05 julho 2025

Travadinha: "Toi"


Travadinha, em finais de 1984, tocando a sua rabeca durante um evento comemorativo do 10.º aniversário da tomada da Rádio Barlavento (ex-Rádio Clube do Mindelo), episódio histórico que ocorreu a 9 de Dezembro de 1974.
© "Voz di Povo" (in https://www.caboverdeamusica.online/travadinha/)


«TRAVADINHA, de seu nome de registo António Vicente Lopes, tocador de rabeca, é um dos artistas mais consagrados na música de Cabo Verde.
Nascido na Ilha de Santo Antão, berço também de outros bons violinistas, em criança teve como brinquedos os instrumentos musicais que encontrava em casa, onde desde o pai ao irmão mais novo — eram sete — todos tocavam. Ele, porém, foi o único da família que se dedicou à rabeca e aos nove anos já tocava em festas e bailes.
Jovem ainda, mudou-se para a ilha vizinha de São Vicente, mais cosmopolita, onde se fixou e vive até hoje.
Embora alguns amigos e até músicos de fama, como Luís de Morais e Manuel de Novas, sempre lhe tenham reconhecido o talento, foi só a partir de 1981, depois de uma pequena tournée em Portugal, que o seu nome se popularizou e hoje pode dizer-se que Travadinha é já uma legenda e uma referência obrigatória.
As interpretações que faz dos temas populares, sendo profundamente enraizadas na tradição, têm um cunho pessoalíssimo de onde se destaca uma contínua reinvenção da linha melódica e um grande poder de improvisação, que são notáveis, ainda mais se considerarmos que para Travadinha a música é apenas um passatempo, pois não existe a profissão de músico no meio social que é o seu.
A expressividade com que toca a sua música é altamente contagiante: não é preciso saber crioulo para entendermos o que ele diz. António Travadinha é, por tudo isto, um artista que merece ser ouvido, não só pelo prazer que propicia, mas também pelo muito que nos ensina.

A edição deste disco de António Travadinha insere-se, com toda a simplicidade de um gesto natural, na actividade da Associação de Amizade Portugal/Cabo Verde.
Cada país, cada povo, tem as manifestações que lhe são próprias, que melhor o caracterizam, e Cabo Verde, os cabo-verdianos têm na música um sinal da sua indelével personalidade colectiva.
Arquipélago na encruzilhada de quatro continentes, ponto de rota, local de fuga e de encontro, o povo foi-se construindo na mistura que identifica, na miscigenação que caracteriza. Com a música sempre presente a apôr como que um selo de garantia... nacional.
Assim sentimos, sem veleidades de investigação aprofundada, assim vivemos na calorosa experiência de conviver com os cabo-verdianos no seu quotidiano, na sua terra, na luta/labuta em que se afirmam e são.
E como o que queremos é fortalecer os laços de amizade entre os nossos povos, pela via do conhecimento mútuo, da compreensão fraterna do que somos e como somos, a divulgação da música cabo-verdiana tem de ser um gesto natural. Assim tem sido, e assim o é nesta procura de contribuir para o registo e a divulgação do que Travadinha faz com a sua rabeca.
António Travadinha é, na sua maneira de estar na vida, no seu modo de ser vida, uma ilustração de Cabo Verde. Queremos contribuir para gravar essa maneira, esse modo, em documento. O documento aqui está: é este disco; a nossa tarefa de dar a conhecer Cabo Verde vai-se cumprindo: na continuidade de outras acções, exigindo continuidade.»

O Conselho Directivo da Associação de Amizade Portugal/Cabo Verde
[textos publicados na contracapa do LP "Feiticeira de Cor Morena", ed. Associação de Amizade Portugal-Cabo Verde e Associação Cabo-Verdiana/distr. Dargil, 1986]


«O violino de Travadinha é como a guitarra de Paredes. Coisas belas, misteriosas, insondáveis, que retratam os povos sem necessitarem de palavras», assim escrevia o crítico musical António Duarte, na página 14 do semanário "O Jornal" de 14 de Agosto de 1987, no obituário do malogrado rabequista cabo-verdiano, sob o título "Travadinha: só a morte não foi improvisada". O músico falecera a 8 de Agosto, vitimado por doença oncológica, e foi numa das estadias em Lisboa, para tratamento, menos de um ano antes, que gravou o seu segundo e último álbum em nome próprio, "Feiticeira de Cor Morena" (1986). Na posição terceira do alinhamento figura a mazurca "Toi", nome que parece ser um diminutivo popular de António, um outro António do arquipélago de Cabo Verde certamente, mas que não obstava Travadinha de tocá-la como se fosse ele o autor ou o dedicatário, conferindo-lhe um fascínio a que não é indiferente ouvido algum, mesmo que não familiarizado com as cativantes sonoridades da música popular cabo-verdiana. E o 50.º aniversário da independência do país de Travadinha afigura-se um excelente pretexto para resgatarmos tão brilhante pérola e assim homenagearmos aquele que foi um dos maiores músicos cabo-verdianos de sempre, mas – e infelizmente – hoje bastante ignorado em Portugal, pelo menos por quem escolhe a música que passa nas principais rádios, a pública Antena 1 incluída. Boa escuta!



