16 outubro 2022

Adriano Correia de Oliveira: "Canção da Fronteira" (António Cabral)


Painel azulejar de homenagem a Adriano Correia de Oliveira, da autoria do pintor António Carmo. Situado em Avintes, à entrada do Parque Biológico de Gaia, foi inaugurado a 20 de Abril de 2008 pelo então presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, Luís Filipe Menezes.
Fotografia – Jorge Guedes (in https://adrianocorreiadeoliveira.org/fotografias/).


Depois de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira foi o compositor/intérprete mais importante da canção de contestação à ditadura salazarista-marcelista e mensageira da irreprimível aspiração à vida num Portugal liberto da mordaça, dos cárceres políticos, da anacrónica guerra colonial, das vergonhosas iniquidades sociais, da corrupção... – em suma, num país livre e solidário onde imperasse a justiça social e o bem-comum. Mas o repertório de Adriano não se restringiu, após o fado de Coimbra dos primórdios, às trovas e às baladas de intervenção, no sentido mais estrito do termo (se bem que toda a arte seja, de algum modo, interventiva ou interpelativa): o distinto artista também dispensou especial atenção à poesia lírica de temática amorosa, quer popular quer erudita. Entre esses espécimes líricos a que Adriano emprestou a sua maviosa, límpida e afinadíssima voz conta-se a encantadora "Canção da Fronteira", com música criada por si próprio para o poema "Serranilha", do poeta, ficcionista e etnógrafo duriense (natural de Castedo do Douro, Alijó) António Cabral, inspirado na "Serranilla VII (La vaquera de la Finojosa)", da autoria do castelhano, do século XV, Iñigo López de Mendoza (1.º Marquês de Santilhana) [>> texto completo].
A "Canção da Fronteira", que saiu no LP "O Canto e as Armas", publicado em Dezembro de 1969, tem uma das belas melodias que Adriano concebeu e, paradoxalmente, é das menos conhecidas. Uma boa razão para aqui a destacarmos, nesta data em que se completam 40 anos sobre o prematuro desaparecimento do criador da "Canção com Lágrimas", honrando a memória do grande (enorme) artista português, a quem – é oportuno lembrar – o país ainda não deu o devido e merecido reconhecimento. Não nos referimos a condecorações póstumas nem a estátuas (estátuas e bustos de ilustres desconhecidos é o que mais há por esse Portugal fora), mas à divulgação da sua obra pelos media, sobretudo pela rádio. Não deixando de ser grave que quem manda nos canais privados se 'esqueça' de Adriano Correia de Oliveira, por ignorância ou por pacóvio preconceito, constitui um abominável crime de sonegação cultural que o precioso legado musical/fonográfico do insigne cantor seja reiteradamente posto de lado por quem tem responsabilidades nas 'playlists' da estação pública, mormente nas das Antenas 1 e 3.



Canção da Fronteira



Poema: António Cabral (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Adriano Correia de Oliveira
Intérprete: Adriano Correia de Oliveira* (in LP "O Canto e as Armas", Orfeu, 1969, reed. Movieplay, 1997; 7CD "Adriano: Obra Completa": CD "A Noite dos Poetas", Movieplay, 1994; 7 livros/CD "Obra Completa de Adriano Correia de Oliveira": vol. 7 - "Menina dos Olhos Tristes: A Noite dos Poetas", Movieplay/Público, 2007)




[instrumental]

Moça tão formosa
não vi na fronteira,
como uma ceifeira
que cantava rosa.

Foi em Barca d'Alva,
quando o Sol nascia.
Uma ceifeira cantava...
cantando vertia
trovas na fronteira,
quando o Sol nascia.

A saia de chita,
blusinha limão.
Que coisa bonita
sobre o coração!
Nos ramos da luz
um fruto limão.

De foice na mão,
suspensa dum sonho,
mordendo dois bagos
rubros de medronho;
seus olhos dois bagos
suspensos dum sonho.

Devia ser pobre,
mas cantava rosa,
romã que se abria
na manhã formosa.
Que canto, que sonho,
que engano de rosa?

Foi em Barca d'Alva,
quando o Sol nascia.
Uma ceifeira cantava...
cantando vertia
trovas na fronteira,
quando o Sol nascia.

Moça tão formosa
não vi na fronteira,
como uma ceifeira
que cantava rosa.


* Adriano Correia de Oliveira – voz
Rui Pato – viola
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa, a 31 de Julho de 1969
Técnico de som – Moreno Pinto
URL: https://adrianocorreiadeoliveira.org/
https://www.facebook.com/adrianocorreiadeoliveira/
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=adriano+correia+oliveira



SERRANILHA

(António Cabral, in "Os Homens Cantam a Nordeste", Tomar: Nova Realidade, 1967 – p. 80-81; "Antologia dos Poemas Durienses", Chaves: Edições Tartaruga, 1999 – p. 64-65)


                         «Moza tan fermosa
                          non vi en la frontera,
                          com' una vaquera
                          de la Finojosa.»

                                       Iñigo López de Mendoza
                                       (Marquês de Santilhana)



Moça tão formosa
não vi na fronteira,
como uma ceifeira
que cantava rosa.

Foi em Barca de Alva,
quando o sol nascia.
Ia uma ceifeira
cantando; floria.
Floria a fronteira,
quando o sol nascia.

A saia de chita,
blusinha limão.
Que coisa bonita
sobre o coração!
Nos ramos da luz
um fruto limão.

De foice na mão,
suspensa dum sonho,
mordendo dois bagos
rubros de medronho;
seus olhos dois bagos
suspensos dum sonho.

Devia ser pobre,
mas cantava rosa,
romã que se abria
na manhã formosa.
Que canto, que sonho,
que engano de rosa?



António Cabral (Castedo do Douro, Alijó, 30 Abr. 1931 - Vila Real, 23 Out. 2007)



Capa do livro "Os Homens Cantam a Nordeste", de António Cabral (Tomar: Nova Realidade, 1967)
Reprodução parcial de um quadro de Nuno Barreto



Capa do livro "Antologia dos Poemas Durienses", de António Cabral (Chaves: Edições Tartaruga, 1999)



Capa do LP "O Canto e as Armas", de Adriano Correia de Oliveira (Orfeu, 1969)
Concepção – J. F. Bogalho



Capa da caixa de 7CD "Adriano: Obra Completa", org. José Niza (Movieplay, 1994)
Fotografia – Inácio Ludgero
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Edição electrónica/digitalização gráfica – Olívia Braga



Capa do CD "A Noite dos Poetas", org. José Niza (Movieplay, 1994)
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Edição electrónica/digitalização gráfica – Olívia Braga



Capa do livro/CD "Menina dos Olhos Tristes: A Noite dos Poetas", vol. 7 da "Obra Completa de Adriano Correia de Oliveira", org. José Niza (Movieplay/Público, 2007)
Na fotografia, tirada em 1962, em Estocolmo, à direita de Adriano estão José Afonso e José Niza.

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Outros artigos com canções interpretadas por Adriano Correia de Oliveira:
Adriano Correia de Oliveira: um grande cantor silenciado na rádio pública
E Alegre se Fez Triste
Galeria da Música Portuguesa: Adriano Correia de Oliveira
Em memória de Adriano
Adriano Correia de Oliveira: "As Balas" (Manuel da Fonseca)
Adriano Correia de Oliveira: "Cantar de Emigração"
Em memória de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)
Celebrando Luís Pignatelli
Adriano Correia de Oliveira: "Exílio" (Manuel Alegre)

01 outubro 2022

Franz Schubert: "An die Musik" (Franz von Schober)


Franz Schubert retratado por Wilhelm August Rieder, em óleo sobre tela, no ano de 1875, a partir de um retrato em aguarela pintado em 1825.


A Franz Schubert, mau grado a sua curta vida (morreu antes de completar 32 anos de idade, vítima de sífilis), se devem muitas das mais belas e sedutoras melodias da História da Música. Uma delas é a do lied "An die Musik" ("À Música"), que o genial compositor austríaco concebeu, em Março de 1817, para um poema do seu compatriota e amigo Franz von Schober, e viu publicado em 1827 (ano anterior ao do decesso), pelo editor vienense Thaddäus Weigl.
Com este fascinante hino de gratidão à arte dos sons celebramos o presente Dia Mundial da Música pondo em destaque duas interpretações absolutamente superlativas, uma masculina e outra feminina: a primeira pelo barítono Dietrich Fischer-Dieskau (acompanhado por Gerald Moore) e a segunda pelo meio-soprano Christa Ludwig (com acompanhamento de Geoffrey Parsons). Os leitores/visitantes do blogue "A Nossa Rádio" que cultivam o lied germânico certamente conhecem estas gravações, mas para os outros talvez sejam revelações – revelações extraordinárias, esperamos. Se assim acontecer, congratulamo-nos por termos prestado serviço público cultural.

A propósito de serviço público, afigura-se-nos pertinente lembrar que uma das mais gritantes lacunas na actual grelha da Antena 2 é precisamente a ausência de um espaço reservado à canção de tradição erudita, desde a Idade Média até à actualidade. Sem prejuízo da criação de um programa semanal, a exemplo do memorável "O Texto e a Música" (de Yvette Centeno e Nuno Vieira de Almeida), devia haver uma rubrica diária na qual fosse apresentada uma canção, interpretada por um(a) cantor(a) de referência no género, antecedida do respectivo texto em português dito, consoante o caso, por um actor ou por uma actriz com provas dadas na difícil arte de dizer poesia (Luís Lima Barreto e Luísa Cruz, por exemplo). Só os lieder de Schubert, avulsos ou integrantes de ciclos ("A Bela Moleira", "A Dama do Lago", "Viagem de Inverno", "O Canto do Cisne"), que se cifram em mais de 600 espécimes, dariam para manter essa rubrica durante quase dois anos.
Fica apresentada a ideia, na esperança de que não caia em saco roto.



