«Deu-se a coincidência de eu estar a escrever um livro, que a Universidade [de Coimbra] me solicitou, sobre as plantas na obra completa de Camões, em todos os poemas de Camões. E uma das plantas que eu lá identifiquei é essa, que ele nunca viu, mas que ele cita. Por causa do nome de um deus que era Narciso. E esse é o narciso a que Lineu deu o nome de narcissus poeticus, porque era o narciso que os poetas citavam nos seus poemas. É um narciso muito comum na Europa. Nós não temos, vem até aos Pirenéus. Essa fotografia é dos Pirenéus.»
JORGE PAIVA, em entrevista concedida à
jornalista Guilhermina Sousa, emitida pela
TSF-Rádio Jornal, a 17 Jan. 2025
[áudio e texto em https://www.tsf.pt/]
«O Núcleo de Biologia da Associação de Estudantes de Coimbra lançou ontem um concurso de ideias em homenagem ao botânico Jorge Paiva. É uma boa ideia.
O nome de Jorge Paiva devia ser regado e cuidado como se cuida da mais bela e frágil flor de um jardim. Ele gosta de narcisos, da beleza dos narcisos, não porque pretenda, retirado de cena aos 91 anos, rever o próprio rosto num espelho de água. Gosta da beleza da flor, do caule inclinado em vénia à flor amarela ou branca do narciso.
Jorge Paiva é um notável cientista desiludido com a apatia dos seus contemporâneos face aos problemas ambientais. Ao longo de várias décadas, o admirável botânico enviou, todos os Natais, milhares de postais alertando para a necessidade de civismo ambiental. O último citava Camões, "valioso lírico". Foi o pretexto para o botânico Jorge Paiva sacudir a legenda de "lírico irrealista" que os da compostura oficial e oficiosa, os que não fazem nem deixam fazer, lhe foram colando.
Está por fazer a grande homenagem nacional a este homem cujo nome foi dado pela comunidade científica a várias plantas entretanto descobertas. Mas sob o sorriso condescendente dos guardadores da circunspecta academia esconde-se o desdém dos contentes de si mesmos. Se perguntares na rua aos mais finórios, a quem quer que passe na pressa dos passeios, quem é Jorge Paiva, botânico, uma vida longa dedicada à paixão das plantas, o homem das improváveis expedições que lhe granjearam revelações de um mundo vegetal e várias crises de malária, poucos saberão.
Esbracejou ao longo da vida, abriu nesgas de clarividência onde imperava a opacidade, não esconde agora a desilusão com a desatenção dos dirigentes políticos relativamente aos temas ambientais, fora das proclamações de circunstância, claro. Tirando Guterres, não reconhece uma voz persistente na política actual que continuadamente alerte para o desastre.
Eis que um grupo de estudantes da universidade onde Jorge Paiva se licenciou e fez carreira acende agora a luz da sala, tocando no ponto: "Enquanto estudantes e futuros biólogos", sublinham, "sentimo-nos responsáveis pela desilusão expressa pelo professor Jorge Paiva no seu último postal de Natal". Assim, eles levantam o braço frente à indiferença geral e iniciam o que me ocorre designar como Expedição ao continente Jorge Paiva. O Núcleo de Estudantes de Biologia de Coimbra desassossega por instantes os corredores sisudos e lança o Concurso Jorge Paiva, na expectativa de que surjam ideias para a reabilitação de espaços e preservação de espécies na região de Coimbra.
E no início de Março há uma exposição com os postais de Natal do admirável botânico. Todos os postais. A flor de narciso ganha um amarelo vivo, saudando a primavera que não tarda.» [Fernando Alves, "Uma flor de narciso para Jorge Paiva", in "Os Dias que Correm", 26 Fev. 2025]
De canções portuguesas com a palavra 'narciso', no título ou no corpo da letra, referenciámos umas quantas mas o assunto tratado diz respeito a pessoas, ora envergando aquele nome ora tendo características narcísicas. Aludindo expressamente à flor daquela planta, nada lográmos encontrar, quer de canções quer de poemas ditos/recitados... Apanhámos, isso sim, uma canção que se refere às flores enquanto órgãos reprodutivos das plantas angiospérmicas e que, nessa medida, não podia ser mais adequada para dedicar a um botânico, no caso ao emérito Prof. Jorge Paiva: "Ai, Flores", de e por Amélia Muge, que abre o alinhamento do seu magnífico álbum "Taco a Taco", editado pela Polygram com o selo Mercury em 1998, e que no ano seguinte seria distinguido com o então prestigiado Prémio José Afonso. O arranjo, concebido por António José Martins, remete-nos para África, continente de onde o Prof. Jorge Paiva é natural (nasceu na vila angolana de Cambondo, na província de Cuanza Norte) e por onde também andou em campanhas científicas, pelo que certamente não deixaria de ouvir com prazer esta bela canção "Ai, Flores" como remate à crónica de Fernando Alves a si consagrada, se acaso esteve sintonizado nalguma frequência da Antena 1 aquando da transmissão hoje de manhã. E os ouvintes, na sua maioria, também a teriam escutado com agrado, quer aqueles que já a conhecem, quer os outros que assim podiam alargar os seus horizontes musicais e ficado (mais) despertos para a valiosa obra de Amélia Muge, cantautora que, apesar de ser a mais categorizada que existe em Portugal, tem sido muitíssimo maltratada pelas rádios nacionais, incluindo a do Estado.