Toi



Música: Popular (mazurca)
Intérprete: Travadinha* (in LP "Feiticeira de Cor Morena", Associação de Amizade Portugal-Cabo Verde e Associação Cabo-Verdiana/distr. Dargil, 1986, reed. CD "Travadinha: Le Violon du Cap Vert", Buda Records, 1993)




(instrumental)


* [Créditos gerais do disco:]
Antoninho Travadinha – violino, viola de dez cordas, cavaquinho
Armando Tito – violão solo, viola de dez cordas, cavaquinho, baixo eléctrico, chocalho, reco-reco, voz
Ildo Ramos – violão
Micau – bongós, reco-reco, chocalho
Ana Firmino – voz

Produção – João Freire
Gravado no estúdio Jorsom, Lisboa, em Novembro de 1986
URL: https://www.caboverdeamusica.online/travadinha/
https://www.youtube.com/playlist?list=PL089E689B31DDDB56



Capa do LP "Feiticeira de Cor Morena", de Travadinha (Associação de Amizade Portugal-Cabo Verde e Associação Cabo-Verdiana/distr. Dargil, 1986)
Travadinha no Centro Cultural São Lourenço, Almancil, Loulé
Escultura de João Cutileiro [uma fotografia da obra integral in situ >> abaixo]
Fotografia – João Freire
Arranjo gráfico – José Santa-Bárbara



© James Spinks, 16 Set. 2005
(in https://www.flickr.com/)



Capa do CD "Travadinha: Le Violon du Cap Vert", de Travadinha (Buda Records, 1993)
Reedição francesa do álbum anterior.

30 junho 2025

Eugénio de Andrade: "As Palavras"


(in https://www.rtp.pt/programa/radio/)


«Um velho camarada de ofício que já cá não anda, necessitado de um papel carimbado de um qualquer balcão administrativo, enfrentou o inquérito da funcionária entufada, cujo olhar não acompanhava as perguntas. Ela despachou o questionário, sem uma só vez fitar a sua urgência resignada, ele respondeu com uma secura contrafeita. Nome? Fulano de tal. Idade? Tanta. Data de nascimento? Tantos do tal. Morada? Rua tal, em tal sítio. Profissão? E ele, impassível, tomado por secreto demónio, esticando a corda: Encantador de serpentes.
A funcionária entufada, escreveu, sem o mínimo sobressalto de sobrancelhas, sem inopinado estremecimento de espanto ou de menosprezo. Pergunta seguinte.
Muitas vezes me lembro desta história e logo entreteço um inventário de ofícios sublimes. Herberto Helder, que sabia das palavras a música secreta, regressou de Luanda e escreveu, na página 14 de "Photomaton & Vox": "Gostaria de ser entrançador de tabaco". Há tempos descobri que existem rebocadores de icebergs e especialistas em dormir, tipos pagos para dormir. Talvez haja tipos pagos para sonhar, talvez não. Se eu pudesse escolher ofício para os dias futuros procuraria aquele que me permitisse ver passar navios.
Manoel de Barros, meu poeta mais amado, imaginou-se apanhador de desperdícios. Ele acreditava que nascera para administrar o à toa, o em vão, o inútil. A fasquia dele era tanto mais alta quanto menos soprada de caganças. Ele passou a vida a colher palavras mágicas de tudo o que o seu olhar tocava, mas avisou: "Não gosto de palavra acostumada". Disse-o de mil maneiras. Assim, por exemplo: "Palavras que me aceitam como sou, eu não aceito".
Cada um é para o que nasce, será que sim? Quando nasci, nenhum anjo me disse "vai ser gauche na vida" e eu fui.
Mas na verdade não quis ser outra coisa além de recolector de palavras perdidas. Não fiz outra coisa senão colher da árvore prodigiosa as palavras mais belas, alaúde, cítara, veleiro, rododendro, andarilho. A pouco mais aspirei.
Mas os dias não se apresentam propícios.
Até sempre.» [Fernando Alves, "Nota final sobre os improváveis ofícios", in "Os Dias que Correm", 30 Jun. 2025]


Depois de escutarem esta crónica, quando foi transmitida hoje de manhã pela Antena 1, os ouvintes que conhecem razoavelmente a poesia de Eugénio de Andrade, terão dito para os seus botões ou para quem, porventura, que os acompanhava nessa experiência: «Que bem ficava o poema "As Palavras", do autor de "Coração do Dia", a rematar as que Fernando Alves redigiu e leu hoje aos microfones da rádio pública!» Ficava bem, sem dúvida alguma, mas assim não aconteceu. Nada de nada, mais uma vez! Para que conste, aqui vos deixamos o tal poema na voz do autor.
De entre os qualificativos que Eugénio de Andrade dá às palavras, o que não se aplica às de Fernando Alves, nas suas imperdíveis crónicas – outrora denominadas "Sinais" (na TSF-Rádio Jornal) e desde Setembro de 2024 "Os Dias que Correm" (na Antena 1) –, é "inocentes" e também escassíssimas vezes as suas palavras foram "de orvalho apenas". E grafamos 'foram' porque Fernando Alves fechou a crónica de hoje em tom de despedida dando a entender («os dias não se apresentam propícios») que não querem deixá-lo continuar a exercer, na rádio pública, o seu admirável mister de «recolector de palavras perdidas». Quer parecer-nos que o eminente cronista foi também incluído na purga, que a administração tem vindo a levar a cabo, de colaboradores aposentados altamente qualificados sob o argumento de que «os aposentados, reformados, reservistas fora de efectividade e equiparados encontram-se legalmente impedidos de exercer actividades profissionais remuneradas em empresas públicas». Acontece que a legislação vigente também prevê que «por razões de interesse público excepcional, sejam autorizados pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das Finanças e da Administração Pública.» E o que representa a crónica de Fernando Alves se não interesse público excepcional? Excepcional e de todo insubstituível porque não há em Portugal alguém que consiga fazer algo idêntico e tão bom. Fernando Alves é, sem exagero, o Camões da crónica radiofónica portuguesa. Por conseguinte, compete à administração da empresa Rádio e Televisão de Portugal formular o pedido junto do ministro da tutela e do ministério das Finanças no sentido de ser permitido a Fernando Alves continuar a desempenhar o seu relevante serviço público aos ouvintes/contribuintes que não dispensam as suas sábias e tão cativantes palavras.



