21 junho 2023

Fernando Girão: "Cai Neve em Pleno Verão"



A canção "Cai Neve em Pleno Verão", com letra, música e interpretação de Fernando Girão, apesar de já ter 25 anos – saiu em 1998 no álbum "Cantos da Alma" – permanece assaz actual, sendo que alguns pontos nela aflorados – como a problemática ambiental, os conflitos bélicos, o desgaste das democracias incapazes de evitar a depauperização das classes média e média-baixa, as patologias do foro psíquico/mental – registaram um preocupante agravamento. Em suma: o mundo está hoje pior do que no fim do século passado, o que torna ainda mais pertinente recuperarmos "Cai Neve em Pleno Verão", tomando como pretexto a chegada do Estio de 2023. E se quem a não conhecia ou já a havia esquecido ficar, depois de ouvi-la, menos apático e mais inconformista, de tal sorte que se sinta motivado a agir para tornar as coisas melhores e fazer do mundo um lugar mais sustentável, redobrada será a nossa satisfação pela escolha que fizemos. Boa escuta!

Filho do guitarrista Fernando Freitas (acompanhador de Amália Rodrigues nas temporadas que fez no Brasil na década de 1940, essencialmente) e da fadista baiana Maria Girão, Fernando Girão trilhou na Música Portuguesa um caminho muito próprio e distintivo, tendo como influências principais os ritmos tropicais e o fado de Lisboa. Além da participação em trabalhos colectivos [de que merece especial menção o álbum "Homo Sapiens" (1976), do grupo Saga] e alheios [por exemplo, o álbum "Triângulo do Mar" (1982), de Carlos Mendes, no qual interveio como músico e assinou a direcção musical], Fernando Girão gravou, em nome individual, vários 'singles' (no decénio 1972-1982, quase todos sob designação de Very Nice) e uma dúzia de álbuns (desde 1977 até 2010), os quais, pela qualidade e originalidade que apresentam, lhe garatem um lugar de relevo da História da Música Portuguesa. Seria, portanto, da mais elementar justiça que o meritório artista estivesse representado na 'playlist' da Antena 1 (e também na da Antena 3, porque não?) – mas não está. E a soez exclusão não é de agora: há largos anos que se verifica. Em programas de autor também não tem sido fácil ouvir algo do repertório de Fernando Girão na Antena 1: só muito esporadicamente no espaço "Alma Lusa" (depois do noticiário da meia-noite de domingo até às 02h:00 da madrugada de segunda-feira) e, mais recentemente, em duas edições do programa "Gramofone" (Antena 1, sábados, depois do noticiário das 08h:00 da manhã), no âmbito de um ciclo devotado ao artista [11 Mar. 2023 >> RTP-Play / 13 Mai. 2023 >> RTP-Play]. Tomara que a atenção que João Carlos Callixto prestou a Fernando Girão (e tem prestado a outras figuras importantes da nossa música) fosse extensiva a quem mexe e remexe nas 'playlists' da rádio pública!



Cai Neve em Pleno Verão



Letra e música: Fernando Girão
Intérprete: Fernando Girão* (in CD "Cantos da Alma", Upgrade Records/Ovação, 1998)




[instrumental]

Se eu não tivesse que pagar a salvação,
Se as novas igrejas não fossem velhos cinemas,
Se a vida não tivesse tantos dilemas,
Se houvesse um volte-face
E o mundo melhorasse
E nós vivêssemos em paz...

Se eu soubesse ser um pouco mais feliz,
Se o meu país fosse igual ao teu país,
Se eu pudesse ter sorte e algum tino,
Se a poluição dos mares
E a contaminação dos ares
Não fossem hoje tão reais,
Talvez eu não dissesse mais:

«Cai neve em pleno Verão...
E dentro da nossa alma.
Nós não queremos compaixão:
Só um pouco de atenção
E a solução p'ra os nossos traumas.»
[bis]

[instrumental]

Se o trabalho hoje não fosse tão escasso,
Se a Lua coubesse inteira nos meus braços,
Se um dia eu conhecesse um outro eu,
Se o partido em que eu votasse
Fosse sério e respeitasse
Aquilo que nos prometeu,
Talvez eu não dissesse mais:

«Cai neve em pleno Verão...
E dentro da nossa alma.
Nós não queremos compaixão:
Só um pouco de atenção
E a solução p'ra os nossos traumas.
[3x]

Cai neve em pleno Verão...
E sangra o nosso coração.

Cai neve em pleno Verão...
E sangra o nosso coração.

Cai neve em pleno Verão...
Cai neve em pleno Verão.»


* [Créditos gerais do disco:]
José Manuel Neto – guitarra portuguesa
Carlos Manuel Proença – viola de fado, baixo eléctrico, coros
Miguel Braga – piano acústico, teclados
Lúcio – baixo eléctrico
Dalú Roger – percussão
Filipe Larsen – baixo eléctrico
Ernesto Leite – piano acústico, teclados, coros
Gil do Carmo – coros
Anabela – coros
Tó Cruz – coros
Fernando Girão – vozes, coros, guitarra clássica, percussão, teclados

Arranjos – Fernando Girão, Miguel Braga, Carlos Manuel Proença, Ernesto Leite
Produção e direcção – Fernando Girão para Upgrade Records
Gravado e misturado nos Estúdios Gravisom, Lisboa
Engenheiro de som – Mário Santos
Misturado por Fernando Girão e Mário Santos
Masterização – João Oliveira
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Gir%C3%A3o
https://www.rtp.pt/rtpmemoria/gramofone/fernando-girao-por-joao-carlos-callixto_1197
https://www.muralsonoro.com/mural-sonoro-pt/2014/1/16/fernando-giro
https://soundcloud.com/fernando-gir/tracks
https://music.youtube.com/channel/UC39tu43jb55xuxu3wK9xO-Q



Capa do CD "Cantos da Alma", de Fernando Girão (Upgrade Records/Ovação, 1998)
Fotografia – Vasco Célio
Arranjo gráfico – Ana Matias