Ai, Flores
Letra e música: Amélia Muge
Arranjo: António José Martins
Melodia incidental: José Mário Branco
Intérprete: Amélia Muge* (in CD "Taco a Taco", Mercury/Polygram, 1998)
A flor traz saiinha branca
E amarela chapelinha
A flor traz saiinha branca
E amarela chapelinha
Se a saia, se a saia cair ao chão
Fica a flor mais pobrezinha
Fica a flor mais pobrezinha
Grande é a contradição
Fica a flor mais pobrezinha
Grande é a contradição
Uma coroa, coroa de rainha
Com o reino pelo chão
Uma coroa, coroa de rainha
Com o reino pelo chão
[instrumental / vocalizos]
Com o reino pelo chão
Lá se foi quem já não é
Com o reino pelo chão
Lá se foi quem já não é
Lá dançam, lá dançam no terreiro
Os que ficaram de pé
Os que ficaram de pé
São a esperança da monção
Os que ficaram de pé
São a esperança da monção
Lá andam, lá andam na base da coroa
Inventam nova união
Lá andam, lá andam na base da coroa
Inventam nova união
[instrumental / vocalizos]
...de pé!
* Amélia Muge – voz
Catarina Anacleto e Luís Sá Pessoa – violoncelos
Nuno Patrício – didjiridum
Rui Júnior – congas
OÓQueSomTem – palmas
António José Martins – guimbarda, maracas
«Em termos de análise comparativa, "Múgica" é um dos melhores álbuns, ao nível da composição, dos arranjos e da voz, de música popular portuguesa da última década. "Múgica" começa por impressionar pela voz. Amélia Muge é a cantora das mil vozes, das mil maneiras de recriar um poema – a "provocação", como lhe chama, que desencadeia o acto criativo – e de arrancar toda a força que as palavras potenciam. Entre o fado e a música tradicional, a canção sarcástica, de "intervenção" ("Senhorecos", "Mariazinhas"), reminiscente da época em que os seus heróis (José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho) lutavam contra a estagnação e o conformismo, e melopeia infantil, entre o negrume e a luz, Amélia Muge lança sempre o trunfo certo, no modo como ela própria se joga na diversidade de máscaras e de registos vocais. Ora abusivos e viscerais, ora declamatórios e introspectivos. Num momento, grito, noutro, oração. "Múgica" acorda a intemporalidade da tradição, expressa logo na imagem do diabo músico da capa [de Rosa Ramalho], com a modernidade das formas e do conceito – que recuperam o primado do conteúdo sobre a imagem. Um disco com razão de ser. [...] Numa perspectiva diferente, é de louvar o modo como o produtor, António José Martins "vestiu" cada canção, optando por tonalidades que embora redutíveis à "world music" sabem evitar a armadilha do lugar-comum ao mesmo tempo que assumem contornos bem portugueses.»
Assim reza parte da recensão crítica de Fernando Magalhães, nas páginas do jornal "Público", de 21 de Junho de 1992, ao primeiro álbum de Amélia Muge, produzido no Outono de 1991 e editado em Fevereiro do ano seguinte, pela cooperativa UPAV (União Portuguesa de Artistas de Variedades, CRL). Na posição sétima do alinhamento de "Múgica" figura "Dia em Dia", espécie de breviário pessoal (laico) para os sete dias da semana, de domingo a sábado, e uma admirável reflexão poética impregnada de lúcida ironia sobre o rolar imparável do tempo e a dificuldade (impossibilidade mesmo, não raras vezes) de se tirar o melhor partido desse processo inexorável. A distinta autora, compositora e intérprete dedica o poema-canção a José Afonso, de quem começou por ser aluna na disciplina de Geografia do 3.º ano do curso dos liceus, no ano lectivo de 1964/65, no então Liceu António Enes, na cidade de Lourenço Marques (actual Maputo), e de quem, pouco depois, à medida que os álbuns do autor de "Cantares do Andarilho" iam sendo publicados, ano a ano, por Arnaldo Trindade, sob o selo Orfeu, veio a receber decisiva e marcante influência estético-artística. Hoje, data em que se completaram 38 anos sobre o desaparecimento de José Afonso, achámos por bem resgatar este belo e interpelante espécime poético-musical que lhe é dedicado, acreditando que será uma grata revelação para uma caterva dos leitores/visitantes do blogue "A Nossa Rádio". Boa escuta!
A talhe de foice, não podemos deixar de apontar o dedo acusador a Nuno Galopim de Carvalho pelo ignóbil ostracismo a que vem votando Amélia Muge ao negar-lhe a devida e merecida presença na 'playlist' da Antena 1. A situação não é nova, mas por ser de uma tremenda e atroz injustiça – falamos nada mais nada menos que da maior cantautora portuguesa –, tem de ser publicamente denunciada, para que não haja a desculpa de que se trata de mera desatenção ou falha fortuita.
Dia em Dia
Poema e música: Amélia Muge (ao Zeca Afonso)
Intérprete: Amélia Muge* (in CD "Múgica", UPAV, 1992)
Eu tenho o domingo
p'ra fechar os olhos
crer na felicidade
crer na felicidade
por dentro de um sonho
Eu tenho a segunda
p'ra saber chegar
sem surpresa aos dias
sem surpresa aos dias
que me hão-de matar
Tenho a terça-feira
p'ra comer as horas
umas depois doutras
umas depois doutras
entre um sim e um não
[instrumental / vocalizos]
E na quarta-feira
eu já estou além
olho para trás
olho para trás
entre hoje e ontem
E na quinta-feira
não há mais questões
há só que encontrar
há só que encontrar
boas conclusões
Sexta faço, invento
o fim de uma frase
que de toda a semana
que de toda a semana
justifica o meu tempo
Sábado já sei
não estou só com
meus vagares
pois há sempre dois
nas histórias lunares
Sábado já sei
não estou só com
meus vagares
pois há sempre dois
nas histórias lunares
[instrumental / vocalizos]
* Amélia Muge – voz
António José Martins – sintetizadores, percussões
Capa do CD "Múgica", de Amélia Muge (UPAV, 1992)
Fotografias e concepção da capa – António Lucena
Boneco de louça tradicional (diabo músico) de Rosa Ramalho
Coração de filigrana tradicional do Minho.
«Miguel Ángel Criado escreve, no El País, sobre Alto Hospicio, a cidade que se ergue do pó, num dos extremos do deserto de Atacama, quase sempre rodeada de névoa, mas tão árida que nela chove menos de um milímetro de água por ano.
A pouca água de Alto Hospicio [Chile] chega em camiões cisterna que atravessam o deserto ou através de quilómetros de condutas que cruzam um chão sob o qual dormem aquíferos contaminados pela exploração mineira.
Esta é uma prosa que ajuda a perceber o sentido de um verso da brasileira Maria Cecilia Brandi, num breve, belo e intenso livro intitulado "Atacama", em cujas 62 páginas parece ser-nos revelado o modo de descobrir veios de água nas palavras mais ressequidas. É o verso que fala da estrada, "única palavra ao alcance do horizonte".
Os versos deste livro sugerem a permanência imóvel da névoa que rodeia quase sempre Alto Hospicio: nessa lenta deriva das nuvens podemos "aprender a voar quietos".
O texto de Miguel Ángel Criado revela entretanto o projecto posto em marcha naquele extremo de Atacama, visando mitigar a seca de uma das zonas mais áridas do mundo: trata-se de apurar uma nova tecnologia capaz de roubar, todos os dias, vários litros de água às nuvens que não se comovem sobre os telhados de Alto Hospicio, à névoa.
Leio e fico a pensar num mercado que se possa abrir aos pastores de nuvens, cuja arte pudesse juntá-las em cardumes de água, vestidas só de vento.
Pastores de nuvens teriam deste modo um emprego talvez seguro, com o seu cajado especial preparado para as descargas eléctricas do céu e com a sabedoria de poetas como Manoel de Barros que conseguiu levar a um apuro surpreendente a arte de ajeitar as nuvens nos olhos.
A tecnologia futura poderá até surpreender-nos com a impressão de nuvens 3D, nuvens nascidas para chuva, mesmo oblíqua, e não para algodão em rama. Massas de água suspensas na atmosfera, trazidas desde a infância da chuva, a chuva no ovo, ainda no ovo, gotas tão invisíveis que acrescentassem um verso oculto entre aqueles com que Manoel de Barros nos apresenta um certo fotógrafo que tentou "fotografar o silêncio, coisa difícil". Que conseguiu ele? "Fotografou um perfume de jasmim / no beiral de um sobrado". E que mais? "Fotografou a Nuvem de Calças que vagueava / de braço dado com Maiakowski" [>> poema integral].
Fico a pensar nesse tal fotógrafo capaz de fotografar a sede dos de Alto Hospicio, enquanto os pastores de nuvens não começam a ganhar o seu sustento nos confins do deserto de Atacama.» [Fernando Alves, "Alto Hospicio, Atacama", in "Os Dias que Correm", 21 Fev. 2025]
Para remate poético-musical ou simplesmente musical à crónica que Fernando Alves leu hoje aos microfones da Antena 1, duas opções se ofereciam. Uma delas seria uma canção expressamente dedicada à cidade de Alto Hospicio, como a canção homónima interpretada pelo chileno Luis 'Checho' González [>> YouTube Music], ou um trecho cantado ou instrumental pertencente à tradição etnomusical da região do Deserto de Atacama, ou então uma composição original dedicada àquele inóspito deserto andino, como "Atacama: The Atacama Desert in Chile", pelo excelente grupo britânico Incantation [>> YouTube Music]. A outra opção seria uma canção alusiva às nuvens, de preferência portuguesa. E aí a melhor escolha seria, claramente, a moda alentejana "As Nuvens Que Andam no Ar", já gravada por muitos grupos corais de cante, entre os quais Os Ganhões de Castro Verde, no álbum de título genérico homónimo, publicado em 2015. Esta versão tem a particularidade de ter um lastro pianístico por Luiz Avellar que lhe confere um fascínio suplementar. «Um espanto, um encanto, um momento mágico»: foi com estas exactas palavras que o saudoso Armando Carvalhêda qualificou este registo dos Ganhões quando o levou à sua rubrica "Cantos da Casa", a 6 Abril de 2015 [>> RTP-Play] e com as quais o escrevente destas linhas não podia estar mais de acordo. Razão bastante para, aqui e agora, darmos o devido destaque a tão esplendorosa pérola e assim fazermos justiça, ainda que breve, a um dos mais reputados grupos corais alentejanos. Oxalá a Antena 1 tivesse procedido identicamente, hoje de manhã, fazendo jus ao serviço público que os ouvintes merecem (e legitimamente esperam) e mitigando, ainda que simbolicamente, a soez marginalização a que o cante tem sido votado por quem manda no canal generalista da rádio do Estado, apesar de se tratar de uma das mais genuínas e singulares expressões musicais de Portugal e do mundo (não por acaso a UNESCO a reconheceu como Património Cultural da Humanidade).
