21 fevereiro 2025

Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"


Nuvens de chuva (nimbostratus)
© Cecília Bastos / USP Imagens (in https://imagens.usp.br/)


«Miguel Ángel Criado escreve, no El País, sobre Alto Hospicio, a cidade que se ergue do pó, num dos extremos do deserto de Atacama, quase sempre rodeada de névoa, mas tão árida que nela chove menos de um milímetro de água por ano.
A pouca água de Alto Hospicio [Chile] chega em camiões cisterna que atravessam o deserto ou através de quilómetros de condutas que cruzam um chão sob o qual dormem aquíferos contaminados pela exploração mineira.
Esta é uma prosa que ajuda a perceber o sentido de um verso da brasileira Maria Cecilia Brandi, num breve, belo e intenso livro intitulado "Atacama", em cujas 62 páginas parece ser-nos revelado o modo de descobrir veios de água nas palavras mais ressequidas. É o verso que fala da estrada, "única palavra ao alcance do horizonte".
Os versos deste livro sugerem a permanência imóvel da névoa que rodeia quase sempre Alto Hospicio: nessa lenta deriva das nuvens podemos "aprender a voar quietos".
O texto de Miguel Ángel Criado revela entretanto o projecto posto em marcha naquele extremo de Atacama, visando mitigar a seca de uma das zonas mais áridas do mundo: trata-se de apurar uma nova tecnologia capaz de roubar, todos os dias, vários litros de água às nuvens que não se comovem sobre os telhados de Alto Hospicio, à névoa.
Leio e fico a pensar num mercado que se possa abrir aos pastores de nuvens, cuja arte pudesse juntá-las em cardumes de água, vestidas só de vento.
Pastores de nuvens teriam deste modo um emprego talvez seguro, com o seu cajado especial preparado para as descargas eléctricas do céu e com a sabedoria de poetas como Manoel de Barros que conseguiu levar a um apuro surpreendente a arte de ajeitar as nuvens nos olhos.
A tecnologia futura poderá até surpreender-nos com a impressão de nuvens 3D, nuvens nascidas para chuva, mesmo oblíqua, e não para algodão em rama. Massas de água suspensas na atmosfera, trazidas desde a infância da chuva, a chuva no ovo, ainda no ovo, gotas tão invisíveis que acrescentassem um verso oculto entre aqueles com que Manoel de Barros nos apresenta um certo fotógrafo que tentou "fotografar o silêncio, coisa difícil". Que conseguiu ele? "Fotografou um perfume de jasmim / no beiral de um sobrado". E que mais? "Fotografou a Nuvem de Calças que vagueava / de braço dado com Maiakowski" [>> poema integral].
Fico a pensar nesse tal fotógrafo capaz de fotografar a sede dos de Alto Hospicio, enquanto os pastores de nuvens não começam a ganhar o seu sustento nos confins do deserto de Atacama.» [Fernando Alves, "Alto Hospicio, Atacama", in "Os Dias que Correm", 21 Fev. 2025]


Para remate poético-musical ou simplesmente musical à crónica que Fernando Alves leu hoje aos microfones da Antena 1, duas opções se ofereciam. Uma delas seria uma canção expressamente dedicada à cidade de Alto Hospicio, como a canção homónima interpretada pelo chileno Luis 'Checho' González [>> YouTube Music], ou um trecho cantado ou instrumental pertencente à tradição etnomusical da região do Deserto de Atacama, ou então uma composição original dedicada àquele inóspito deserto andino, como "Atacama: The Atacama Desert in Chile", pelo excelente grupo britânico Incantation [>> YouTube Music]. A outra opção seria uma canção alusiva às nuvens, de preferência portuguesa. E aí a melhor escolha seria, claramente, a moda alentejana "As Nuvens Que Andam no Ar", já gravada por muitos grupos corais de cante, entre os quais Os Ganhões de Castro Verde, no álbum de título genérico homónimo, publicado em 2015. Esta versão tem a particularidade de ter um lastro pianístico por Luiz Avellar que lhe confere um fascínio suplementar. «Um espanto, um encanto, um momento mágico»: foi com estas exactas palavras que o saudoso Armando Carvalhêda qualificou este registo dos Ganhões quando o levou à sua rubrica "Cantos da Casa", a 6 Abril de 2015 [>> RTP-Play] e com as quais o escrevente destas linhas não podia estar mais de acordo. Razão bastante para, aqui e agora, darmos o devido destaque a tão esplendorosa pérola e assim fazermos justiça, ainda que breve, a um dos mais reputados grupos corais alentejanos. Oxalá a Antena 1 tivesse procedido identicamente, hoje de manhã, fazendo jus ao serviço público que os ouvintes merecem (e legitimamente esperam) e mitigando, ainda que simbolicamente, a soez marginalização a que o cante tem sido votado por quem manda no canal generalista da rádio do Estado, apesar de se tratar de uma das mais genuínas e singulares expressões musicais de Portugal e do mundo (não por acaso a UNESCO o reconheceu como Património Cultural da Humanidade).



