08 janeiro 2025
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pinho" (D. Dinis)
Iluminura do Codex Manesse, fl. 249v, c.1304-c.1340, Biblioteca da Universidade de Heidelberga, Alemanha.
[Para ver a imagem em ecrã inteiro, noutra janela, clicar aqui]
«Na capa do Público, o rosto de Dinis, rei poeta, 700 anos passados sobre a sua morte. "Este é o rosto do rei", anuncia o jornal, ancorando tal espantosa, mas fidedigna, revelação na reconstituição facial 3D de um esqueleto que a antropóloga biológica Eugénia Cunha, da Universidade de Coimbra, descreve como "muito bem conservado, com todos os ossos faciais preservados".
Isso explica o título interior a duas páginas: "Esta é a cara que a ciência deu ao rei D. Dinis". Desta vez, foram os cientistas que lhe pentearam o crânio ermo, não já com a cabeleira das avós, mas com a irrefutável certeza dos testes genéticos e dos dados arqueológicos e forenses. Uma geneticista ouvida pelo Público confirma o tom claro dos cabelos do rei, mas não ousa esclarecer se tais cabelos seriam lisos ou encaracolados.
O trabalho dos cientistas permite saber que o rei trovador teria um "nariz alongado", mas não revela indícios de que possa ter sido tal adereço desmesurado ao ponto de valer um soneto ao estilo daquele com que o grande Quevedo tentou ridicularizar Luís de Gôngora. Nada autoriza um verso ao estilo daqueles com que Quevedo descreveu "um homem a um nariz pregado, / um nariz superlativo".
O rosto do rei, tão diferente daquele façanhudo que conhecíamos dos manuais, fita-nos de uma janela mais pequena na capa do JN. Mas imagino um poeta como Manuel Alegre talvez mais tocado pelo título que o acompanha: "D. Dinis tinha olhos azuis, pele e cabelos claros".
Tenho dado comigo a imaginar o modo como Alegre terá reagido à revelação do rosto verdadeiro do rei poeta que tanto estima.
Quando o seu livro "Doze Naus" conquistou o prémio D. Dinis, Alegre agradeceu aos que lhe conferiram a distinção na Casa de Mateus não sem deixar registado que aquilo que mais o tocava era o facto de o prémio ter o nome do autor das Flores de Verde Pinho.
São azuis os olhos do rei poeta, "azuis da cor do céu", como os que passando diante do Pessoa faziam com que este esquecesse uma certa "dor constante".
Não ousa, contudo, o Pessoa alvitrar a cor dos olhos do rei poeta a quem, na "Mensagem", chama "plantador de naus a haver". Nesse sexto poema ele chama-nos para a noite em que Dinis escreve "um seu Cantar de Amigo" e faz-nos escutar "o rumor dos pinhais que, como um trigo / de Império, ondulam sem se poder ver". Tenho dado comigo a imaginar.» [Fernando Alves, "Os olhos azuis de Dinis", in "Os Dias que Correm", 8 Jan. 2025]
Na sua crónica de hoje, Fernando Alves menciona expressamente dois poemas: a mais popular cantiga de amigo de D. Dinis e o poema de Fernando Pessoa alusivo ao rei-trovador. Pois, uma gravação de um ou de outro, recitada ou cantada, seria o óbvio e lógico remate à crónica quando foi difundida pela Antena 1 de manhã. Assim não aconteceu, como antes. O escrevente destas linhas sentiu-se de novo defraudado e suspeita bem que não terá sido o único de entre os ouvintes que cerca de dez minutos antes das 9h:00 se dão ao cuidado de sintonizar o canal generalista da rádio do Estado, a exemplo do que faziam relativamente à TSF-Rádio Jornal, para escutarem em primeira mão as imperdíveis e lúcidas reflexões de Fernando Alves sobre episódios e casos da actualidade.