As Nuvens Que Andam no Ar
Letra e música: Popular (Baixo Alentejo)
Intérprete: Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde"* com Luiz Avellar (in CD "As Nuvens Que Andam no Ar", Associação de Cante Alentejano "Os Ganhões", 2015)
[instrumental]
[Cantiga primeira:]
Já chove, já está chovendo;
Já correm os barranquinhos;
Já o campo está alegre;
Já cantam os passarinhos.
[Moda:]
As nuvens que andam no ar,
Arrastadas pelo vento,
Vão buscar a água ao mar
P'ra regar em qualquer tempo.
P'ra regar em qualquer tempo,
Em qualquer tempo regar,
Arrastadas pelo vento
As nuvens que andam no ar.
[Cantiga segunda:]
Ó água que vais correndo
Mansamente, vagarosa,
Passa lá ao meu jardim!
Rega-me lá uma rosa!
[Moda:]
As nuvens que andam no ar,
Arrastadas pelo vento,
Vão buscar a água ao mar
P'ra regar em qualquer tempo.
P'ra regar em qualquer tempo,
Em qualquer tempo regar,
Arrastadas pelo vento
As nuvens que andam no ar.
[instrumental]
* Ponto – João Ribeiros
Alto – Manuel Pancadas
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde":
Álvaro Mira, António Diogo, António Felício, António Infante, António Lampreia, António Ribeiro, António Fernandes, Bruno Guerreiro, Carlos Anjos, Carlos Luís, David Pereira, Fernando Tavares, Filipe Pratas, Francisco Mestre, João Ribeiros, Joaquim Canário, José da Conceição, José Guerreiro, José Jerónimo, José Leitão, Luís Jorge, Manuel Romão, Manuel Pancadas, Manuel Pinto, Manuel Raposo, Rúben Lameira, Valter Sousa
Participação especial:
Luiz Avellar – piano
Capa do CD "As Nuvens Que Andam no Ar" do Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" (Associação de Cante Alentejano "Os Ganhões", 2015)
Fotografia – João Branco, Joaquim Rosa
Grafismo – Joaquim Rosa
Capa do livro "Atacama", de Maria Cecilia Brandi (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012)
Associamo-nos à celebração do Dia Mundial da Rádio para voltar a enaltecer o trabalho daquele que é o repórter-entrevistador-conversador e o cronista de mais alto gabarito em actividade no panorama radiofónico português: Fernando Alves. E fazêmo-lo dando enfoque à série de 24 entrevistas-conversas "Tão Longe, Tão Perto" que foi para o ar, nas frequências da Antena 1, nas manhãs de sábado, de 17 de Fevereiro a 27 de Julho de 2024. De figurino similar à serie "Onde nos Levam os Caminhos" que Fernando Alves manteve na TSF-Rádio Jornal e que ficara interrompida devido à situação de descalabro em que aquela rádio caiu (em Setembro de 2023), "Tão Longe, Tão Perto" é um excelente repositório da arte da entrevista-conversa com gente que, na maioria dos casos, é desconhecida do grande público mas muito cativante de se ouvir, pelos saberes e experiências que nos transmite. Boas audições! E que viva a rádio!
TÃO LONGE, TÃO PERTO
Ep. 1 | 17 Fev. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Solípedes, Conhos e Pirolitos.
A depressão Irene tinha deixado marcas nos caminhos, ainda antes de Alpalhão. Havia lençóis de água nos baixios da estrada, as ribeiras de Sor e de Nisa galgavam muros e alagavam os campos.
Ep. 2 | 24 Fev. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
"Quando saimos da cozinha é que somos cozinheiros".
O chef João d'Eça Lima já viu veados na serra do Espinhal. Mas terá tido tempo para ir à Pedra da Ferida?
Ep. 3 | 02 Mar. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Haverá um modo figueirense de estar no mundo?
No Jardim Municipal da Figueira da Foz, a dois passos do coreto e do mercado, um grupo de velhos amigos lança o isco às memórias comuns depois de um almoço na costa de Lavos.
Ep. 4 | 09 Mar. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Universidade Sénior de Penafiel: um "projecto de causas".
Quem são estas mulheres e estes homens de cabelos brancos que entram, tão sorridentes, numa antiga escola primária, ao lado da Igreja das Freiras, na rua Conde Ferreira, em Penafiel?
Ep. 5 | 16 Mar. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Com o artista visual Carlos No e agricultores do Pobral, na região saloia: "A couve adivinha a chuva".
Ep. 6 | 23 Mar. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
O sociólogo Abílio Amiguinho ainda vai aos marmelos na serra de São Mamede: "As gamboas são maiores e embaçam menos".
