01 maio 2023

Luís Cília: "O Cavador" (Guerra Junqueiro)


"O Cavador", escultura de pedra concebida por António Augusto da Costa Mota (tio, 1862-1930), inaugurada em 1913 no Jardim Guerra Junqueiro (Jardim da Estrela), em Lisboa. Foi a primeira escultura a ser colocada naquele jardim após a implantação da República.
© Ana Alvim, 22 Jun. 2022 (https://www.flickr.com/photos/167399054@N07/52166099320/)


Enxada – instrumento primordial para o trabalho manual da terra, difundido e conhecido largamente em todos os continentes pelos agricultores dos mais diversos níveis, e utilizado nas múltiplas e diversificadas operações que a preparação da terra implica, conforme a sua natureza e tipo de culturas, designadamente cavar, plantar, sachar e até roçar mato. A enxada consta de uma lâmina de ferro ou aço, cheia ou fendida – a , aba (Cinfães), ou pata (Barcelos) –, ligada ao olho em que entra o cabo [de madeira], e disposta obliquamente em relação a este, fazendo com ele um ângulo mais ou menos fechado [cf. verbete do livro "Alfaia Agrícola Portuguesa", de Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira, Lisboa: Instituto de Alta Cultura/Centro de Estudos de Etnologia, 1976].

Ainda hoje indispensável a quem cultiva a sua horta, a enxada perdeu, em consequência da mecanização da lavoura, muita da importância que teve outrora e a tornou o símbolo por excelência da agricultura, representado em emblemas de partidos políticos [por exemplo, no da extinta UDP (União Democrática Popular)] e na bandeira nacional de Moçambique. A cultura da vinha – e Portugal sempre foi um país acentuadamente vitivinícola – era das que mais requeria a mão-de-obra de cavadores, a começar pela cava da manta para o plantio do bacelo, que se realizava ao ritmo da voz de um mandador, também ele cavador. Esse trabalho árduo e extenuante, a troco de magra jorna, já é, felizmente, só memória nos ainda vivos que o executaram e naqueles que o presenciaram. Para conhecimento da posteridade ficaram registos áudio e audiovisuais, sendo de menção obrigatória os feitos por iniciativa do etnógrafo Michel Giacometti, em finais dos anos 1960 e inícios de 1970: a faixa "Bacelada" que abre o alinhamento do disco LP "Beira Alta, Beira Baixa, Beira Litoral", publicado em 1971 no âmbito da série "Música Regional Portuguesa", e que cerca de três décadas mais tarde os Gaiteiros de Lisboa recriaram no "Canto de Trabalhos", pertencente ao álbum "Macaréu", de 2002 [>> YouTube], e o episódio da série documental televisiva "Povo Que Canta", emitido a 24 de Janeiro de 1972, quase todo filmado algures na freguesia de Tavarede, concelho da Figueira da Foz [>> YouTube / RTP-Arquivos]. Também obra de muitos ranchos de cavadores são os socalcos do Alto Douro vinhateiro, onde se produzem (sobretudo desde 1756, ano em que o ministro Sebastião José de Carvalho e Mello, futuro Marquês de Pombal, fundou a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro e demarcou a região de cultivo) as uvas que dão um dos néctares mais apreciados em todo mundo, o vinho do Porto. Poucas das pessoas que o bebem e nem todas as que ficam extasiadas na contemplação daquela beleza paisagística, muito apropriadamente classificada pela UNESCO como Património da Humanidade, têm real noção de que no princípio de tudo esteve o esforço e o suor de milhares de anónimos cavadores. Homens que mal ganhavam para comer e para matar a fome às mulheres e aos filhos (que, por regra, não eram poucos), e que, como é fácil de depreender, não morriam velhos. Vários escritores e poetas, ainda antes de Alves Redol, de Joaquim Namorado e de outros autores neo-realistas, foram sensíveis à penosa, miserável e efémera existência dos cavadores durienses. Um deles foi Antero de Figueiredo que nos deixou este vívido e tocante testemunho:

Do Corgo para cima é Alto-Douro: – chão de xisto esfarelado pelo ar, pelo calor, pelo trabalho mortal da enxada, bidente e sarrada, do cavador-escravo, que, de sol a sol, debaixo da torreira calcinante, curvo, fincado no alvião, com a pele a escaldar e a luzir de suor, o corta, o espedaça, o pulveriza, convertendo a pedra em terra – em humo aspérrimo de que as raízes das cepas se alimentam com voracidade infernal, como plantas do diabo que exigissem, para seu sustento, o fogo da terra e o suor dos homens. A terra escalda; o ar queima. Secam as fontes, ardem os montes. Não há uma sombra de arbusto, nem um pingo de água. Há sessenta graus de calor do inferno, sede, sezões, dor, morte. Uma gota de vinho custa todo o suor de um homem! (in "Jornadas em Portugal", Lisboa: Livrarias Aillaud & Bertrand, 1918, p. 128-129).

Outro foi Guerra Junqueiro, natural do concelho de Freixo de Espada à Cinta (freguesia de Ligares), que no seu livro "Os Simples" (1892) lhes dedicou um poema, precisamente o quem por título "O Cavador". Texto esse que o cantautor Luís Cília, no final da década de 1960, musicou e cantou para o segundo volume da sua trilogia "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours", publicada em França por Moshé-Naïm. Em Portugal, a profissão de cavador/jornaleiro está extinta (e ainda bem!), mas ainda há muitos trabalhadores de outros ofícios socialmente desconsiderados (mas necessários), principalmente na indústria e no sector terciário, que não recebem o mínimo necessário para prover às necessidades básicas deles próprios e dos familiares. Trabalham mas vivem pobremente, de saúde frágil e com uma esperança de vida abaixo da média. Nessa ordem de ideias, não será exagerado considerá-los os cavadores da actualidade. A eles e aos de antanho, como penhor de gratidão pelo seu relevante legado, patente no Alto Douro vinhateiro e noutras partes de Portugal, rendemos homenagem neste Dia do Trabalhador dando destaque à canção "O Cavador", magnificamente interpretada por Luís Cília.

Apesar de alguns álbuns de Luís Cília estarem disponíveis em edição digital, no iTunes e na Amazon, pelo menos, há mais de dois anos, e de, muito provavelmente, existir na discoteca da RDP o CD "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours" (1996), nada do repertório do artista foi ainda incluído na 'playlist' da Antena 1, onde por direito devia estar representado. Não cremos que se trate de esquecimento fortuito, nem da falta de uns míseros euros para a compra 'online' de algumas faixas áudio, mas de exclusão intencional. Ora tal atitude é absolutamente intolerável, atendendo às particulares obrigações, consignadas na lei, que a rádio pública tem no domínio da música portuguesa, quer a publicada nos últimos doze meses, quer a anterior que seja culturalmente relevante, como é o caso da obra discográfica de Luís Cília. A Antena 1 não existe para funcionar como uma espécie de gueixa privativa de Nuno Galopim de Carvalho, mas para prestar verdadeiro serviço público aos cidadãos que a pagam!



O Cavador



Poema: Guerra Junqueiro (excerto ligeiramente adaptado) [texto integral >> abaixo]
Música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília* (in LP "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 2", Moshé-Naïm, 1969; CD "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours", Moshé-Naïm/EMEN, 1996)




[instrumental / assobio]

Dezembro, noite, canta o galo...
Rouco na treva canta o galo...
Aldeão não durmas!... Vai chamá-lo,
Miséria negra, vai chamá-lo!...
    — Oh, dor! oh, dor! oh, dor! —
Bate-lhe à porta, é teu vassalo,
Que traga a enxada, é teu vassalo,
Fantasma negro, o cavador!

Vem roxa a estrela d'alvorada...
Vem morta a estrela d'alvorada —
Montanhas nuas sob a geada!...
Hirtas, de bronze, sob a geada!...
    — Oh, dor! oh, dor! oh, dor! —
Torvo, inclinado sobre a enxada,
Rasga as montanhas com a enxada,
Fantasma negro, o cavador!