An die Musik



Poema: Franz von Schober [tradução livre em português >> abaixo]
Música (em Dó maior): Franz Schubert (Opus 88, No. 4 / D. 547)
Intérpretes: Dietrich Fischer-Dieskau* & Gerald Moore (in 12LP "Franz Schubert: Lieder, Volume I": LP 1, Deutsche Grammophon, 1970; 9CD "Franz Schubert: Lieder, Volume II": CD 1, Deutsche Grammophon, 1992)




Du holde Kunst, in wieviel grauen Stunden,
Wo mich des Lebens wilder Kreis umstrickt,
Hast du mein Herz zu warmer Lieb entzunden,
Hast mich in eine bessre Welt entrückt!
In eine bessre Welt entrückt!

Oft hat ein Seufzer, deiner Harf entflossen,
Ein süsser, heiliger Akkord von dir,
Den Himmel bessrer Zeiten mir erschlossen...
Du holde Kunst, ich danke dir dafür!
Du holde Kunst, ich danke dir dafür!


* Dietrich Fischer-Dieskau – voz (barítono)
Gerald Moore – piano
Produção – Otto Gerdes, Rainer Brock, Hans Ritter
Gravação – Wolfgang Werner, Helmut Najda (1969)
Misturas – Hans-Peter Schweigmann, Harald Baudis
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Dietrich_Fischer-Dieskau
https://www.publico.pt/2012/05/18/culturaipsilon/noticia/morreu-dietrich-fischerdieskau-um-dos-maiores-cantores-liricos--1546670
https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_lv-TN16h345l_YAnz6gWY4O7kHeZjciK8
https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_ny5Ei5LeMhb3Ti9W1WAU_CKJTqFOzJoxk
https://music.youtube.com/channel/UCblnNzaseoL7Djqrw6Rq8Ug



An die Musik



Poema: Franz von Schober [tradução livre em português >> abaixo]
Música (em Dó maior): Franz Schubert (Opus 88, No. 4 / D. 547)
Intérpretes: Christa Ludwig* & Geoffrey Parsons (in LP "Schubert Recital", Columbia/EMI, 1966; CD "Schubert: 15 Lieder", EMI Classics, 2004)




Du holde Kunst, in wieviel grauen Stunden,
Wo mich des Lebens wilder Kreis umstrickt,
Hast du mein Herz zu warmer Lieb entzunden,
Hast mich in eine bessre Welt entrückt!
In eine bessre Welt entrückt!

Oft hat ein Seufzer, deiner Harf entflossen,
Ein süsser, heiliger Akkord von dir,
Den Himmel bessrer Zeiten mir erschlossen...
Du holde Kunst, ich danke dir dafür!
Du holde Kunst, ich danke dir dafür!


* Christa Ludwig – voz (meio-soprano)
Geoffrey Parsons – piano
Produção – Suvi Raj Grubb
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Christa_Ludwig
https://www.tsf.pt/mundo/morreu-a-meio-soprano-alema-christa-ludwig-13611528.html
https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_mz-RabdiOBe8k-KEQcss6xeUrJ826Hi9I
https://music.youtube.com/channel/UC4aIzUktPpqbAxQFz06pdgg



À Música


Tu, bendita Arte, quantas vezes em horas sombrias,
Em que o rude grilhão da vida me envolvia,
Incendiaste o meu coração de inflamado amor,
Me transportaste para um mundo melhor!
Para um mundo melhor!

Muitas vezes um suspiro da tua harpa se evolou,
Um dócil e sagrado acorde de ti
O céu carregado me desanuviou...
A ti, bendita Arte, te agradeço por isso!
A ti, bendita Arte, te agradeço!



Franz von Schober retratado por Leopold Kupelwieser, em óleo sobre tela, 1822.



Partitura autógrafa do lied "An die Musik" (1817), de Franz Schubert.



Capa do duodécuplo LP "Franz Schubert: Lieder, Volume I", de Dietrich Fischer-Dieskau & Gerald Moore (Deutsche Grammophon, 1970).



Capa do LP "Schubert Recital", de Christa Ludwig & Geoffrey Parsons (Columbia/EMI, 1966).

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Outros artigos comemorativos do Dia Mundial da Música:
Fernando Tordo: "Bendita Música"
Pedro Barroso: "Música de Mar"
Sérgio Godinho: "Mão na Música"
José Barros e Navegante: "Músicos, Cravos e Rosas"
Luiza Todi por Carmen Dolores segundo Margarida Lisboa