AS PALAVRAS



Poema de Eugénio de Andrade (in "Coração do Dia", Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1958 – p. 12-13; "Coração do Dia / Mar de Setembro", Col. Obra de Eugénio de Andrade, vol. 3, Porto: Limiar, 1977; "Coração do Dia / Mar de Setembro", Col. Obras de Eugénio de Andrade, Porto: Assírio & Alvim, 2013; "Poesia", 2.ª edição, org. Arnaldo Saraiva, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005 – p. 88; "Poesia", Col. Obras de Eugénio de Andrade, Porto: Assírio & Alvim, 2017 – p. 93-94)
Dito pelo autor* (in CD "Eugénio de Andrade por Eugénio de Andrade", Numérica, 1997)


São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?


* Eugénio de Andrade – voz
URL: https://www.instituto-camoes.pt/activity/centro-virtual/bases-tematicas/figuras-da-cultura-portuguesa/eugenio-de-andrade
http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=8993
https://www.bibliotecadigitaleugeniodeandrade.pt/



Capa do livro "Coração do Dia", de Eugénio de Andrade (Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1958)



Capa do volume "Coração do Dia / Mar de Setembro", de Eugénio de Andrade (Col. Obra de Eugénio de Andrade, vol. 3, Porto: Limiar, 1977)
Direcção gráfica – Armando Alves



Capa da nova edição do volume "Coração do Dia / Mar de Setembro", de Eugénio de Andrade, pref. Fernando J. B. Martinho (Col. Obras de Eugénio de Andrade, Porto: Assírio & Alvim, Fev. 2013)
Desenho – Ilda David (2013)



Sobrecapa da 2.ª edição, revista e acrescentada do livro "Poesia", de Eugénio de Andrade (Porto: Fundação Eugénio de Andrade, Dez. 2005)
Gravura – Ângelo de Sousa (1964)
Concepção – Armando Alves
Poesia reunida. Organização, nota de edição e bibliografia por Arnaldo Saraiva



Capa da nova edição do livro "Poesia", de Eugénio de Andrade (Col. Obras de Eugénio de Andrade, Porto: Assírio & Alvim, Set. 2017)
Pintura – Ilda David (2017)
Poesia reunida. Prefácio de José Tolentino Mendonça



Capa do CD "Eugénio de Andrade por Eugénio de Andrade" (Numérica, 1997)
Retrato por Jorge Ulisses (1980)
Contém quarenta e dois poemas de Eugénio de Andrade ditos pelo autor.

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Outros artigos com poesia de Eugénio de Andrade:
A infância e a música portuguesa
Eugénio de Andrade por Eugénio de Andrade
Celebrando Eugénio de Andrade
Camões recitado e cantado (V)
Eugénio de Andrade por João Perry
Eugénio de Andrade e Fernando Lopes-Graça: "Aquela Nuvem e Outras"
Eugénio de Andrade: "As Mães"

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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
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Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
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Chico Buarque: "Construção"
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João Afonso: "Lagarto" (José Eduardo Agualusa)
Carlos Garcia com Luís Represas: "Noite Perdida" (António Feijó)
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Amélia Muge: "O Robot Que Envelhece" (João Pedro Grabato Dias)
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Rodrigo Leão: "A Cidade Queimada"
Amália Rodrigues: "Naufrágio" (Cecília Meireles)

27 junho 2025

Amália Rodrigues: "Naufrágio" (Cecília Meireles)


© Alfredo
(in https://telemarinas.com/)


