27 março 2021

Dia Mundial do Teatro: mensagem de Carlos Celdrán (2019)


© Monik Molinet/La Pistola de Monik, 2017


INSTITUTO INTERNACIONAL DO TEATRO
DIA MUNDIAL DO TEATRO – 27 DE MARÇO DE 2019
MENSAGEM INTERNACIONAL DE CARLOS CELDRÁN

Antes do meu despertar no teatro, os meus mestres já lá estavam. Tinham construído as suas casas e as suas poéticas sobre os restos das suas próprias vidas. Muitos deles não são conhecidos ou sequer lembrados: trabalharam a partir do silêncio, a partir da humildade das suas salas de ensaio e das suas salas cheias de espectadores e, lentamente, após anos de trabalho e conquistas extraordinários, foram deixando o seu sítio e desapareceram. Quando percebi que o meu ofício e o meu destino pessoal seria seguir os seus passos, percebi também que herdava deles essa tradição apaixonada e única de viver o presente sem outra expectativa que a de alcançar a transparência de um momento irrepetível. Um momento de encontro com o outro no escuro de um teatro, sem mais protecção do que a verdade de um gesto, de uma palavra reveladora.
O meu país teatral são esses momentos de encontro com os espectadores que cada noite chegam à nossa sala, vindos dos mais variados recantos da minha cidade, para nos acompanhar e partilhar umas horas, uns minutos. Com esses momentos únicos construo a minha vida, deixo de ser eu, de sofrer por mim mesmo e renasço e percebo o significado do ofício de fazer teatro: viver instantes de pura verdade efémera, onde sabemos que o que dizemos e fazemos, ali, sob a luz da cena, é verdade e reflecte o mais profundo e o mais pessoal de nós. O meu país teatral, o meu e o dos meus actores, é um país tecido por estes momentos em que deixamos para trás as máscaras, a retórica, o medo de ser quem somos, e damos as mãos no escuro.
A tradição do teatro é horizontal. Não há quem possa afirmar que o teatro está nalgum centro do mundo, nalguma cidade ou edifício privilegiado. O teatro, como eu o recebi, estende-se por uma geografia invisível que mistura as vidas de quem o faz e o ofício teatral num mesmo gesto unificador. Todos os mestres de teatro morrem com os seus momentos de lucidez e de beleza irrepetíveis, todos desaparecem do mesmo modo sem deixar outra transcendência que os ampare e os torne ilustres. Os mestres de teatro sabem-no, não vale nenhum reconhecimento perante esta certeza que é a raiz do nosso trabalho: criar momentos de verdade, de ambiguidade, de força, de liberdade na maior das precariedades. Deles não sobreviverão senão dados ou registos dos seus trabalhos em vídeos e fotos que apenas recolherão uma pálida ideia daquilo que fizeram. Mas sempre faltará nesses registos a resposta silenciosa do público que percebe num instante que o que ali se passa não pode ser traduzido nem encontrado fora, que a verdade que ali se partilha é uma experiência de vida, por segundos mais diáfana que a própria vida.
Quando percebi que o teatro é um país em si mesmo, um grande território onde cabe o mundo inteiro, nasceu em mim uma decisão que é também uma liberdade: não tens de afastar-te nem sair do lugar onde estás, não tens de correr nem deslocares-te. Aí onde existes está o público. Aí estão os companheiros que precisas a teu lado. Ali, fora da tua casa, tens toda a realidade diária, opaca e impenetrável. Trabalhas então a partir da imobilidade aparente para construir a maior das viagens, para repetir a Odisseia, a viagem dos argonautas: és um viajante imóvel que não pára de acelerar a densidade e a rigidez do teu mundo real. A tua viagem é um instante, rumo ao momento, em direcção ao encontro irrepetível perante os teus semelhantes. A tua viagem é até eles, até ao seu coração, até à sua subjectividade. Viajas por dentro deles, das suas emoções, das suas recordações que despertas e agitas. A tua viagem é vertiginosa e ninguém pode medir ou contar isso. Também ninguém o poderá reconhecer na sua justa medida, é uma viagem através do imaginário da tua gente, uma semente que germina na mais remota das terras: a consciência cívica, ética e humana dos teus espectadores. Por tudo isto, não me mexo, continuo em minha casa, junto dos meus próximos, em aparente quietude, trabalhando dia e noite, porque tenho o segredo da velocidade.