As Nuvens Que Andam no Ar



Letra e música: Popular (Baixo Alentejo)
Intérprete: Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde"* com Luiz Avellar (in CD "As Nuvens Que Andam no Ar", Associação de Cante Alentejano "Os Ganhões", 2015)


[instrumental]

[Cantiga primeira:]
Já chove, já está chovendo;
Já correm os barranquinhos;
Já o campo está alegre;
Já cantam os passarinhos.

[Moda:]
As nuvens que andam no ar,
Arrastadas pelo vento,
Vão buscar a água ao mar
P'ra regar em qualquer tempo.

P'ra regar em qualquer tempo,
Em qualquer tempo regar,
Arrastadas pelo vento
As nuvens que andam no ar.

[Cantiga segunda:]
Ó água que vais correndo
Mansamente, vagarosa,
Passa lá ao meu jardim!
Rega-me lá uma rosa!

[Moda:]
As nuvens que andam no ar,
Arrastadas pelo vento,
Vão buscar a água ao mar
P'ra regar em qualquer tempo.

P'ra regar em qualquer tempo,
Em qualquer tempo regar,
Arrastadas pelo vento
As nuvens que andam no ar.

[instrumental]


* Ponto – João Ribeiros
Alto – Manuel Pancadas
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde":
Álvaro Mira, António Diogo, António Felício, António Infante, António Lampreia, António Ribeiro, António Fernandes, Bruno Guerreiro, Carlos Anjos, Carlos Luís, David Pereira, Fernando Tavares, Filipe Pratas, Francisco Mestre, João Ribeiros, Joaquim Canário, José da Conceição, José Guerreiro, José Jerónimo, José Leitão, Luís Jorge, Manuel Romão, Manuel Pancadas, Manuel Pinto, Manuel Raposo, Rúben Lameira, Valter Sousa
Participação especial:
Luiz Avellar – piano

Produção executiva – Associação de Cante Alentejano "Os Ganhões"
Coordenação – Filipe Pratas
Gravado e misturado por Rui Guerreiro, no Atlântico Blue Studios, Paço d'Arcos
Assistentes – Tito Carreno, Zé Maria Sobral e Fernando Dallot
Masterização – Rusty Warrior
URL: https://www.ganhoescastroverde.com.pt/
https://www.facebook.com/pages/Associação-de-Cante-Alentejano-os-Ganhões-de-Castro-Verde/421469524614637
https://anossamusica.web.ua.pt/ecdetails.php?ecid=8730
https://music.youtube.com/channel/UC9ILFIZZsWrJulUmTPMWa9w
https://www.youtube.com/watch?v=05BYPUy7290
https://www.youtube.com/watch?v=NsLUxPKAKyI
https://www.youtube.com/@antoniocasqueira7841/videos?query=ganhoes
https://www.youtube.com/@josecolaco60/videos?query=ganhoes



Capa do CD "As Nuvens Que Andam no Ar" do Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" (Associação de Cante Alentejano "Os Ganhões", 2015)
Fotografia – João Branco, Joaquim Rosa
Grafismo – Joaquim Rosa



Capa do livro "Atacama", de Maria Cecilia Brandi (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012)



Localização do deserto de Atacama no mapa da América do Sul.
© Encyclopædia Britannica, Inc. (in https://www.britannica.com/)



Capa da 1.ª edição (brasileira) do livro "Ensaios Fotográficos", de Manoel de Barros (Rio de Janeiro: Editora Record, 2000)



Capa da edição portuguesa do livro "Ensaios Fotográficos", de Manoel de Barros (Lisboa: Alfaguara, Set. 2021)
Ilustração – Regina Ferraz.

___________________________________________

Outros artigos com modas por grupos corais alentejanos:
Celebrando a Ronda dos Quatro Caminhos
O canto alentejano é património da Humanidade
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde": "Grândola, Vila Morena"
Grupo Coral "Os Ceifeiros de Cuba": "No Tempo da Primavera"
Grupo Coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração: "É Lindo na Primavera"
Cantes ao Menino
Grupo Coral e Etnográfico "As Camponesas de Castro Verde": "Os Bons Anos"
Grupo de Cantares Alentejanos da Brigada Territorial N.º 3 da G.N.R.: "Quais São os Três Cavalheiros?"

___________________________________________

Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)

Sem comentários: