónio Pais teve" e que subsistia com a trela da subscrição pública, nem sequer ladrando, enquanto passava a caravana da polémica a que não escapava a Sociedade Protectora dos Animais.
Regressemos à notícia de há cem anos redondos e precisos: "Há dois meses que Lisboa está sem peixe. E o pouco que aparece na Ribeira, vindo de Cezimbra, é vendido por um preço fabuloso. Anteontem", detalha o repórter, "vimos vender pescada a 25$00 o quilo, goraz a 15$00 e dois pargos por 150$00".
Não tenho, e creio que os ouvintes também não, nesta voraz míngua de euros no bolso, uma razoável tabela de equivalência de preços à mão. Mas seria cometimento apenas acessível a mais do que remediados esportular por dois pargos 150$00, nesse Outubro de 1924.
Que diz mais a notícia? Prossegue com o que o articulista considera "o mais curioso de tudo isto". Passo a ler: "O mais curioso de tudo isto é que, em Cezimbra, a abundância de peixe é tal que os armadores o vendem para adubo de terras por falta de transportes para o enviarem para Lisboa".
O repórter cuida de saber o que pretendem os "capitães de pesca, que se encontram em greve". E porque falta o peixe. A resposta aponta o dedo aos armadores e ao comissário dos Abastecimentos. E que reclamam os pescadores? Resposta obtida: "Nós reclamamos um por cento sobre o meio por cento que já temos no produto líquido da venda do peixe".
Ora, que mudou neste século no quadro que a notícia descreve? Passou a haver câmaras frigoríficas, o peixe já não apodrece a não ser por más práticas que caiam na alçada da ASAE.
Quanto ao mais, os pescadores da barca bela não precisam de ler o Garrett para identificarem as novas sereias, o seu canto lúgubre. Eles partilham com o freguês da Ribeira ou do Livramento a posta do rabo de um lance em que ganham sempre os intermediários.
Outra coisa mudou, contudo, nestes cem anos: Sesimbra já não se escreve com cê e zê, mas com dois esses, ora essa.
Cuidemos, pois, da bolsa e da ortografia.
Já agora: a quanto está o pargo, esta manhã? E o goraz?» [Fernando Alves, "Cezimbra, há cem anos", in "Os Dias que Correm", 22 Out. 2024]


A referência que Fernando Alves fez a Garrett e ao seu conhecido poema "Barca Bela" estavam mesmo a pedir, para remate musical da sua crónica, quando foi radiodifundida pela Antena 1 hoje de manhã, a belíssima canção homónima interpretada por Teresa Silva Carvalho, com música da sua autoria sobre os versos do autor de "Folhas Caídas" e esplêndida orquestração de Thilo Krasmann. Quem, porventura, teve essa expectativa bem pôde esperar sentado. Além de não ter sido feita devida justiça ao louvável intertexto do eminente cronista, ficaram a perder esses rádio-ouvintes, e todos os demais que decerto escutariam com imenso prazer aquela maravilhosa canção, quer os que já a conheciam (em gratíssima revisitação), quer todos os outros (em deslumbrante descoberta). O canal generalista da rádio do Estado, esse pecou uma vez mais por clamorosa omissão, e em algo que era bem simples e fácil de concretizar. Dar a ouvir Teresa Silva Carvalho naquele horário, em que se registam boas audiências (graças também à crónica de Fernando Alves), seria relevante serviço público, atendendo ao vil ostracismo a que a notabilíssima intérprete e compositora tem sido votada pelas rádios nacionais, inclusive a pública.
De referir, a título de curiosidade, que esta fascinante "Barca Bela", de Teresa Silva Carvalho, agradou tanto a José Afonso que ele fez questão de convidar a meritória artista para participar na gravação, em Madrid, do seu álbum "Eu Vou Ser Como a Toupeira" (1972). E ela não deixou também de manifestar a sua admiração pelo genial cantautor ao gravar versões de várias canções dele, para os álbuns "Ó Rama, Ó Que Linda Rama" (1977) e "Canções Gratas" (1994).
Eis, pois, a encantadora "Barca Bela" que a Antena 1 negligentemente sonegou aos seus ouvintes, os quais tem a agora a oportunidade de escutá-la nesta página. É serviço público que o blogue "A Nossa Rádio" se orgulha de prestar aos seus visitantes!



Barca Bela



Poema: Almeida Garrett (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Teresa Silva Carvalho
Arranjo: Thilo Krasmann
Intérprete: Teresa Silva Carvalho* (in EP "Adágio", Movieplay, 1971; CD "Teresa Silva Carvalho", Col. O Melhor dos Melhores, vol. 35, Movieplay, 1994; CD "Teresa Silva Carvalho", Col. Clássicos da Renascença, vol. 63, Movieplay, 2000; CD "Poesia EnCantada", vol. 1, EMI-VC, 2002)




[instrumental]

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
        Que é tão bela,  | bis
        Oh pescador?!   |

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
        Que é tão bela,  | bis
        Oh pescador?!   |

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
        Colhe a vela,   | bis
        Oh pescador!   |

[instrumental]

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
        Mas cautela,   | bis
        Oh pescador!  |

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
        Mas cautela,   | bis
        Oh pescador!  |

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
        Só de vê-la,   | bis
        Oh pescador.  |

[instrumental]

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
        Foge dela       | bis
        Oh pescador!  |


* Teresa Silva Carvalho – voz
Orquestra dirigida por Thilo Krasmann

Produção – Movieplay
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa
Técnico de som – Jean-François Beaudet
URL: https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/teresa-silva-carvalho
https://music.youtube.com/channel/UCkAbckRH-jBkegIgZ5iqx3A
https://www.youtube.com/@AlainJEANPIERRE/videos?query=teresa+silva+carvalho
https://www.youtube.com/c/Am%C3%A9ricoPereiraFado/videos?query=teresa+silva+carvalho
https://www.youtube.com/@carlosportelo9319/videos?query=teresa+silva+carvalho



BARCA BELA

(Almeida Garrett, in "Folhas Caídas", Lisboa: em casa da viúva Bertrand e Filhos, 1853 – p. 91-92)


Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
        Que é tão bela,
        Oh pescador?!

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
        Colhe a vela,
        Oh pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
        Mas cautela,
        Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
        Só de vê-la,
        Oh pescador.

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
        Foge dela
        Oh pescador!



Frontispício da primeira edição do livro "Folhas Caídas", de Almeida Garrett (Lisboa: em casa da viúva Bertrand e Filhos, 1853)



Capa de outra edição do livro "Folhas Caídas", de Almeida Garrett (Lisboa: Portugália Editora, 1955)
Ilustração – Maria Keil



"Barca Bela", desenho de Maria Keil para o livro "Folhas Caídas", de Almeida Garrett (Lisboa: Portugália Editora, 1955)



Capa do EP "Adágio", de Teresa Silva Carvalho (Movieplay, 1971)
Fotografia – Michel Ribó



Capa da compilação em CD "Teresa Silva Carvalho" (Col. O Melhor dos Melhores, vol. 35, Movieplay, 1994)



Capa da compilação em CD "Teresa Silva Carvalho" (Col. Clássicos da Renascença, vol. 63, Movieplay, 2000)



Capa da compilação em CD "Poesia EnCantada", vol. 1 (EMI-VC, 2002)
Selecção e notas – David Ferreira
Assistência na recolha de trechos – Jwana Godinho.

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Outros artigos com repertório de Teresa Silva Carvalho:
A infância e a música portuguesa
A vitória do azeite
Ser Poeta
Celebrando Luís Pignatelli
Teresa Silva Carvalho: "Mulher da Erva"

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)

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