                 CARLOS CELDRÁN (trad. Tiago Fernandes / Teatro
                          do Noroeste - Centro Dramático de Viana)


Parafraseando o distinto encenador, dramaturgo e professor cubano Carlos Celdrán, o teatro é uma viagem dos autores/encenadores/actores através do imaginário da sua gente, uma semente que germina na mais remota das terras: a consciência cívica, ética e humana dos seus espectadores/ouvintes.
Devido à pandemia de COVID-19, as salas em Portugal (e em muitos outros países) viram-se na contingência de fechar portas durante meses a fio, pelo que deixou de ser possível a experiência única e irrepetível de assistir a espectáculos de teatro ao vivo. Por parte daqueles, claro está, que têm a sorte de viver em localidades ou próximo de localidades onde há companhias residentes, pois os espectáculos itinerantes, que no passado eram frequentes, praticamente deixaram de se realizar. Na verdade, uma parte muito significativa da população portuguesa só pode fruir teatro se lhe chegar pelos meios de difusão à distância – rádio, televisão, internet. Muitas companhias têm usado a internet para disponibilizar vídeos de espectáculos que levaram à cena, havendo mesmo actuações em directo, o que saudamos. A televisão, sobretudo via RTP-2 e RTP-Memória, também transmitiu, durante o último ano, algumas peças. A maior miséria tem-se verificado na rádio: das três antenas nacionais da estação pública, apenas a Antena 2 tem emitido, de vez em quando, no programa "Ecos da Ribalta" [>> RTP-Play], pela mão de João Pereira Bastos, uma peça resgatada do arquivo histórico, surgindo também, a intervalos de meses, no espaço "Teatro sem Fios" [>> RTP-Play], uma nova produçãozita de teatro. E escrevemos "produçãozita de teatro" porque aquilo que geralmente aparece em antena está longe de ser cativante para quem quer que seja, causando irreprimível rejeição aos ouvidos que se habituaram ao bom e verdadeiro teatro radiofónico que ao longo de décadas, até 2005, ano em que o saudoso Eduardo Street se aposentou, era uma marca de excelência do serviço público de radiodifusão. Umas boas centenas dessas memoráveis produções (não todas, infelizmente) foram guardadas no arquivo histórico da RDP, tendo-nos sido grato constatar que vem sendo disponibilizadas na plataforma RTP-Arquivos. O que não se consegue compreender é a não existência em antena de um espaço regular, que podia muito bem ser semanal, consagrado justamente à divulgação desse precioso acervo de teatro. Tal lacuna, sendo grave em tempos normais, por assim dizer, revela-se ainda mais clamorosa numa situação de confinamento como a que vivemos.
A RTP-Memória, embora sem a frequência desejável, tem resgatado produções televisivas de teatro. Não havendo um canal de rádio hertziano de cobertura nacional especificamente reservado ao arquivo radiofónico, compete aos três canais existentes, em especial a Antena 2, atendendo ao seu perfil marcadamente cultural, assegurar esse serviço: pela valorização do património da rádio e pela promoção cultural dos ouvintes, mormente daqueles que moram em zonas onde não existem companhias de teatro e igualmente – muito importante! – dos que, independentemente do ponto do país onde residam, nasceram sem o sentido da visão ou perderam-no mais tarde! O teatro radiofónico é a única modalidade da arte de Talma que os cegos e amblíopes podem fruir plenamente. Como se explica então que estes cidadãos, a quem a lei portuguesa reconhece direitos iguais aos dos que vêem, sejam não esquecidos e desconsiderados pela rádio para a qual também contribuem financeiramente?

_____________________________________

Artigos relacionados:
Eduardo Street: morreu o grande artesão do teatro radiofónico
"Teatro Imaginário": ciclo Eduardo Street na Antena 2
Porquê o fim da reposição do "Teatro Imaginário"?
Aquilino Ribeiro: cinquentenário da morte
Teatro radiofónico: criminosamente ausente do serviço público
Teatro radiofónico: criminosamente ausente do serviço público (II)
É preciso resgatar o teatro radiofónico
"Ecos da Ribalta": homenagem a Carmen Dolores
Dia Mundial do Teatro: mensagem de João de Freitas Branco (1981)
Dia Mundial do Teatro: mensagem de Edward Albee (1993)
Bernardo Santareno: centenário do nascimento

