30 setembro 2013

Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)



Hoje [17 Out. 2004], dia em que António Ramos Rosa completa oitenta anos de idade, cumpre saudar a sua intervenção poética global, ou seja, quer no plano da criação poética, quer no da reflexão sobre a poesia, como porventura a mais marcante e plena de consequências de toda a segunda metade do século XX português.
Desde, pelo menos, aquele longínquo Outono de 1951, em que, no primeiro número da revista Árvore, da qual foi o mais proeminente director e colaborador, publicou um poema tão carismático e influente como Viagem através duma nebulosa e, entre outras, recensões críticas a obras tão importantes como Coral de Sophia de Mello Breyner ou Corpo Visível de Mário Cesariny, a presença de Ramos Rosa no quadro diverso e complexo da nossa poesia contemporânea não parou de impor-se como uma voz poderosa e inconfundível, capaz de levantar um mundo poético e ensaístico que se tem vindo a fixar no extraordinário monumento que é a sua obra, composta já por mais de setenta volumes.
Podemos dizer que, com maior insistência e mais cedo que qualquer outro crítico de poesia (e a sua acção neste campo está sólida e coerentemente ligada à sua actividade como poeta), foi António Ramos Rosa quem, sobretudo, lutou pela aceitação (por parte de leitores que, na década de 50 e no começo da de 60, eram ainda bastante reticentes, até mesmo, por vezes, em relação a Pessoa) de uma linguagem poética nova, em ruptura com os vários tradicionalismos líricos (mas não com a tradição lírica, como já o demonstrava, por exemplo, a própria poesia ortónima de Pessoa) e frequentemente apodada de incompreensível, arbitrária, incongruente.
O autor de Poesia, Liberdade Livre, que chegou a envolver-se em polémicas a este respeito, já no ensaio A Poesia é um diálogo com o Universo, saído, em 1953, no quarto e último número de Árvore, defendia que o "hermetismo, que se combate superficialmente, é muitas vezes o nome que se dá à densidade, à riqueza, à liberdade, à imaginação, ao especificamente poético". Este seu ponto de vista manteve-se, naturalmente, até ao presente e ainda recentemente, no livro A Parede Azul, e particularmente em ensaios, nele incluídos, como "A alteridade da poesia moderna", "O princípio criador", "A palavra subversiva" ou "Perspectivas da poesia portuguesa contemporânea", Ramos Rosa reformula uma idêntica concepção do poema como corpo autónomo ("A poesia moderna erige a sua total autonomia em relação ao real. Esta autonomia implica a ruptura da causalidade realista."), com o seu sentido próprio, incoincidente, muitas vezes, com o que se supõe ser o sentido de um certo real: "A palavra (poética) subverte, instaura. Um mundo em que se formula uma palavra nova é um mundo que perde as suas articulações habituais." Este entendimento do fenómeno poético determina também, obviamente, a função e a atitude do crítico: "Interpretar já não é reduzir o poema a um sentido anterior mas procurar o que o poema inaugura, sabendo de antemão que qualquer reinscrição teórica é deveras impossível. Deste modo o 'comentário' deve evitar traduzir as figuras ou as imagens obscuras porque assim as reduziria a simples alegorias a fim de as tornar claras e compreensíveis. É que a palavra poética não é da ordem do discurso. Ela atinge esse ponto em que o discurso tende a abolir-se e a transmudar-se."
Em Herberto Helder encontra Ramos Rosa o caso ideal que lhe permite ilustrar o seu conceito de poesia como liberdade absoluta, como invenção verbal surpreendente mas nunca gratuita: "Mesmo nos poemas mais obscuros e mais densos, a poesia de Herberto Helder nunca é opaca. A sua efectiva obscuridade é luminosa e, não raro, incandescente. A sua luz, aliás enigmática, é a luz de um poeta que não cessa de acorrer ao enigma da criação poética e da matéria a que ela se liga, realizando assim uma fulgurante osmose verbal com o que é vertiginosamente incompreensível."
Em António Ramos Rosa, todavia, a situação é algo diferente, sobretudo na sua fase inicial. A "aventura poética" tem raízes num contexto histórico e social de que muitos dos seus primeiros poemas são a denúncia feroz e o implacável diagnóstico. O boi da paciência ou Telegrama sem classificação especial (como diz Eduardo Lourenço, "com a fulgurante síntese de uma universal e portuguesa situação – 'Estamos nus e gramamos'"), por exemplo, são pontos de intersecção privilegiados das mais fortes e densas linhas provenientes quer do neo-realismo, quer do surrealismo, o que, de resto, não deixa de ser igualmente verdadeiro para certos textos dos outros dois poetas maiores, ao lado de Ramos Rosa, da década de 50, O'Neill e Cesariny.
O certo é que o conceito de poesia como uma potenciação da intensidade do uso da palavra, como uma "voz inicial", com peso e energia próprios, estava já lá, nesses poemas do começo, em 1958 recolhidos no pequeno caderno intitulado O Grito Claro, significativamente o número I da colecção A Palavra, em que sairia, entre outras, a obra de estreia de Luiza Neto Jorge, A Noite Vertebrada.
Para a minha geração, António Ramos Rosa representou, se não propriamente a abertura, a consolidação de uma via, paralela, sem dúvida, a algumas outras igualmente decisivas, mas especialmente consciente das exigências da inovação e da modernidade.