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Outros artigos com repertório alusivo ao Verão:
Janita Salomé: "Reino de Verão"
Grupo Banza: "Verão"
Fernando Pardal: "Estio" (Manuel da Fonseca)
Trovante: "Noite de Verão" (Manuel da Fonseca)
Trio Fado: "À Espera do Verão"
José Peixoto: "Estio"

10 junho 2023

Camões recitado e cantado (IX)


Mário Botas, "Camões", 1980, aguarela


O que primeiramente torna apetecível um disco antológico de Camões é o revelar aspectos principais da sua poesia, a que vulgarmente se não dá o devido lugar: a respiração e o tempo de respirar, a humanização das palavras através de tal virtuosismo, as potencialidades orais que nela se afirmam, para além dos cânones literários renascentistas.
Quando a uma actividade artística a época, a moda, as gerais condicionantes impõem regras estritas, o Artista tem de adestrar-se, exibir domínio e agilidade, ganhar uma certa forma de liberdade, que lhe permita, apesar dos espartilhos que lhe vestem, manifestar o que é seu pessoal — sem o que se confinará à mediocridade da correcção.
Assim com Camões, com a sua linguagem ordenada. Sábio da ciência possível na sua época, homem do seu tempo, acatou e obedeceu; mas criou permanentemente e descobriu; perito em fonética e no sortilégio das palavras, deixou uma orquestração verdadeira, partitura poética para respiração, ritmo, silêncio e voz.
O disco parece destinar-se a violar ou a proteger a intimidade; apresenta-se, portanto, adequado a servir a linguagem camoniana, inclusive as suas menos evidentes ou ocultas virtualidades.
Detesto aquela atitude que nos obriga a aproximar-nos dos clássicos em bicos de pés para não incomodar o «monstro» na pasmaceira e consagração em que jaz. Gosto dos clássicos vivos, insusceptíveis de certidão de óbito, convivendo com os seus iguais de séculos adiante, afirmando solidariedade nos problemas comuns, propondo tácita e segura compreensão para com aqueles que o tempo, entretanto, descobriu. Estes são os «meus» clássicos. Prefiro-os em encadernação simples ou em cartonagem popular, pois mal se convive com quem se nos apresenta entalado em capa doirada e em materiais nobilitantes. Expurgados de sumptuária, nus, ou quase, sem rebuços e sem distâncias. «Salte, Senhor Clássico — apetece bradar —, salte aqui para a nossa dança!» Convite que o clássico aceitará com gosto pois, se o for autenticamente, pertence a todos os tempos. Esta atitude, este convívio quase corporal, será, decerto, respeitador, em excesso, pois não se limita ao respeito literal e simplista; procura motivos de respeito profundo, para além das aparências e das formas, para além dos convencionalismos ou conveniências interpretativas, para além das opções divulgadas.
Trabalhoso respeito que obriga, por exemplo, a imaginar Camões, descontente com um verso, repeti-lo de cor vezes sem conta, em busca de identificar o defeito, obter a solução; já os transeuntes o notam e fazem chacota porque fala sozinho consigo, porque, em plena rua, imerso no seu mundo, apela para todos os dons, envia o destrambelhado verso à zona do subconsciente a fim de dormir, ser revisto e reparado; até que um dia, inesperadamente, surge a solução; e o verso eclode, musical e esplendoroso, no momento em que Camões seguia, olhando a rua sem a ver, na plataforma de um «eléctrico». Oh, desculpem...
Camões tem andado longe do convívio, afastado pelas cargas que a História depôs sobre os ombros do Poeta. Transformaram-no em símbolo. Distribuíram-lhe responsabilidades inumanas, sobretudo nos momentos de tristeza colectiva (que muitos têm sido, do seu tempo a esta parte). Ensinaram-no às crianças, atemorizando-as: «quem não souber Camões reprova no exame». Reduziram-no a estátua de bronze, coroada pelos loiros da glória, mas medonha, atrabiliária.
Aqui, nesta Antologia, vamos à procura do Camões que, sem abdicar de quem é, mais apeteça à nossa convivência dos seus contemporâneos de quatro séculos depois.
Não é, portanto, critério, em sentido restrito, o que esta Antologia tem por motivo condutor. Escolha de poemas como se joga um jogo: chamei para a liça, dentro das limitações de tempo que um disco impõe, aqueles poemas que a experiência de conviver me sugere como susceptíveis de boa convivência com os meus contemporâneos. Cada um deles, no entanto, é válido por si: tirei-os, parece-me, de entre os mais perfeitos e significativos que Camões nos legou.
Oxalá que esta Antologia possa contribuir para uma actual aprendizagem do Poeta.
No mínimo, terá utilidade. A poesia animada pela fala ganha extensas motivações. Os alunos das escolas podem senti-la fora da frieza dos compêndios; a audição oferece novos planos de empatia, crítica e integração estilística e epocal. Os portugueses que não são estudantes (profissionais), mas que se deixam mover por certas curiosidades, poderão usá-la para os ajudar a determinar por que motivo Camões lhes chega na figura de génio por excelência.

                   CARLOS WALLENSTEIN (texto
                   publicado no álbum "Camões: Antologia",
                   Série "Disco Falado", Guilda da Música/
                   Sassetti, 1973)


Continuando a divulgação do CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", de Fernando Serafim e Filipe de Sousa, apresentamos hoje mais sete espécimes: "Aquela triste e leda madrugada", Op. 112, e "Seis Sonetos de Camões", Op. 215. Os registos recitados, conforme o texto supra sugere, extraímo-los do álbum "Camões: Antologia", do actor e dramaturgo Carlos Wallenstein, originalmente publicado há cinquenta anos, pela Sassetti, sob o selo Guilda da Música, na Série "Disco Falado". Escolhemos três sonetos (os que coincidem com os cantados por Fernando Serafim), mais três redondilhas e uma écloga que intercalámos, tanto quanto possível em harmonia temática, com os espécimes musicados/cantados, estes segundo a ordenação estabelecida por Fernando Lopes-Graça. Esperamos que a audição seja prazenteira e proveitosa. E boa celebração camoniana!