21 março 2021

Mário Dionísio: "Solidariedade", por Carmen Dolores



Mário Dionísio, quando, no período 1936-38, escreveu o poema "Solidariedade", teria, presumivelmente, em mente os humilhados e ofendidos pelo regime autocrático de Salazar convidando-os a esquecerem as suas diferenças de filiação ideológica para, unidos e concertados, terem mais probabilidades de êxito na luta visando o desejado derrube da ditadura.
O que talvez Mário Dionísio estivesse longe de imaginar é que este seu poema focado na desditosa realidade político-social do seu país nos primórdios do Estado Novo pudesse, mais de oito décadas decorridas, ter uma leitura à escala mundial. Em boa verdade, o exército de humilhados e ofendidos não pára de aumentar em todo o mundo, inclusive nos países (ditos) desenvolvidos e formalmente democráticos, com a crescente proletarização da classe média e a concentração da riqueza e dos meios de produção em cada vez menos mãos (leia-se nas dos donos de gigantescas empresas multinacionais). E se a luta contra esta opressão global, para ser bem-sucedida, precisa da união de todos os explorados e aviltados na sua dignidade de seres humanos, uma autêntica espada de Dâmocles pende hoje, e cada vez mais assim será, sobre a Humanidade. E essa é a galopante degradação das condições indispensáveis à vida na Terra: pelas alterações climáticas causadas pela combustão de substâncias carbónicas, pela destruição dos habitats naturais e a consequente extinção massiva das espécies vegetais e animais que deles dependem, pela depauperação e desertificação dos solos devido à exploração intensiva em regime de monocultura – em suma, pelo esgotamento dos recursos naturais (vegetais, animais e minerais) e exaurimento das condições ambientais necessárias à vida do Homem. Será a própria espécie humana que, a prazo, se extinguirá, em consequência da sua acção inconsciente, irracional e tresloucada, sendo previsível que nesse processo as guerras entre países ou blocos de países ajudem à desgraça. Mas o planeta Terra, esse, embora extremamente inóspito e inabitável para o homo sapiens e a maioria das espécies que conhecemos, continuará a gravitar à volta do Sol e talvez algumas formas de vida logrem sobreviver à hecatombe ecológica (é de crer que, pelo menos, os seres vivos que habitam os fundos marinhos junto às chaminés hidrotermais escapem) podendo iniciar-se, ainda que muito lentamente, novos processos evolutivos tendentes ao gradual aparecimento de uma nova biodiversidade, da qual poderá emergir (ou não) uma espécie superiormente inteligente, que talvez venha a provocar outro cataclismo ecológico planetário, e assim sucessivamente até que finalmente, dentro de cerca de 4,5 mil milhões de anos, o Sol se transforme numa gigante-vermelha e a vida na Terra se torne de todo inviável.
Poderá a Humanidade evitar a sua precoce extinção? Confessamos o nosso cepticismo a esse respeito. Uma coisa nos parece certa: quanto mais tempo a espécie humana demorar a arrepiar caminho mais prematuro será o seu fim.
O poema de Mário Dionísio, que aqui apresentamos primorosamente recitado por Carmen Dolores, afirma-se, nesse contexto, como um lúcido apelo à conjugação de esforços para se retardar a marcha rumo ao abismo.

E como esteve a rádio pública relativamente ao presente Dia Mundial da Poesia?
Começamos por enaltecer Luís Caetano por ter preenchido, integralmente, a edição de ontem do seu programa "A Força das Coisas" [>> RTP-Play] com poemas, ditos por quem os não escreveu, intercalados com trechos musicais eruditos ou menos eruditos, mas sempre de boa qualidade. Um louvor para Luís Caetano, a quem também voltamos a manifestar o nosso penhorado agradecimento por continuar a manter, com zelo e profissionalismo, as rubricas "A Vida Breve" [>> RTP-Play] e "O Som que os Versos Fazem ao Abrir" [>> RTP-Play]. Também na Antena 2, registamos, com apreço, a emissão de hoje do programa "Musica Aeterna" [>> RTP-Play], na qual o autor, João Chambers, incluiu um belo punhado de textos – em prosa e em verso – alusivos, directa ou indirectamente, à arte poética (de Ovídio, Homero, Pierre de Ronsard, Aristóteles, Herbert Read, Goethe, Voltaire, Heraclito de Éfeso, Camões e Diderot) lidos por Luís Caetano. Ao longo do dia, a Antena 2 bem podia ter transmitido, entre cada programa de autor, um poema recitado. Era de bom-tom e nem sequer dava muito trabalho. Bastaria fazer uso do rico manancial de poesia que está a apodrecer no arquivo histórico, parte significativa do qual na voz da emérita e saudosa Carmen Dolores. Uma falha que só se explica pela inércia da direcção de programas!
E que fizeram as Antena 1 e 3? Andámos a fazer 'zapping' e nada nos constou. Como é possível tão condenável alheamento? Pura negligência ou simples tibieza cultural? Fica-nos a ideia de que é o misto de ambas. Rui Pêgo e Nuno Reis mostram não ser apreciadores de poesia mas, ao menos, podiam ter o sentido de responsabilidade e a clarividência de perceber que os canais cujas direcções de programação lhes foram confiadas não existem para afagar os seus boçais umbigos: existem e são mantidos pelos pagantes da contribuição do audiovisual para prestar serviço público, o qual não pode (não deve) jamais deixar de contemplar a divulgação de uma arte tão importante e necessária como é a poesia. Vergonhoso!



SOLIDARIEDADE



Poema de Mário Dionísio (in "Poemas", 1936-38, secção "Com todos os homens nas estradas do mundo", Col. Novo Cancioneiro, N.º 2, Coimbra, 1941, reed. Lisboa: Althum/Museu do Neo-Realismo, 2010 – p. 42; "Poesia Incompleta", 2.ª edição, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1982, reimp. 2009 – p. 70; "Poesia Completa", Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2016 – p. 49)
Recitado por Carmen Dolores* (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003)


Vamos, dêem as mãos.

Porquê esse ar de eterna desconfiança?
esse medo? essa raiva?
Porquê essa imensa barreira
entre o Eu e o Nós na natural conjugação do verbo ser?

Vamos, dêem as mãos.

Para quê esses bons-dias, boas-noites,
se é um grunhido apenas e não uma saudação?
Para quê esse sorriso
se é um simples contrair de pele e nada mais?

Vamos, dêem as mãos.

Já que a nossa amargura é a mesma amargura,
já que miséria para nós tem as mesmas sete letras,
já que o sangrar de nossos corpos é o vergão da mesma chicotada,
fiquemos juntos,
sejamos juntos.
Porquê esse ar de eterna desconfiança?
esse medo? essa raiva?

Vamos, dêem as mãos.


* Carmen Dolores – voz
Produção – Dito e Feito
Gravado nos Estúdios Goya, Lisboa, em Dezembro de 2002



Capa do livro "Poemas", de Mário Dionísio (Col. Novo Cancioneiro, N.º 2, Coimbra, 1941) [edição fac-similada: Althum/Museu do Neo-Realismo, 2010]
Desenho – Manuel Ribeiro de Pavia



Capa da 2.ª edição de "Poesia Incompleta", de Mário Dionísio (Col. Obras de Mário Dionísio, N.º 1, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1982)



Capa do livro "Poesia Completa", de Mário Dionísio (Col. Plural, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2016)
Grafismo – André Letria



Capa do CD "Poemas da Minha Vida", de Carmen Dolores (Dito e Feito, 2003)
Design gráfico – João Nuno Represas

_____________________________________

Outros artigos com poesia recitada por Carmen Dolores:
Galeria da Música Portuguesa: Carlos Paredes
Sebastião da Gama: "Poesia", por Carmen Dolores
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen

_____________________________________

Outros artigos com poesia dita/recitada:
Mário Viegas: 10 anos de saudade
Miguel Torga: "Natal"
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Arte e poesia
Poesia na rádio (II)
Jorge de Sena: "Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya", por Mário Viegas
João Villaret: centenário do nascimento
Camões recitado e cantado
Ser Poeta
Pedro Barroso: "Palavras Mal Ditas" ou "Palavras Malditas"?
Em memória de Guilherme de Melo (1931-2013)
Celebrando Natália Correia
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
Celebrando Vinicius de Moraes
Fernando Pessoa por João Villaret
Miguel Torga: "Ode à Poesia", por João Villaret
Celebrando Agostinho da Silva
Camões recitado e cantado (II)
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Al-Mu'tamid: "Evocação de Silves"
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
Celebrando Eugénio de Andrade
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Dois Excertos de Odes", por Mário Viegas
Cesário Verde: "De Tarde"
Cesário Verde por Mário Viegas
António Gedeão: "Dia de Natal", por Afonso Dias
Camilo Pessanha: "Singra o navio", por Mário Viegas
Miguel Torga: "Flor da Liberdade"
Camões recitado e cantado (III)
Sebastião da Gama: "Louvor da Poesia", por José Nobre
"Ecos da Ribalta": homenagem a Carmen Dolores
Natália Correia: "Rascunho de uma Epístola", por Ilda Feteira
Camões recitado e cantado (IV)
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Aniversário", por Luís Lima Barreto
Miguel Torga: "Natividade"
António Botto: "Homem que vens de humanas desventuras"
Fernando Namora: centenário do nascimento
Camões recitado e cantado (V)
Miguel Torga: "A um Negrilho"
Camões recitado e cantado (VI)

20 março 2021

Francisco Filipe Martins: "Canção da Primavera"


Eugen von Blaas, "Mädchen in fliederfarbenem Kleid mit Blumenstrauß und Blumenkorb" ("Rapariga de vestido lilás com um ramalhete e uma cesta de flores"), 1911, óleo sobre painel de madeira, 80,5 x 44,5 cm, Colecção particular


A "CANÇÃO DA PRIMAVERA" (1)

Por: Rui Pato



Eu conheci o Francisco Filipe Martins no meu primeiro ano do Liceu D. João III, tínhamos nós 12 anos. Nessa altura, o pai do Francisco tinha mandado fazer, para ele, uma guitarra portuguesa ao luthier Grácio, tendo o António Portugal, amigo da família, servido de intermediário e prometido que depois ensinaria o Francisco a tocar. E assim foi. Veio a guitarra, e o Francisco começou a aprender com o António Portugal. Eu, amigo e frequentador da casa do Chico, entusiasmei-me e decidi pedir a um outro amigo nosso, o Jorge Tito Mackay, que me ensinasse uns tons de viola. E aprendi o suficiente para estar nas lições que o Portugal dava ao Chico, acompanhando-o à viola. E, passado um ou dois anos, nós mais os irmãos Borralho e dois cantores, todos alunos do Liceu D. João III, formámos um grupo de fados do liceu que actuava em saraus, e o Portugal, por vezes, arranjava-nos actuações. E assim aconteceu, aí até ao fim do liceu e ainda nos primeiros anos da faculdade (fomos os dois para Medicina). Mas, com o curso, com a minha participação nos discos do José Afonso, eu e o Francisco fomos deixando de tocar juntos; ainda toquei durante uns anos com o Portugal, mas o Chico praticamente deixou de tocar.
Quando, nos anos 80, era ele director do serviço de Neurorradiologia e eu director do serviço de Pneumologia, fui desafiado pelo Francisco Martins para, uma vez por semana, nos reunirmos em casa dele e recomeçar a tocar. E qual a música que foi por nós a primeira a ser ensaiada? Precisamente a "Canção da Primavera", que ele tinha feito no piano da casa dele nos anos 60 e agora tinha transcrito para a guitarra. E ensaiámos esta, ele entretanto fez mais quatro guitarradas novas, e... decidimos contactar uma editora para fazer um LP com as cinco guitarradas do Chico, e no lado B com cinco guitarradas do Artur Paredes. Passados seis meses de ensaios semanais – rigorosos, porque o Francisco Martins era um perfeccionista –, rumámos a Lisboa e gravámos, para a Philips, o LP que teve como título "Canção da Primavera". Depois disso ainda fizemos alguns espectáculos... entretanto, o Francisco começou a adoecer e passou quatro anos sem mobilidade até que faleceu. Mas quando alguém lembra o Francisco Filipe Martins é sempre a "primavera do Chico" que nos vem à memória. Uma perda irreparável, pois foi dos mais brilhantes guitarristas que conheci.

(1) texto gentilmente cedido pelo músico para este artigo.


Depois da "Balada de Coimbra", de José Elyseu, no arranjo de Artur Paredes (1927) e interpretação de António Portugal (1957), e da "Canção Verdes Anos" (1967), de Carlos Paredes, a "Canção da Primavera" (1986), de Francisco Filipe Martins, é, provavelmente, a peça instrumental mais conhecida e reconhecível do universo musical de matriz coimbrã. E isso explica-se facilmente: a beleza acutilante da melodia em ritornello e a contagiante jovialidade que a impregna não deixam indiferentes quaisquer ouvidos com sensibilidade, mínima que seja, para a arte dos sons; e depois o idioma tão idiossincraticamente coimbrão que a guitarra e a magistral execução de Francisco Filipe Martins conferem à peça só pode remeter quem a ouve para a cidade rainha do Mondego. É pois com esta preciosíssima pérola da música de Coimbra, de Portugal e do Mundo que damos as boas-vindas à estação do renascimento, o da Natureza (no hemisfério norte, claro está) e também – assim esperamos – o da Humanidade, que tão martirizada foi durante o Inverno ora findo pelo recrudescimento da pandemia de COVID-19.