GASTÃO CRUZ, poeta e crítico (in "Público", 17-Out-2004)


A melhor forma de homenagear um poeta é – e sempre será – o cultivo e a divulgação da obra que nos legou. A pretexto do falecimento de António Ramos Rosa (vide a biografia e bibliografia no sítio da DGLB e o artigo do jornal "Público"), o blogue "A Nossa Rádio" apresenta uma série de poemas seus – uns recitados, outros cantados.
Não podia a Antena 1 ter transmitido, se não a totalidade, a maioria destes espécimes (bem como outros existentes no arquivo histórico da RDP) ao longo do dia em que a triste notícia foi veiculada e nos dias seguintes? Podia, com certeza, se Rui Pêgo fosse uma pessoa minimamente ciente das obrigações culturais da rádio que lhe puseram nas mãos. Lamentavelmente, e para prejuízo dos ouvintes e da cultura portuguesa, a negligência, a inércia e o marasmo voltaram a cantar vitória.



UM CAMINHO DE PALAVRAS



Poema de António Ramos Rosa (in "Sobre o Rosto da Terra", Covilhã: Livraria Nacional, col. Pedras Brancas, 1961; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 67)
Recitado por Luís Gaspar (2008) (in "Estúdio Raposa")


Sem dizer o fogo — vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso — duramente, são pedras e não são ervas. O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento. Tudo o que eu sei já lá está, mas não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.

Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o meu próprio caminho. E com as palavras de vento e de pedra, invento o vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.

                   Caminho um caminho de palavras
                   (porque me deram o sol)
                   e por esse caminho me ligo ao sol
                   e pelo sol me ligo a mim

                   E porque a noite não tem limites
                   alargo o dia e faço-me dia
                   e faço-me sol porque o sol existe

                   Mas a noite existe
                   e a palavra sabe-o.



POEMA DUM FUNCIONÁRIO CANSADO



Poema de António Ramos Rosa (in "O Grito Claro", Faro: Ed. do Autor, col. A Palavra, 1958; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 30-31)
Recitado por Luís Gaspar (2008) (in "Estúdio Raposa")


A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só



UM MUNDO



Poema de António Ramos Rosa (in "Acordes", Lisboa: Quetzal Editores, 1989 – p. 67)
Recitado por Luís Lima Barreto* (in Livro/2CD "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX", col. Sons, Assírio & Alvim, 2004)


É um sonho ou talvez só uma pausa
na penumbra. Esta massa obscura
que ela revolve nas águas são estrelas.
Entre aromas e cores, um barco de calcário
prossegue uma viagem imóvel num jardim.
Vejo a brancura entre os astros e os ramos.
Dir-se-ia que o ser respira e se deslumbra
e que tudo ascende sob um sopro silencioso.
Nenhum sentido mas os signos amam-se
e o brilho e o rumor formam um mundo.


* Selecção de poemas e direcção de actores – Gastão Cruz
Coordenação editorial – Teresa Belo
Gravado e masterizado por Artur David e João Gomes, no Estúdio Praça das Flores, Lisboa, em Outubro de 2004
Supervisão de gravação – Vasco Pimentel



O que escrevo por vezes



Poema: António Ramos Rosa (in "A Intacta Ferida", Lisboa: Relógio d'Água, 1991)
Música: António Pinho Vargas (ciclo "Nove Canções de António Ramos Rosa")
Intérpretes: Rui Taveira (voz) & Jaime Mota (piano) (in CD "António Pinho Vargas: Versos", Strauss, 2001)


O que escrevo por vezes
é como se um sopro de sombra
no meu corpo abrisse
o espaço de um silêncio
um espaço intacto e puro



Entre o Deserto e o Deserto



Poema: António Ramos Rosa, tendo como referente "Daqui deste deserto em que persisto" [texto >> abaixo]
Música: Amélia Muge
Intérprete: Amélia Muge* (in CD "Não Sou Daqui", Vachier & Associados, 2006)




Entre o deserto e o deserto
numa viagem sem destino
procuras a água e o vinho
nenhuma pista nenhum signo

vivo de pouco ou de nada
sem nunca ter um lugar
sempre a insónia mais branca
e a sede de um novo ar

escurece já o olvido
e é noite quando amanhece
nenhum barco traz aquela
por quem a escrita se tece

talvez esteja perdido
como um náufrago na areia
talvez me reste a canção
e o vento que desenleia

