01 maio 2024

Carlos do Carmo: "Fado Varina" (Ary dos Santos)


João Palhares, "Varina vendendo peixe em Lisboa", c.1850, litografia aguarelada, Museu de Lisboa, ex-Museu da Cidade (MC.GRA.1275)
Mais iconografia alusiva às varinas no blogue "Com Jeito e Arte".


Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

          CESÁRIO VERDE (de "O Sentimento d'um Ocidental",
                secção "Ave-Marias", in "O Livro de Cesário Verde:
                1873-1886", org. Silva Pinto, Lisboa: Typographia
                Elzeveriana, 1887 – p. 61)


«Figuras típicas da cidade, as varinas foram inspiração para poetas e pintores. "Varina" seria a designação abreviada de "ovarina", nome dado às mulheres oriundas de Ovar que na segunda metade do séc. XIX vieram para Lisboa, vender peixe pelas ruas ou no Cais da Ribeira, fixando residência sobretudo no Bairro da Madragoa e no de Alfama.» (in https://www.facebook.com/egeac/).
Quando Ary dos Santos escreveu a letra do "Fado Varina", em 1976, é de supor que algumas vendedeiras de peixe, com a canastra à cabeça, entoando a bom som os castiços pregões, ainda calcorreassem as ruas de Lisboa, sobretudo nos bairros populares. Não passaram muitos anos até desaparecerem da paisagem humana da capital, desaparecimento esse que talvez tenha sido acelerado pela Inspecção-Geral das Actividades Económicas (futura Autoridade de Segurança Alimentar e Económica), já que o transporte de peixe à temperatura ambiente fazia perigar a sua frescura e qualidade nutricional. A venda ambulante de peixe fresco não ficava proibida mas teria, obrigatoriamente, de fazer-se utilizando veículos dotados de câmara refrigerada, vulgo furgões frigoríficos. Hoje em dia, ver varinas de rua só se for em documento antigo (pintura, gravura, desenho, fotografia, filme), mas ainda é possível ouver as suas descendentes atrás das bancas do peixe no Mercado da Ribeira e noutros mercados municipais.
Embora socialmente bastante desconsideradas, as varinas mereceram, como acima é mencionado, a atenção de artistas plásticos e de poetas. Um desses mestres no manuseio inspirado das palavras foi José Carlos Ary dos Santos, considerado por muito boa gente o mais alto expoente português no difícil mister de escrever canções sobre melodias alheias, e que no "Fado Varina" exprimiu assaz eloquentemente o respeito e o apreço que nutria por aquelas mulheres do povo na sua labuta pela sobrevivência. E não foi ao acaso que evocou dois grandes (enormes) dos seus pares – Cesário Verde e Luís de Camões: o primeiro em alusão intertextual a uma passagem, referente às varinas, do poema "O Sentimento d'um Ocidental"; e o segundo para qualificar os pregões como versos frescos do nosso Poeta-Maior com salada de saudade.
Assinalamos, pois, poético-musicalmente este Dia do Trabalhador dando destaque ao belíssimo "Fado Varina", com versos de Ary dos Santos sobre música de Mário Moniz Pereira, na magistral interpretação de Carlos do Carmo. Serve também de singela homenagem ao autor d' "As Portas Que Abril Abriu", completados que estão 40 anos sobre o seu desaparecimento e no cinquentenário da Revolução dos Cravos que ele tanto prezava. Boa escuta!

Se a Antena 1 fosse uma rádio normal e verdadeiramente consagrada à prestação de serviço público, a voz de Carlos do Carmo e os versos de Ary dos Santos (cantados por aquele e por outros intérpretes) jamais seriam deixados de fora da 'playlist'. E são deixados porque um indivíduo chamado Nuno Galopim de Carvalho se arroga em votar ao desprezo os artistas e autores que mais e melhor dignificaram a música portuguesa, ao mesmo tempo que se empenha em dar (desmedida) divulgação a abundante quinquilharia sonora (vinda de fora e produzida cá dentro). Até quando estarão os pagantes da contribuição do audiovisual dispostos a tolerar tamanho desvario?



Fado Varina



Letra: José Carlos Ary dos Santos
Música: Mário Moniz Pereira
Intérprete: Carlos do Carmo* (in LP "Um Homem na Cidade", Trova/Movieplay Portuguesa, 1977, reed. Fatum/UPAV, 1991, Philips/Polygram, 1995, Série "Carlos do Carmo 50 Anos", Vol. 06, Universal Music Portugal, 2013; 2CD/DVD "Fado Maestro": CD 2, Universal Music Portugal, 2008; 10 livro/CD "100 Canções, Uma Vida": CD 2 – "Lisboa", Universal Music Portugal/Público, 2010)




[instrumental]

De mão na anca,
descompõem a freguesa:
atrás da banca,
chamam-lhe gosma e burguesa.
Mas nessa voz,
como insulto à portuguesa,
há o sal de todos nós,
há ternura e há beleza.
Do alto mar
chega o pregão que se alastra:
têm ondas no andar
quando embalam a canastra.

Minha varina,
que chinelas por Lisboa!
Em cada esquina
é o mar que se apregoa.
Nas escadinhas
dás mais cor aos azulejos,
quando apregoas sardinhas
que me sabem como beijos.
Os teus pregões
são iguais à claridade:
caldeirada de canções
que se entorna na cidade.

Os teus pregões
são iguais à claridade:
caldeirada de canções
que se entorna na cidade.

Cordões ao peito,
numa luta que é honrada;
a sogra a jeito
na cabeça levantada.
De perna nua,
com provocante altivez,
descobrindo o mar da rua
que esse, sim, é português.
São as varinas
dos poemas do Cesário
a vender a ferramenta
de que o mar é o operário.

Minha varina,
que chinelas por Lisboa!
Em cada esquina
é o mar que se apregoa.
Nas escadinhas
dás mais cor aos azulejos,
quando apregoas sardinhas
que me sabem como beijos.
Os teus pregões
nunca mais ganham idade:
versos frescos de Camões
com salada de saudade.

[instrumental]

Os teus pregões
nunca mais ganham idade:
versos frescos de Camões
com salada de saudade.


* Carlos do Carmo – voz
Raul Nery – 1.ª guitarra portuguesa
António Chainho – 2.ª guitarra portuguesa
Martinho d'Assunção – viola
José Maria Nóbrega – viola baixo

Direcção musical – Martinho d'Assunção
Supervisão musical – Thilo Krasmann
Produção – Trova
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, em 1976
Engenheiro de som – Hugo Ribeiro
Operador – Fernando Cortez
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2007
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_do_Carmo
https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/carlos-do-carmo
https://music.youtube.com/channel/UCXqGi0cZitdJx1_A8s-NR6w



Capa do LP "Um Homem na Cidade", de Carlos do Carmo (Trova/Movieplay Portuguesa, 1977)
Concepção – Manuel Vieira

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Sérgio Godinho: "Que Força É Essa?"
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