[instrumental / assobio]

Cavou, cavou desde que é dia...
Cavou, cavou... Bateu meio-dia...
De pé na encosta erma e bravia,
Triste na encosta erma e bravia,
    — Oh, dor! oh, dor! oh, dor! —
Largando a enxada, «Ave-Maria!...»
Reza em silêncio... «Ave-Maria!...»
Fantasma negro, o cavador!

Cavou cem montes... que é do trigo?
Gerou seis bocas... que é do trigo?
Bateu a Fome ao seu postigo...
Bateu a Morte ao seu postigo...
    — Oh, dor! oh, dor! oh, dor! —
«Que a paz de Deus seja comigo!...
Que a paz de Deus seja comigo!...»
Disse, expirando, o cavador!


* Luís Cília – voz, guitarra, berimbau e assobio
François Rabbath – contrabaixo

Produção – Moshé Naïm
Engenheiro de som – Jean-Pierre Dupuy
Masterização (antologia de 1996) – A.D.L.
URL: http://www.luiscilia.com/
https://www.youtube.com/user/LeoMOV/videos
https://music.youtube.com/channel/UCqL_T8TPQ2ffVAKn-v4kN_A



O CAVADOR

(Guerra Junqueiro, in "Os Simples", Porto: Typographia Occidental, 1892 – p. 95-98; "Os Simples: Poesias Líricas", Porto: Lello & Irmão – Editores, 1978 – p. 95-98)


Dezembro, noite, canta o galo...
Rouco na treva canta o galo...
       — Oh, dor! oh, dor! —
Aldeão não durmas!... Vai chamá-lo,
Miséria negra, vai chamá-lo!...
       — Oh, dor! oh, dor! —
Bate-lhe à porta, é teu vassalo,
Que traga a enxada, é teu vassalo,
Fantasma negro, o cavador!

O vento ulula... Tremem ninhos...
Na noite aziaga tremem ninhos...
       — Oh, dor! oh, dor! —
A neve cai, fria d'arminhos...
Na escuridão, fria d'arminhos...
       — Oh, dor! oh, dor! —
Passa maldito nos caminhos,
D'enxada ao ombro nos caminhos,
Fantasma negro, o cavador!

Vem roxa a estrela d'alvorada...
Vem morta a estrela d'alvorada —
       — Oh, dor! oh, dor! —
Montanhas nuas sob a geada!...
Hirtas, de bronze, sob a geada!...
       — Oh, dor! oh, dor! —
Torvo, inclinado sobre a enxada,
Rasga as montanhas com a enxada,
Fantasma negro, o cavador!

Cavou, cavou desde que é dia...
Cavou, cavou... Bateu meio-dia...
       — Oh, dor! oh, dor! —
De pé na encosta erma e bravia,
Triste na encosta erma e bravia,
       — Oh, dor! oh, dor! —
Largando a enxada, «Ave-Maria!...»
Reza em silêncio... «Ave-Maria!...»
Fantasma negro, o cavador!

Cavou, cavou na serra agreste,
D'alva à noitinha, em serra agreste...
       — Oh, dor! oh, dor! —
E um caldo em prémio tu lhe deste,
Meu Deus!... seis filhos tu lhe deste...
       — Oh, dor! oh, dor! —
Batem trindades... «Pai Celeste!...
Bendito sejas, Pai Celeste!...»
Reza, fantasma, o cavador!

Cavou cem montes... que é do trigo?
Gerou seis bocas... que é do trigo?
       — Oh, dor! oh, dor! —
Bateu a Fome ao seu postigo...
Bateu a Morte ao seu postigo...
       — Oh, dor! oh, dor! —
«Que a paz de Deus seja comigo!...
Que a paz de Deus seja comigo!...»
Disse, expirando, o cavador!

                                               Junho — 91.



Capa da 1.ª edição do livro "Os Simples", de Guerra Junqueiro (Porto: Typographia Occidental, 1892)



Capa do LP "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours – 2", de Luís Cília (Moshé-Naïm, 1969)
Fotografia – Alain Appéré



Capa da antologia em CD "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours", de Luís Cília (Moshé-Naïm/EMEN, 1996)
Pintura (à esquerda) – Maria Helena Vieira da Silva
Fotografia (à direita) – Alain Appéré

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