Entre o deserto e o deserto
Entre o deserto e o deserto


* [Créditos gerais do disco:]
Amélia Muge – voz, voz de sala, coros e viola braguesa
António José Martins – darbuka, triângulo, bombo, bendir, estalo, djembé, bilha, maraca, chiquitsi, voz de sala, amostrador e sintetizador
Carlos Mil-Homens – cajón
Catarina Anacleto – violoncelo
Filipe Raposo – piano acústico, piano Rhodes e acordeão
José Manuel David – flautas transversal e de bisel, tarota, trompa, garrafas e voz de sala
José Peixoto – guitarra acústica sem trastos
Yuri Daniel – contrabaixo e baixo eléctrico
Arranjos – António José Martins, José Manuel David e Filipe Raposo (partes de piano, acordeão e trompa)
Direcção musical – António José Martins
Produção – Amélia Muge e António José Martins
Gravado por Samuel Henriques no Estúdio MDL, Paço d'Arcos (voz, piano, baixo, contrabaixo e cajón)
e por António José Martins no estúdio da ETIC (Escola de Tecnologias Inovação e Criação), Lisboa, e no AJM Estúdio, Sobreda
Misturado e masterizado por António Pinheiro da Silva e António José Martins, no Estúdio Pé-de-Meia



DAQUI DESTE DESERTO EM QUE PERSISTO

(António Ramos Rosa, in "A Nuvem sobre a Página", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 160-162)


Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra

escrevo cavo e escavo na cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente
                                       uma pedra
busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo o corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras

Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto

Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto

As minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito

Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único do abismo branco

Sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total

Que tenho eu a dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que de mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada



Não sou daqui, mas...



Letra: Amélia Muge, inspirada no poema de António Ramos Rosa "Não podemos dizer" [texto >> abaixo]
Música: Amélia Muge
Intérprete: Amélia Muge* (in CD "Não Sou Daqui", Vachier & Associados, 2006)




Não sou daqui
Mas gosto daqui estar
De aprender no lugar do outro
A me encontrar
De poder um lugar achar
No estar aqui
Desejar o lugar de todos neste lugar
E saber no lugar daqui
O meu lugar
Não sou daqui

Não sou daqui
Mas se aqui estou
É porque para mim
Também há aqui lugar
E porque há um eu
Que aqui se foi achar
E porque um teu
Gostou de mim
De me encontrar

Não sou daqui
Mas gosto daqui estar
De aprender no lugar do outro
A me encontrar
De poder um lugar achar
No estar aqui
Desejar o lugar de todos neste lugar
E saber no lugar daqui
O meu lugar
Não sou daqui

Não sou daqui
Mas se aqui estou
É porque para mim
Também há aqui lugar
E porque há um eu
Que aqui se foi achar
E porque um teu
Gostou de mim
De me encontrar


* [Créditos gerais do disco:]
Amélia Muge – voz, voz de sala, coros e viola braguesa
António José Martins – darbuka, triângulo, bombo, bendir, estalo, djembé, bilha, maraca, chiquitsi, voz de sala, amostrador e sintetizador
Carlos Mil-Homens – cajón
Catarina Anacleto – violoncelo
Filipe Raposo – piano acústico, piano Rhodes e acordeão
José Manuel David – flautas transversal e de bisel, tarota, trompa, garrafas e voz de sala
José Peixoto – guitarra acústica sem trastos
Yuri Daniel – contrabaixo e baixo eléctrico
Arranjos – António José Martins, José Manuel David e Filipe Raposo (partes de piano, acordeão e trompa)
Direcção musical – António José Martins
Produção – Amélia Muge e António José Martins
Gravado por Samuel Henriques no Estúdio MDL, Paço d'Arcos (voz, piano, baixo, contrabaixo e cajón)
e por António José Martins no estúdio da ETIC (Escola de Tecnologias Inovação e Criação), Lisboa, e no AJM Estúdio, Sobreda
Misturado e masterizado por António Pinheiro da Silva e António José Martins, no Estúdio Pé-de-Meia



Não podemos dizer

(António Ramos Rosa, in "À Mesa do Vento seguido de As Espirais de Dioniso", Guimarães: Pedra Formosa, 1997; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 377-378)


Não podemos dizer
Cheguei aqui e inverter a perspectiva
olhando para trás
O solo nos solicita
e a sede de ser nos move para a frente
E é então que talvez reconheçamos o que fomos
entre os fragmentos dispersos da nossa identidade

Nós queremos sobretudo a relação mais viva
ainda quando sabemos que ela é incerta ou ilusória
As palavras desviam-se do que as excede ou as quer reter
mas elas querem corresponder com o seu lume frágil
ao que não conhecem mas pressentem para além das fronteiras silenciosas