Sendo a cantiga Ai flores, ai flores do verde pino a mais conhecida e reconhecível das muitas que D. Dinis escreveu e existindo para cima de quinze gravações, em grande diversidade de estilos e de instrumentação, a passagem de uma delas, independentemente do critério seguido na sua escolha, funcionaria simultaneamente como homenagem, ainda que singela, ao rei-poeta de quem se assinalou ontem o 7.º centenário da morte, efeméride que foi, pelo que tivemos o ensejo de constatar, completamente ignorada pela direcção de programas das Antena 1. A gravação nossa predilecta é a do agrupamento La Batalla, dirigido por Pedro Caldeira Cabral [>> YouTube], mas dado que tem uma introdução instrumental de quase dois minutos e a duração total ultrapassa os cinco minutos, somos receptivos ao argumento de que talvez não fosse a mais indicada para passar naquele horário tão espartilhado que está em termos de tempo. Assim sendo, poderia optar-se pela versão também muito boa e bem mais curta (dura uns escassos 2':07'') dos Segréis de Lisboa, cantada por Mariana Moldão com acompanhamento ao alaúde por Manual Morais, integrante do álbum "O Alaúde na Península Ibérica (Séc. XV-XXI)", publicado em 2023. A melodia, muitíssimo bela, foi composta por Frederico de Freitas (1902-1980) que também a usou no quarto andamento, 'Cantar de Amigo', da sua "Suite Medieval" (1958) [>> YouTube]. Os ouvintes de velha data da Antena 2 conhecem-na bem e os da Antena 1 menos familiarizados com a obra do compositor podiam também eles descobri-la hoje, se acaso tivesse havido o cuidado, o zelo profissional e a sã ousadia de utilizar a gravação dos Segréis de Lisboa como remate poético-musical à crónica de Fernando Alves. Esses ouvintes desconsiderados pela Antena 1 que aqui acederem têm agora a oportunidade de colmatar tal lacuna. Boa escuta!
Ay flores do verde pinho
Poema (cantiga de amigo): D. Dinis (in "Cancioneiro da Biblioteca Nacional", B 568 / "Cancioneiro da Vaticana", V 171) [informação complementar >> Cantigas Medievais Galego-Portuguesas - FCSH/UNL / Moura Encantada]
Música: Frederico de Freitas
Intérprete: Segréis de Lisboa* [in CD "O Alaúde na Península Ibérica (Séc. XV-XXI), Manuel Morais, 2023]
— Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
Ai Deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs conmigo?
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi há jurado?
Ai Deus, e u é?
— Vós me preguntades polo voss'amigo
e eu bem vos digo que é san'e vivo.
Ai Deus, e u é?
— Vós me preguntades polo voss'amado
e eu bem vos digo que é viv'e sano.
Ai Deus, e u é?
— E eu bem vos digo que é san'e vivo
e será vosco ant'o prazo saído.
Ai Deus, e u é?
— E eu bem vos digo que é viv'e sano
e será vosc[o] ant'o prazo passado.
Ai Deus, e u é?
Nota: Ai Deus, e u é? = Ai Deus, onde está?
* Segréis de Lisboa:
Mariana Moldão – voz (soprano)
Manuel Morais – alaúde
Direcção musical – Manuel Morais
Produção – Tiago Manuel da Hora
Técnico de som – João Pedro Castro
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Segr%C3%A9is_de_Lisboa
https://www.meloteca.com/portfolio-item/segreis-de-lisboa/
https://catalogo-fonografico.fundacaogda.pt/artistas/segreis-de-lisboa-manuel-morais/
https://music.youtube.com/channel/UCrwn18s3r9MSr_Q2MEOCTpg
Capa do CD "O Alaúde na Península Ibérica (Séc. XV-XXI) (Manuel Morais, 2023)
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Outros artigos com poesia de D. Dinis ou de autoria alheia inspirada na sua:
Frei Fado d'El Rei: "Ramo Verde" (Jorge de Sena)
Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1: Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
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1 comentário:
É este novo rosto de Janus estímulo para expressar a minha gratidão pelo diálogo de cultura que acontece neste blogue da Rádio estatal. A sua divulgação é um dever para quem preza a Cultura e nela encontra alimento. Um Bom Ano para todos! Maria do Carmo Vieira
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