«Izan, um menino galego de oito anos, tem a cabeça povoada de pensamentos marinheiros mais vastos que a ria de Bayona.
Certa vez, conta a repórter Mónica Torres, correspondente d' "A Voz da Galiza" em Nigrán, o tio de Izan perguntou-lhe se queria que lhe construíssem "um Titanic gigante". Izan ficou muito feliz, mais feliz do que o rio Miñor quando corre para as águas mais vastas, traçando uma linha de vertigem entre dois municípios de Pontevedra.
Na cabeça de um menino marinheiro, os Titanics nunca afundam. Muito menos este Titanic que o tio Fernando replicou, imponente nos seus seis metros e vinte de comprimento e dois metros de altura, com as quatro chaminés listradas a amarelo e negro, as tantas escotilhas, os mastros, o casco, os invisíveis pedais. O Titanic a pedais flutua e sulca o oceano ali deitado, tão manso, aos pés do menino vestido de marinheiro.
Cabem dois tripulantes dentro deste Titanic. Sentados aos pedais, como os antigos remadores, arreda Neptuno! Foi este Titanic a obsessão feliz de muitas horas a ver passar navios no YouTube e a tomar notas para a aventura de um estaleiro familiar. Izan, oito anos, desenhou estruturas, estudou materiais, orientou a maratona que, desde o Natal, permitiu erguer, sobre um kayak, a réplica perfeita do transatlântico que, em 1912, abraçou tragicamente um iceberg no Atlântico Norte.
Izan é um dos miúdos que sorri na fotografia d' "A Voz da Galiza". Miúdo dado à arte de marear por pensamentos, e agora por pedais, parece ter um destino marujo traçado nas estrelas e nas entrelinhas do nome. Reparai no apelido de Izan: Rios Garcia. Vive na embocadura de um rio, passa horas fitando as águas mais vastas da ria de Bayona, faz-me lembrar o menino de um poema de Afonso Lopes Vieira dedicado ao marinheiro da minha estima maior, um tal Bartolomeu Dias. Quando ainda menino, tal como Izan, (estou já pedalando o poema) o menino Bartolomeu "ia para o pé do mar (...) E Bartolomeu cismava / Ó que lindo, ó que lindo, / o mar, / e a sua voz profunda e bela!".
Foi este poema escrito no ano em que o Titanic naufragou, 1912. Não quero puxar para a crónica a nuvem da desgraça. Mas, na verdade, o marinheiro e engenheiro naval Izan Rios Garcia, nos seus oito anos de menino a olhar o mar, tem o plano de fazer naufragar o seu navio de brincar a sério. Talvez no final do Verão.
Eu chegara a pensar que esta era a história de um menino que aprende a ser marinheiro com um Titanic que nunca iria ao fundo porque é pura poesia feita navio. Mas não.
Num arrepio breve, como se tivesse sido tocado por um vento frio no convés da manhã, ocorrem-me os versos de Cecília Meireles: "Pus o meu sonho num navio / e o navio em cima do mar; / depois, abri o mar com as mãos, / para o meu sonho naufragar".» [Fernando Alves, "Um Titanic a pedais", in "Os Dias que Correm", 27 Jun. 2025]


Sendo certo que Fernando Alves grava a sua crónica com razoável tempo de antecedência em relação ao horário previsto para a radiodifusão, pouco antes das 09h:00, Miguel Freitas, que ultimamente vem assegurando a condução programa da manhã da Antena 1, tem acaso o cuidado, antes de pôr a crónica no ar, de ouvir o áudio ou, ao menos, de ler o texto? Hoje procedeu assim? Em caso afirmativo, por que razão não antecipou a crónica em cerca de três minutos para rematá-la com o poema de Cecília Meireles evocado por Fernando Alves, na interpretação de Amália com música de Alain Oulman, que abre o alinhamento do primoroso álbum "Com Que Voz" (1970)? Não quis dar-se a esse eventual incómodo ou será que está terminantemente proibido por Nuno Galopim de Carvalho de aditar um epílogo (poético, poético-musical ou simplesmente musical) à crónica de Fernando Alves? Qualquer que seja o motivo, ele merece a veemente reprovação dos ouvintes, designadamente daqueles que ouviam os "Sinais" na TSF-Rádio Jornal e eram aí presenteados com um registo extraído de edição discográfica tematicamente relacionado com o teor geral da crónica ou com uma determinada referência intertextual. Se esse louvável procedimento se verificava numa rádio privada, não há justificação atendível para que não seja regra na Antena 1, a qual, em razão do financiamento público, tem a obrigação de fazer melhor do que as estações que vivem da publicidade.
Eis, pois, o sublime fado "Naufrágio", superlativamente cantado por Amália, com música de Alain Oulman sobre versos do poema "Canção" da autoria da ilustre poetisa brasileira Cecília Meireles (1901-1964). Boa escuta!



Naufrágio



Poema: Cecília Meireles (excerto ligeiramente adaptado do poema "Canção") [texto original >> abaixo]
Música: Alain Oulman
Intérprete: Amália Rodrigues* [in LP "Com Que Voz", Columbia/VC, 1970, reed. EMI-VC, 1987; 2CD "Com Que Voz" (nova edição): CD 1, Edições Valentim de Carvalho/iPlay, 2010; CD "Com Que Voz (Remastered)", Edições Valentim de Carvalho, 2019]




[instrumental]

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
com as mãos, para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul, do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, vai morrendo dentro do navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer, para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

[instrumental]


* Amália Rodrigues – voz
José Fontes Rocha – guitarra portuguesa
Pedro Leal – viola

Gravado por Hugo Ribeiro, nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, em Janeiro de 1969
Remasterizado por Jorge Barata (edição de 2019)
URL: https://amaliarodrigues.pt/pt/amalia/
https://www.museudofado.pt/index.php/fado/personalidade/amalia-rodrigues
https://centenarioamaliarodrigues.pt/
https://www.youtube.com/c/amaliarodriguesofficial
https://music.youtube.com/channel/UCF_E888KGi1ko8nk9Pus_2g



CANÇÃO

(Cecília Meireles, in "Viagem", Lisboa: Editorial Império, 1939; "Obra Poética", Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958)


Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro do navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.