Talvez toda a relação seja ilusória
mas poderá ser mais verdadeira do que a separação
Só a palavra adolescente não hesita embora trema
e caminhe nua sobre a linha da sua sombra
Tal é a maturidade do juvenil ardor
que abre o caminho que conduz às grandes águas

Quem escreve nunca está só na sua solidão de asceta
O espaço é de ninguém o espaço é ninguém
e de um só mas de um só em todos nós
O cantor modula a voz de mil vozes
O que no poema se move é um território de solidão comum
atraído pelo íman da unidade latente e latejante

Temos de ir ao extremo de uma solitária linha
mas é para voltarmos aqui ao ponto de partida
que já será outro começo e terá o timbre unânime das vozes
embora coadas pela espessura roxa da solidão
Estaremos então entre duas margens entre o princípio e o fim
e seremos mais do que fomos o que poderemos ser
ainda que não venhamos a ser senão o movimento de uma sombra



Passagem



Poema: António Ramos Rosa (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Diogo Clemente
Intérprete: Ana Laíns* (in CD "Sentidos", Difference, 2006)


[instrumental]

É onde escuto agora a própria casa.
Sou eu que escrevo este poema
Já onde estou agora e nada espero.
Ouço o som que vem de estar aqui lembrando
isto que sou agora mesmo esperando.
É onde escuto agora a própria casa.

É onde eu pouso a mão na terra calma
ouvindo quantos anos já vivi,
mas não aqui nem além, agora só
num tempo em que não sou mais que este estar
passando sem passar neste deserto.
É onde pouso a mão na terra calma.

É onde agora ninguém me vem chamar
e uma outra luta prossegue imponderável.
O tempo vai chegar mas eu aqui passei
ou algo em mim passou quando o final chegar
deste sem fim que escuto e oiço o seu passar.
É onde escuto agora a própria casa.

[instrumental]

É onde escuto agora a própria casa.


* [Créditos gerais do disco:]
Guitarras acústicas – Diogo Clemente
Viola baixo – Fernando Araújo
Guitarra portuguesa – Bernardo Couto
Acordeão, piano e melódica – Ruben Alves
Violoncelo – Ricardo Mota
Percussão – Vicky (Hugo Marques)
Direcção musical, arranjos e produção – Diogo Clemente
Técnico de som – Fernando Nunes
Gravado, misturado e masterizado nos Estúdios Pé-de-Vento, Salvaterra de Magos, em Janeiro e Fevereiro de 2006



PASSAGEM

(António Ramos Rosa, in "Voz Inicial", Lisboa: Livraria Moraes, col. Círculo de Poesia, 1960; "Não Posso Adiar o Coração", vol. I da Obra Poética, Lisboa: Plátano Editora, col. Sagitário, 1974)


É onde escuto agora a própria casa.
Sou eu que escrevo este poema.
Já onde estou agora nada espero.
Ouço o som que vem de estar aqui lembrando
isto que sou agora mesmo esperando.

É onde eu pouso a mão na terra calma
ouvindo quantos anos já vivi,
mas não aqui nem além, agora só
num tempo em que não sou mais que este estar
passando sem passar neste deserto.

É onde agora ninguém me vem chamar
e uma outra luta prossegue imponderável.
O tempo vai chegar mas eu aqui passei
ou algo em mim passou quando o final chegar
deste sem fim que escuto e sou no seu passar.



Há um ofegar de terra na garganta



Poema de António Ramos Rosa (in "Ciclo do Cavalo", Porto: Limiar, col. Os Olhos e a Memória, 1975 – p. 36)
Recitado por Luís Lima Barreto* (in Livro/2CD "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX", col. Sons, Assírio & Alvim, 2004)


Há um ofegar de terra na garganta,
há um feixe de ervas que perfuma a casa.
O ar é solidez, o caminho é de pedra.
Procuro a água funda e negra de bandeiras.

Encho a cabeça de terra, quero respirar mais alto,
quero ser o pó de pedra, o poço esverdeado,
o tempo é o de um jardim
em que a criança encontra as formigas vermelhas.

Vou até ao fim do muro buscar um nome escuro:
é o da noite próxima, é o meu próprio nome?


* Selecção de poemas e direcção de actores – Gastão Cruz
Coordenação editorial – Teresa Belo
Gravado e masterizado por Artur David e João Gomes, no Estúdio Praça das Flores, Lisboa, em Outubro de 2004
Supervisão de gravação – Vasco Pimentel



Não tenho lágrimas



Poema: António Ramos Rosa (in "A Intacta Ferida", Lisboa: Relógio d'Água, 1991)
Música: António Pinho Vargas (ciclo "Nove Canções de António Ramos Rosa")
Intérpretes: Rui Taveira (voz) & Jaime Mota (piano) (in CD "António Pinho Vargas: Versos", Strauss, 2001)


Não tenho lágrimas
estou mais baixo
junto à cal

Vejo o solo extinto
não oiço ninguém
e não regresso

Adormecer talvez
junto a uma estaca
com uma pequena pedra
sobre as pálpebras



Não era um barco



Poema: António Ramos Rosa (in "A Intacta Ferida", Lisboa: Relógio d'Água, 1991)
Música: António Pinho Vargas (ciclo "Nove Canções de António Ramos Rosa")
Intérpretes: Rui Taveira (voz) & Jaime Mota (piano) (in CD "António Pinho Vargas: Versos", Strauss, 2001)


Não era um barco
nem uma guitarra
era uma pedra
que girava na sua fronte

Anoitecera
alguém cantava sobre um muro
a pedra
girava.



