02 agosto 2019
José Afonso: "Vejam Bem"
Fotograma do filme "O Anúncio" (1966), realizado e protagonizado por José Cardoso.
«Música do filme "O Anúncio", a apresentar no Festival de Cinema Amador pelo Cineclube da Beira [Moçambique]. O filme foi projectado, em sessão privada, ainda incompleto e sem diálogos. Um homem procura emprego num escritório, dirige-se ao gerente de uma firma conceituada, a capatazes e mestres-de-obras. Em vão! Privado de fundos, vê-se obrigado a dormir ao relento e a roubar para comer. Na retrete de um restaurante, único lugar onde não é visto, devora apressadamente dois ovos que metera no bolso, aproveitando-se da algazarra geral. É à luz deste contexto dramático que poderão entender-se a linha melódica e o texto rimado apensos às sequências julgadas mais expressivas.»
Assim escreveu José Afonso, a propósito da sua canção "Vejam Bem", em nota publicada no livro "Cantares José Afonso", organizado por Manuel Simões e publicado, em 1966, pela editora Nova Realidade, de Tomar.
Naquela curta-metragem de ficção, o realizador, o luso-moçambicano José Cardoso (natural de Figueira de Castelo Rodrigo), resolveu ser ele mesmo a encarnar o protagonista, um homem desempregado e sem meios para prover ao seu sustento, o que suscitou alguma incompreensão, atendendo à situação de muitos negros, reduzidos que estavam à condição de quase escravatura (muito trabalho mas exígua remuneração). Tal opção, segundo alegou posteriormente o cineasta, tinha a intenção de não confinar a acção à realidade colonial e conferir à obra uma leitura mais universal.
E se a pobreza era, em meados dos anos 60, volvidas que estavam duas décadas sobre o fim da Segunda Guerra Mundial, um flagelo que grassava em muitas regiões do mundo, a verdade é que não desapareceu, com o decorrer do tempo, apesar do incremento da segurança social. A pobreza atinge hoje pessoas que, embora empregadas, vivem (sobrevivem) com carências várias, inclusive alimentares (tome-se como exemplo as muitas crianças que em Portugal vão para a escola em jejum porque os pais não possuem recursos para lhes dar o pequeno-almoço). E estamos no chamado mundo desenvolvido. No terceiro mundo, mormente na África Subsariana e na América Latina, a falta de condições de vida associada à explosão demográfica, ao esgotamento dos solos, à corrupção e às guerras não deixa aos naturais na flor da idade outra alternativa que não seja o êxodo para os países industrializados do Norte (Europa e Estados Unidos da América). Mas os países ricos, apesar de necessitarem de mão-de-obra jovem, levantam barreiras à sua entrada e assistem indiferentes à sua sorte que, no caso dos migrantes que tentam atravessar o Mediterrâneo, tem frequentemente como desfecho a própria morte. Neste contexto, a canção "Vejam Bem" adquire um significado ainda mais dramático, pois a palavra "dorme", nos versos «Quem lá vem / dorme à noite ao relento n'areia / dorme à noite ao relento no mar», pode ser lida como "morre".
Pela mensagem de agudíssima actualidade, pela maravilhosa melodia, pela tocante interpretação vocal de José Afonso e pelo magistral acompanhamento à viola de Rui Pato, "Vejam Bem" (versão gravada para o álbum "Cantares do Andarilho”, de 1968) é uma pérola superlativa da música portuguesa e mundial. Razão bastante para a pôr-mos em evidência no dia em que o nosso cantautor maior completaria, se fosse vivo, 90 anos de idade.
A Antena 1 vem passando ao longo do dia, ao ritmo de uma por hora, algumas canções de José Afonso em voz própria, o que é de saudar. Importa, no entanto, ter presente que nos demais dias do ano é virtualmente impossível de ouvir o quer que seja da discografia do artista durante os larguíssimos períodos em que reina a 'playlist'.
Vejam Bem
Letra e música: José Afonso
Intérprete: José Afonso* (in LP "Cantares do Andarilho", Orfeu, 1968, 1970, reed. Movieplay, 1987, 1996, Art'Orfeu Media, 2012)
[instrumental]
Vejam bem
que não há só gaivotas em terra
quando um homem se põe a pensar
quando um homem se põe a pensar
Quem lá vem
dorme à noite ao relento n'areia
dorme à noite ao relento no mar
dorme à noite ao relento no mar
E se houver
uma praça de gente madura
e uma estátua
e uma estátua de febre a arder
Anda alguém
pela noite de breu à procura
e não há quem lhe queira valer
e não há quem lhe queira valer
[instrumental]
Vejam bem
daquele homem a fraca figura
desbravando os caminhos do pão
desbravando os caminhos do pão
E se houver
uma praça de gente madura
ninguém vem levantá-lo do chão
ninguém vem levantá-lo do chão
Vejam bem
que não há só gaivotas em terra
quando um homem
quando um homem se põe a pensar
Quem lá vem
dorme à noite ao relento n'areia
dorme à noite ao relento no mar
dorme à noite ao relento no mar
[instrumental]
Vejam bem
que não há só gaivotas em terra
quando um homem se põe a pensar
quando um homem se põe a pensar
Quem lá vem
dorme à noite ao relento n'areia
dorme à noite ao relento no mar
dorme à noite ao relento no mar
E se houver
uma praça de gente madura
e uma estátua
e uma estátua de febre a arder
Anda alguém
pela noite de breu à procura
e não há quem lhe queira valer
e não há quem lhe queira valer
[instrumental]
* José Afonso – voz
Rui Pato – viola
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa, em 1968
Técnico de som – Moreno Pinto
Remasterização (edição de 2012) – António Pinheiro da Silva
Capa da 1.ª edição do LP "Cantares do Andarilho", de José Afonso (Orfeu, 1968)
Concepção – Fernando Aroso
Capa da 2.ª edição do LP "Cantares do Andarilho" (Orfeu, 1982)
Concepção – José Santa-Bárbara
Esta foi a capa adoptada nas posteriores edições, em vinil e em CD.
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