Capa da 1.ª edição do livro "Viagem", de Cecília Meireles (Lisboa: Editorial Império, 1939)



Capa na nova edição brasileira do livro "Viagem", de Cecília Meireles (São Paulo: Global Editora, 2012)



Frontispício do volume "Obra Poética", de Cecília Meireles; introdução geral de Darcy Damasceno; apreciações de Mário de Andrade e de outros; epílogo de João Gaspar Simões; xilogravuras de Graciela Fuensalida (Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958)



Capa do LP "Com Que Voz", de Amália Rodrigues (Columbia/VC, 1970)
Executada no Atelier Conceição e Silva.

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Outros artigos com repertório de Amália em voz própria:
Ser Poeta
Celebrando Vinicius de Moraes
Camões recitado e cantado (II)
Amália Rodrigues: "Primavera" (David Mourão-Ferreira)
Amália Rodrigues: "Abril" (Manuel Alegre)
Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia
Luís de Camões: "Perdigão perdeu a pena"

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Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
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João Afonso: "O Som dos Sapatos"
Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas"
Carlos Mendes: "Alcácer Que Vier" (Joaquim Pessoa)
Janita Salomé: "Cerejeira das cerejas pretas miúdas" (Carlos Mota de Oliveira)
Mário Moita: "Senhora Cegonha"
Políbio Gomes dos Santos: "Poema da Voz Que Escuta", por Maria Barroso
Pedro Barroso: "Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo" (José Saramago)
Bugalhos: "Carvalho Grande"
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Mísia: "Sou de Vidro" (Lídia Jorge)
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José Craveirinha: "Um Céu sem Anjos de África", por Trupe Barlaventina
Rodrigo Leão: "A Cidade Queimada"

26 junho 2025

Rodrigo Leão: "A Cidade Queimada"


(in https://travelnaut.com/)
Ruínas da cidade de Cartago, perto de Tunes, na Tunísia.


A cidade-estado de Cartago localizava-se no Norte da África, próximo da actual cidade de Túnis (ou Tunes), capital da Tunísia. Foi fundada no século IX a.C. pelos Fenícios, povo oriundo do território que corresponde hoje maioritariamente ao do Líbano e que durante séculos dominou o comércio marítimo de metais preciosos, sobretudo no Mediterrâneo, fundando diversas colónias na Sicília, na Sardenha, na Córsega, nas Ilhas Baleares, na Península Ibérica e no Norte da África. Cartago, inicialmente uma colónia, foi fundada com o objectivo de ser um entreposto comercial na costa norte-africana e possibilitar a exploração das riquezas metalúrgicas da região. Devido à exiguidade do território e à vizinhança de povos belicosos, Cartago voltou-se para o mar. Com a economia centrada no comércio marítimo, os Cartagineses controlavam a exploração e a venda de metais preciosos no Mediterrâneo Ocidental. Com o decorrer do tempo, passaram a exercer domínio político sobre boa parte do Mediterrâneo, controlando as rotas daquele mar interior por mais de seis centúrias. No século IV a.C., Cartago florescia como uma grande e importante cidade, pontuada de templos, palácios e altos edifícios. No entanto, essa prosperidade fez com que entrasse em colisão com outra potência em ascensão no Mediterrâneo, Roma. As confrontações entre Cartagineses e Romanos ficaram conhecidas como as Guerras Púnicas. A primeira Guerra Púnica teve início em 264 a.C. e o seu desfecho mudaria o curso da História e Aníbal Barca, o grande general cartaginês, ficaria nos anais como um dos maiores génios militares de todos os tempos. Aníbal lançaria uma das mais incríveis campanhas de ataque já vistas. Dado que Roma passara a dominar o Mediterrâneo, na sequência da vitória na primeira Guerra Púnica, Aníbal resolveu marchar por terra, partindo da Península Ibérica em direcção aos Alpes chefiando um exército onde iam 37 elefantes, com o objectivo de alcançar Roma e, desta forma, vencer os Romanos no seu próprio território. Na Batalha de Canas, ocorrida a 2 de Agosto de 216 a.C., na Apúlia (sudeste da Península Itálica), infligiu ao exército romano uma pesadíssima derrota. No entanto, Aníbal não chegou a atacar a cidade de Roma, demorando-se no sul da Península Itálica e terminando por regressar a Cartago, por via marítima, a fim de defender a cidade do ataque dos Romanos. Acabaria por ser derrotado na Batalha de Zama, a 19 de Outubro de 202 a.C., por Cipião, que receberia o cognome de 'O Africano'. Chegava assim ao fim a Segunda Guerra Púnica, e Cartago perdia os seus territórios ultramarinos, ficava despida do seu poder militar e obrigada a pagar avultadas indemnizações de guerra. Temendo que a cidade-estado se reerguesse comercial e militarmente, a República Romana, incitada pelo cônsul Catão, o Velho, voltava a atacar Cartago, desta vez para destruir a urbe definitivamente, na que seria a terceira e última Guerra Púnica. Em 146 a.C., Cartago foi incendiada, devastada e o seu chão salgado, para que nele nada germinasse e crescesse futuramente. Com o fim de Cartago, Roma consolidava o seu domínio no Mediterrâneo, vindo a tornar-se o mais poderoso império da Antiguidade no Ocidente. [adaptado do texto publicado no sítio da Fundação Cultural Palmares].



(in https://commons.wikimedia.org/)
Territórios cartagineses ou sob influência de Cartago cerca de 264 a.C., antes da Primeira Guerra Púnica.


