23 fevereiro 2021

Amélia Muge: "Os Novos Anjos" (ao Zeca Afonso)


© Filipe Vieira
José Afonso com alguns dos seus alunos do Liceu António Enes, em Lourenço Marques, onde, no ano lectivo de 1964/65, leccionou História e Geografia.
Amélia Muge foi aí sua aluna na disciplina de Geografia do 3.º ano do curso dos liceus, actual 7.ª classe do ensino oficial moçambicano (7.º ano de escolaridade em Portugal).


Homem desprovido de máscaras e mostrando uma desarmante fraternidade («trazia um par de peúgas de cores diferentes. Penteava-se com os dedos. O ar era displicente, o sorriso cúmplice e doce. Tais ingredientes, por serem nesse tempo contra a corrente, fascinaram-me.», recorda Guilherme Pereira, um dos seus alunos), José Afonso logo suscitou a empatia e a subsequente cumplicidade rebelde dos seus alunos no Liceu António Enes, estabelecimento de ensino onde, a exemplo dos demais em plena vigência da ditadura salazarista, imperava a formalidade e o autoritarismo professoral. «Apresentou-se timidamente e omitiu a actividade no mundo das cantigas. Era um professor excepcional. Incitava-nos à investigação e a questionar tudo, desde os manuais a ele mesmo. Retive para sempre uma frase: "Não estou aqui para impingir, mas para insistir e resistir, convosco de preferência."», acrescenta o mesmo Guilherme Pereira [cf. José Afonso em Lourenço Marques].
A Amélia Muge, então a viver com os pais na cidade de Lourenço Marques, também calhou em sorte, nesse ano lectivo de 1964/65, na disciplina de Geografia do 3.º ano liceal, o singular professor José Afonso, não sendo difícil de calcular que tal experiência se revelou marcante. E a admiração pelo mestre e a influência colhida da sua obra aumentariam à medida que foram sendo publicados os seus álbuns. Num deles, "Cantigas do Maio" (1971), saiu o tema "Senhor Arcanjo" [>> YouTube], cuja letra de cunho surrealista virá a inspirar a cantautora na concepção do espécime "Os Novos Anjos", que faz parte do álbum "Todos os Dias" (1994). A canção é mesmo expressamente dedicada a José Afonso. Tais circunstâncias, associadas à tocante actualidade da letra nestes tempos de peste e de teletrabalho, mormente nos versos "Os anjos querem trocar / Asas por computadores", fazem dela a melhor escolha para aqui a destacarmos neste preciso dia em que se completaram 34 anos sobre a morte daquele que foi (e continua a ser) o maior vulto da música popular portuguesa.

Em 1992, quando Amélia Muge lançou o seu primeiro álbum, de título genérico "Múgica", logo se revelou um caso muito sério na música popular portuguesa: a par do aplauso do público, o disco recebeu entusiástica aclamação dos críticos mais reputados, como Fernando Magalhães e João Lisboa. Este, nas páginas do semanário "Expresso", de 13 de Junho de 1992, advogava mesmo que «É à dimensão de registos como "Cantigas do Maio" (de José Afonso), "Margem de Certa Maneira" (de José Mário Branco), ou "Sobreviventes" (de Sérgio Godinho) que "Múgica" exige ser comparado.» Os álbuns que Amélia Muge publicou posteriormente – "Todos os Dias" (1994), "Maio Maduro Maio" (em parceria com José Mário Branco e João Afonso, 1995), "Taco a Taco" (1998), "A Monte" (2002), "Não Sou Daqui" (2006), "Uma Autora, 202 Canções" (2009), "Periplus: Deambulações Luso-Gregas" (em parceria com Michales Loukovikas, 2012), "Amélia com Versos de Amália" (2014) e "Archipelagos: Passagens" (em parceria com Michales Loukovikas, 2017) –, bem como as dezenas de letras e composições que foi sendo convidada a escrever/compor para variados intérpretes e grupos (Oóquesomtem, Mísia, Camerata Meiga, Mafalda Arnauth, Moçoilas, Gaiteiros de Lisboa, Ana Moura, Tucanas, Navegante, Cristina Branco, Pedro Moutinho, Joana Amendoeira, Ana Laíns, Fernando Alvim, Adriana Queiroz, Segue-me à Capela, Melech Mechaya, Caixa de Pandora, Ela Vaz, Fernando Ferreira, Carla Pires, André M. Santos, etc.) comprovam à saciedade (a quem tenha ouvidos de ouvir) que Amélia Muge é a mais categorizada artista portuguesa na tripla faceta de autora, compositora e intérprete. Detentora de tão elevado estatuto, era expectável e da mais elementar justiça que alguns temas da sua discografia, que não sendo extensa é de altíssima qualidade, figurassem na 'playlist' da Antena 1. Mas, por mais inacreditável que pareça, nem um sequer lá marca presença. Aliás, a vergonhosa situação não é recente: 2012 foi o último em que a 'playlist' debitou, de vez em quando, um trecho cantado por Amélia Muge, no caso a belíssima canção "Caminhos de Seda" [>> YouTube], extraída do duplo CD "Periplus: Deambulações Luso-Gregas". Depois, o silenciamento!
Perguntamos a quem de direito: é normal e tolerável que a maior cantautora que temos em Portugal seja votada ao ostracismo pela rádio pública do seu país?