Ep. 7 | 30 Mar. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Aguiar da Beira: o paraíso dos orientistas em Portugal. Rafael Miguel, cartógrafo em Aguiar da Beira: "Passei em sítios que nenhum humano pisou. Floresta pura".
Ep. 8 | 06 Abr. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Sociedade Recreativa Operária de Santarém.
Respira-se cidadania na casa onde nasceu Frei Luís de Sousa...
Ep. 9 | 13 Abr. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts] Joaquim Ruivo, director do mosteiro da Batalha: "Fui procurado por uma freira dominicana. Vinha oferecer-nos dois dentes do Infante Santo".
Ep. 10 | 20 Abr. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Fernando Alves vai ao encontro de Francisco Lopes, historiador do Pego, coordenador do livro "O que é o comer?", onde se fala de migas carvoeiras, couves arrapazadas, feijão de barulho. E de bucho e tripas, claro...
Ep. 11 | 27 Abr. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts] Paulo Barracosa, o autor do livro "Cardo Máximo" acredita que "o cardo é a planta modelo para estudar as alterações climáticas no futuro".
Ep. 12 | 04 Mai. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts] Rui Lopes, criador do pão de medronho: "O medronheiro é, talvez, a planta que mais serviço presta aos ecossistemas da bacia do Mediterrâneo".
Ep. 13 | 11 Mai. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Pirilampos em Advagar. Marc Bonnet, um perito digital alemão escolheu viver em Advagar, uma pequena aldeia a meio caminho entre Santarém e Torres Novas.
Ep. 14 | 18 Mai. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts] Francisca Lopes Bicho, antiga professora de História no liceu de Beja e actual presidente da Associação Cultural Fialho de Almeida, autora do livro "Gente da Nossa Terra: Memórias de Cuba".
Ep. 15 | 25 Mai. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts] Duarte Belo e a cartografia fotográfica de Portugal.
Duarte Belo é arquitecto de formação, mas entregou-se a tempo inteiro à paixão maior que o leva a percorrer, a pé, o território português para nele pressentir e registar a respiração mais íntima.
Ep. 16 | 01 Jun. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
"Corre-me um rio no peito". O rio é o Tâmega. Luís Jales de Oliveira, a quem os mondinenses tratam por Ginho, é o grande cicerone da vila cujo farol é a Senhora da Graça, no alto do Monte Farinha.
Ep. 17 | 08 Jun. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts] António Matias Coelho, professor de História: "O Tejo é muito mais do que um rio".
Ep. 18 | 15 Jun. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts] José do Carmo Francisco, um cronista na Pátria da Chuva.
José do Carmo Francisco vai todos os dias ao mercado de Benfica, perto de sua casa. É ali que conversamos em deriva pelo mapa dos afectos.
Ep. 19 | 22 Jun. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts] José Manuel Aleixo, Presidente da Associação dos Amigos da Natureza de Cabeção: "Depois de muito longa ausência, o esquilo vermelho voltou a Cabeção".
Ep. 20 | 29 Jun. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts] Desidério Afonso, director do Rancho Folclórico de Dem. Pedro Homem de Mello dizia que ele era "o melhor dançarino do Alto Minho".
Ep. 21 | 06 Jul. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts] Maria Natividade Pires: tese de doutoramento inovadora e construção de pontes literárias na Escola Superior de Educação de Castelo Branco.
Ep. 22 | 13 Jul. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts] Anabela Santos criou um jardim numa rua onde só havia entulho.
A cuidadora de flores e de gente mostra-nos espécies improváveis no jardim que fez nascer do nada, numa rua de Lisboa.
Ep. 23 | 20 Jul. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Com três vizinhos do Camões, em Constância. António Mendes e Máximo Ferreira sentam-se à mesa do restaurante Vila Camões onde o anfitrião, António Onofre, prepara um roteiro gastronómico para fim de conversa.
Ep. 24 | 27 Jul. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts] António Mota, na Terra do Anjo Azul.
O encontro com o escritor António Mota tinha sido marcado na biblioteca municipal. O sábado de quase fim de Julho começara chuvoso quando nos instalámos na esplanada do café da biblioteca... Tão Longe, tão perto.
«Estou a quarenta, cinquenta páginas de um lugar incerto, um lugar a vir, pouca terra muita terra, será isso quando Saul escrever num bilhete "espera por mim", e isso acontecerá muito adiante da estação de Campanhã e da aldeia da Pedrinha do Sol, onde mora a avó de Saul, o rapaz que, pela primeira vez, viaja sozinho, num comboio pela mão do escritor António Mota.
É como se estivesse a chegar a Espinho, o mais veloz areal correndo do lado de lá da janela por dentro do espanto de um rapaz em sobressalto, tantas memórias e surpresas e sonhos dentro do sono em que esse rapaz chamado Saul pode mergulhar à janela de um comboio, tanto tumulto dentro da cabeça, a mãe reunindo o seu pequeno mundo num saco e a despedir-se dele na linha 5 da Gare do Oriente, vais gostar da Pedrinha do Sol, "há tanta coisa que podes fazer na Pedrinha do Sol, tens lá a minha bicicleta vermelha".