«Faz hoje cem anos, o grande repórter Norberto Lopes, terminado um longo périplo pelo continente africano, assina, a quase toda a largura da primeira página do "Diário de Lisboa", uma cuidada prosa sobre "um belo dia de sol nas ruínas de Cartago". Há cem anos, o repórter escrevia Cartago com th, "trazendo ainda nos olhos a visão graciosa de Túnis".
Tudo era mais lento, à época. O texto estava datado de Maio, escrito sob a impressão forte de um lugar tão repetidamente sentenciado pela frase implacável de Catão, o Velho, uma espécie de carimbo final dos discursos do senador romano: "Que Cartago seja destruída". Catão era quase menino quando se alistou para combater os cartagineses, ficou-lhe porventura aquela divisa como distintivo.
Era esse tempo de há um século desprovido da varinha mágica da instantaneidade. Foi preciso esperar um mês até que ele ganhasse as rotativas do número 48 da Luz Soriano.
Na prosa aquecida por um sol entre ruínas, o repórter destaca os afloramentos de um passado glorioso, "o capitel gracioso duma coluna coríntia (...), a inscrição piedosa duma lápide votiva", lá onde "não ficou pedra sobre pedra". A tal ponto que, escreve Norberto Lopes, "o próprio terreno foi salgado – para que nem a haste humilde de uma planta brotasse do seio da terra". Mas o grande repórter parece colher uma inesperada flor da poeira pisada pelos cavalos de Cipião. E isso o leva a concluir que "a destruição poupou os mortos", pois "nada restaria hoje da velha Cartago (ele escreve com th, escrevia-se com th) se os Romanos não tivessem respeitado, talvez por um temor supersticioso, o interior sagrado das sepulturas".
Naquele lugar em redor do qual tantas cidades, tantas pegadas de cavalos, foram sobrepostas, um repórter anota, dois mil anos depois, mas ainda num tempo em que a lentidão marcava, mesmo que ofegante, a sucessão dos dias e o compasso das rotativas, o legado dos arqueólogos, colunas, moedas, frisos de mármore, "a cabeça laureada de um imperador", Diana acariciando "as hastes de um veado".
Assim o repórter futuro, centenas de anos adiante de nós, recolha, possa recolher do arqueólogo ou do robot arqueólogo e mostre ao mundo, possa mostrar ao mundo as cidades agora destruídas e soterradas, lá onde os novos Cipiões alvitraram Rivieras. Ainda que não possa, não queira, ou não saiba, usar palavras tão inebriantes como as de Norberto Lopes, aquelas que ele resgatou do vento há cem anos diante dos minaretes de Túnis. E que, tal como há cem anos, a atmosfera seja "transparente e doce – como na tarde de Pharsalia" e as flores tenham "o mesmo perfume que enfeitiçava Salambô nas noites de luar".
Assim os repórteres futuros não se percam de Flaubert, tal como Norberto Lopes não se perdeu.» [Fernando Alves, "Um belo dia de sol, há cem anos, em Cartago", in "Os Dias que Correm", 26 Jun. 2025]


Tendo em conta que a cidade de Cartago foi incendiada, a crónica que Fernando Alves achou por bem dedicar à primorosa e impressiva prosa com que o repórter Norberto Lopes relatou a visita que fez às ruínas da vetusta urbe, em Maio de 1925 (e aproveitamos para manifestarmos o nosso elevado apreço a ambos os escribas), podia muito adequadamente ser rematada com a composição "A Cidade Queimada", de e por Rodrigo Leão, originalmente publicada no magnífico álbum "Cinema" (2004) e incluída na compilação "O Mundo (1993-2006)" lançada dois anos mais tarde. O tom plangente, quase funéreo, que o distinto compositor/intérprete imprimiu à música tornava ainda mais apropriada e justa a escolha deste tocante registo, que até é curto (1':20"), para funcionar como epílogo a uma crónica consagrada à desditosa cidade de Cartago. O locutor de serviço, Miguel Freitas, seguindo o mau exemplo de Ricardo Soares preferiu, infelizmente, ficar quietinho (não sabemos de por mero comodismo ou se acatando ordens expressas de Nuno Galopim de Carvalho) e mal a crónica chegou ao fim limitou-se a debitar os valores máximos das temperaturas previstos para todas as capitais de distrito de Portugal. É triste!



A Cidade Queimada



Música: Rodrigo Leão
Intérprete: Rodrigo Leão* [in CD "Cinema", Columbia/Sony Music Entertainment (Portugal), 2004; 2CD "O Mundo (1993-2006)": CD 1, Columbia/Sony BMG Music Entertainment (Portugal), 2006]




(instrumental)


* Rodrigo Leão – piano

Arranjos – Rodrigo Leão, Pedro Oliveira e Tiago Lopes
Produção – Sony Music Entertainment (Portugal), S.A., dirigida por Pedro Oliveira, Tiago Lopes e Rodrigo Leão
Produção executiva – António Cunha
Gravado nos Estúdios OCV Muzika, por Tiago Lopes e João Eleutério, de Março a Maio de 2004
Misturado por Tiago Lopes, João Eleutério, Pedro Oliveira e Rodrigo Leão, nos Estúdios OCV Muzika, em Maio de 2004
Masterizado por António Pinheiro da Silva, nos Estúdios OCV Muzika
URL: https://www.rodrigoleao.pt/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Rodrigo_Le%C3%A3o
https://www.facebook.com/rodrigoleaomusic/
https://www.instagram.com/rodrigoleaomusic/
https://www.youtube.com/@rodrigoleaochannel/videos
https://music.youtube.com/channel/UCN1A0Onev1XPUnQyz0Ttqrw



