16 outubro 2024

Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)


Ceifeira do Baixo Alentejo, 1957, ilustração da autoria de Laura Costa.


«A notícia já terá justificado mais do que uma rodada numa das noites decantadas em volta das talhas da adega Manuel Varrasquinho, na rua do Monte de Cima. Ou na adega Moreira. Ou na do Amador. São tantas as adegas de Ervidel.
A Voz da Planície e a Rádio Castrense fizeram ecoar a novidade e, nos campos que Giacometti percorreu colhendo toadas da monda, alguém terá ensaiado a receita de um verso, saudando a chegada da nova médica. "Ervidel tem bons cantores", apregoava uma moda que talvez conste do rol de cantorias do Grupo Coral As Margens do Roxo. Magníficos altos, como Inácio Moleirinho Valverde, belos pontos, um deles de apelido Virtuoso. Quererá saber, por certo, a nova doutora, quando os ouvir, que apelido têm os cantadores de Ervidel, "terra brilhante". E eles, levando a mão à aba do chapéu, entre duas rodadas de vinho novo, "Caixinha, um seu criado", Chaíça, Pão Mole, é bela e longa a correnteza de apelidos em "Ervidel, terra brilhante".
Lembro-me da primeira vez que se me revelou Ervidel, na dobra da Nacional 2, ainda a estrada não estava na moda. Vinha de Ferreira, de umas migas de espargos no Chico, e ali estava aquele aconchego de cal, um presépio de talhas a dois passos das largas águas do Roxo.
Em boa hora, como se dizia nos discursos de vénia cheios de nove horas, a Câmara de Aljustrel apreciou ao detalhe o Regulamento Municipal de Apoio à Fixação de Médicos e, ainda que tal empreitada devesse caber em primeira instância ao governo, fez a sua parte. Está formalizado o apoio à fixação de uma nova médica no concelho. E a nova médica vai garantir a prestação de cuidados de saúde na extensão de Ervidel.
Andam caçadores pelos campos, outros pescam nas águas da barragem. Assim pudesse passar por estes campos, como passou pelos de Bencatel, um novo conde de Monsaraz que enaltecesse as moças da terra nuns versos a pedir uma moda charmosa de Vitorino. Também aqui "estão desertas as eiras".
A nova médica de Ervidel ouvirá, por certo, na dobra de uma consulta, mais cedo que tarde, por entre avulsos ais das cruzes e suspiros de melancolia dos mais velhos, os versos do poeta popular Raimundo Afonso que ali nasceu e, ainda menino, pastoreou rebanhos, e no vento imprimiu as rimas com que entendia o mundo, doze livros publicados antes de aprender a ler. Figura maior, dele ficou para a memória mais funda da rádio, a conversa que mestre Rafael Correia registou no "Lugar ao Sul" [edição de 10 Fev. 2007 >> RTP-Arquivos]. Já cá não estão, ambos, estão desertas as eiras. Mas em chegando o São Martinho, brindemos, nós todos e a nova médica da extensão de Ervidel, com o vinho novo das talhas. No Varrasquinho ou no Raposo, no Moreira ou no Amador. Onde houver uma talha, em Ervidel, terra brilhante.» [Fernando Alves, "Ervidel, terra brilhante", in "Os Dias que Correm", 16 Out. 2024]


A alusão poético-musical que Fernando Alves fez na sua crónica de hoje não podia ser mais explícita: canção "Moças de Bencatel", de Vitorino, sobre poema do Conde de Monsaraz. Infelizmente, o manga-de-alpaca Ricardo Soares, por sua espontânea vontade ou acatando ordens estritas de Nuno Galopim de Carvalho (não sabemos ao certo), nada fez. E assim a crónica de Fernando Alves foi para o ar, mais uma vez, a seco, sem o remate musical que a complementaria e muito contentaria os ouvintes da Antena 1, mormente aqueles – entre os quais se conta o escrevente destas linhas – que se habituaram (e bem) a escutar a crónica na TSF-Rádio Jornal sempre seguida de um trecho musical relacionado com o assunto tratado.
Neste caso, a transmissão da canção de Vitorino, além de revelá-la a alguns ouvintes que a desconhecem (sobretudo os mais jovens), teria o 'efeito colateral' de fazer alguma justiça ao cantautor que tão marginalizado tem sido por quem administra a 'playlist'. Aqui fica, pois, o espécime poético-musical que foi rudemente sonegado ao auditório da Antena 1. Boa escuta!



Moças de Bencatel



Poema: Conde de Monsaraz (António de Macedo Papança, 1852-1913) (excerto ligeiramente adaptado) [texto integral >> abaixo]
Música: Vitorino Salomé
Arranjo: João Lucas
Intérprete: Vitorino* (in LP "Sul", EMI-VC, 1985, reed. EMI-VC, 1994, Parlophone/Warner Music Portugal, 201?)




Ó moças de Bencatel,
não vos zangueis se vos ralho:
muito amor, pouco trabalho;
pouco trigo, muito mel;
— fiai-vos no que vos digo
e não fiqueis mal comigo,
ó moças de Bencatel —
para vós, para a lavoira,
tomai tento, melhor fora
muito trigo e pouco mel.

