13 fevereiro 2025

"Tão Longe, Tão Perto" com Fernando Alves


© Antena 1 (in https://antena1.rtp.pt/)


Associamo-nos à celebração do Dia Mundial da Rádio para voltar a enaltecer o trabalho daquele que é o repórter-entrevistador-conversador e o cronista de mais alto gabarito em actividade no panorama radiofónico português: Fernando Alves. E fazêmo-lo dando enfoque à série de 24 entrevistas-conversas "Tão Longe, Tão Perto" que foi para o ar, nas frequências da Antena 1, nas manhãs de sábado, de 17 de Fevereiro a 27 de Julho de 2024. De figurino similar à serie "Onde nos Levam os Caminhos" que Fernando Alves manteve na TSF-Rádio Jornal e que ficara interrompida devido à situação de descalabro em que aquela rádio caiu (em Setembro de 2023), "Tão Longe, Tão Perto" é um excelente repositório da arte da entrevista-conversa com gente que, na maioria dos casos, é desconhecida do grande público mas muito cativante de se ouvir, pelos saberes e experiências que nos transmite. Boas audições! E que viva a rádio!


TÃO LONGE, TÃO PERTO:
Ep. 1 | 17 Fev. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Solípedes, Conhos e Pirolitos.
A depressão Irene tinha deixado marcas nos caminhos, ainda antes de Alpalhão. Havia lençóis de água nos baixios da estrada, as ribeiras de Sor e de Nisa galgavam muros e alagavam os campos.

Ep. 2 | 24 Fev. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
"Quando saimos da cozinha é que somos cozinheiros".
O chef João d'Eça Lima já viu veados na serra do Espinhal. Mas terá tido tempo para ir à Pedra da Ferida?

Ep. 3 | 02 Mar. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Haverá um modo figueirense de estar no mundo?
No Jardim Municipal da Figueira da Foz, a dois passos do coreto e do mercado, um grupo de velhos amigos lança o isco às memórias comuns depois de um almoço na costa de Lavos.

Ep. 4 | 09 Mar. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Universidade Sénior de Penafiel: um "projecto de causas".
Quem são estas mulheres e estes homens de cabelos brancos que entram, tão sorridentes, numa antiga escola primária, ao lado da Igreja das Freiras, na rua Conde Ferreira, em Penafiel?

Ep. 5 | 16 Mar. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Com o artista visual Carlos No e agricultores do Pobral, na região saloia: "A couve adivinha a chuva".

Ep. 6 | 23 Mar. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
O sociólogo Abílio Amiguinho ainda vai aos marmelos na serra de São Mamede: "As gamboas são maiores e embaçam menos".

Ep. 7 | 30 Mar. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Aguiar da Beira: o paraíso dos orientistas em Portugal.
Rafael Miguel, cartógrafo em Aguiar da Beira: "Passei em sítios que nenhum humano pisou. Floresta pura".

Ep. 8 | 06 Abr. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Sociedade Recreativa Operária de Santarém.
Respira-se cidadania na casa onde nasceu Frei Luís de Sousa...

Ep. 9 | 13 Abr. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Joaquim Ruivo, director do mosteiro da Batalha: "Fui procurado por uma freira dominicana. Vinha oferecer-nos dois dentes do Infante Santo".

Ep. 10 | 20 Abr. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Fernando Alves vai ao encontro de Francisco Lopes, historiador do Pego, coordenador do livro "O que é o comer?", onde se fala de migas carvoeiras, couves arrapazadas, feijão de barulho. E de bucho e tripas, claro...

Ep. 11 | 27 Abr. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Paulo Barracosa, o autor do livro "Cardo Máximo" acredita que "o cardo é a planta modelo para estudar as alterações climáticas no futuro".

Ep. 12 | 04 Mai. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Rui Lopes, criador do pão de medronho: "O medronheiro é, talvez, a planta que mais serviço presta aos ecossistemas da bacia do Mediterrâneo".

Ep. 13 | 11 Mai. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Pirilampos em Advagar.
Marc Bonnet, um perito digital alemão escolheu viver em Advagar, uma pequena aldeia a meio caminho entre Santarém e Torres Novas.

Ep. 14 | 18 Mai. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Francisca Lopes Bicho, antiga professora de História no liceu de Beja e actual presidente da Associação Cultural Fialho de Almeida, autora do livro "Gente da Nossa Terra: Memórias de Cuba".

Ep. 15 | 25 Mai. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Duarte Belo e a cartografia fotográfica de Portugal.
Duarte Belo é arquitecto de formação, mas entregou-se a tempo inteiro à paixão maior que o leva a percorrer, a pé, o território português para nele pressentir e registar a respiração mais íntima.

Ep. 16 | 01 Jun. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
"Corre-me um rio no peito". O rio é o Tâmega.
Luís Jales de Oliveira, a quem os mondinenses tratam por Ginho, é o grande cicerone da vila cujo farol é a Senhora da Graça, no alto do Monte Farinha.

Ep. 17 | 08 Jun. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
António Matias Coelho, professor de História: "O Tejo é muito mais do que um rio".

