23 fevereiro 2022

Manuel Freire: "O Zeca"



Cientes da importância de haver canções alusivas à Revolução dos Cravos destinadas aos mais novos, «para que saibam um pouco melhor o que foi, o que ajudou a mudar e as emoções e esperanças que desencadeou e que, entretanto, se fizeram História», no 1.º de Maio de 2006, passados que eram mais de três decénios sobre o marcante acontecimento que devolveu a Liberdade ao povo português, Manuel Freire, Vitorino Salomé e José Jorge Letria deram a lume o livro/CD "Abril, Abrilzinho", em co-edição da agência Praça das Flores e do jornal "Público".
A sétima das onze canções do alinhamento foi expressamente concebida para homenagear José Afonso, o criador maior da História da Música Popular Portuguesa e aquele que, com as impactantes canções de intervenção a que deu voz, mais contribuiu para o despertar das consciências e para a necessária rebelião dos injustiçados e amordaçados, tendo em vista o imprescindível derrube do anacrónico regime ditatorial, censório e policial que nas décadas de 60 e 70 era uma aberração política na Europa Ocidental.
É pois pondo aqui em destaque essa belíssima canção, intitulada "O Zeca", com versos de José Jorge Letria e música e interpretação de Manuel Freire (ambos, tal como Vitorino, companheiros de luta e de estrada do autor d' "Os Vampiros"), que rendemos o nosso singelo tributo à memória de José Afonso, neste dia em que se completaram 35 anos sobre o seu prematuro desaparecimento, procurando também espicaçar nos mais jovens que encontrem esta página a curiosidade de descobrir a sua discografia, a qual começou – finalmente! – a ser disponibilizada nas plataformas digitais. Aqueles que encetarem tal descoberta ficarão a saber, por experiência própria, que a obra legada pelo 'avô Zeca', ao contrário do que alguns adultos menos bem informados poderão supor, não se restringe à chamada canção de intervenção. Abrange, outrossim, diversas outras categorias temáticas: ternas cantigas de embalar, apaixonadas canções de amor, espécimes de requintado lirismo de inspiração renascentista, admiráveis canções de pendor surrealista, tocante repertório tributário do imaginário fantástico, primorosas canções feitas para peças de teatro, etc., sem esquecer as belíssimas recriações de cantigas tradicionais, bem como de fados de Coimbra (os das suas primícias no mister do canto, nos anos 50, e os que gravou no início da década de 80, em homenagem a Edmundo Bettencourt). Tendo em consideração tão ampla e variada produção poética aliada a uma extraordinária e invulgar inventividade melódica e a uma irrepreensível abordagem interpretativa, podemos afirmar, com inteira justeza, que José Afonso foi (é) um cantautor de dimensão universal, equiparável a um Jacques Brel, a um Bob Dylan ou a um Chico Buarque...

Canções do notável álbum "Abril, Abrilzinho" não figuram nas 'playlists' das Antenas 1 e 3, e não temos notícia de que alguma lá tenha entrado num dos 25 de Abril posteriores a 2006, ou num nos dias antecedentes ou sucedentes. E na Rádio ZigZag? Alguma vez se deu aos pequenos ouvintes do canal infantil da rádio pública a oportunidade de escutarem algo do "Abril, Abrilzinho"?



O Zeca



Letra: José Jorge Letria
Música: Manuel Freire
Intérprete: Manuel Freire* (in livro/CD "Abril, Abrilzinho", Praça das Flores e Público, 2006)




[instrumental / coro]

Havia um poeta-cantor
nascido à beira da Ria
que em Coimbra foi estudante
e cavaleiro andante
por amor à poesia.

Sendo cantor andarilho
não se cansou da viagem
e fez a canção de roda
que juntou a malta toda
com a esperança na bagagem.

Ele era o menino de oiro,
campeão da rebeldia
e o canto era o tesoiro
p'ra quem entrava no coro
dessa nova melodia.

Mandou embora os vampiros
que o puseram na prisão;
ouviu gritos e ouviu tiros,
ouviu queixas e suspiros
antes da Revolução.

Se Grândola era morena,
era verde a utopia;
a verdade era um poema
pelo qual valeu a pena
esperar anos por um dia.

O bravo cantor-poeta
deu a cantar o sinal,
boina negra na cabeça
e nos lábios a promessa
de um novo Portugal.

[instrumental / coro]


* [Créditos gerais do disco:]
Tomás Pimentel – fliscorne e trompete
Daniel Salomé – clarinete e saxofone alto
José Miguel Nogueira – guitarra
Rui Alves – percussões
Edgar Caramelo – saxofone tenor
Sérgio Costa – piano, teclados, acordeão, flautas, baixo e guitarra eléctrica
Coro – Andreia Brás, Carla Picanço, Catarina Melgão, Cátia Roque, Inês Peniche, Inês Soares, Joana Frade, Patrícia Escudeiro, Susana Parreira e Vanda Catarino
Direcção do coro – Maria do Amparo

Direcção musical, arranjos e orquestrações – Sérgio Costa
Produção – Vitorino Salomé
Gravação e masterização – Artur David e Luís Delgado, no Estúdio Praça das Flores, Lisboa
URL: https://guedelhudos.blogspot.com/2009/04/25-abril-abril-abrilzinho.html
http://www.casadaleitura.org/portalbeta/bo/portal.pl/outros_materiais/documentos/files/portal.pl?pag=sol_la_fichaLivro&id=689
https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_ktvzLMi2fFJq8UJz3J6VYtnVn3GAX-Nxs



Capa do livro/CD "Abril, Abrilzinho", de Manuel Freire, Vitorino e José Jorge Letria (Praça das Flores e Público, 2006)
Design gráfico – José Maria Nolasco
Ilustrações (cabeças dos artistas) – André Letria

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José Mário Branco: "Zeca (Carta a José Afonso)"
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