28 novembro 2024

Jacques Brel: "J'Arrive"


Pierre-Auguste Renoir, "Bouquet de Chrysanthèmes" ("Ramalhete de Crisântemos"), 1884, óleo sobre tela, 81,5 x 65,5 cm, Musée des Beaux-Arts de Rouen, França


«Sempre que passo por Abrantes estaciono o carro o mais perto possível do magnífico Museu Ibérico de Arqueologia e Arte, que trouxe nova vida a parte significativa do antigo convento de São Domingos e dou uma volta pelas ruas da velha urbe, já não me atrevendo a subir até ao jardim do Castelo ou a galgar a ladeira dos Quinchosos, cujo nome sempre me delicia. Claro que me abasteço de palha de Abrantes e, entretanto, sento-me num daqueles bancos à volta da árvore, no Jardim da República. Não percam de ouvido esta imagem de um círculo de bancos de jardim em redor de uma árvore, enquanto puxo o fio que aqui me traz.
Ontem, ao fim da noite, encontrei no jornal digital "Médio Tejo" a notícia de que a Câmara da "cidade florida" retoma, por estes dias, uma velha tradição novembrina, espalhando pelas ruas mais de 500 vasos de crisântemos. A jornalista Paula Morato explica que a tradição dos crisântemos foi iniciada pelo mestre jardineiro Simão Vieira que, em meados dos anos 30, expôs dezenas de variedades da "flor de ouro" no jardim do Castelo. Já não eram horas de ligar ao meu querido amigo Francisco Lopes a saber mais sobre este mestre jardineiro que se reformou nos anos 70, mas fica o nome de Simão atrás da orelha enquanto não me chega, do historiador amigo, aconchego bibliográfico sobre o homem que imagino a falar com as criaturas vegetais, envasadas ou não.
Mestre Simão criou cruzamentos felizes de crisântemos. Muitos cruzamentos. Para ele, a flor estimada dos abrantinos não exalava perfume de partida, de adeus fúnebre, como "J'arrive", a canção triste do Brel. Não sei se há em Abrantes uma rua com o nome de Simão Vieira, se houver aplaudo, se não houver tomai nota, senhores da toponímia local e, já agora, não hesiteis em replicar os bons ofícios da ribatejana Moita que tem uma Praceta dos Crisântemos.
Simão Vieira teria gostado de conversar com o escritor alemão [Peter Wohlleben] autor do best-seller "A Vida Secreta das Árvores". Ele afirmou, há uns anos, numa entrevista, a convicção de que as árvores têm sentimentos, comunicam entre si usando aquilo que classificou como "uma internet subterrânea". Esse escritor, cujo nome não me ocorre pronunciar por escapar excessivamente à raiz latina, invocou uma experiência científica realizada em África provando que as acácias libertam um produto químico quando as girafas começam a comê-las. Ele acredita que as árvores são muito parecidas com os humanos e que até se apaixonam.
O mestre jardineiro Simão Vieira já não pode sentar-se num destes bancos do jardim da República, de Abrantes, rodeando a árvore que talvez seja um cedro dos Himalaias, talvez uma tília, aquela espécie perfumada cuja madeira, dizem, é ideal para a construção das guitarras Fender.
Peço ao meu amigo Francisco Lopes, historiador de Abrantes, que me perdoe a talvez infrutífera tentativa de identificação de uma árvore cercada de bancos num jardim tranquilo. Certeza firme não tenho senão aquela de que em frente à biblioteca há uma pimenteira-bastarda. Mas, sim, quando me sento num dos bancos em círculo, virado para a árvore que não sei identificar com absoluta segurança, acredito que ela me estará dirigindo um gesto amável. E acredito que os crisântemos agora espalhados pela cidade são uma flor de acolhimento e não de despedida, como os da canção de Brel.» [Fernando Alves, "Em louvor de Simão Vieira", in "Os Dias que Correm", 28 Nov. 2024]