Ep. 18 | 15 Jun. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
José do Carmo Francisco, um cronista na Pátria da Chuva.
José do Carmo Francisco vai todos os dias ao mercado de Benfica, perto de sua casa. É ali que conversamos em deriva pelo mapa dos afectos.

Ep. 19 | 22 Jun. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
José Manuel Aleixo, Presidente da Associação dos Amigos da Natureza de Cabeção: "Depois de muito longa ausência, o esquilo vermelho voltou a Cabeção".

Ep. 20 | 29 Jun. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Desidério Afonso, director do Rancho Folclórico de Dem. Pedro Homem de Mello dizia que ele era "o melhor dançarino do Alto Minho".

Ep. 21 | 06 Jul. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Maria Natividade Pires: tese de doutoramento inovadora e construção de pontes literárias na Escola Superior de Educação de Castelo Branco.

Ep. 22 | 13 Jul. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Anabela Santos criou um jardim numa rua onde só havia entulho.
A cuidadora de flores e de gente mostra-nos espécies improváveis no jardim que fez nascer do nada, numa rua de Lisboa.

Ep. 23 | 20 Jul. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
Com três vizinhos do Camões, em Constância.
António Mendes e Máximo Ferreira sentam-se à mesa do restaurante Vila Camões onde o anfitrião, António Onofre, prepara um roteiro gastronómico para fim de conversa.

Ep. 24 | 27 Jul. 2024 [>> RTP-Play / Apple Podcasts]
António Mota, na Terra do Anjo Azul.
O encontro com o escritor António Mota tinha sido marcado na biblioteca municipal. O sábado de quase fim de Julho começara chuvoso quando nos instalámos na esplanada do café da biblioteca... Tão Longe, tão perto.

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António Borges Coelho: "Sou Barco"
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Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)

12 fevereiro 2025

Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)


© Freepik (in https://br.freepik.com/)


«Estou a quarenta, cinquenta páginas de um lugar incerto, um lugar a vir, pouca terra muita terra, será isso quando Saul escrever num bilhete "espera por mim", e isso acontecerá muito adiante da estação de Campanhã e da aldeia da Pedrinha do Sol, onde mora a avó de Saul, o rapaz que, pela primeira vez, viaja sozinho, num comboio pela mão do escritor António Mota.
É como se estivesse a chegar a Espinho, o mais veloz areal correndo do lado de lá da janela por dentro do espanto de um rapaz em sobressalto, tantas memórias e surpresas e sonhos dentro do sono em que esse rapaz chamado Saul pode mergulhar à janela de um comboio, tanto tumulto dentro da cabeça, a mãe reunindo o seu pequeno mundo num saco e a despedir-se dele na linha 5 da Gare do Oriente, vais gostar da Pedrinha do Sol, "há tanta coisa que podes fazer na Pedrinha do Sol, tens lá a minha bicicleta vermelha".
O escritor António Mota, menino de Vilarelho, Ovil [concelho de Baião], regressa a esse lugar que só ele sabe identificar na concha matricial da serra da Aboboreira. Certa vez, almoçávamos na Borges, ele apontou para os lados da serra e eu cuidei vislumbrar, na linha que os seus dedos desenhava, um lugar encantado ["Tão Longe, Tão Perto", 27 Jul. 2024 >> RTP-Play].
Ele já nos levou a esse lugar mágico num outro livro de há uns quinze anos, "Histórias da Pedrinha do Sol", onde vive um rapaz que gosta de pássaros e de nuvens e que se deixa levar por nuvens e pássaros a lugares improváveis.
Talvez seja ainda esse rapaz aquele que se senta agora ao lado do leitor, confiando-lhe a angústia pela mãe que ficou em Lisboa e vai ser despejada e terá de procurar uma casa onde talvez ele não caiba por agora, de tão acanhada, tão acanhada como o lugar 75 da carruagem 21 em que ele se lança ao seu destino, espera por mim. Saul tacteia as palavras com que partilha um quase pânico, sentado ao lado de um cavalheiro que cruza palavras numa página de jornal, 19 Horizontal: Fazer pela Vida. O rapaz dá um nome a essa invulgar personagem, engenheiro Paulo Freixinho, e eu faço vénia ao escritor António Mota pelo modo como sentou ao lado de Saul o grande cruciverbalista que fez brilhar há anos, na Pedrinha do Sol do nosso vocabulário, a palavra xurdir.
Vou à janela deste livro como se fosse à janela de um comboio, com a minha infância e de tantos outros que a minha fantasia possa inventar. Um livro é o comboio do leitor.
Interrompo a leitura para sacudir as pernas como se o comboio-livro tivesse chegado a um apeadeiro. Levanto-me, vou beber um copo de água, agora que o comboio-livro pára em Pombal. Há um grupo de rapazes e raparigas na plataforma, com as suas mochilas e bonés e t-shirts onde está escrito Férias Divertidas com a União de Freguesias de Campelo e Ovil. É como se Saul, o menino Mota, cuja infância viaja neste comboio de sonhos e incertezas, nos chamasse ainda e sempre para a sua aldeia de Vilarelho. Vamos, talvez lá encontremos o rapaz de Louredo e Pedro Alecrim. Entra na carruagem a rapariga do violoncelo e eu envio uma SMS ao meu amigo António Mota, pelo meu telemóvel ou por aquele que Saul perde na casa de banho do comboio. E ele conta-me que está a chegar de uma escola onde uma senhora lhe contou que tem no quarto uma fotografia tirada há muitos anos com ele. No mesmo caixilho, ao lado da fotografia, a senhora guarda um santinho.
É o anjo da guarda de Saul e das histórias que Saul inventa à janela de um comboio. Espera por mim.» [Fernando Alves, "Espera por mim", in "Os Dias que Correm", 12 Fev. 2025]