Francisco Filipe Martins, inspirado compositor e exímio executante de guitarra de Coimbra, é, hoje em dia, virtualmente impossível de se ouvir na Antena 1, a tal que tem a obrigação, estipulada na lei, de divulgar cabalmente o nosso património musical mais identitário e qualificado. Música de Francisco Filipe Martins não tem lugar na 'playlist', e mesmo admitindo que, de tempos a tempos, um ou outro dos seus trechos figure, pela mão de Edgar Canelas, no programa "Alma Lusa" (emitido depois do noticiário da meia-noite de domingo até às 2h:00 da madrugada) [>> RTP-Play], a divulgação radiofónica da sua obra peca por ser muitíssimo insuficiente, dado o carácter bastante esporádico de aparição em antena agravado pelo horário esconso daquele espaço, o único – convém lembrar – que dá guarida, de vez em quando, a peças instrumentais e/ou canção de Coimbra. Importa, portanto, que, sem prejuízo da inclusão de música coimbrã (instrumental e cantada) na 'playlist' da Antena 1, seja criado na grelha um espaço, em horário digno, especialmente consagrado à música da Lusa Atenas, seguindo o bom modelo do histórico programa "Do Choupal até à Lapa", que o emérito realizador Sansão Coelho manteve, nos anos 80 e 90, a partir dos estúdios da RDP-Centro para a rede nacional de emissores do primeiro canal da RDP.



Canção da Primavera



Música: Francisco Filipe Martins
Intérprete: Francisco Filipe Martins* (in LP "Canção da Primavera: Música para Guitarra de Coimbra", Philips/Poygram, 1986; CD "Primavera 2: Música para Guitarra de Coimbra", Philips/Poygram, 1998; 2CD "O Melhor de 2: Francisco Filipe Martins / Jorge Fontes": CD "Francisco Filipe Martins", Universal, 2001; CD "O Melhor do Fado de Coimbra", Universal, 2002)




(instrumental)


* Francisco Filipe Martins – guitarra de Coimbra
Rui Pato – viola
Celso de Carvalho – violoncelo

Arranjos – Francisco Filipe Martins
Produção – António Avelar de Pinho
Gravado no Estúdio Namouche, Lisboa
Técnico de som – Moreno Pinto
URL: http://guitarradecoimbra4.blogspot.com/2016/07/evocacao-de-francisco-filipe-martins.html
http://guitarradecoimbra.blogspot.com/2005/04/francisco-filipe-martins-p_111246023300739811.html
https://www.facebook.com/Grupo-de-Amigos-de-FRANCISCO-FILIPE-MARTINS-176492412438116/
https://www.youtube.com/channel/UCkoXVk6bml5NyUnkxM1z5vw



Capa do LP "Canção da Primavera: Música para Guitarra de Coimbra", de Francisco Filipe Martins (Philips/Poygram, 1986)
Concepção – Jorge Colombo, segundo ideia de António Avelar de Pinho



Capa do CD "Primavera 2: Música para Guitarra de Coimbra", de Francisco Filipe Martins (Philips/Poygram, 1998)
Design gráfico e fotografia – Jorge Nogueira

_______________________________________

Outros artigos com canções alusivas à Primavera:
Cantos d'Aurora: "Primavera"
Roda Pé: "Primavera Alentejana"
Grupo Coral "Os Ceifeiros de Cuba": "No Tempo da Primavera"
Amália Rodrigues: "Primavera" (David Mourão-Ferreira)

_______________________________________

Outros artigos com música de matriz coimbrã:
Adriano Correia de Oliveira: um grande cantor silenciado na rádio pública
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Galeria da Música Portuguesa: Adriano Correia de Oliveira
Galeria da Música Portuguesa: Carlos Paredes
Galeria da Música Portuguesa: Luiz Goes
Em memória de Adriano
Luiz Goes: "É Preciso Acreditar"
Em memória de Luiz Goes (1933-2012)
Adriano Correia de Oliveira: "Cantar de Emigração"
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Celebrando Carlos Paredes
Celebrando Edmundo de Bettencourt
Em memória de Fernando Machado Soares (1930-2014)
Celebrando Eugénio de Andrade
Camões recitado e cantado (III)
José Afonso: "Vejam Bem"
Jorge Cravo: "Outono à Beira-Rio"

[reeditado em 24 Mar. 2021]

08 março 2021

Teresa Silva Carvalho: "Mulher da Erva"


© Luís Lobo Henriques


MULHER DA ERVA
Elfiede Engelmayer dá a explicação deste texto: trata-se de uma velha mulher do Alentejo que ganhava a vida com a venda de erva. José Afonso conheceu-a quando ela já tinha mais de setenta anos. Todos os dias, andava pelas ruas e estradas com uma cesta de erva cuja venda era o seu sustento e com que se alimentava o gado. Esta "profissão" desapareceu com a modernização da agricultura. A canção relata o encontro entre o cantor e a mulher. Na segunda estrofe, ele vê-a a subir a estrada, vindo na sua direcção. Na terceira, eles trocam algumas palavras e depois ela prossegue o seu caminho sem ouvir o comentário do cantor. Na primeira estrofe, a "vela condenada pela onda" simboliza que ela não tem, e nunca teve, futuro.