Vejo terras de pousio,
que andaram sempre lavradas,
todas cobertas de flores;
mas quando chegar o frio
e passarem os calores,
e as chaminés apagadas
e as camas sem cobertores,
mal irá às namoradas
e pior aos lavradores. [bis]

[instrumental]

Funçanatas e derriços,
cantigas e pasmaceiras
fazem fugir aos serviços
e faltar às sementeiras:
eis porque estão os cortiços
abarrotados de mel
e estão desertas as eiras,  | bis
ó moças de Bencatel.        |

[instrumental]


* [Créditos gerais do disco:]
Vitorino – voz
Zé Peixoto – guitarras
Zé Marreiros – sintetizadores
Paulo Jorge Ferreira – baixo
João Lucas – piano e acordeão
Carlos Salomé – guitarra, cavaquinho e trancanholas
José Salguiero – bateria e percussões
Rui Castro – baixo
Edgar Caramelo – saxofones alto e tenor
Tomás Pimentel – trompete
Eduardo Abreu – flauta
Elsa Bruxelas – flauta
Manuel Salomé – acordeão
Janita Salomé – voz em "Moças de Bencatel" e adufes
Joaquim C. de Lima – violino
Martin Turnlund – violino
Kenneth Frazer – violoncelo
Teófilo Moreira – contrabaixo
Pedro Caldeira Cabral – baixo e viola francesa
Manuel João Vieira – bandolim
"Camisa Amarela"
Márcio – cavaquinho
Tércio – cavaquinho
Rodrigo – bandolim
Luchinha – violão
António Pinho Vargas – piano e sintetizador
José Nogueira – saxofone alto
Pedro Barreiros – contrabaixo
Mário Barreiros – bateria
Paulo Curado – saxofone soprano

E orquestra composta por:
António Miranda, Floriana Oliveira, Cecília Branco, Alexandra Mendes, Luís Cunha, Stephanie Abson, Catherine Graig, Aníbal Lima, Rosário Oliveira, Oliver Pereira, Jorge Teixeira, Teresa Beatriz, André Cameron, Joaquim Lima, Bernard Lindley, Irene Lima, Richard Higgins, Andrea Arksey, Alberto Campos, Mary Sue, António Ferreira, Fernando Flores, Ricardo Ramalho, Denise Ribera, António Serafim, Artur Moreira, Ian Scott, Orlando Ribeiro, Arlindo Santos, Adácio Pestana, Jonatham Luxton, António Nogueira, A. Reis Gomes, Tomás Pimentel, Nélson Rocha, Emídio Coutinho, José Oliveira

Produção – Vitorino e João Lucas
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Engenheiros de som – Hugo Ribeiro, Tó Pinheiro da Silva e Pedro Vasconcelos
URL: https://www.vitorinosalome.pt/
https://www.meloteca.com/portfolio-item/vitorino/
https://www.facebook.com/VitorinoSalome.officialpage
https://www.youtube.com/channel/UCuRPFnby4OlKEz5kzN655bA
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=vitorino



MOÇAS DE BENCATEL

(Conde de Monsaraz, in "Musa Alentejana", Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1908; "Obras do Conde de Monsaraz", Vol. III, Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1958)


Ó moças de Bencatel,
não vos zangueis se vos ralho:
muito amor, pouco trabalho;
pouco trigo, muito mel;
— fiai-vos no que vos digo
e não fiqueis mal comigo,
ó moças de Bencatel —
para vós, para a lavoura,
tomai tento, melhor fora
muito trigo, pouco mel.

Vejo terras de pousio,
que andaram sempre lavradas,
todas cobertas de flores;
mas quando chegar o frio
e passarem os calores,
e as chaminés apagadas
e as camas sem cobertores,
mal irá às namoradas
e pior aos lavradores.

Funçanatas e derriços,
cantigas e pasmaceiras
fazem fugir aos serviços
e faltar às sementeiras:
eis porque estão os cortiços
abarrotados de mel
e estão desertas as eiras,
ó moças de Bencatel.

Como abelhas, as cantigas,
por entre moitas e brejos,
fabricam favos de beijos
nas bocas das raparigas,
e os mocetões das aldeias,
sem canseiras nem cuidados,
largam ancinhos e arados
para crestar as colmeias...

Ó moças de Bencatel,
vós tendes as bocas cheias...
Acautelai-vos, senão
haveis de ficar sem mel,
sem maridos e sem pão!



António de Macedo Papança (1852-1913), 1.º Conde de Monsaraz – fotografia publicada na revista "O Occidente", de 20 Out. 1906 [>> resenha biográfica]



Capa da 1.ª edição do livro "Musa Alentejana", do Conde de Monsaraz (Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1908)



Capa de outra edição do livro "Musa Alentejana", do Conde de Monsaraz (Lisboa: Livraria Ferin, 1954)
Ilustração – Alberto Souza



Capa do LP "Sul", de Vitorino (EMI-VC, 1985)
Concepção – Fátima Rolo.

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Outros artigos com repertório interpretado por Vitorino ou da sua autoria:
A infância e a música portuguesa
Celebrando Luís Pignatelli
Em memória de Fernando Alvim (1934-2015)
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
Vitorino: "Marcha Ingénua"
Vitorino: "O Capitão dos Tanques"
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel

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