Um rapaz viajando num comboio... Que canção portuguesa ilustra melhor tal situação? Pois não era preciso pensar muito nem fazer muitas pesquisas para encontrá-la: "Comboio Malandro", de Fausto Bordalo Dias sobre poema do angolano António Jacinto. O categorizado cantautor gravou-a duas vezes: a primeira em 1974 para o LP "P'ró Que Der e Vier", e a segunda em 1989 para o álbum "A Preto e Branco". Qualquer um destes registos seria o remate ideal à crónica de hoje de Fernando Alves centrada na infância tomando como inspiração uma história escrita por António Mota. Assim não aconteceu, pois, logo a seguir à crónica, o oficiante de serviço, Ricardo Soares, mais não fez do que rezar a meteorologia e as temperaturas máximas previstas para todas as capitais de distrito.
Dado que a segunda gravação é razoavelmente conhecida, escolhemos a primeira, também muito boa, para aqui destacar e mostrar como a Antena 1 perdeu, uma vez mais, a oportunidade de prestar bom serviço público aos fiéis ouvintes da crónica de Fernando Alves e, simultaneamente, de evocar o grande Fausto Bordalo Dias. Boa escuta!



Comboio Malandro



Poema: António Jacinto (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Fausto Bordalo Dias
Intérprete: Fausto Bordalo Dias* (in LP "P'ró Que Der e Vier", Orfeu, 1974, reed. Movieplay, 1999; CD "Fausto", Col. O Melhor dos Melhores, vol. 39, Movieplay, 1994)




[instrumental]

Esse comboio malandro
passa
passa sempre com a força dele
         ué ué
         hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

                O comboio malandro
                passa

Nas janelas muita gente
         ai bô viaje
         adeujo homéé
n'ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda pra vender
hii hii hii

         aquele vagon de grades tem bois
                                                 múu múu múu

tem outro
igual como este dos bois
leva gente,
                muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste...
gente triste como os bois
gente que vai no contrato

[instrumental]

Tem bois que morre no viaje
mas o preto não morre
canta como é criança:
                «Mulonde iá Késsua uádibalé
                uádibalé uádibalé uádibalé...»
Esse comboio malandro
sozinho na estrada de ferro
passa
         passa
sem respeito
                ué ué
                hii hii
com muito fumo no trás
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

Comboio malandro
o fogo que sai no corpo dele
vai no capim e queima
vai nas casas...
vai nas casas dos pretos e queima
                Esse comboio malandro
                Esse comboio...
                Esse comboio malandro
                Já queimou o meu milho.

[instrumental]

Se na lavra de milho tem pacaças
eu faço armadilhas no chão,
se na lavra tem kiombos
eu tiro a espingarda de kimbundo
E mato neles

mas se vai lá fogo do comboio malandro
— deixa! —
                ué ué ué
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
só fica fumo,
                muito fumo mesmo.
                ué ué ué ué ué ué ué

                Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
e os brancos chamar os pretos pra empurrar
eu vou
mas não empurro
                — nem com chicote —
finjo só que faço força

                Comboio malandro
                você vai ver só o castigo
                vai dormir mesmo no meio do caminho.
                Você vai ver só o castigo
                vai dormir mesmo no meio do caminho.
                ué ué ué ué ué ué ué


* Fausto Bordalo Dias – voz, viola e percussões
Kinito – percussões

Arranjos e direcção musical – Fausto Bordalo Dias
Produção – Adriano Correia de Oliveira
Gravado nos Estúdios Kirios, Madrid, até 17 de Abril de 1974
Técnicos de som – Pepe Fernández e Paco Molina
URL: https://www.facebook.com/p/Fausto-Bordalo-Dias-P%C3%A1gina-Oficial-100044468348123/
https://altamont.pt/fausto-pro-que-der-e-vier-1974/
https://fausto-bordalodias.blogspot.com/p/discografia.html
https://viriatoteles.com/livros/contas-a-vida/41-fausto-bordalo-dias.html
https://viriatoteles.com/imprensa/imprensa-1990-2000/89-por-favor-leiam-estes-discos.html
https://music.youtube.com/channel/UCH_869XTh5lFDKiCKvmuV_w
https://www.youtube.com/channel/UCh5tYA07B0Uur5Mo1gbPmYQ/videos?query=fausto