A PEDRA



Poema de António Ramos Rosa (in "Ocupação do Espaço", Lisboa: Portugália Editora, 1963; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 79)
Recitado por Luísa Cruz* (in Livro/2CD "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX", col. Sons, Assírio & Alvim, 2004)


A pedra é bela, opaca,
peso-a gostosamente como um pão.
É escura, baça, terrosa, avermelhada,
polvilhada de cinza.
Contemplo-a: é evidente, impenetrável,
preciosa.


* Selecção de poemas e direcção de actores – Gastão Cruz
Coordenação editorial – Teresa Belo
Gravado e masterizado por Artur David e João Gomes, no Estúdio Praça das Flores, Lisboa, em Outubro de 2004
Supervisão de gravação – Vasco Pimentel



Não posso adiar o coração



Poema: António Ramos Rosa (adaptado de "Não posso adiar o amor para outro século") [texto integral >> abaixo]
Música: Luís Varatojo e Dora Fidalgo
Intérprete: Linha da Frente* (in CD "Linha da Frente", Mercury/Universal, 2002)




Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração

Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o amor
Não posso adiar este abraço

Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o amor
Não posso adiar este abraço

Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração

[instrumental / vocalizos]

Não posso adiar o amor para outro século
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar
não posso adiar
não posso adiar
não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar
para outro século a minha vida
nem o meu amor

Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração
Não posso adiar o coração

Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o amor
Não posso adiar o coração

Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o amor
Não posso adiar o coração

Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o coração
Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o coração

Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o amor
Não posso adiar o coração

Não posso adiar o amor
Não, não posso adiar o amor
Não posso adiar o coração


* Dora Fidalgo – voz principal
Luís Varatojo e João Aguardela – todos os instrumentos e programações
Músicos adicionais:
Samuel Palitos – bateria
João Cabrita – saxofone
Isabel Rato – teclados
João Marques – trompete
Janelo da Costa – voz
Produção – Luís Varatojo e João Aguardela
Gravado e misturado por Luís Varatojo e António Bragança, no Pérola Estúdio 1
Masterizado por Luís Delgado, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores



Não posso adiar o amor para outro século



Poema de António Ramos Rosa (in "Viagem através duma Nebulosa", Lisboa: Edições Ática, 1960; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 42)
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "No Palco da Poesia", Ovação, 1995, reed. Ovação, 2000)


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração


* [Créditos gerais do disco:]
Produção musical – Zé Nabo
Músicas – Alexandre Manaia, José Moz Carrapa e José Nabo
Arranjos – Manuel Paulo
Guitarra – Raimundo Seixas
Viola – Carlos Manuel



Quem bate a uma porta de folhas na noite



Poema de António Ramos Rosa (in "Nos Seus Olhos de Silêncio", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970; "Respirar a Sombra Viva", vol. III da Obra Poética, Lisboa: Plátano Editora, col. Sagitário, 1975)
Recitado por Mário Viegas* (in LP/CD "Poemas de Bibe: grande poesia portuguesa escolhida para os mais pequenos", UPAV, 1990; "Mário Viegas: Discografia Completa": Vol. 10 – "Poemas de Bibe", Público, 2006)




Quem bate a uma porta de folhas na noite
uma porta de folhas na noite
Quem toca a dura casca do teu nome na noite
a uma porta de folhas

Uma porta de folhas uma porta
Quem bate a essa porta de folhas
Quem bate a essa porta de folhas na noite
Quem bate a essa porta sou eu


* Produção – José Mário Branco e António José Martins
Gravado no Angel Studio, Lisboa
Técnico de som – José Manuel Fortes



SEM SEGREDO ALGUM



Poema de António Ramos Rosa (in "Volante Verde", Lisboa: Moraes Editores, col. Círculo de Poesia, 1986)
Recitado por Luísa Cruz* (in Livro/2CD "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX", col. Sons, Assírio & Alvim, 2004)


Rodeio-te de nomes, água, fogo, sombra,
vagueio dentro das tuas formas nebulosas.
Como um ladrão aproximo-me entre palavras e nuvens.
Não te encontrei ainda. Falo dentro do teu ouvido?
Entre pedras lentas, oiço o silêncio da água.