No que à rádio pública diz respeito, cumpre-nos enaltecer o realizador Germano Campos pelo louvável cuidado que teve ao consagrar boa parte da edição de hoje do seu "Café Plaza" ao nosso Poeta-Maior, com a transmissão de excertos do documentário sobre "Os Lusíadas" da série "Grandes Livros" (RTP-2, 2009), com guião de Arlindo Horta e locução de Diogo Infante, intercalados com poesia, recitada ou cantada, nas vozes de Luís Caetano, Coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra, Amália Rodrigues, Simone de Oliveira, José Afonso, Eunice Muñoz, Carlos Mendes, Camané e António Pinto Basto [>> RTP-Play].
Nada mais de poesia camoniana lográmos apanhar ao longo desde Dia de Camões na Antena 2, nem nas irmãs Antenas 1 e 3, andando a escrutinar as respectivas emissões – miséria confrangedora que denota e comprova a boçalidade e a falta de sentido de serviço público dos locatários das direcções de programas daqueles canais. Vistas bem as coisas, a culpa maior nem é deles mas dos administradores que os colocaram em lugares para os quais não possuem adequada e necessária aptidão. Enfim, um exemplo entre tantos neste desventurado país onde a mediocridade consegue sobrepor-se ao mérito!...



Aquela triste e leda madrugada



Poema (soneto) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 12)
Recitado por Carlos Wallenstein (in LP "Camões: Antologia", Série "Disco Falado", Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Col. Palavras, Strauss, 2002)




Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade,
quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se de uma outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
que de uns e de outros olhos derivadas,
juntando-se, formaram largo rio.

Ela ouviu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio
e dar descanso às almas condenadas.


Notas:
Triste e leda madrugada: "triste" por se tratar da despedida dos dois amantes; "leda" (alegre) porque de todas as madrugadas nasce um novo dia.
Marchetada – vivamente colorida, matizada de tonalidades luminosas.
Vontade – coração.



Aquela triste e leda madrugada



Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 12)
Música: Fernando Lopes-Graça ("Aquela triste e leda madrugada", Op. 112, LG 209, 1959)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)




Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade,
quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando à terra claridade,
viu apartar-se de ũa outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
que duns e doutros olhos derivadas,
juntando-se, formaram largo rio.

Ela ouviu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio
e dar descanso às almas condenadas.


* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano



Écloga VIII



Poema (écloga) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 606-608)
Recitado por Carlos Wallenstein (in LP "Camões: Antologia", Série "Disco Falado", Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Col. Palavras, Strauss, 2002)




(Piscatória)

SERENO

Arde por Galateia branca e loura,
Sereno, pescador pobre, forçado
duma estrela, que quer à míngua moura.

Os outros pescadores têm lançado
no Tejo as redes; ele só fazia
este queixume ao vento descuidado:

«Quando virá, formosa Ninfa, um dia
em que te possa dar a conta estreita
desta doudice triste e vã porfia?

Não vês que me foge a alma e que me enjeita,
buscando em um só riso dessa boca,
nos teus olhos azuis, mansa colheita?

Se ao teu esp'rito alguma mágoa toca,
se de Amor fica nele uma pègada,
que te vai, Galateia, nesta troca?

Dar-te-ei minha alma; lá ma tens roubada;
não ta demandarei; dá-me por ela
uma só volta de olhos descuidada.

Se muito te parece, e minha estrela
não consentir ventura tão ditosa,
dou-te as asas do Amor perdidas nela.

Que mais te posso dar, Ninfa formosa,
inda que o mar de aljôfar me cobrira
toda esta praia leda e graciosa?

Amansam-se ondas, quebra o vento a ira;
minha tormenta só nunca sossega;
o meu peito arde em vão, em vão suspira.

Anda no romper d'alva a névoa cega
sobre os montes da Arrábida viçosos,
enquanto o solar raio lhes não chega.

Eu, vendo aparecer outros formosos
raios, que a graça e cor ao céu roubaram;
se os olhos cegos vi, vejo saudosos.

Quantas vezes as ondas se encresparam
com meus suspiros! Quantas com meu pranto
as fiz parar de mágoa e me escutaram!

Se na força da dor, a voz levanto,
e ao som do remo, que a água vai ferindo,
perante a Lua meu cuidado canto,

os maviosos delfins me estão ouvindo;
a noite sossegada; o mar calado.
Tu só foges de ouvir-me e te vás rindo.

Estranhas, porventura, o mar cercado
da fraca rede, a barca ao vento solta,
e um pobre pescador aqui lançado?

Antes que o Sol no céu cerre uma volta
se pode melhorar minha ventura,
como a outros sucede, na água envolta.

Igual preço não é da formosura
de ouro a areia, que o rico Tejo espraia,
mas um amor que para sempre dura.

Vejam teus olhos, bela Ninfa, a praia;
verás teu nome na mimosa areia.
Nunca sobre ele o mar com fúria saia!

Vento algum até agora o não salteia;
três dias há que escrito aqui o deixou
Amor, e o veda a toda a força alheia.

Ele com suas mãos próprio ajudou
a escolher estas conchas, afirmando
que o sol para ti só as matizou.

Um ramo te colhi de coral brando;
antes que o ar lhe desse, parecia
o que de tua boca estou cuidando.

Ditoso se o soubesse inda algum dia!



Alegres campos, verdes arvoredos



Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 20)
Música: Fernando Lopes-Graça (1.ª peça de "Seis Sonetos de Camões", Op. 215, LG 237, 1979)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)


Alegres campos, verdes arvoredos,
claras e frescas águas de cristal,
que em vós os debuxais ao natural,
discorrendo da altura dos rochedos;

silvestres montes, ásperos penedos,
compostos em concerto desigual;
sabei que, sem licença de meu mal,
já não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois me já não vedes como vistes,
não me alegrem verduras deleitosas,
nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,
regando-vos com lágrimas saudosas,
e nascerão saudades de meu bem.


Notas:
Debuxais – retratais, reproduzis a imagem.
Ledos – alegres.

* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano



Babel e Sião



Poema (trova em redondilha maior) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 712-713) (excerto - estrofes 5.ª a 8.ª) [texto integral em: Camões recitado e cantado (V)]
Recitado por Carlos Wallenstein (in LP "Camões: Antologia", Série "Disco Falado", Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Col. Palavras, Strauss, 2002)




Bem são rios estas águas,
com que banho este papel;
bem parece esta cruel
variedade de mágoas
a confusão de Babel.
Como homem que, por exemplo
dos transes em que se achou,
depois que a guerra deixou,
pelas paredes do templo
suas armas pendurou:

Assim, depois que assentei
que tudo o tempo gastava,
da tristeza que tomei,
nos salgueiros pendurei
os órgãos com que cantava.
Aquele instrumento ledo
deixei da vida passada,
dizendo: — «Música amada,
deixo-vos neste arvoredo
à memória consagrada.

Frauta minha que, tangendo,
os montes fazíeis vir
para onde estáveis, correndo;
e as águas, que iam descendo,
tornavam logo a subir,
jamais vos não ouvirão
os tigres, que se amansavam;
e as ovelhas, que pastavam,
das ervas se fartarão
que por vos ouvir deixavam.

Já não fareis docemente
em rosas tornar abrolhos
na ribeira florescente;
nem poreis freio à corrente,
e mais, se for dos meus olhos.
Não movereis a espessura,
nem podereis já trazer
atrás vós a fonte pura,
pois não pudestes mover
desconcertos da ventura.»


Notas:
Babel – refere-se o Poeta à torre de Babel que os homens, que então falavam uma só língua, pretendiam construir. Javé, para frustrar-lhes os intentos, confundiu-lhes as línguas e dispersou-os pela face da Terra (Génesis, 11, 1-9).
Assentei – tive por certo.
Da tristeza – por causa da tristeza.
Órgãos – harpas. Cf. Salmo 136, v. 2, in salicibus in medio eius suspendimus organa nostra: «pendurámos as nossas harpas nos salgueiros que estão no meio da cidade».
Espessura – floresta.
Mover – evitar, arredar.
Ventura – destino.



Na ribeira de Eufrates assentando



Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Dom António Álvares da Cunha, Lisboa, 1668; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 83)
Música: Fernando Lopes-Graça (2.ª peça de "Seis Sonetos de Camões", Op. 215, LG 237, 1979)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)


Na ribeira de Eufrates assentado,
discorrendo me achei pela memória
aquele breve bem, aquela glória,
que em ti, doce Sião, tinha passado.

Da causa de meus males perguntado
me foi: «Como não cantas a história
de teu passado bem, e da vitória
que sempre de teu mal hás alcançado?

Não sabes que, a quem canta, se lhe esquece
o mal, inda que grave e rigoroso?
Canta, pois, e não chores dessa sorte».

Respondi com suspiros: «Quando cresce
a muita saudade, o piedoso
remédio é não cantar senão a Morte».


* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano



A uma Senhora que rezava por umas contas



Poema (trova em redondilha maior) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 736-737)
Recitado por Carlos Wallenstein (in LP "Camões: Antologia", Série "Disco Falado", Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Col. Palavras, Strauss, 2002)




Peço-vos que me digais:
as orações que rezastes,
se são pelos que matastes,
se por vós, que assim matais.
Se são por vós, são perdidas;
que qual será a oração
que seja satisfação,
Senhora, de tantas vidas?

Que se vedes quantos vêm
a só vida vos pedir,
como vos há Deus de ouvir,
se vós não ouvis ninguém?
Não podeis ser perdoada
com mãos a matar tão prontas,
que, se numa trazeis contas,
na outra trazeis espada.

Se dizeis que encomendando
os que matastes andais,
se rezais por quem matais,
para que matais, rezando?
Que, se na força do orar,
levantais as mãos aos Céus,
não as ergueis para Deus,
erguei-las para matar.

E quando os olhos cerrais
toda enlevada na fé,
cerram-se os de quem vos vê
para nunca verem mais.
Pois se assim forem tratados
os que vos vêem quando orais,
essas horas que rezais
são as horas dos finados.

Pois logo, se sois servida
que tantos mortos não sejam,
não rezeis onde vos vejam,
ou vede para dar vida.
Ou, se quereis escusar
estes males que causastes,
ressuscitai quem matastes,
não tereis por quem rezar.



Eu cantarei de amor tão docemente



Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 4)
Música: Fernando Lopes-Graça (3.ª peça de "Seis Sonetos de Camões", Op. 215, LG 237, 1979)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)


Eu cantarei de amor tão docemente,
por uns termos em si tão concertados,
que dois mil acidentes namorados
faça sentir ao peito que não sente.

Farei que Amor a todos avivente,
pintando mil segredos delicados,
brandas iras, suspiros magoados,
temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
de vossa vista branda e rigorosa,
contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto
a composição alta e milagrosa
aqui falta saber, engenho e arte.


Notas:
Dois mil – muitíssimos, inúmeros.
Brandas iras – iras amorosas.

* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano



O dia em que nasci moura e pereça



Poema (soneto) de Luís de Camões (do conjunto de poemas recolhidos por Luís Franco Correia, entre 1557 e 1589, in "Rimas", org. João António de Lemos Pereira de Lacerda, 2.º visconde de Juromenha, Lisboa, 1861; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 171)
Recitado por Carlos Wallenstein (in LP "Camões: Antologia", Série "Disco Falado", Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Col. Palavras, Strauss, 2002)




O dia em que nasci moura e pereça,
não o queira jamais o tempo dar;
não torne mais ao mundo e, se tornar,
eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, o Sol se lhe escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
a mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
as lágrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
que este dia deitou ao mundo a vida
mais desgraçada que jamais se viu!


Nota:
Moura – morra


O dia em que nasci moura e pereça



Poema (soneto): Luís de Camões (do conjunto de poemas recolhidos por Luís Franco Correia, entre 1557 e 1589, in "Rimas", org. João António de Lemos Pereira de Lacerda, 2.º visconde de Juromenha, Lisboa, 1861; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 171)
Música: Fernando Lopes-Graça (4.ª peça de "Seis Sonetos de Camões", Op. 215, LG 237, 1979)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)


O dia em que nasci moura e pereça,
não o queira jamais o tempo dar;
não torne mais ao mundo e, se tornar,
eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, o Sol se lhe escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
a mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
as lágrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
que este dia deitou ao mundo a vida
mais desgraçada que jamais se viu!


* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano



Ao desconcerto do Mundo



Poema (esparsa em redondilha maior) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Estêvão Lopes, Lisboa, 1598; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 801)
Recitado por Carlos Wallenstein (in LP "Camões: Antologia", Série "Disco Falado", Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Col. Palavras, Strauss, 2002)




Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
assim que, só para mim
anda o mundo concertado.



Quanta incerta esperança, quanto engano!



Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Manuel de Faria e Sousa, Lisboa, 1685; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 138)
Música: Fernando Lopes-Graça (5.ª peça de "Seis Sonetos de Camões", Op. 215, LG 237, 1979)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)


Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos,
pois todos vão fazer seus fundamentos
só no mesmo em que está seu próprio dano!

Na incerta vida estribam de um humano;
dão crédito a palavras que são ventos;
choram depois as horas e os momentos
que riram com mais gosto em todo o ano.

Não haja em aparências confianças;
entendei que o viver é de emprestado;
que o de que vive o mundo são mudanças.

Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
somente amando aquelas esperanças
que duram para sempre com o amado.


* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano



Cá nesta Babilónia, donde mana



Poema (soneto) de Luís de Camões (in "Rimas", org. Domingos Fernandes, Lisboa, 1616; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 62)
Recitado por Carlos Wallenstein* (in LP "Camões: Antologia", Série "Disco Falado", Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Camões: Antologia", Col. Palavras, Strauss, 2002)




Cá nesta Babilónia, donde mana
matéria a quanto mal o mundo cria;
cá, donde o puro Amor não tem valia,
que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

cá, donde o mal se afina, o bem se dana,
e pode mais que a honra a tirania;
cá, donde a errada e cega Monarquia
cuida que um nome vão a Deus engana;

cá, neste labirinto, onde a nobreza,
o valor e o saber pedindo vão
às portas da cobiça e da vileza;

cá, neste escuro caos de confusão,
cumprindo o curso estou da Natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!


Notas:
Mana – sai, brota.
Matéria – riquezas.
O puro Amor – o verdadeiro amor espiritual.
Mãe – Vénus, símbolo da luxúria.
Sião – Jerusalém celeste (Céu, Paraíso).

* Carlos Wallenstein – voz
Selecção de textos/poemas – Carlos Wallenstein

Direcção literária – Alberto Ferreira
Assistente de produção – Carmen Santos
Produção – Sassetti
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa
Captação de som e montagem – Moreno Pinto
Remasterização – Jorge d'Avillez (Strauss Studio, Lisboa)
URL: http://www.cinept.ubi.pt/pt/pessoa/2143690279/Carlos+Wallenstein
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/perfil-carlos-wallenstein/
https://music.youtube.com/channel/UCAB5mYWk4Z9tVkwp-RrXdgQ



Cá nesta Babilónia, donde mana



Poema (soneto): Luís de Camões (in "Rimas", org. Domingos Fernandes, Lisboa, 1616; "Obras de Luís de Camões", Porto: Lello & Irmão Editores, 1970 – p. 62)
Música: Fernando Lopes-Graça (6.ª peça de "Seis Sonetos de Camões", Op. 215, LG 237, 1979)
Intérpretes: Fernando Serafim* & Filipe de Sousa (in CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", PortugalSom/Strauss, 1995)


Cá nesta Babilónia, donde mana
matéria a quanto mal o mundo cria;
cá, onde o puro Amor não tem valia,
que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

cá, onde o mal se afina e o bem se dana,
e pode mais que a honra a tirania;
cá, onde a errada e cega Monarquia
cuida que um nome vão a Deus engana;

cá, neste labirinto, onde a nobreza,
com esforço e saber pedindo vão
às portas da cobiça e da vileza;

cá, neste escuro caos de confusão,
cumprindo o curso estou da Natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!


* Fernando Serafim – voz (tenor)
Filipe de Sousa – piano

Supervisão artística – Fernando Lopes-Graça
Direcção musical – Jorge Costa Pinto
Produção – Secretaria de Estado da Cultura (Direcção-Geral de Acção Cultural)
Gravado nos Estúdios Jorsom, Lisboa, nos dias 12, 13 e 15 de Dezembro de 1983
Técnico de som – João Magalhães
Remasterização digital – Fernando Abrantes (Strauss Studio, Lisboa)
URL: https://www.meloteca.com/portfolio-item/fernando-serafim/
https://www.facebook.com/FernandoSerafimMusic
https://www.meloteca.com/portfolio-item/filipe-de-sousa/



Capa do LP "Camões: Antologia", de Carlos Wallenstein (Série "Disco Falado", Guilda da Música/Sassetti, 1973)
Concepção – Soares Rocha



Capa da reedição em CD do álbum "Camões: Antologia", de Carlos Wallenstein (Col. Palavras, Strauss, 2002)
Retrato de Camões – Soares Rocha
Grafismo – João P. Cachenha (Breathe)



Capa do CD "Fernando Lopes-Graça: Sonetos de Camões", de Fernando Serafim e Filipe de Sousa (PortugalSom/Strauss, 1995)
Pintura de Andrea Mantegna (c.1474) retratando Bárbara Gonzaga, filha de Ludovico III Gonzaga, Marquês de Mântua, e de sua esposa Bárbara de Brandemburgo (pormenor de um fresco existente na Camera degli Sposi, no torreão nordeste do Castelo de S. Jorge, em Mântua)

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Outros artigos com poesia de Luís de Camões:
Camões recitado e cantado
Camões recitado e cantado (II)
Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015)
Camões recitado e cantado (III)
Camões recitado e cantado (IV)
Camões recitado e cantado (V)
Camões recitado e cantado (VI)
Camões recitado e cantado (VII)
Camões recitado e cantado (VIII)

01 junho 2023

Eugénio de Andrade e Fernando Lopes-Graça: "Aquela Nuvem e Outras"


Ilustração da autoria de Júlio Resende para o frontispício do livro "Aquela Nuvem e Outras" (Colecção ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986) [capa >> ao fundo]