CASTIGO PRÒ COMBOIO MALANDRO

(António Jacinto, in "Poemas", Col. Autores Ultramarinos, N.º 9, Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1961 – p. 15-17; "50 Poetas Africanos: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe", org. Manuel Ferreira, Lisboa: Plátano, 1989, 2.ª edição, 1997 – p. 37-39)


Esse comboio malandro
passa
passa sempre com a força dele
         ué ué ué
         hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

                O comboio malandro
                passa

Nas janelas muita gente:
         ai bô viaje
         adeujo homéé
n'ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda pra vender
hii hii hii

         aquele vagon de grades tem bois
                                                 múu múu múu

tem outro
igual como este dos bois
leva gente,
                muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato

Tem bois que morre no viaje
mas o preto não morre
canta como é criança:
                «Mulonde iá Késsua uádibalé
                uádibalé uádibalé...»
Esse comboio malandro
sòzinho na estrada de ferro
passa
         passa
sem respeito
                ué ué ué
com muito fumo na trás
                hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

Comboio malandro
o fogo que sai no corpo dele
vai no capim e queima
vai nas casas dos pretos e queima
                Esse comboio malandro
                Já queimou o meu milho.

Se na lavra do milho tem pacaças
eu faço armadilhas no chão,
se na lavra tem kiombos
eu tiro a espingarda de kimbundo
e mato neles
mas se vai lá fogo do comboio malandro
— deixa! —
                ué ué ué
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
só fica fumo,
                muito fumo mesmo.

                Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
e os brancos chamar os pretos pra empurrar
eu vou
mas não empurro
                — nem com chicote —
finjo só que faço força
                                aka!

                Comboio malandro
                você vai ver só o castigo
                vai dormir mesmo no meio do caminho.



Capa do livro "Poemas", de António Jacinto (Col. Autores Ultramarinos, N.º 9, Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1961)
Concepção – Luandino Vieira



Capa do LP "P'ró Que Der e Vier", de Fausto Bordalo Dias (Orfeu, 1974)
Fotografia e arranjo gráfico – Luís Martins, P. Almeida



Capa do livro "Espera por Mim", de António Mota (Col. Biblioteca Juvenil, N.º 14, Porto: Edições Asa, Jan. 2025)
Ilustração – Alex Gozblau



Capa do livro "Histórias da Pedrinha do Sol", de António Mota (Col. Júnior, Série Laranja, +8 anos, Lisboa: Texto Editores, Out. 2009)
Ilustrações – Júlio Vanzeler.

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Chico Buarque: "Bom Conselho"
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Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)

06 fevereiro 2025

Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)


Auguste Rodin, "Le Penseur" ("O Pensador"), 1904, escultura em bronze, Museu Rodin, Paris
Fotografia – Daniel Stockman, 27 Abr. 2010


«Ainda era escuro na manhã, perguntei à Oriana Barcelos, uma das madrugadoras desta rádio, se tinha saudades da Canada dos Melancólicos. E ela pôs-se a desfiar nomes de canadas da sua Angra, começando pela dos Diabretes. A conversa espraiou-se pela Canada dos Capins e, num ai, levei as saudades por uma canada para os lados de São Mateus, com o fito numas lapas que eu cá sei.
Por volta das cinco e meia fui à janela e não vi a estrela Sirius. Depois perdi-me no céu do ecrã e encontrei no sítio da rádio Vidigueira notícia de uma acção agendada para logo, ao fim da tarde, pelo município de Moura. Trata-se da iniciativa "Ruas que Falam" que continua a interpretar a toponímia da cidade das atalaias e da moura Salúquia. Na tarde de hoje, a Câmara de Moura leva os interessados a percorrer a zona da Porta Nova, revelando segredos mais ou menos bem guardados nas cercanias das muralhas medievais.
Há tanto a descobrir, seguindo os nomes das ruas. No caso de Moura, basta que nos deixemos levar, olhos abertos, curiosidade alevantada. Na rua das Terçarias, talvez alguém nos inicie na lenda associada a uma caução, a um penhor, envolvendo duas mulheres poderosas – Beatriz, mãe de D. Manuel, e Isabel, rainha de Castela –, cada uma guardando como garantia de um rascunho para o futuro tratado de paz de Alcáçovas, o filho da outra. E vai pela Torre do Relógio, pela Fonte das Três Bicas, pelas ruínas do convento das freiras dominicanas, pelas termas. E pergunta pela Rua dos Espingardeiros, pela dos Carmelitas, pela Rua Primeira do Sete e Meio, pela do Escalatrim, pela da Igualdade. Dá a volta ao largo da Capa Rota. E se te cansares, senta-te no Jardim dos Mal Encarados.
Mas guarda tempo, algum tempo para o ritual da mesa na Taberna do Liberato, onde já fiz com bons compinchas uma inesquecível emissão de rádio durante a qual, Jorge, o anfitrião, explicou como foi eleito bastonário da Ordem dos Taberneiros.
Entre duas lascas de presunto e um brinde ao grande Mário Zambujal, que aqui nasceu, saúdo a iniciativa da autarquia de Moura. Tantos são os que nada sabem, e muitos não cuidam de saber, sobre as origens do nome da rua onde vivem.
Lembro-me de, há muito tempo, em Vila de Frades, junto à casa onde nasceu o escritor Fialho de Almeida, ter ficado preso ao nome da rua mais próxima, Rua do Pensamento. Uma pequena rua de casas baixas e alto nome. Cheguei a bater a algumas portas, cuidando que haveria de colher de algum morador, não digo uma explicação cabal, mas um doce desvario, um verso repentista, um pensamento escapando-se em sorriso largo. Mas não, ninguém sabia. Dá que pensar.» [Fernando Alves, "Ruas que falam", in "Os Dias que Correm", 6 Fev. 2025]


Poemas e canções em língua portuguesa que referem o pensamento ou o acto de pensar não escasseiam. Alguns exemplos bem conhecidos: "Livre" (Não há machado que corte / a raiz ao pensamento), de Carlos de Oliveira, cantado por Manuel Freire; "Abandono" (Por teu livre pensamento / Foram-te longe encerrar), de David Mourão-Ferreira, cantado por Amália; "Vejam Bem" (que não há só gaivotas em terra / quando um homem se põe a pensar", de e por José Afonso. Com o vocábulo "pensamento" no título também existem várias canções e entre elas figura uma que seria o perfeito remate poético-musical à crónica de Fernando Alves hoje emitida pela Antena 1 no programa da manhã: "Pensamento", por Adriano Correia de Oliveira cantando versos de Manuel Alegre, que saiu primeiramente no EP "Trova do Vento Que Passa", em inícios de 1964. Acreditamos piamente que Fernando Alves teria apreciado que este belo trecho fosse tomado como epílogo às sua palavras em torno do pensamento. E teria sido também uma excelente oportunidade para dar a ouvir Adriano Correia de Oliveira, uma das melhores vozes de sempre da música portuguesa mas alvo de um criminoso boicote por quem tem administrado a 'playlist' do canal generalista da rádio do Estado. Os ouvintes teriam, decerto, ficado agradados com este mimo, mas não lhes foi concedido. Aqueles que aqui acederem poderão desfrutá-lo as vezes que lhes apetecer e voltarem a lamentar-se pela desconsideração a que são votados pela rádio que pagam. Boa escuta!



Pensamento



Poema: Manuel Alegre
Música: Adriano Correia de Oliveira e António Portugal
Intérprete: Adriano Correia de Oliveira* [in EP "Trova do Vento Que Passa", Orfeu, 1964; LP "Adriano Correia de Oliveira: Baladas", Orfeu, 1969; LP "Trova do Vento Que Passa", Orfeu, 1982; "7CD "Adriano: Obra Completa": CD "Trova do Vento Que Passa: Adriano canta Manuel Alegre (I)", Movieplay, 1994; 7 livros/CD "Obra Completa de Adriano Correia de Oliveira": vol. 3 - "Trova do Vento Que Passa: Adriano canta Manuel Alegre I", Movieplay/Público, 2007]


Meu pensamento
Partiu no vento
Podem prendê-lo
Matá-lo não.

Meu pensamento
Quebrou amarras
Partiu no vento
Deixa guitarras.

Meu pensamento
Por onde passas
Estátua de vento
Em cada praça.

Meu pensamento
Partiu no vento
Podem prendê-lo
Matá-lo não.

Foi à conquista
Do novo mundo
Foi vagabundo
Contrabandista.

Foi marinheiro
Maltês ganhão
Foi prisioneiro
Mas servo não.

Meu pensamento
Partiu no vento
Podem prendê-lo
Matá-lo não.

E os reis mandaram
Fazer muralhas
Tecer as malhas
De negras leis.

Homens morreram
Chamas ao vento
Por ti morreram
Meu pensamento.


* Adriano Correia de Oliveira – voz
António Portugal – guitarra de Coimbra
Rui Pato – viola

Montagem DAT (edição de 1994) – João Pedro Castro, nos Estúdios Namouche, Lisboa
Biografia e discografia em: A Nossa Rádio
URL: https://adrianocorreiadeoliveira.org/
https://www.facebook.com/adrianocorreiadeoliveira/
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=adriano+correia+oliveira



Capa do EP "Trova do Vento Que Passa", de Adriano Correia de Oliveira (Orfeu, 1964)
Fotografia – Fernando Aroso



Capa da compilação em LP "Adriano Correia de Oliveira: Baladas" (Orfeu, 1969)
Fotografia – Fernando Aroso (Praia de Lavadores, Vila Nova de Gaia)



Capa da compilação em LP "Trova do Vento Que Passa" (Orfeu, 1982)
Reedição da compilação anterior.



Capa da caixa de 7CD "Adriano: Obra Completa", org. José Niza (Movieplay, 1994)
Fotografia – Inácio Ludgero
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Edição electrónica/digitalização gráfica – Olívia Braga



Capa do CD "Trova do Vento Que Passa: Adriano canta Manuel Alegre (I)", org. José Niza (Movieplay, 1994)
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Edição electrónica/digitalização gráfica – Olívia Braga



Capa do livro/CD "Trova do Vento Que Passa: Adriano canta Manuel Alegre I", vol. 3 da "Obra Completa de Adriano Correia de Oliveira", org. José Niza (Movieplay/Público, 2007)

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Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)

05 fevereiro 2025

Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)


Fotografia respigada do Facebook oficial de Maria Teresa Horta.