A obscuridade nasce. Tens tu um corpo de água
ou és o fogo azul das casas silenciosas?
Não te habito, não sou o teu lugar, talvez não sejas nada
ou és a evidência rápida, inacessível,
que sem rastro se perde no silêncio do silêncio.

O que és não és, não há segredo algum.
Selvagem e suave, entre miséria e música,
o coração por vezes nasce. As luzes acendem-se na margem.
Estou no interior da árvore, entre negros insectos.
Sinto o pulsar da terra no seu obscuro esplendor.


* Selecção de poemas e direcção de actores – Gastão Cruz
Coordenação editorial – Teresa Belo
Gravado e masterizado por Artur David e João Gomes, no Estúdio Praça das Flores, Lisboa, em Outubro de 2004
Supervisão de gravação – Vasco Pimentel



AMOR DA PALAVRA, AMOR DO CORPO



Poema de António Ramos Rosa (in "Nos Seus Olhos de Silêncio", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 116)
Recitado por Afonso Dias* (in CD "Cantando Espalharey", vol. I, Edere, 2001)


A nudez da palavra que te despe.
Que treme, esquiva.
Com os olhos dela te quero ver,
que não te vejo.
Boca na boca através de que boca
posso eu abrir-te e ver-te?
É meu receio que escreve e não o gosto
do sol de ver-te?
Todo o espaço dou ao espelho vivo
e do vazio te escuto.
Silêncio de vertigem, pausa, côncavo
de onde nasces, morres, brilhas, branca?
És palavra ou és corpo unido em nada?
É de mim que nasces ou do mundo solta?
Amorosa confusão, te perco e te acho,
à beira de nasceres tua boca toco
e o beijo é já perder-te.


* Pesquisa e produção – Afonso Dias e André Dias
Gravado no Estúdio InforArte, Chinicato - Lagos
Técnicos de som – Fernando Guerreiro e Joaquim Guerreiro



AQUI MEREÇO-TE



Poema de António Ramos Rosa (in "A Construção do Corpo", Lisboa: Portugália Editora, 1969)
Recitado por Luís Gaspar (2008) (in "Estúdio Raposa")


O sabor do pão e da terra
e uma luva de orvalho na mão ligeira.
A flor fresca que respiro é branca.
E corto o ar com um pão enquanto caminho entre searas.
Pertenço em cada movimento a esta terra.
O meu suor tem o gosto das ervas e das pedras.
Sorvo o silêncio visível entre as árvores.
É aqui e agora o dilatado abraço das raízes claras do sono.
Sob as pálpebras transparentes deste dia
o ar é o suspiro dos próprios lábios.
Amar aqui é amar no mar,
mas com a resistência das paredes da terra.

A mão flui liberta tão livre como o olhar.
Aqui posso estar seguro e leve no silêncio
entre calmas formas, matérias densas, raízes lentas,
ao fogo esparso que alastra ao horizonte.
No meu corpo acende-se uma pequena lâmpada.
Tudo o que eu disser são os lábios da terra,
o leve martelar das línguas de água,
as feridas da seiva, o estalar das crostas,
murmúrio do ar e do fogo sobre a terra,
incessante alimento que percorre o meu corpo.
Aqui no grande olhar eu vejo e anuncio
as claras ervas, as pedras vivas, os pequenos animais,
os alimentos puros,
as espessas e nutritivas paredes do sono,
o teu corpo com todo o vagar da sua massa,
todo o peso das coisas e a ligeireza do ar.

Ao flexível volante trabalhado pelas seivas
a minha mão alia-se: bom dia, horizonte.
Uma saúde nova vai nascer destes ombros.
A lâmpada respira ao ritmo da terra.
Sei os caminhos da água pelas veredas,
as mãos das ervas finas embriagadas de ar,
o silêncio donde se ergue a torre do canto.

Abrem-se os novos lábios e eu mereço-te.
É este o reino de insectos e de jogos,
das carícias que sabem a uma sede feliz.
Aqui entre o poço e o muro,
neste pequeno espaço de pedra cai um silêncio antigo:
uma infância inextinguível se alimenta
de uma fábula que renasce em todas as idades.
É aqui, minha filha, que dança a fada do ar
com seu brilho sedoso de erva fina
e a sua abelha silenciosa sobre a fronte.
É aqui o eterno recanto onde a água diz
a pura praia da infância.
Aqui bebe e bebe longamente
o hálito da tristeza no silêncio da vida,
aqui, ó pátria de água calada e de pão doce,
da fundura do tempo, da lonjura permanente,
aqui, bom dia, minha filha.



TEU CORPO PRINCIPIA



Poema de António Ramos Rosa (in "Estou Vivo e Escrevo Sol", Lisboa: Editora Ulisseia, 1966)
Recitado por Luís Gaspar (2008) (in "Estúdio Raposa")


Dou-te um nome de água
para que cresças no silêncio.

Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.

