01 maio 2022

Modas à Margem do Tempo: "Meus Senhores"


Painel azulejar concebido por António Passão, em 2006, evocativo da "Praça de Homens" que existiu na aldeia (hoje vila) do Carregado, concelho de Alenquer, no cruzamento da Rua Vaz Monteiro (EN 1) com a Rua Pinto Barreiro (EN 3). O painel, aplicado numa placa vertical de granito assente em duas bases de betão, situa-se no canto noroeste, ajardinado, do referido cruzamento.
Fotografia retirada do blogue "Alenquer - Tradição, História e Património".
[Para ver o painel azulejar em ecrã inteiro clicar aqui]


PRAÇA DE JORNA

I

Entre os camponeses de certa região, designa-se por «praça» o ajuntamento dos assalariados rurais em locais certos e dia fixado, com o fim de contratarem trabalho, ou – como usam dizer – tomarem patrão.
A «praça de trabalho» ou «praça de jorna» é pois um mercado de mão-de-obra, a que vão assalariados e proprietários rurais (ou os seus delegados: os capatazes), e em que os primeiros, como vendedores, oferecem a sua força de trabalho, e os segundos, como compradores, oferecem o salário ou jorna, que é a paga de um dia de trabalho (jornal).
Daí a designação de «praça de jorna» ou «praça de trabalho», mais apropriada do que «praça de homens» como já se tem chamado, visto que não são propriamente os homens o que está à venda no mercado, mas sim a sua força de trabalho, isto é, o conjunto das suas faculdades físicas e intelectuais utilizadas na produção.
Convém insistir neste ponto, porquanto aquela designação corresponde a uma corrente de opinião acerca das «praças», ou seja, de que elas são ainda restos do antigo mercado de escravos e, portanto, desumanas e inteiramente condenáveis. Em certo artigo doutrinário escreveu-se que «as praças de homens são, na realidade, mercados medievais da força de trabalho».
A verdade é que, antigamente, o homem do campo não era livre de dispor da sua força de trabalho: era escravo ou servo da gleba e, como tal, todo ele considerado uma ferramenta ou simples objecto de uso, que o senhor podia vender ou trocar ou, quando escravo, destruir. Os antigos Romanos dividiam mesmo as forças de produção em três categorias: os meios de trabalho mudos (os objectos), os meios de trabalho semi-mudos (o gado), e os meios de trabalho falantes (os escravos). Ao passo que, modernamente, dentro da forma capitalista, o que constitui a mercadoria é a força de trabalho do homem, e não o próprio homem. Este, até certo ponto, é livre de escolher ou mudar de patrão ou ofício. Portanto, se no mercado medieval o homem passava das mãos de um senhor às de outro senhor, de um vendedor a um comprador, na «praça» actual o trabalhador rural vende a sua força de trabalho ao lavrador, por um tempo determinado (dia ou semana) e recebe em troca um valor: o salário.
Quer isto dizer que o trabalhador recebe o justo valor do seu trabalho? De modo nenhum. Quer dizer também que o trabalhador, tendo deixado de ser escravo ou servo, é agora inteiramente livre? De modo nenhum. No sistema capitalista de produção, os assalariados estão dependentes da classe que possui os meios de produção (proprietários da terra e das máquinas, etc.), são obrigados, para não morrerem de fome, a vender as suas faculdades físicas e intelectuais. E nesse «negócio» forçado, os patrões aumentam o seu capital, enquanto os assalariados desgastam a sua única riqueza: a força de trabalho.

SOEIRO PEREIRA GOMES, Agosto de 1946 (in "Praça de Jorna", Lisboa: Organização dos Técnicos Agrícolas da Direcção da Organização Regional de Lisboa do Partido Comunista Português, 1976) [texto integral no blogue "Voar Fora da Asa"]


Embora as "praças de jorna" não fossem exclusivas do mundo rural, pois também existiram nas cidades para recrutamento de trabalhadores eventuais, sobretudo para cargas e descargas (em Lisboa, uma delas realizava-se no Cais do Sodré, como mostra uma fotografia tirada em 1912), foi nas lezírias do Ribatejo e nos latifúndios do Alentejo que tiveram maior expressão. A progressiva mecanização da agricultura, depois da Segunda Guerra Mundial, com a consequente menor necessidade de mão-de-obra braçal para os árduos trabalhos da lavoura, ditou o gradual desaparecimento das "praças de jorna", tendo as que subsistiram até ao 25 de Abril de 1974 findado pouco depois.
Também conhecidas, popularmente, como "praças de homens", embora a expressão não seja adequada, como explicou Soeiro Pereira Gomes, as "praças de jorna" não deixaram gratas lembranças naqueles que, por necessidade de sustento e sem que tivessem alternativa (a não ser o êxodo para as cinturas industriais de Lisboa e de Setúbal ou a emigração para a estranja), lá iam oferecer a sua força de trabalho a troco de uma magra retribuição. Isso testemunhou o poeta e encenador alentejano Vicente Rodrigues (Alcáçovas, 1910 - Torrão, 1982) em versos que o grupo eborense Modas à Margem do Tempo musicou e gravou, no álbum "Cantarolices" (Associ'Arte, 2003), sob o título "Meus Senhores". É, pois, destacando esta tocante moda, cantada sobre um primoroso arranjo instrumental, que assinalamos o Dia do Trabalhador, honrando a memória dos inúmeros trabalhadores braçais do passado e solidarizando-nos com os do presente que, embora já não sendo contratados em "praças de jorna", executam tarefas muito duras para o corpo, não raras vezes pondo também à prova a saúde mental, mas socialmente desconsideradas e, como tal, mal remuneradas – porém, imprescindíveis ao normal e regular funcionamento das sociedades modernas.