Oona Soenario (in "A Canção de Intervenção Portuguesa: Contribuição para um estudo e tradução de textos", Universidade de Antuérpia, 1994-1995) [cf. http://www.aja.pt/verso-dos-versos/]


Uma velha camponesa alentejana acartando erva, provavelmente à cabeça, qual besta de carga, para venda e assim prover ao seu mísero sustento não podia deixar de suscitar a compaixão do humanista que era José Afonso. E aquela vida sem futuro, de árdua sobrevivência, sensibilizou-o de tal maneira que se sentiu impelido a conceber a canção "Mulher da Erva", cuja melodia é uma das mais belas (e foram muitas) que saíram do génio criativo do autor de "Cantigas do Maio", álbum no qual foi publicada.
Sendo verdade que já não existem vendedoras ambulantes de erva, ainda é possível ver, em aldeias e lugarejos da Beira Interior e de Trás-os-Montes, mulheres carregando, à cabeça ou às costas, feixes de pasto para as suas cabras e ovelhas. A essas e a todas as outras mulheres que, no campo ou na cidade, executam trabalhos não qualificados, muitas vezes degradantes, pelos quais auferem um rendimento tão magro que não lhes permite mais que a simples sobrevivência, dia após dia, rendemos a nossa solidária homenagem pondo em destaque, neste Dia Internacional da Mulher, a extraordinária canção "Mulher da Erva". Não a original, que é razoavelmente conhecida [>> YouTube], mas uma soberba versão incompreensivelmente esquecida: a cantada por Teresa Silva Carvalho, com introdução de Vitorino, que faz parte do álbum "Ó Rama, Ó Que Linda Rama", editado em 1977. Tendo ganhado notoriedade como excelente intérprete de fado, Teresa Silva Carvalho, que foi também compositora de mérito (bastará referir os clássicos "Amar", sobre um soneto de Florbela Espanca, e "Barca Bela", sobre um poema de Almeida Garrett), atingiu o apogeu da sua arte canora precisamente no álbum "Ó Rama, Ó Que Linda Rama", que continua a ser um dos mais cativantes e aprazíveis de se ouvir de toda a História da Música Popular Portuguesa. Também graças – é justo reconhecê-lo – à magistral produção de Vitorino Salomé que convidou músicos de primeiríssima água, dos quais nos permitimos realçar Júlio Pereira, Pedro Caldeira Cabral e Catarina Latino, a qual, com a flauta barroca e a cornamusa, confere ao repertório um toque de raro encanto.