Invento do meu nada
esta pergunta.
(Nesta hora, aqui.)

Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.

Silêncio e sol – verdade,
respiração apenas.

Amor, eu sei que vives
num breve país.

Os olhos imagino
e o beijo na cintura,
ó tão delgada.

Se é milagre existires,
teus pés nas minhas palmas.

Ó maravilha, existo
no mundo dos teus olhos.

Ó vida perfumada
cantando devagar.

Enleio-me na clara
dança do teu andar.

Por uma água tão pura
vale a pena viver.

Um teu joelho diz-me
a indizível paz.



DA GRANDE PÁGINA ABERTA DO TEU CORPO



Poema de António Ramos Rosa (in "Nos Seus Olhos de Silêncio", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 117)
Recitado por José-António Moreira (2006) (in "Sons da Escrita")




Da grande página aberta do teu corpo
sai um sol verde
um olhar nu no silêncio de metal
uma nódoa no teu peito de água clara

Pela janela vejo a pequenina mão
de um insecto escuro
percorrer a madeira do momento intacto
meus braços agitam-te como uma bandeira em brasa
ó favos de sol

Da grande página aberta
sai a água de um chão vermelho e doce
saem os lábios de laranja beijo a beijo
o grande sismo do silêncio
em que soberba cais vencida flor



Viste o cavalo varado a uma varanda?



Poema de António Ramos Rosa (in "Ciclo do Cavalo", Porto: Limiar, col. Os Olhos e a Memória, 1975 – p. 21; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 133)
Recitado por Manuel Alegre* (in CD "Vozes Poéticas da Lusofonia por Timor: Festa da Língua Portuguesa", Gravisom, 1999)


Viste o cavalo varado a uma varanda?
Era verde, azul e negro e sobretudo negro.
Sem assombro, vivo da cor, arco-íris quase.
E o aroma do estábulo penetrando a noite.

Do outro lado da margem ascendia outro astro
como uma lua nua ou como um sol suave
e o cavalo varado abria a noite inteira
ao aroma de Junho, aos cravos e aos dentes.

Uma língua de sabor para ficar na sombra
de todo um verão feliz e de uma sombra de água.
Viste o cavalo varado e toda a noite ouviste
o tambor do silêncio marcar a tua força

e tudo em ti jazia na noite do cavalo.


* Gravado nos estúdios da RDP, Lisboa, a 22 de Junho de 1999
Produção digital – José M. Gouveia (RDP)
Masterização – João Oliveira, nos Estúdios Gravisom, Lisboa



O Que Vê o Meu Olhar



Letra: Popular (quadra) e Amélia Muge, inspirada no poema de António Ramos Rosa "Nada mais delicado do que o tecido do olhar" [texto >> abaixo]
Música: Amélia Muge
Intérprete: Amélia Muge* (in CD "Não Sou Daqui", Vachier & Associados, 2006)




No alto daquele mar
Está uma pombinha branca;
Não é pomba, não é nada:
É o mar que se alevanta.

[instrumental]

O que olha o meu olhar
Por fora disto que é ver
Como se deixa esconder
No que vê o coração
Pode não ser confusão
Pode ser só sensação
Vá lá a gente saber
Mas há sempre uma ilusão
Lá ao longe a flutuar
Entre espuma e hesitação
No alto daquele mar

No alto daquele mar
Está uma pombinha branca;
Não é pomba, não é nada:
É o mar que se alevanta.
[bis]

E o mar ao dar à anca
Torna branco o movimento
E faz disto sentimento
Que se levanta do chão
Em rota de colisão
Com o olhar espião
Dele e do próprio momento
Em que voa a sedução
Que ao poisar diz que manca
E ao colo da criação
Está uma pombinha branca

Não é pomba, não é nada:
É o mar que se alevanta.

No alto daquele mar
Está uma pombinha branca;
Não é pomba, não é nada:
É o mar que se alevanta.

No torpor da madrugada
Todas as ondas são uma
Vemos todas e nenhuma
E toda a espuma é fusão
Irmã da própria ficção
Que transforma a emoção
Em breve gesto de espuma
E nesta desatenção
Esta morte alevantada
É um véu no som do não
Não é pomba, não é nada

No alto daquele mar
Está uma pombinha branca;
Não é pomba, não é nada:
É o mar que se alevanta.
[bis]

E a cegueira se espanta
De ninguém lhe querer falar
E nem sequer p'ra ela olhar
Já que é dela a condição
De encontrar outra razão
P'ra iludir a solidão
E a vista não se calar
Em nenhuma situação
E só de ouvir ela canta
Que não há engano não
É o mar que se alevanta

No alto daquele mar
Está uma pombinha branca;
Não é pomba, não é nada:
É o mar que se alevanta.