«Guardei há dias no bloco de notas uma frase que encontrei na edição digital do jornal El Sur, de Málaga, dita por Antonio Ortiz, um especialista em padrões estocásticos: "Uma das coisas que sempre nos distinguirá da inteligência artificial é desobedecer".
Lembrei-me dessa anotação quando chegou a notícia da morte de Maria Teresa Horta que sempre fez da desobediência uma das marcas, talvez a principal, das tantas lutas que travou. Nela, a desobediência era um degrau mais alto da coragem. Porque, nela, a coragem podia implicar que, não raras vezes, rompesse com a norma estabelecida no seu mais íntimo círculo de acção. Desobediente, pois, e desalinhada, mesmo quando fazia ombro com outros ombros no empenhamento cívico. Não era mais uma. Era uma, senhora de si, fraternal, solidária. "Comigo me desavim/ minha senhora/ de mim", escreveu ela num livro de 1971 que a PIDE haveria de apreender.
O enaltecimento desta sua marca de água ética e estética por certo merece menoscabo de tantos que na passagem dos dias nunca deixaram de beber o purgante da vassalagem, educados na continência e na serventia vil. Vemo-los compondo, no enquadramento, o galheteiro mediático, olhar circunspecto e bajulador, abanando a cabeça às declarações de um qualquer mais graduado. Têm a altivez de um cão de loiça. São insensíveis à pulsão mais funda da liberdade, estranham qualquer manifestação ou formulação de um viver poético.
Na notável biografia de Maria Teresa Horta que Patrícia Reis publicou o ano passado, justamente intitulada "A Desobediente", é relembrado um depoimento do compositor António Chagas Rosa que em dado momento pretendeu musicar poemas originais de Maria Teresa. Ele conta que ela se lhe apresentou com aquilo que define como "a modéstia dos grandes", e lhe entregou um esboço do magnífico conto cantado "Feiticeiras", perguntando: "Acha bem?".
"Sou mulher/ sou feiticeira/ sou bruxa// No meu abraço// desobedeço e invento/ insubordino o que faço".
São versos retomados, noutra formulação, no poema "Ponto de Honra", incluído em "Inquietude", uma edição da Quasi, nos finais de 2006: "Desassossego a paixão / espaço aberto nos meus braços/ Insubordino o amor/ desobedeço e desfaço".
A mulher que nos olha com tamanha doçura na belíssima foto de capa, de Gonçalo Villaverde, esta manhã no DN, intima-nos, tão serenamente, a que não desistamos da coragem da desobediência, quando ela se imponha não para que nos distingamos de máquinas inteligentes, mas de humanos pusilânimes.» [Fernando Alves, "O que sempre nos distinguirá", in "Os Dias que Correm", 5 Fev. 2025]


Se esta crónica de Fernando Alves, verdadeiramente antológica (a somar a tantas outras que já escreveu e leu aos microfones da rádio portuguesa), tivesse sido emitida pela TSF-Radio Jornal é garantido que seria rematada com um registo extraído de um disco – poema recitado ou canção sobre poesia de Maria Teresa Horta. Na Antena 1 a opção tem sido a de transmitir a crónica a seco (seguida do estado do tempo), não por haver a evidência de que assim as palavras do eminente cronista sejam mais facilmente apreendidas e assimiladas (longe disso), mas tão-só porque a inércia e a desconsideração pelos ouvintes prevalecem sobre o profissionalismo e o sentido de serviço público que deviam nortear sempre quem exerce funções de chefia e/ou subalternas na estação que é suportada pelos pagantes da contribuição do audiovisual. No caso presente, o remate mais óbvio e lógico seria um dos poemas de que Fernando Alves leu excertos, de preferência na voz da autora, que muito provavelmente existem no arquivo histórico da RDP (o primeiro citado, "Minha Senhora de Mim", éramos capazes de apostar que lá existe). Mas, se acaso se verificasse a inexistência de qualquer dos poemas evocados pelo distinto cronista, ficaria igualmente bem passar uma canção sobre um poema de Maria Teresa Horta. E há várias, a começar pelas gravadas por Teresa Paula Brito, em 1971, com música de Nuno Filipe e arranjos de Rui Ressurreição, para o EP "Minha Senhora de Mim" sobre poemas do livro homónimo, volume esse publicado no mesmo ano e logo apreendido pela PIDE. Escolhemos, para aqui destacar, em saudosa memória da poetisa, que acabou de nos deixar, e da intérprete, que já cá não está desde 2003, a canção (compósita de dois poemas) "Meu Aceso Lume - Meu Amor". Estamos certos de que os ouvintes da Antena 1 (se não todos, a esmagadora maioria) teriam gostado de ouvi-la, uns em deslumbrante descoberta e outros em gratíssima revisitação. Os que aqui acederem poderão colmatar a lacuna que a sua rádio lhes deixou (negligentemente) aberta e, ao mesmo tempo, tomarem mais aguda consciência de como o dinheiro que desembolsam não tem com correspondência um serviço irrepreensível e plenamente satisfatório. Boa escuta!