Capa do CD "Cinema", de Rodrigo Leão [Columbia/Sony Music Entertainment (Portugal), 2004]
Fotografia – Steve Stoer
Design e direcção de arte – Marco Sousa Santos



Capa da compilação em duplo CD "O Mundo (1993-2006)", de Rodrigo Leão [Columbia/Sony BMG Music Entertainment (Portugal), 2006]

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Outros artigos com música composta e/ou interpretada por Rodrigo Leão:
Revisitando "Os Dias da MadreDeus"
Celebrando Carlos Paredes
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
Madredeus: "Solstício"

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A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
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Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
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Amélia Muge: "Ai, Flores"
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João Afonso: "O Som dos Sapatos"
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Carlos Mendes: "Alcácer Que Vier" (Joaquim Pessoa)
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Políbio Gomes dos Santos: "Poema da Voz Que Escuta", por Maria Barroso
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Natália Correia: "Queixa das Almas Jovens Censuradas"
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João Afonso: "Lagarto" (José Eduardo Agualusa)
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Mísia: "Sou de Vidro" (Lídia Jorge)
Teresa Rita Lopes: "Casa de Cacela"
Marta Pereira da Costa com Iván Melón Lewis: "Sem Palavras"
Amélia Muge: "O Robot Que Envelhece" (João Pedro Grabato Dias)
José Craveirinha: "Um Céu sem Anjos de África", por Trupe Barlaventina

25 junho 2025

José Craveirinha: "Um Céu sem Anjos de África", por Trupe Barlaventina


(in https://iriscordemelad.blogspot.com/)


«O repórter Frederico Pinheiro recolhe no gravador o som da cana cortada por Mateus Magule, nos campos de Xinavane [A1 Doc: "Moçambique, um sonho por cumprir" >> RTP-Play]. É como se a catana servisse de percussão à voz magoada de Mateus Magule que responde ao repórter em língua xangana. "Auxene", talvez tenha dito o cortador Magule quando o português o saudou nos grandes caniçais abraçados pelo rio Incomáti, a 80 km de Maputo. Talvez o repórter ainda não saiba, tal como eu não sabia, que o nome daquele lugar, Xinavane, dá ao lugar uma espécie de condão, de condição de gente: xinavane é aquele que espalha a notícia. Frederico é um xinavane. Tal como Magule, cortando a cana, espalha o açúcar para lá dos vastos domínios da Açucareira, a entidade tutelar daquela região de Moçambique. A cana que Magule corta (notável registo sonoro no gravador de Frederico Pinheiro) espalha notícia doce de açúcar, porque é plantada de novo, amarga vida a dos cortadores de cana, 50 anos depois das proclamações da Machava. Vida amarga, a dos trabalhadores da Açucareira. E a da mulher que não ganha o bastante para comer todos os dias. Pergunta o repórter: "Quanto consegue fazer por dia?". "Não está fácil para fazer. Não estou a conseguir", diz ela. "Às vezes durmo só com um chá". Ela percebe que aquele microfone e aquele gravador podem espalhar o seu lamento até ao palácio do presidente e diz: "Papai Chapo, abre as portas do dinheiro".
Mostra o esplendor da fruta que não consegue vender, o esplendor dos nomes tão saborosos de pronunciar, tão difíceis de vender. É como se os lamentos dela resgatassem da desmemória os versos de Craveirinha sensibilizando o "camarada Control" para que este deixe passar as "saborosas tanjarinas de Inhambane".
E logo escutamos os catadores de lixo que tratam o repórter por pai, por boss, por molungo (outra designação de branco). O que é que procuram? "Estou a procurar reciclado, pai".
É como se, cinquenta anos depois da independência, eles estivessem reescrevendo o Poema do Futuro Cidadão, aquele poema de Craveirinha, "Vim de qualquer parte de uma nação que ainda não existe".
"Todos nós temos um sonho", proclama o catador de lixo no país onde seis em cada 10 crianças passam fome. "Qual é o seu sonho, Paulo?", pergunta o espalhador da notícia. E Paulo, o que percorre a lixeira procurando plástico e garrafas: "Gostava de ser chamado de pai, um dia". Paulo, como se catasse versos antigos de Craveirinha: "Tenho no coração gritos que não são meus somente/ porque venho de um país que/ ainda não existe". E o miúdo Abdul, apanhador de garrafas, um quinhão de 10 meticais por dia. E os outros que vão falar, numa desesperança cantante.
Crianças de Moçambique apanhando garrafas no lixo. Que mensagem escreveriam elas para enviar no dorso das ondas?» [Fernando Alves, "Uma nação que ainda não existe", in "Os Dias que Correm", 25 Jun. 2025]