O escritor António Mota, menino de Vilarelho, Ovil [concelho de Baião], regressa a esse lugar que só ele sabe identificar na concha matricial da serra da Aboboreira. Certa vez, almoçávamos na Borges, ele apontou para os lados da serra e eu cuidei vislumbrar, na linha que os seus dedos desenhava, um lugar encantado ["Tão Longe, Tão Perto", 27 Jul. 2024 >> RTP-Play].
Ele já nos levou a esse lugar mágico num outro livro de há uns quinze anos, "Histórias da Pedrinha do Sol", onde vive um rapaz que gosta de pássaros e de nuvens e que se deixa levar por nuvens e pássaros a lugares improváveis.
Talvez seja ainda esse rapaz aquele que se senta agora ao lado do leitor, confiando-lhe a angústia pela mãe que ficou em Lisboa e vai ser despejada e terá de procurar uma casa onde talvez ele não caiba por agora, de tão acanhada, tão acanhada como o lugar 75 da carruagem 21 em que ele se lança ao seu destino, espera por mim. Saul tacteia as palavras com que partilha um quase pânico, sentado ao lado de um cavalheiro que cruza palavras numa página de jornal, 19 Horizontal: Fazer pela Vida. O rapaz dá um nome a essa invulgar personagem, engenheiro Paulo Freixinho, e eu faço vénia ao escritor António Mota pelo modo como sentou ao lado de Saul o grande cruciverbalista que fez brilhar há anos, na Pedrinha do Sol do nosso vocabulário, a palavra xurdir.
Vou à janela deste livro como se fosse à janela de um comboio, com a minha infância e de tantos outros que a minha fantasia possa inventar. Um livro é o comboio do leitor.
Interrompo a leitura para sacudir as pernas como se o comboio-livro tivesse chegado a um apeadeiro. Levanto-me, vou beber um copo de água, agora que o comboio-livro pára em Pombal. Há um grupo de rapazes e raparigas na plataforma, com as suas mochilas e bonés e t-shirts onde está escrito Férias Divertidas com a União de Freguesias de Campelo e Ovil. É como se Saul, o menino Mota, cuja infância viaja neste comboio de sonhos e incertezas, nos chamasse ainda e sempre para a sua aldeia de Vilarelho. Vamos, talvez lá encontremos o rapaz de Louredo e Pedro Alecrim. Entra na carruagem a rapariga do violoncelo e eu envio uma SMS ao meu amigo António Mota, pelo meu telemóvel ou por aquele que Saul perde na casa de banho do comboio. E ele conta-me que está a chegar de uma escola onde uma senhora lhe contou que tem no quarto uma fotografia tirada há muitos anos com ele. No mesmo caixilho, ao lado da fotografia, a senhora guarda um santinho.
É o anjo da guarda de Saul e das histórias que Saul inventa à janela de um comboio. Espera por mim.» [Fernando Alves, "Espera por mim", in "Os Dias que Correm", 12 Fev. 2025]
Um rapaz viajando num comboio... Que canção portuguesa ilustra melhor tal situação? Pois não era preciso pensar muito nem fazer muitas pesquisas para encontrá-la: "Comboio Malandro", de Fausto Bordalo Dias sobre poema do angolano António Jacinto. O categorizado cantautor gravou-a duas vezes: a primeira em 1974 para o LP "P'ró Que Der e Vier", e a segunda em 1989 para o álbum "A Preto e Branco". Qualquer um destes registos seria o remate ideal à crónica de hoje de Fernando Alves centrada na infância tomando como inspiração uma história escrita por António Mota. Assim não aconteceu, pois, logo a seguir à crónica, o oficiante de serviço, Ricardo Soares, mais não fez do que rezar a meteorologia e as temperaturas máximas previstas para todas as capitais de distrito.
Dado que a segunda gravação é razoavelmente conhecida, escolhemos a primeira, também muito boa, para aqui destacar e mostrar como a Antena 1 perdeu, uma vez mais, a oportunidade de prestar bom serviço público aos fiéis ouvintes da crónica de Fernando Alves e, simultaneamente, de evocar o grande Fausto Bordalo Dias. Boa escuta!
Comboio Malandro
Poema: António Jacinto (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Fausto Bordalo Dias
Intérprete: Fausto Bordalo Dias* (in LP "P'ró Que Der e Vier", Orfeu, 1974, reed. Movieplay, 1999; CD "Fausto", Col. O Melhor dos Melhores, vol. 39, Movieplay, 1994)
[instrumental]
Esse comboio malandro
passa
passa sempre com a força dele
ué ué
hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
O comboio malandro
passa
Nas janelas muita gente
ai bô viaje
adeujo homéé
n'ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda pra vender
hii hii hii
aquele vagon de grades tem bois
múu múu múu
tem outro
igual como este dos bois
leva gente,
muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste...
gente triste como os bois
gente que vai no contrato
[instrumental]
Tem bois que morre no viaje
mas o preto não morre
canta como é criança:
«Mulonde iá Késsua uádibalé
uádibalé uádibalé uádibalé...»
Esse comboio malandro
sozinho na estrada de ferro
passa
passa
sem respeito
ué ué
hii hii
com muito fumo no trás
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
Comboio malandro
o fogo que sai no corpo dele
vai no capim e queima
vai nas casas...
vai nas casas dos pretos e queima
Esse comboio malandro
Esse comboio...
Esse comboio malandro
Já queimou o meu milho.