À maneira de explicação, se tal for necessário

Por mais impessoal que seja a minha poesia, nunca o foi tanto como a que fui escrevendo à medida que o Miguel [Miguel Moura, n. 1980] ia crescendo diante dos meus olhos, e me ia pedindo uma história ou um poema. Provavelmente isto é coisa comum entre miúdos, mas este parecia-me especialmente atraído pelas coisas da imaginação, e foi para o ver sorrir ou lhe dar prazer que inventei estas puerilidades, algumas das quais me atrevo agora a publicar. O mais curioso é que a palavra, com todos os seus sortilégios, parecia fasciná-lo, mesmo quando a não entendia.
O que ele ignorava sabêmo-lo nós de sobra: a simples matéria sonora – rimas, aliterações, reiterações, estribilhos, consonâncias – é fonte de sedução e razão de encantamento desde que o homem se demorou, pela primeira vez, a escutar o vento entre os ramos.
Ao escrever estes versos, procurei abrir os ouvidos da alma às vozes que encheram os dias já distantes da minha infância. Por isso, não se deve estranhar que se encontrem aqui ecos de romances velhos ou velhos cantares, que também já ecoaram em Gil Vicente e Camões, se não é pretensioso juntar tão altos nomes ao nome tão humilde de minha mãe, que está na origem de todos os meus paraísos infantis, se me for consentido citar Baudelaire de maneira tão torpe. Tudo isto eu quis, consciente ou inconscientemente. Como quis também que o oiro e a púrpura das sílabas de certas palavras, cujo aroma espesso nos mergulha inteiros num sono com grandes e luminosas frestas para o sonho – Alexandria, Turquestão, Granada – pudessem aqui ser encontrados pela primeira vez. Eu seria outro poeta se, aos cinco ou seis anos, tivesse deparado com as cintilações dessas sílabas.
Só mais uma palavra. A uma retórica de fogo-de-artifício procurei opor, uma vez mais, e agora com redobradas razões, uma poética da luz, articulando a nudez e a transparência com a simplicidade de quem fala para que outros o escutem – daí o uso frequente das sete sílabas contadas que é o ritmo natural e português da nossa fala, se não for também o dos nossos próprios passos. Quis misturar a minha voz às vozes anónimas da infância – oxalá ela venha a tornar-se anónima também.

Eugénio de Andrade
Setembro de 1986


O ano de 1986 é marcante na vida de Fernando Lopes-Graça. É nesse ano que é condecorado com o título de Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada, a par da Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, e é-lhe concedido o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Aveiro. É também em 1986 que Eugénio de Andrade publica Aquela Nuvem e Outras e que Lopes-Graça se ocupa de criar um ciclo homónimo a partir desses 22 poemas, «as cançõezinhas do Miguel», como viria a apelidar [na carta dirigida ao poeta, de 12 Fev. 1987], inspirado pelo espírito de Eugénio que escrevera os poemas para crianças imbuído pelo imenso afecto que nutria pelo seu afilhado Miguel. A iniciativa de musicar os poemas parte do próprio compositor e é, tal como acontecera com Mar de Setembro, comunicada já em fase de finalização da obra, em 1987: «"Aquela Nuvem e Outras" que delícia, que ternura! E eu já pus em música, para crianças e adultos, boa parte dos poemazinhos. Espero acabar dentro em breve, mas receio que as minhas canções não estejam à altura da simplicidade admirável dos seus versos. Perdoará, mas eu não pude resistir.» [carta a E.A., 2 Jan. 1986]
A resposta de Eugénio de Andrade a estas palavras acaba por nos dar uma boa imagem da relação de grande comunhão artística entre os dois, assumindo o poeta uma postura de grande generosidade em relação à complementaridade da obra de arte: «Fiquei encantado com as suas notícias. Ao enviar-lhe os poemazinhos, qualquer coisa dizia em mim que v. [você] iria gostar deles e talvez pôr-lhes a música que lhes faltava» [carta a F.L.G., 6 Jan. 1986]. Teríamos, no entanto, de esperar até ao ano de 1993 para a estreia deste terceiro ciclo. Nesse mesmo ano, na Casa das Artes do Porto, deu-se um concerto com um programa que contemplou os três ciclos que o diálogo artístico entre Fernando Lopes-Graça e Eugénio de Andrade nos legou.

Tiago Manuel da Hora (in "Fernando Lopes-Graça e Eugénio de Andrade: O Diálogo entre a Música e a Poesia [Correspondência]", Lisboa: Chiado Editora, 2018 – p. 18-19)


Neste ano do centenário do nascimento de Eugénio de Andrade, o Dia Mundial da Criança afigura-se da máxima oportunidade para celebramos a poesia que escreveu para a infância, inicialmente dedicada ao seu afilhado Miguel Moura, e que Fernando Lopes-Graça musicou. E fazêmo-lo socorrendo-nos das cativantes interpretações de alunos do 1.º ciclo do ensino básico (anos lectivos 2005/2006 e 2006/2007) da Academia de Música de Santa Cecília, acompanhados ao piano por Inês Mesquita, sob a direcção de Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – gravações publicadas no belíssimo CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças" (2013), em edição conjunta daquela honorável instituição de ensino e da chancela Althum.com, de Luís Nazaré Gomes. Um trabalho primoroso que se recomenda vivamente, quer a miúdos quer a graúdos, pois, como escreveu o insigne compositor, a música que apôs aos poemas d' "Aquela Nuvem e Outras" pode também ser ouvida (e com proveito) pelos adultos. Foi o nosso caso e esperamos que seja também o de todos os leitores/visitantes, qualquer que seja a idade, do blogue "A Nossa Rádio". Boa escuta e feliz Dia da Criança!

Acaso a Rádio ZigZag já deu a ouvir aos seus ouvintes algumas das canções para crianças, com música de Fernando Lopes-Graça? Suspeitamos que não, a avaliar pela profusão de (sub)produtos musicais que foram debitados durante as incursões que fizemos à respectiva emissão nos últimos dias. Praticamente só música pop, a maioria da qual anglo-americana ou dela tributária e com a agravante de ser da mais banal e medíocre. Uma pequena amostra: Ricky Gervais and Costantine, Macklemore (feat. Skylar Grey), Dua Lipa, Edward Sharp and The Magnetic Zeros, Ed Sheeran & Justin Bieber, BlackPink, Jack Johnson, KIDZ BOP Kids, TWICE, Miley Cyrus, Zlata Dziunka, Marshmello & Demi Lovato, Lukas Graham, Axwell Λ Ingrosso, Matoma, David Guetta & Bebe Rexha, The Sausage Factory Singers, Rihanna, Kids United (feat. Black M)...
E como se isso não bastasse, os pobres ouvidos dos petizes são incessantemente metralhados com 'jingles' horripilantes e anúncios promocionais fatelas, não sendo também poupados, em apontamentos pretensamente didácticos, a erros de palmatória como o de considerar «a Turquia o único país que, de facto, está em dois continentes»...
É caso para exclamar: coitadas das crianças que se sujeitam a escutar a Rádio ZigZag! E que desperdício do dinheiro cobrado aos adultos!



ADIVINHA



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (1.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Não é galo nem galão,
nem padre nem sacristão:
é um animal esquisito,
entre peru e pavão,
tem barbas ruivas de milho,
tem olhos de crocodilo,
rabo de rato ou de cão,
    ão ão ão!


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de alunos do 3.º ano 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



O GATO



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (2.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Onde está o gato?
Dentro do sapato?
Anda atrás do pato
ou caiu do pote?
— Anda no jardim
à roda do pudim.
Dó si dó ré mi.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de alunos dos 1.º e 2.º anos 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



1, 2, 3



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (3.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Um, dois, três,
lá vai outra vez
o gato maltês
a correr atrás
da franga pedrês,
talvez a mordesse
apenas no pé,
o sítio ao certo
não sei bem qual é
(quatro, cinco, seis),
ou só lhe arranhasse
a ponta da crista,
e talvez nem isso,
seria só susto,
ou nem sequer mesmo
foi susto nenhum;
sete, oito, nove,
para dez falta um.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de câmara 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



VERÃO



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (4.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Caracol, caracol,
onde vais com tanto sol?
Vou à loja do senhor Adão
comprar um girassol;
com tanto sol
ninguém aguenta o verão.
Adeus, adeus, caracol,
tens razão,
sem guarda-sol
ninguém aguenta este sol.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de alunos dos 2.º e 4.º anos 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



O BURRO DE LOULÉ



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (5.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Era um burro muito burro,
ou melhor, era pateta,
pois viera de Loulé,
sem ser coxo nem perneta,
sempre, sempre sobre um pé.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de alunos do 2.º ano 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



O PASTOR



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (6.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Pastor, pastorinho,
onde vais sozinho?

Vou àquela serra
buscar uma ovelha.

Porque vais sozinho,
pastor, pastorinho?

Não tenho ninguém
que me queira bem.

Não tens um amigo?
Deixa-me ir contigo.


* Joana Marques Vidal – voz
Miguel de Melo Sobral – voz
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



O LAGARTO



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (7.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Vejam que janota
o lagarto vem!
Parece um ministro.
Irá a Belém?

Vem do costureiro?
Vem de trabalhar?
Que pergunta tola:
vem só de almoçar.

E que bem comeu
o nosso janota!
Quem seria o parvo
que pagou a conta?


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de alunos do 1.º ano 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



CANÇÃO DE LEONORETA



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (8.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Borboleta, borboleta,
flor do ar,
onde vais, que me não levas?
Onde vais tu, Leonoreta?

Vou ao rio, e tenho pressa,
não te ponhas no caminho.
Vou ver o jacarandá,
que já deve estar florido.

Leonoreta, Leonoreta,
que me não levas contigo.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de alunos do 4.º ano 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



GATOS



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (9.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Gato dos quintais
gato dos portões,
gato dos quartéis
gato das pensões.

Vêm da Índia, da Pérsia,
de Ninive, Alexandria.
Vêm do lado da noite,
do oiro e rosa do dia.

Gato das duquesas,
gato das meninas,
gato das viúvas,
gato das ruínas.

Gatos e gatos e gatos.
Arre, que já estamos fartos!


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de câmara 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



CANÇÃO DA JOANINHA



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (10.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


A Lisboa, vamos a Lisboa.
Joaninha voa, voa.

Num cavalo baio
ou num alazão, vamos a Lisboa.
Joaninha voa, voa.

Num cavalo de Alter
ou do Turquestão, vamos a Lisboa.
Joaninha voa, voa.

Num cavalo de pau
ou num garanhão, vamos a Lisboa.
Joaninha voa, voa.

Ah, que bom, que bom, que bom;
voa, voa, vamos a Lisboa.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de câmara 2006/2007)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



O INVERNO



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (11.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Velho, velho, velho.
Chegou o inverno.

Vem de sobretudo,
vem de cachecol,
o chão onde passa
parece um lençol.

Esqueceu as luvas
perto do fogão:
quando as procurou,
roubara-as um cão.

Com medo do frio,
encosta-se a nós:
dai-lhe café quente
senão perde a voz.

Velho, velho, velho.
Chegou o inverno.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de alunos do 3.º ano 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



A FORMIGA



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (12.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Sete palmos, sete metros,
anda a formiga por dia
(sete palmos a correr,
sete metros devagar),
só para lamber o mel
que lentamente escorria
quer da boca quer do pão,
quer dos dedos do Miguel.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de alunos dos 3.º e 4.º anos 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



ANDORINHA



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (13.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Era uma andorinha branca
que me batia à janela
e contente anunciava
que chegara a primavera,
ou era eu que sonhava?


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de câmara 2006/2007)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



FAZ DE CONTA



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (14.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


— Faz de conta que sou abelha.
— Eu serei a flor mais bela.

— Faz de conta que sou cardo.
— Eu serei somente orvalho.

— Faz de conta que sou potro.
— Eu serei sombra em agosto.

— Faz de conta que sou choupo.
— Eu serei pássaro louco,

    pássaro voando e voando
    sobre ti vezes sem conta.

— Faz de conta, faz de conta.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de alunos dos 2.º, 3.º e 4.º anos 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



A ROSA E O MAR



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (15.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Eu gostaria ainda de falar
da rosa brava e do mar.
A rosa é tão delicada,
o mar tão impetuoso,
que não sei como os juntar
e convidar para um chá
na casa breve do poema.
O melhor é não falar:
sorrir-lhes só da janela.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de câmara 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



ANDANÇAS DO POETA



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (16.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Pelo céu cor de violeta,
que lindo,
que lindo vai o poeta.

Pôs uma camisa branca
e sapatos amarelos,
as calças agarradinhas
são da feira de Barcelos.

Pelo céu vai o poeta.
Sobe, sobe de bicicleta.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de alunos dos 3.º e 4.º anos 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



AQUELA NUVEM



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (17.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


— É tão bom ser nuvem,
ter um corpo leve,
e passar, passar.

— Leva-me contigo.
Quero ver Granada.
Quero ver o mar.

— Granada é longe,
o mar é distante,
não podes voar.

— Para que te serve
ser nuvem, se não
me podes levar?

— Serve para te ver.
E passar, passar.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de alunos do 2.º ano 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



FRUTOS



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (18.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Pêssegos, pêras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música de meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de câmara 2006/2007)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



ROSA



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (19.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


É uma rosa amarela.
Uma rosa de verão.
Sempre uma rosa em botão
estava posta à janela.
Quem mora naquela casa
certamente que sabia
quanto essa rosa em botão,
seja branca ou amarela,
perfuma todo o verão.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de câmara 2005/2006)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



ROMANCE DE D. JOÃO



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (20.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Foi-se D. João,
foi à sua vida,
sem dificuldade
saltou pelo muro,
não voltou senão
quando ao outro dia
já fazia escuro.
Vinha enfarruscado,
partida a viola,
o boné ao lado,
rasgado o calção
e a camisola.
Fiz-lhe uma carícia,
não me respondeu,
foi-se encafuar
perto do borralho
arrastando o pé.
Percebi então
que não vinha bem.
Que desgosto teve?
Com quem se bateu?
Disputas de gatos
em pleno janeiro?
Ou foi antes cão
que o filou primeiro?
Nada perguntei
por delicadeza,
mas que fora coça,
da rija, da boa,
da que deixa mossa
para a vida toda,
isso bem se via.
Queria ajudá-lo,
não só por carinho:
custa tanto vê-lo
metido na fossa
da melancolia!
E para acabar
quase me atrevia
a pedir que guardem
muito bem guardado
tudo isto em segredo.
E muito obrigado.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de câmara 2006/2007)
Ana Rita Valente – voz falada
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



NÃO QUERO, NÃO



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (21.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.

Quero um cavalo só meu,
seja baio ou alazão,
sentir o vento na cara,
sentir a rédea na mão.

Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.

Não quero muito do mundo:
quero saber-lhe a razão,
sentir-me dono de mim,
ao resto dizer que não.

Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de câmara 2006/2007)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção



CAVALOS



Poema: Eugénio de Andrade (in "Aquela Nuvem e Outras", ilustrações de Júlio Resende, col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Música: Fernando Lopes-Graça (22.ª peça do ciclo "Aquela Nuvem e Outras", Op. 238, LG 241, 1987)
Intérprete: Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília* (in CD com livro "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)


Uma canção de cavalos
me pede o Miguel que escreva:
cavalos de sol sedentos,
mansos cavalos de seda.
Cavalos bebendo a sombra
verde e rosa das palmeiras
ou bailando nas areias
com as luzes derradeiras.
Cavalos de romanceiro
disparados como setas
em terras da minha terra
ou só na minha cabeça.
Cavalos de sol sedentos,
mansos cavalos de seda:
uma canção de cavalos
me pede o Miguel que escreva.


* Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (coro de câmara 2006/2007)
Inês Mesquita – piano
Ana Paula Rodrigues, António Gonçalves e Artur Carneiro – direcção

Produção – Althum.com, Edições Especiais, Lda. / Luís Nazaré Gomes
Produção executiva – Rui Paiva / Academia de Música de Santa Cecília
Gravado nos Estúdios Namouche, Lisboa, de 2005 a 2007
Captação de som, edição e masterização – João Pedro Castro
URL: https://www.am-santacecilia.pt/



Capa da 1.ª edição do livro "Aquela Nuvem e Outras" (Col. ASA Juvenil, vol. 32, Porto: Edições ASA, 1986)
Ilustrações de Júlio Resende



Capa de outra edição do livro "Aquela Nuvem e Outras" (Lisboa: Círculo de Leitores, 1989)
Desenhos de Jorge Colombo



Capa de outra edição do livro "Aquela Nuvem e Outras" (Col. Palmo e Meio, vol. 7, Porto: Campo das Letras, 1999)
Ilustrações de Alfredo Martins



Capa de outra edição do livro "Aquela Nuvem e Outras" (Col. Tempo dos Mais Novos, vol. 2, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005)
Ilustrações de Joana Quental



Capa de outra edição do livro "Aquela Nuvem e Outras" (Lisboa: Assírio & Alvim, 2014)
Ilustrações de Cristina Valadas



Capa de outra edição do livro "Aquela Nuvem e Outras" (Col. Educação Literária, Porto: Porto Editora, 2016)
Ilustrações de Aurélie de Sousa



Capa da edição espanhola do livro "Aquela Nuvem e Outras", versão em castelhano de Jesús Munárriz (Col. Ajonjolí, Madrid: Hiperión, 1996)
Ilustrações de Beatriz Atheide



Capa do livro com CD "Fernando Lopes-Graça: Canções para Crianças", do Coro Infantil da Academia de Música de Santa Cecília (Academia de Música de Santa Cecília / Althum.com, 2013)
Design gráfico – Luís Henriques sobre desenhos dos alunos do 1.º ciclo do ensino básico da AMSC
Edição de imagem – João Pedro Cochofel
Nota: Além de "Aquela Nuvem e Outras", o CD inclui os ciclos "As Cançõezinhas da Tila" e "Presente de Natal para as Crianças". Pode ser encomendado no site https://www.althum.com/.

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