O remate mais lógico à crónica de hoje seria, obviamente, uma recitação de um dos dois poemas de José Craveirinha dos quais Fernando Alves citou partes – "As saborosas tangerinas de Inhambane" ou "Poema do Futuro Cidadão" –, idealmente na voz do autor. O primeiro, dito pelo próprio José Craveirinha, é certo que existe no arquivo da rádio pública pois já marcou presença, em Fevereiro de 2021, pela mão de Luís Caetano, na rubrica "A Vida Breve" [Partes I e II >> RTP-Play / Partes III a V >> RTP-Play / Partes VI a X >> RTP-Play].
Em edições discográficas não lográmos referenciar qualquer dos poemas mencionados, mas encontrámos outros da autoria de José Craveirinha. Um deles é aquele que dá pelo título de "Um Céu sem Anjos de África", e que trata de um problema de discriminação racial no tempo em que Moçambique era colónia: o contraste entre a menina filha de mãe negra, que morre por falta de cuidados médicos, e a menina filha de pais arianos, que recebe todo o desvelo e protecção. Cinquenta anos volvidos sobre a independência de Moçambique, a pobreza e a desigualdade prevalecem na população negra, pelo que não é descabido recuperar/revisitar aquele poema do primeiro autor moçambicano galardoado com o Prémio Camões. E fazemo-lo com a gravação da Trupe Barlaventina, de Afonso Dias e companhia, publicada no CD "O Perfume da Palavra" (Concertante, 1999). Os ouvintes da Antena 1 que se sentiram novamente defraudados pela rádio que pagam têm aqui a oportunidade de colmatar, ainda que algum desfasamento temporal, a lacuna com que ficaram de poesia de José Craveirinha. Boa escuta!



UM CÉU SEM ANJOS DE ÁFRICA



Poema de José Craveirinha (in "Xigubo", Col. Autores Moçambicanos, vol. 4, Lisboa: Edições 70, 1980 – p. 55; "Obra Poética I", Lisboa: Editorial Caminho, 1999)
Recitado por Afonso Dias / Trupe Barlaventina* (in CD "O Perfume da Palavra", Concertante, 1999)


                  À Guilhermina e ao Egídio

Detinha
a menina de cinco anos
tinha pai e tinha mãe
e tinha duas irmãs, Senhor!

Detinha
a menina de cinco anos
tinha uma filha de retalhos de chita
e fazia duas covinhas de ternura na face
quando sorria, Senhor!

Detinha
a menina de cinco anos
tinha uma filha de ágeis pernas de pano
olhos brilhantes de cabeças de alfinete
e fulvos cabelos de maçarocas maduras
que a febre derradeira da Detinha
não contaminou.

Olhos cerrados suavemente
boneca Detinha dos seus pais
adormeceu de tétano para sempre
mãozinhas postas sobre o peito
um vestido de renda branca
mais um anjo nosso partiu
no adeus silencioso de boneca
verdadeira num fúnebre berço branco
nossa Detinha tão pura na Munhuana
que até ainda não sabia que era mulata.

Oh! África!
Quantos anjos já nasceram das tuas Munhuanas de amor
e quantas Detinhas partiram para sempre dos teus braços
e quantos filhos inocentes deixaram o teu colo maternal
geraram rios e rios de lágrimas no teu rosto escravizado
e dormiram sem pesadelos na vasta solidão
de um coval mínimo de criança infelizmente
sem as duas covinhas na face
quando sorriam, Senhor?

E ainda não temos um talhão de céu azul para todos
e novamente uma África para amar à nossa imagem
num anjo verdadeiro anjo também cor da nossa pele
e da mesma carne mártir de feitiços estranhos
e o nosso sangue vermelho vermelho quente
como o sangue vermelho de toda a gente.

Para o tal céu onde existe o tal Deus que não sabe
línguas de África línguas de África línguas de África
e só sorriem anjos brancos de asas impossíveis de arminho
precisamente onde esse arminho só pode ser algodão de sofrimento
ainda não há lugar para meninas puras da cor
das meninas filhas e netas de mães e avós pretas
da nossa Detinha que partiu ainda boneca
e tão pura que ainda não sabia que era mulata.

E brinquedos de trapos não se misturam na Munhuana
com bonecas loiras de sapatos e tudo
porque os pais arianos rezando nas catedrais
não deixam, Senhor!

(1960)


* Afonso Dias – voz

Arranjos e direcção musical – Trupe Barlaventina (Afonso Dias, Carla Moreira, Luís de Abreu e Pedro Glória)
Produção – Trupe Barlaventina
Gravado nos Estúdios InforArte, Lagos, e nos Estúdios MTR, Faro
URL: https://www.algarvios.pt/members/afonso-dias/info/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Dias
https://www.facebook.com/afonso.dias.31
https://www.youtube.com/@afonsodias4584/videos
https://music.youtube.com/channel/UCChoajupsYfGsG5uIGj8XMA



Capa do livro "Xigubo" (2.ª edição aumentada), de José Craveirinha (Col. Autores Moçambicanos, vol. 4, Lisboa: Edições 70, 1980)



Capa do livro "Obra Poética I", de José Craveirinha (Lisboa: Editorial Caminho, 1999)



Capa do CD "O Perfume da Palavra", da Trupe Barlaventina (Concertante, 1999)

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Outros artigos com repertório (poemas recitados e canções) de Afonso Dias:
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Amália: dez anos de saudade
A infância e a música portuguesa
Ser Poeta
Celebrando Natália Correia
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Al-Mu'tamid: "Evocação de Silves"
Cesário Verde: "De Tarde"
António Gedeão: "Dia de Natal", por Afonso Dias
Camões recitado e cantado (VI)
Natália Correia: "A Casa do Poeta", por Afonso Dias
Afonso Dias: "Dieta Algarvia"
Natália Correia: "Ode à Paz", por Afonso Dias
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)

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