Recordamo-nos perfeitamente de ter ouvido, certa vez, pela mão do Sr. Armando Carvalhêda, na sua memorável rubrica "Cantos da Casa" [>> RTP-Play], esta moda "Meus Senhores". Nunca mais lográmos escutá-la na rádio. E é um exemplo apenas de entre tantos outros e bons que constituem o vasto repertório recriado ou criado de raiz por meritórios intérpretes e grupos portugueses que laboram (ou laboraram) no campo da música tradicional (ou de matriz tradicional), que não é objecto de cabal e conveniente divulgação na Antena 1. Vejamos: temos o espaço "A Árvore da Música" [>> RTP-Play], da responsabilidade de Ana Sofia Carvalhêda, nas matinas de domingo (após o noticiário das 07h:00), em substituição do programa "Cantos da Casa (Fim-de-Semana)" [>> RTP-Play], que se consagra à divulgação de novas edições discográficas. Igualmente focado em discos recentes é de referir o também dominical "Vozes da Lusofonia" [>> RTP-Play], de Edgar Canelas, que não se restringindo à música (de matriz) tradicional lhe dá guarida, de vez em quando. E de gravações menos recentes, em que espaço da grelha se pode ouvir algo? Somente, e ainda assim escassamente e sem carácter regular, no programa "Alma Lusa" [>> RTP-Play], da autoria de Edgar Canelas, que vai para o ar depois do noticiário da meia-noite de domingo terminando às 02h:00 da madrugada de segunda-feira (um dia de trabalho). Quer dizer: a música tradicional foi relegada para as margens, escapando assim ao auditório menos madrugador ou menos noctívago. Não é uma situação com a qual se possa contemporizar porque uma rádio que vive do dinheiro dos ouvintes (via contribuição do audiovisual) jamais deverá marginalizar o património musical mais genuíno e identitário do seu país. Caso contrário, torna-se legítimo questionar o financiamento público, sendo de evitar, a todo o custo, que tenha de se chegar aí. Importa, portanto, que se tomem as medidas necessárias que passam, obrigatoriamente, pela inclusão na 'playlist' de música tradicional portuguesa, tornando-a assim audível à generalidade do auditório, e pela criação de, pelo menos, uma rubrica em que se faça o enquadramento circunstanciado do espécime a apresentar e do respectivo intérprete, em moldes idênticos ao que fazia o emérito realizador Armando Carvalhêda.



Meus Senhores



Letra: Vicente Rodrigues (1910-1982)
Música: Modas à Margem do Tempo
Intérprete: Modas à Margem do Tempo* (in CD "Cantarolices", Associ'Arte, 2003)




[instrumental]

[Moda:]
Meus senhores, eu venho à praça  | bis
Este meu corpo oferecer,              |
Este meu corpo-carcaça     | bis
De se comprar e vender!    |

De se comprar e vender  | bis
Por bem se negociar,       |
No negócio de render             | bis
Sem ter nele nada a ganhar... |

[instrumental]

[Cantiga:]
É tempo de se ceifar          | bis
Trigos, cevadas e fenos...   |
Quem dá mais pelo meu suar?         | bis
Quem dá mais ou quem dá menos?  |

[instrumental]


* Modas à Margem do Tempo:
Celina da Piedade – acordeão e voz
Cláudio Trindade – reco-reco, pauzinhos de cuba, caixa chinesa, cântaros, caixa e sementes, lata de areia, serapilheira com vassouras, pauzinhos, pau-de-chuva, adufe, ferrinho, bombo e voz
José Melo – guitarra semi-acústica e voz
Susana Castro Santos – violoncelo e voz
Tolentino Cabo – guitarra clássica e voz

Produção – João Bacelar e Modas à Margem do Tempo
Gravado no Estúdio Quinta Dimensão, Azaruja - Évora
Engenheiro de som – João Bacelar
URL: https://www.facebook.com/mmtempo/
https://notas.blogs.sapo.pt/1214.html



Capa do opúsculo "Praça de Jorna", de Soeiro Pereira Gomes (Lisboa: Organização dos Técnicos Agrícolas da Direcção da Organização Regional de Lisboa do Partido Comunista Português, 1976)
Ilustração – Álvaro Cunhal



Capa do CD "Cantarolices", do grupo Modas à Margem do Tempo (Associ'Arte, 2003)
Fotografia – António Carrapato
Grafismo – Francisco Bilou
Execução de figuras de barro – Oficina da Terra (Évora)

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1 comentário:

José Augusto Macedo do Couto disse...

Excelente entrada. Obrigado.