Se Portugal fosse um país normal e as rádios de cobertura nacional tivessem nas respectivas direcções de programas pessoas cultas e dotadas de sensibilidade para apreciar e estimar o nosso património musical/discográfico mais autêntico e esteticamente válido, faixas do álbum "Ó Rama, Ó Que Linda Rama" teriam presença garantida nas 'playlists'. A realidade, porém, é bem diferente e nem sequer lhe escapa a rádio que tem a obrigação legal de divulgar a melhor música portuguesa, a Antena 1, que há largos se compraz a promover a imundície sonora (chamar-lhe música seria excessiva bondade). Já na Antena 2, onde se esperaria menos escutar Teresa Silva Carvalho, foi possível ouvi-la, na edição de sábado passado do programa "Café Plaza" [>> RTP-Play], a cantar a sua "Mulher da Erva" (a primeira, pois a artista voltaria a gravar a canção para o álbum "Canções Gratas", de 1994). Aconteceu no âmbito de uma oportuna sequência de canções e poemas recitados dedicados à mulher que o realizador Germano Campos teve o louvável cuidado de fazer, em jeito de celebração antecipada do Dia Internacional da Mulher, lembrando aos ouvintes – e bem – que todos os dias do ano deviam ser dias da mulher, de tal sorte – acrescentamos nós – que não fosse necessário haver uma data especial para alertar as consciências de que metade da Humanidade ainda é objecto de discriminação pela outra metade.
Ainda na Antena 2, mas num universo musical bem distinto, a nova música antiga europeia, há que enaltecer a iniciativa de João Chambers em devotar a edição de ontem do seu programa "Musica Aeterna" [>> RTP-Play] à condição da Mulher na Idade Média, a sua situação social perante a Igreja e o pensamento teológico vigente, em textos intercalados com canto gregoriano feminino composto pela abadessa alemã Hildegard von Bingen, cognominada 'A Sibila do Reno'.
Nesta data precisa, seria de bom-tom que a mesma Antena 2 preenchesse os espaços de continuidade (fora dos programas de autor) só com repertório composto e/ou interpretado por mulheres. Demo-nos conta de que foram transmitidas interpretações por mulheres (por Maria João Pires, de manhã; pelas cantoras Emőke Baráth e Jodie Devos, e pela flautista Sharon Bezaly, no turno da tarde) mas as peças tocadas por homens foram em muito maior número. E de mulheres compositoras apenas nos constaram Barbara Strozzi (trazida pela mão de Mafalda Serrano), Irene Poldowski, Fanny Mendelssohn e Cécile Chaminade (todas dadas a ouvir por João Pedro). Estas passagens avulsas denotam que não houve empenho da parte da direcção da Antena 2 na celebração do Dia Internacional da Mulher. E era extremamente fácil preencher um dia inteiro (muitos dias inteiros, aliás) exclusivamente com obras ou excertos de obras compostas ou interpretadas por mulheres, tão vasta, rica e diversificada é a discografia nesse capítulo. Ficar de braços cruzados sempre dá menos trabalho do que fazer o que se devia, não é verdade?
E o que fizeram os outros dois canais nacionais da rádio pública? A Antena 3, cumprindo o que vinha sendo anunciado há dias, tem passado somente canções interpretadas por mulheres. A Antena 1, pelo que nos tem sido dado perceber pelas fugazes incursões que lá temos feito (permanecer lá seria uma tortura), também vem transmitindo apenas intérpretes femininas. À parte a mediana ou mesmo baixa qualidade dos espécimes escolhidos, em ambos os canais têm sido passadas muitas canções estrangeiras (anglo-saxónicas, bem entendido). Não havia necessidade! Em Portugal há repertório bastante e de alta qualidade cantado por artistas femininas e estas, tendo em conta a situação bastante difícil (verdadeiramente crítica, nalguns casos) a que chegaram por causa da pandemia, mereciam que o serviço público de rádio fizesse jus à missão para a qual foi criado e as acarinhasse convenientemente dando-lhes o máximo apoio possível.



Mulher da Erva



Letra e música: José Afonso
Intérprete: Teresa Silva Carvalho* / introdução por Vitorino (in LP "Ó Rama, Ó Que Linda Rama", Orfeu, 1977, reed. Movieplay, 1994)




Velha da terra morena
Pensa que é já lua cheia;
Vela que a onda condena
Feita em pedaços na areia.

[instrumental]

Saia rota subindo a estrada,
Inda a noite rompendo vem,
A mulher pega na braçada
De erva fresca, supremo bem.

Canta a rola numa ramada,
Pela estrada vai a mulher:
"Meu senhor, nesta caminhada
Nem m'alembra do amanhecer!"

Há quem viva sem dar por nada,
Há quem morra sem tal saber...
Velha ardida, velha queimada,
Vende a fruta se queres comer.

À noitinha, a mulher alcança
Quem lhe compra do seu manjar,
Para dar à cabrinha mansa,
Erva fresca da cor do mar.

[instrumental]

Na calçada uma mancha negra
Cobriu tudo e ali ficou:
Anda, velha da saia preta,
Flor que ao vento no chão tombou!

No Inverno terás fartura
Da erva fora supremo bem...
Canta, rola, tua amargura!
Manhã moça nunca mais vem...


* [Créditos gerais do disco:]
Teresa Silva Carvalho – voz
Júlio Pereira – violas acústica e clássica, bandolim e percussões
Pedro Caldeira Cabral – guitarra portuguesa e rabeca
Catarina Latino – flauta barroca e cornamusa
Zé Luiz Iglésias – viola clássica
Pintinhas – percussões
Hélder Reis – acordeão
Vitorino – voz masculina
Grupo Coral de Cantadores do Redondo
Produção e direcção musical – Vitorino
Gravado nos Estúdios Arnaldo Trindade, Lisboa
Técnicos de som – Manuel Cunha e Moreno Pinto
URL: https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/teresa-silva-carvalho



Capa do LP "Ó Rama, Ó Que Linda Rama", de Teresa Silva Carvalho (Orfeu, 1977)
Desenho e execução – Jean Laffront

________________________________

Outros artigos de homenagem à mulher:
João Lóio: "Cicatriz de Ser Mulher"
Carlos Mendes: "Calçada de Carriche" (António Gedeão)

________________________________

Outros artigos com repertório de Teresa Silva Carvalho:
A vitória do azeite
Celebrando Luís Pignatelli