Nota: A respeito de Maria Teresa Horta, recomendamos vivamente a edição de ontem d' "A Ronda da Noite", que Luís Caetano fez a justiça de dedicar inteiramente à distinta poetisa e escritora [>> RTP-Play].



Meu Aceso Lume - Meu Amor



Poemas: Maria Teresa Horta (ligeiramente adaptados) [textos originais individualizados >> abaixo]
Música: Nuno Filipe
Intérprete: Teresa Paula Brito* (in EP "Minha Senhora de Mim", Movieplay, 1971; CD "Teresa Paula Brito", Col. Clássicos da Renascença, vol. 61, Movieplay, 2000)




Colheste as flores
da tua chama
apagaste devagar
os teus sentidos
sossegaste o corpo
em sua cama
desguarneceste em mim
os teus motivos

Colheste as flores
da tua chama
apagaste devagar
os teus sentidos
sossegaste o corpo
em sua cama
desguarneceste em mim
os teus motivos

Que a vela acesa corte a madrugada
e lhe desdiga a calma e a palavra

Colheste devagar o meu queixume:

Ó meu amor!
Ó meu aceso lume!

[instrumental]

Meu amor       meu amor
meu profundo segredo

meu secreto recanto
meu labor
mais sedento

meu amor       meu amor
minha sede mais
pura

meu corpo
meu invento

meu futuro lamento
minha grande ternura

Meu amor       meu amor
meu profundo segredo

meu secreto recanto
meu labor
mais sedento

meu amor       meu amor
minha sede mais
pura

meu corpo
meu invento

meu futuro lamento
minha grande ternura

Meu amor       meu amor
meu profundo segredo

meu secreto recanto
meu labor
mais sedento

meu amor       meu amor
minha sede mais
pura

meu corpo
meu invento

meu futuro lamento
minha grande ternura


* Teresa Paula Brito – voz
Arranjos e direcção – Rui Ressurreição
Colaboração especial – José Cid, Luís Filipe, Tozé Brito, Victor Mamede

Produção – Movieplay
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa, em 1971
Técnico de som – Jean-François Beaudet
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Teresa_Paula_Brito
https://ruascomhistoria.wordpress.com/2018/10/23/quem-se-lembra-da-cantora-teresa-paula-brito-se-fosse-viva-faria-hoje-74-anos-de-idade-aqui-fica-a-nossa-homenagem-a-teresa-paula-brito-e-ao-mesmo-tempo-a-maria-teresa-horta/
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=teresa+paula+brito



MEU ACESO LUME

(Maria Teresa Horta, in "Minha Senhora de Mim", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1971 – p. 54; "Poesia Reunida", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009)


Colheste as flores
da tua chama
apagaste devagar
os teus sentidos
sossegaste o corpo
em sua cama
desguarneceste em mim
os teus motivos

Que a vela acesa corte a madrugada
e lhe desdiga a calma e a palavra

Colheste devagar o meu queixume:

Ó meu amor!
Ó meu aceso lume!



MEU AMOR

(Maria Teresa Horta, in "Minha Senhora de Mim", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1971 – p. 52; "Poesia Reunida", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009)


Meu amor       meu amor
meu profundo segredo

meu secreto recanto
meu labor
mais sedento

meu amor       meu amor
minha sede mais
pura

meu corpo
meu invento

meu futuro lamento
minha grande ternura



Capa da 1.ª edição do livro "Minha Senhora de Mim", de Maria Teresa Horta (Col. Cadernos de Poesia, N.º 18, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1971)
Orientação gráfica – Fernando Felgueiras



Capa da 2.ª edição do livro "Minha Senhora de Mim", de Maria Teresa Horta (Col. Nova Visão Futura, Lisboa: Editorial Futura, 1974)



Capa da 3.ª edição do livro "Minha Senhora de Mim", de Maria Teresa Horta (Col. Poesia, Lisboa: Gótica, 2001)



Capa da 4.ª edição do livro "Minha Senhora de Mim", de Maria Teresa Horta (Lisboa: Publicações Dom Quixote, Mai. 2015)



Capa do livro "Poesia Reunida", de Maria Teresa Horta (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009)



Capa do EP "Minha Senhora de Mim", de Teresa Paula Brito (Movieplay, 1971)



Capa da compilação em CD "Teresa Paula Brito" (Col. Clássicos da Renascença, vol. 61, Movieplay, 2000)



Capa do livro "A Desobediente: Biografia de Maria Teresa Horta", de Patrícia Reis (Lisboa: Contraponto Editores, Mar. 2024)

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Dialecto: "Instrumentos de Trabalho" (Maria Teresa Horta)
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Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"

31 janeiro 2025

Chico Buarque: "Bom Conselho"


Nicolau Von Rupp surfando uma onda gigante na Praia do Norte / Nazaré Big Wave Challenge 2024
© Carlos Barroso/LUSA
(in https://desporto.sapo.pt/)