[instrumental]
Se na lavra de milho tem pacaças
eu faço armadilhas no chão,
se na lavra tem kiombos
eu tiro a espingarda de kimbundo
E mato neles
mas se vai lá fogo do comboio malandro
— deixa! —
ué ué ué
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
só fica fumo,
muito fumo mesmo.
ué ué ué ué ué ué ué
Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
e os brancos chamar os pretos pra empurrar
eu vou
mas não empurro
— nem com chicote —
finjo só que faço força
Comboio malandro
você vai ver só o castigo
vai dormir mesmo no meio do caminho.
Você vai ver só o castigo
vai dormir mesmo no meio do caminho.
ué ué ué ué ué ué ué
* Fausto Bordalo Dias – voz, viola e percussões
Kinito – percussões
(António Jacinto, in "Poemas", Col. Autores Ultramarinos, N.º 9, Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1961 – p. 15-17; "50 Poetas Africanos: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe", org. Manuel Ferreira, Lisboa: Plátano, 1989, 2.ª edição, 1997 – p. 37-39)
Esse comboio malandro
passa
passa sempre com a força dele
ué ué ué
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
O comboio malandro
passa
Nas janelas muita gente:
ai bô viaje
adeujo homéé
n'ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda pra vender
hii hii hii
aquele vagon de grades tem bois
múu múu múu
tem outro
igual como este dos bois
leva gente,
muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato
Tem bois que morre no viaje
mas o preto não morre
canta como é criança:
«Mulonde iá Késsua uádibalé
uádibalé uádibalé...»
Esse comboio malandro
sòzinho na estrada de ferro
passa
passa
sem respeito
ué ué ué
com muito fumo na trás
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
Comboio malandro
o fogo que sai no corpo dele
vai no capim e queima
vai nas casas dos pretos e queima
Esse comboio malandro
Já queimou o meu milho.
Se na lavra do milho tem pacaças
eu faço armadilhas no chão,
se na lavra tem kiombos
eu tiro a espingarda de kimbundo
e mato neles
mas se vai lá fogo do comboio malandro
— deixa! —
ué ué ué
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
só fica fumo,
muito fumo mesmo.
Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
e os brancos chamar os pretos pra empurrar
eu vou
mas não empurro
— nem com chicote —
finjo só que faço força
aka!
Comboio malandro
você vai ver só o castigo
vai dormir mesmo no meio do caminho.
Capa do livro "Poemas", de António Jacinto (Col. Autores Ultramarinos, N.º 9, Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1961)
Concepção – Luandino Vieira
Capa do LP "P'ró Que Der e Vier", de Fausto Bordalo Dias (Orfeu, 1974)
Fotografia e arranjo gráfico – Luís Martins, P. Almeida
Capa do livro "Espera por Mim", de António Mota (Col. Biblioteca Juvenil, N.º 14, Porto: Edições Asa, Jan. 2025)
Ilustração – Alex Gozblau
Capa do livro "Histórias da Pedrinha do Sol", de António Mota (Col. Júnior, Série Laranja, +8 anos, Lisboa: Texto Editores, Out. 2009)
Ilustrações – Júlio Vanzeler.
Auguste Rodin, "Le Penseur" ("O Pensador"), 1904, escultura em bronze, Museu Rodin, Paris
Fotografia – Daniel Stockman, 27 Abr. 2010
«Ainda era escuro na manhã, perguntei à Oriana Barcelos, uma das madrugadoras desta rádio, se tinha saudades da Canada dos Melancólicos. E ela pôs-se a desfiar nomes de canadas da sua Angra, começando pela dos Diabretes. A conversa espraiou-se pela Canada dos Capins e, num ai, levei as saudades por uma canada para os lados de São Mateus, com o fito numas lapas que eu cá sei.
Por volta das cinco e meia fui à janela e não vi a estrela Sirius. Depois perdi-me no céu do ecrã e encontrei no sítio da rádio Vidigueira notícia de uma acção agendada para logo, ao fim da tarde, pelo município de Moura. Trata-se da iniciativa "Ruas que Falam" que continua a interpretar a toponímia da cidade das atalaias e da moura Salúquia. Na tarde de hoje, a Câmara de Moura leva os interessados a percorrer a zona da Porta Nova, revelando segredos mais ou menos bem guardados nas cercanias das muralhas medievais.
Há tanto a descobrir, seguindo os nomes das ruas. No caso de Moura, basta que nos deixemos levar, olhos abertos, curiosidade alevantada. Na rua das Terçarias, talvez alguém nos inicie na lenda associada a uma caução, a um penhor, envolvendo duas mulheres poderosas – Beatriz, mãe de D. Manuel, e Isabel, rainha de Castela –, cada uma guardando como garantia de um rascunho para o futuro tratado de paz de Alcáçovas, o filho da outra. E vai pela Torre do Relógio, pela Fonte das Três Bicas, pelas ruínas do convento das freiras dominicanas, pelas termas. E pergunta pela Rua dos Espingardeiros, pela dos Carmelitas, pela Rua Primeira do Sete e Meio, pela do Escalatrim, pela da Igualdade. Dá a volta ao largo da Capa Rota. E se te cansares, senta-te no Jardim dos Mal Encarados.