Alguém menos familiarizado com o repertório de Jacques Brel poderia não identificar facilmente a canção que fala de crisântemos (chrysanthèmes), mas Fernando Alves deu-se ao cuidado de referir expressamente o título: "J'Arrive". Todavia, o locutor de serviço do programa da manhã da Antena 1, Ricardo Soares, por sua vontade ou em obediência a ordens de Nuno Galopim de Carvalho para seguir à risca o que é ditado pela 'playlist', não mexeu uma palha e, consequentemente, aquela canção que seria o óbvio e natural remate musical à crónica não apareceu no éter. E assim desbaratou-se também, leviana e irresponsavelmente, uma excelente oportunidade para honrar a memória daquele que foi (é), segundo muitos, o expoente máximo da canção francófona e indubitavelmente um dos intérpretes de topo da canção mundial, o qual, apesar de tão elevados pergaminhos, é muito difícil de se ouvir na Antena 1 (pelo que nos temos apercebido, só David Ferreira o 'convoca', uma vez por outra, para os espaços que vai mantendo com grande profissionalismo, mau grado o seu trabalho não ser devidamente valorizado). Aos ouvintes que ficaram com vontade de ouvir a canção de Brel trazida à colação por Fernando Alves não restou outra opção do que ir à procura dela no YouTube ou noutra plataforma de 'streaming'. Foi o que fez o escrevente destas linhas, após ter sido novamente defraudado com o displicente serviço oferecido pela rádio para a qual é chamado a desembolsar o seu dinheiro.
Os ouvintes da Antena 1 que não trataram de ir escutar a canção pelos seus próprios meios, sendo visitantes desta página, podem agora colmatar a lacuna que a rádio que pagam lhes deixou (desrespeitosamente) aberta. Boa escuta!



J'Arrive



Letra: Jacques Brel
Música: Jacques Brel e Gérard Jouannest
Orquestração: François Rauber
Intérprete: Jacques Brel* (in LP "J'Arrive", Barclay, 1968, reed. Barclay, 2003; 2CD "Infiniment": CD 1, Barclay, 2003)




De chrysanthèmes en chrysanthèmes
Nos amitiés sont en partance
De chrysanthèmes en chrysanthèmes
La mort potence nos dulcinées
De chrysanthèmes en chrysanthèmes
Les autres fleurs font ce qu'elles peuvent
De chrysanthèmes en chrysanthèmes
Les hommes pleurent, les femmes pleuvent

J'arrive, j'arrive
Mais qu'est-ce que j'aurais bien aimé
Encore une fois traîner mes os
Jusqu'au soleil, jusqu'à l'été
Jusqu'au printemps, jusqu'à demain

J'arrive, j'arrive
Mais qu'est-ce que j'aurais bien aimé
Encore une fois voir si le fleuve est encore fleuve
Voir si le port est encore port
M'y voir encore

J'arrive, j'arrive
Mais pourquoi moi, pourquoi maintenant?
Pourquoi déjà et où aller?
J'arrive, bien sûr, j'arrive
Mais ai-je jamais rien fait d'autre qu'arriver?

De chrysanthèmes en chrysanthèmes
À chaque fois plus solitaire
De chrysanthèmes en chrysanthèmes
À chaque fois surnuméraire

J'arrive, j'arrive
Mais qu'est-ce que j'aurais bien aimé
Encore une fois prendre un amour
Comme on prend le train pour plus être seul
Pour être ailleurs, pour être bien

J'arrive, j'arrive
Mais qu'est-ce que j'aurais bien aimé
Encore une fois remplir d'étoiles
Un corps qui tremble et tomber mort
Brûlé d'amour, le cœur en cendres

J'arrive, j'arrive
C'est même pas toi qui est en avance
C'est déjà moi qui suis en retard
J'arrive, bien sûr, j'arrive
Mais ai-je jamais rien fait d'autre qu'arriver?

[instrumental]


* Jacque Brel – voz
Orquestra dirigida por François Rauber
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jacques_Brel
https://fondationbrel.be/
https://www.facebook.com/JacquesBrelOfficiel/
https://music.youtube.com/channel/UCfTQeXFqPeKviVfpzDevqaw



Capa do LP "J'Arrive", de Jacques Brel (Barclay, 1968)



Capa da compilação em duplo CD "Infiniment", de Jacques Brel (Barclay, 2003).

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Outro artigo com repertório da chanson française:
Em memória de Georges Moustaki (1934-2013)

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
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