«O repórter fotográfico Carlos Barroso, da agência Lusa, deu asas a um olhar de ave marinha, e deixou-se levar na crina dos mais altos ventos, acima dos magotes que seguiam, nas arribas da Praia do Norte, a dança dos surfistas com a tempestade Ivo, na Nazaré. O Diário de Notícias dá-nos, esta manhã, uma das suas formidáveis imagens, uma primeira fila na última página, explicando que a Polícia Marítima cortou o trânsito para o farol, mas isso não impediu os amantes do surf de seguirem o português Nicolau Von Rupp enfrentando a tempestade Ivo. O jornal Público abre um pouco mais o mar da página para acolher os desafiadores da tempestade.
Poucos dias antes, o jornal Globo seguiu, na Nazaré, em plena tempestade Hermínia, o combate corpo a corpo entre o sergipano William Santana e um muro de água de trinta metros. Podia ser um cenário para a peça shakespeariana.
A Tempestade estava, aliás, em cena, há dias, no mais antigo teatro de Inglaterra, quando dois activistas de um grupo ambientalista invadiram o palco, protestando contra a inacção dos dirigentes políticos face às alterações climáticas. Este grupo tem desenvolvido acções semelhantes, nos lugares mais inesperados, em Wimbledon ou junto ao túmulo de Darwin. Não consta que tenham tentado anular as ondas da Nazaré, prejudicando assim a actuação de William Santana.
O nome William, no teatro das ondas, puxa mesmo a tempestade.
Tal como na peça, ele grita que é da mesma substância de que são feitos os sonhos, as ondas e a tempestade são a sua ilha de Próspero.
E por isso, ele sonha a onda de Santana, é o seu epónimo salgado.
Como se, no areal, a prancha debaixo do braço, ele fosse já repetindo o estribilho de uma canção de Chico, "vou para a rua a bebo a tempestade".
Os jornais dão notícia de ventos muito fortes e de agitação marítima nos municípios litorais da sua Sergipe, Aracaju, Japaratuba, Nossa Senhora do Socorro. Ele semeou o vento na sua cidade e atravessou o mar para subir ao alto de uma parede de água, mais veloz do que um cavalo-marinho, devagar é que não se vai longe.
O repórter fotográfico Carlos Barroso sobe também à mais alta arriba seguindo a dança na prancha. Caliban abraça em espuma a bela Ariel. Não tenhas medo, a praia está cheia de ruídos. Barroso merece mesmo uma caldeirada na mesa de McNamara, na Celeste.» [Fernando Alves, "Na onda mais alta da tempestade", in "Os Dias que Correm", 31 Jan. 2025]


O verso de Chico Buarque citado por Fernando Alves pertence à canção "Bom Conselho" e não seria difícil identificá-la já que uma das gravações abre o alinhamento de um dos mais conhecidos e aclamados álbuns do categorizado cantautor brasileiro: "Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo" (1972). Esse registo teria sido o perfeito remate à crónica quando foi radiodifundida no programa da manhã da Antena 1 mas tal aconteceu, uma vez mais, denotando que a direcção de programas do canal generalista da rádio do Estado se está mesmo a marimbar para os ouvintes/contribuintes, muito especialmente para os que ficam com vontade de ouvir algo de música e/ou poesia sugerido pelo reputado cronista ou tematicamente relacionado com o teor da crónica. A passagem da referida canção de Chico seria igualmente uma maneira de celebrar, ainda que singelamente, a maior figura da música popular brasileira e um dos vultos mais proeminentes da canção de língua portuguesa (também por isso lhe foi outorgado, e com inteira justiça, o Prémio Camões). Eis, pois, o irónico "Bom Conselho", de e por Chico Buarque. Boa escuta!



Bom Conselho



Letra e música: Chico Buarque (Francisco Buarque de Holanda)
Intérprete: Chico Buarque* (in LP "Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo", Philips/Phonogram, 1972, reed. Philips/Polygram, 1988, 1993)




Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça:
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado
Quem me espera nunca
Alcança

Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio vento na minha cidade
Vou p'rà rua e bebo a tempestade [3x]


* Chico Buarque – violão e voz
Perinho Albuquerque – violão
Tutty Moreno – bateria
Bira da Silva – percussão
Moacyr Albuquerque – baixo eléctrico
Antônio Perna Fróes – teclados

Produzido por Roni Berbert e Guilherme Araújo
Gravado ao vivo no Teatro Castro Alves, Salvador, Bahia, nos dias 10 e 11 de Novembro de 1972, por Ary Carvalhaes
URL: https://www.chicobuarque.com.br/
https://www.facebook.com/ChicoBuarque/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Chico_Buarque
https://altamont.pt/caetano-veloso-e-chico-buarque-caetano-e-chico-juntos-e-ao-vivo/
https://music.youtube.com/channel/UC0KFB-23-1AeWp1pOi6bvpQ



Capa da 1.ª edição do LP "Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo" (Philips/Phonogram, 1972)
Fotografia – Marcos Maciel.

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Em memória de Georges Moustaki (1934-2013)
Celebrando Vinicius de Moraes

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António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
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