* [Créditos gerais do disco:]
Amélia Muge – voz, voz de sala, coros e viola braguesa
António José Martins – darbuka, triângulo, bombo, bendir, estalo, djembé, bilha, maraca, chiquitsi, voz de sala, amostrador e sintetizador
Carlos Mil-Homens – cajón
Catarina Anacleto – violoncelo
Filipe Raposo – piano acústico, piano Rhodes e acordeão
José Manuel David – flautas transversal e de bisel, tarota, trompa, garrafas e voz de sala
José Peixoto – guitarra acústica sem trastos
Yuri Daniel – contrabaixo e baixo eléctrico
Arranjos – António José Martins, José Manuel David e Filipe Raposo (partes de piano, acordeão e trompa)
Direcção musical – António José Martins
Produção – Amélia Muge e António José Martins
Gravado por Samuel Henriques no Estúdio MDL, Paço d'Arcos (voz, piano, baixo, contrabaixo e cajón)
e por António José Martins no estúdio da ETIC (Escola de Tecnologias Inovação e Criação), Lisboa, e no AJM Estúdio, Sobreda
Misturado e masterizado por António Pinheiro da Silva e António José Martins, no Estúdio Pé-de-Meia



Nada mais delicado do que o tecido do olhar

(António Ramos Rosa, in "Delta seguido de Pela Primeira Vez", Lisboa: Quetzal Editores, 1996; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 356)


Nada mais delicado do que o tecido do olhar
absoluta nascente do silêncio abóbada cristalina
Em inocência branca os olhos vêem a concreta limpidez
e a sua essência é como um levíssimo aroma rapidíssimo
Entre ser e não ser ondula esta alfombra transparente
cuja exactidão é terna e subtil potência breve
Uma cortesia do imponderável armistício do indizível
secreta graça da atenção e distracção do centro
Como uma lua entre sombras esquiva e confidente
ou como um cristal em movimento ou um nadador redondo
o olhar é um nascimento no permanente olvido
e como um navio equilibra a substância das coisas



NÓS SOMOS



Poema: António Ramos Rosa (in "Sobre o Rosto da Terra", Covilhã: Livraria Nacional, col. Pedras Brancas, 1961; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 72)
Música: Tiago Bettencourt
Intérprete: Tiago Bettencourt* com Dalila Carmo (in CD "Tiago na Toca e os Poetas", Metropolitana/EMI, 2011)




Como uma pequena lâmpada subsiste
e marcha no vento, nestes dias,
na vereda das noites, sob as pálpebras do tempo.

Caminhamos, um país sussurra,
dificilmente nas calçadas, nos quartos,
um país puro existe, homens escuros,
uma sede que arfa, uma cor que desponta no muro,
uma terra existe nesta terra,
nós somos, existimos

Como uma pequena gota às vezes no vazio,
como alguém só no mar, caminhando esquecidos,
na miséria dos dias, nos degraus desconjuntados,
subsiste uma palavra, uma sílaba de vento,
uma pálida lâmpada ao fundo do corredor,
uma frescura de nada, nos cabelos nos olhos,
uma voz num portal e a manhã é de sol,
nós somos, existimos.

Uma pequena ponte, uma lâmpada, um punho,
uma carta que segue, um bom dia que chega,
hoje, amanhã, ainda, a vida continua,
no silêncio, nas ruas, nos quartos, dia a dia,
nas mãos que se dão, nos punhos torturados,
nas frontes que persistem,
nós somos,
existimos.


* Dalila Carmo – voz, coros
Tiago Bettencourt – guitarras, Fender Rhodes, coros
Produção executiva – Tiago Bettencourt e Paulo Ventura
Gravado na TOCA, por Tiago Bettencourt
Misturado por Artur David, no Lisboa Studio
Masterizado por Ars Lindberg, no Lisboa Studio

































Desenhos de António Ramos Rosa


Os olhos, os traços soltos em carícias leves,
murmuram o mundo, a sua dança, o seu clamor,
os seus aromas festivos,
e a lua, em seu rosto levíssimo flutua,
porque o sol é o astro, que em seu silêncio levita.

Na extremidade das flores, onde um veludo
precioso dormita,
a vida é o anoitecer deslumbrado.
Nos olhos de um Poeta, a dança do mundo,
os seus desenhos festivos acariciam a luz,
os seus bailados.
Nos jardins do seu nome, as palavras
resplandecem.

Nos ramos do silêncio, um pássaro pousou,
ainda há pouco,
nas praias obscuras, em suas fúlgidas areias,
o Poeta, em seus olhos de silêncio se banhou,
inebriado de canto e púrpura

e os seus traços, acompanhando os acordes
misteriosos, reinventaram os ritmos,
a criação,

              sobre membranas fluidas,
                                                   recamadas de vida.


Maria do Sameiro Barroso ("Poema com desenhos de António Ramos Rosa", in "António Ramos Rosa: Imagens do Caminho das Palavras e dos Afectos: Fotobiografia", de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005)

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