Mas guarda tempo, algum tempo para o ritual da mesa na Taberna do Liberato, onde já fiz com bons compinchas uma inesquecível emissão de rádio durante a qual, Jorge, o anfitrião, explicou como foi eleito bastonário da Ordem dos Taberneiros.
Entre duas lascas de presunto e um brinde ao grande Mário Zambujal, que aqui nasceu, saúdo a iniciativa da autarquia de Moura. Tantos são os que nada sabem, e muitos não cuidam de saber, sobre as origens do nome da rua onde vivem.
Lembro-me de, há muito tempo, em Vila de Frades, junto à casa onde nasceu o escritor Fialho de Almeida, ter ficado preso ao nome da rua mais próxima, Rua do Pensamento. Uma pequena rua de casas baixas e alto nome. Cheguei a bater a algumas portas, cuidando que haveria de colher de algum morador, não digo uma explicação cabal, mas um doce desvario, um verso repentista, um pensamento escapando-se em sorriso largo. Mas não, ninguém sabia. Dá que pensar.» [Fernando Alves, "Ruas que falam", in "Os Dias que Correm", 6 Fev. 2025]
Poemas e canções em língua portuguesa que referem o pensamento ou o acto de pensar não escasseiam. Alguns exemplos bem conhecidos: "Livre" (Não há machado que corte / a raiz ao pensamento), de Carlos de Oliveira, cantado por Manuel Freire; "Abandono" (Por teu livre pensamento / Foram-te longe encerrar), de David Mourão-Ferreira, cantado por Amália; "Vejam Bem" (que não há só gaivotas em terra / quando um homem se põe a pensar", de e por José Afonso. Com o vocábulo "pensamento" no título também existem várias canções e entre elas figura uma que seria o perfeito remate poético-musical à crónica de Fernando Alves hoje emitida pela Antena 1 no programa da manhã: "Pensamento", por Adriano Correia de Oliveira cantando versos de Manuel Alegre, que saiu primeiramente no EP "Trova do Vento Que Passa", em inícios de 1964. Acreditamos piamente que Fernando Alves teria apreciado que este belo trecho fosse tomado como epílogo às sua palavras em torno do pensamento. E teria sido também uma excelente oportunidade para dar a ouvir Adriano Correia de Oliveira, uma das melhores vozes de sempre da música portuguesa mas alvo de um criminoso boicote por quem tem administrado a 'playlist' do canal generalista da rádio do Estado. Os ouvintes teriam, decerto, ficado agradados com este mimo, mas não lhes foi concedido. Aqueles que aqui acederem poderão desfrutá-lo as vezes que lhes apetecer e voltarem a lamentar-se pela desconsideração a que são votados pela rádio que pagam. Boa escuta!
Pensamento
Poema: Manuel Alegre
Música: Adriano Correia de Oliveira e António Portugal
Intérprete: Adriano Correia de Oliveira* [in EP "Trova do Vento Que Passa", Orfeu, 1964; LP "Adriano Correia de Oliveira: Baladas", Orfeu, 1969; LP "Trova do Vento Que Passa", Orfeu, 1982; "7CD "Adriano: Obra Completa": CD "Trova do Vento Que Passa: Adriano canta Manuel Alegre (I)", Movieplay, 1994; 7 livros/CD "Obra Completa de Adriano Correia de Oliveira": vol. 3 - "Trova do Vento Que Passa: Adriano canta Manuel Alegre I", Movieplay/Público, 2007]
Meu pensamento
Partiu no vento
Podem prendê-lo
Matá-lo não.
Meu pensamento
Quebrou amarras
Partiu no vento
Deixa guitarras.
Meu pensamento
Por onde passas
Estátua de vento
Em cada praça.
Meu pensamento
Partiu no vento
Podem prendê-lo
Matá-lo não.
Foi à conquista
Do novo mundo
Foi vagabundo
Contrabandista.
Foi marinheiro
Maltês ganhão
Foi prisioneiro
Mas servo não.
Meu pensamento
Partiu no vento
Podem prendê-lo
Matá-lo não.
E os reis mandaram
Fazer muralhas
Tecer as malhas
De negras leis.
Homens morreram
Chamas ao vento
Por ti morreram
Meu pensamento.
* Adriano Correia de Oliveira – voz
António Portugal – guitarra de Coimbra
Rui Pato – viola
Capa do EP "Trova do Vento Que Passa", de Adriano Correia de Oliveira (Orfeu, 1964)
Fotografia – Fernando Aroso
Capa da compilação em LP "Adriano Correia de Oliveira: Baladas" (Orfeu, 1969)
Fotografia – Fernando Aroso (Praia de Lavadores, Vila Nova de Gaia)
Capa da compilação em LP "Trova do Vento Que Passa" (Orfeu, 1982)
Reedição da compilação anterior.
Capa da caixa de 7CD "Adriano: Obra Completa", org. José Niza (Movieplay, 1994)
Fotografia – Inácio Ludgero
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Edição electrónica/digitalização gráfica – Olívia Braga
Capa do CD "Trova do Vento Que Passa: Adriano canta Manuel Alegre (I)", org. José Niza (Movieplay, 1994)
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Edição electrónica/digitalização gráfica – Olívia Braga
Capa do livro/CD "Trova do Vento Que Passa: Adriano canta Manuel Alegre I", vol. 3 da "Obra Completa de Adriano Correia de Oliveira", org. José Niza (Movieplay/Público, 2007)