Os Novos Anjos (ao Zeca Afonso)



Letra e música: Amélia Muge
Intérprete: Amélia Muge* (in CD "Todos os Dias", Columbia/Sony Música, 1994)




[instrumental]

Reina grande confusão
No céu pelos corredores;
Os anjos querem trocar
Asas por computadores;
Chegam todos aos magotes,
Há já quem fale em reforma;
Estão cansados de voar,
Só querem agenciar.

[instrumental]

O Senhor Arcanjo,
No meio do mar,
Fez das asas barco
Para navegar; [bis]
Fez dos braços remos,
Vai correndo mundo;
Bóia, coração,
Que o barco vai ao fundo!
O barco vai ao fundo!

Vêm uns deitá-lo abaixo,
Outros louvar-lhe o passado;
Estivesse morto ou lá perto
Teria um preço mais certo!
Canta o gaio já cansado,
O dia chegou ao fim:
Uns vão p'ra casa dormir,
Outros vão assim, assim!

[instrumental]

O Senhor Arcanjo,
No meio do mar,
Fez das asas barco
Para navegar; [bis]
Fez dos braços remos,
Vai correndo mundo;
Bóia, coração,
Que o barco vai ao fundo!
O barco vai ao fundo!

[instrumental]

E o Senhor Arcanjo,
No meio do mar,
Fez das asas barco
Para navegar; [bis]
Fez dos braços remos,
Vai correndo mundo;
Bóia, coração,
Que o barco vai ao fundo!
O barco vai ao fundo!


* Amélia Muge – voz
António José Martins – sintetizadores, simuladores
José Machado – violino
Luís Sá Pessoa – violoncelo
Rui Júnior – bombo, adufe

Produção e arranjos – António José Martins
Direcção artística – José Mário Branco
Gravado no Estúdio Angel 2, Lisboa, em Abril de 1994
Técnico de som – Rui Novais
Montagem digital – José Manuel Marreiros (Luminária) e Fernando Cortês (Valentim de Carvalho)
URL: https://www.facebook.com/ameliamuge
https://www.facebook.com/Am%C3%A9lia-Muge-Michales-Loukovikas-315928531775833/
https://www.uguru.net/artista/amelia-muge/
https://www.youtube.com/channel/UCEWggHi4NJVs7BYz1VmaOfg/



Capa do CD "Todos os Dias", de Amélia Muge (Columbia/Sony Música, 1994)
Design gráfico – Ana Calhau
Desenhos originais de Amélia Muge

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Outros artigos com poemas/canções de homenagem ou dedicados a José Afonso:
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Filipa Pais: "Zeca"
José Mário Branco: "Zeca (Carta a José Afonso)"
Dulce Pontes: "O Primeiro Canto" (dedicado a José Afonso)
José Medeiros: "O Cantador"
Janita Salomé: "Quando a Luz Fechou os Olhos"

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Outros artigos com repertório de Amélia Muge:
Camões recitado e cantado
Celebrando Natália Correia
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
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