23 dezembro 2020

Cantos de Natal da Galiza e de Portugal



Ariel Ninas, Catarina Moura e César Prata lançam-se na construção de um espectáculo a partir das canções populares que na Galiza e Portugal humanizam a divindade, através do nascimento de uma criança, o menino Jesus, cuidada por pastores e camponeses, adorada por Reis do Oriente e perseguida pelos poderosos para quem a mensagem de libertação redentora dos malefícios do Mundo era e continua a ser ameaçadora.
De 25 de Dezembro a 5 de Janeiro contam-se os 12 dias que marcam o início das celebrações do regresso do Sol (no hemisfério Norte), garante de novas sementeiras e fartas colheitas, anunciadas pelas árvores de folhagem caduca em que novos rebentos são a prova do início de um novo ciclo.
Eram as Festas Saturnais celebradas no Império Romano e de que se encontram ainda traços nos presépios e autos pastoris, no cepo do Natal e em tantas outras manifestações populares, neste Ciclo do Natal aos Reis.
[...]
Os versos cantados são reveladores de uma religiosidade popular próxima do sentir comum do povo. São tangedores de viola, de pandeiro e tamboril que reclamam as harpas e liras de oiro dos anjos do céu. E a preocupação de vestir o Menino, com sapatinhos novos, meiinhas, calções, camisa, colete, casaco, lencinho, chapéu. E Maria à beira do rio, lavando os cueiros do bendito Filho, que São José estendia. O Menino é beijado no pé, para rimar com São José, e na mão, para rimar com São João (Baptista). E o berço é de madeira (manjedoura) e palhas, "Em palhas deitado, em palhas aquecido". O Menino tem "boquinha de marmelada" para rimar com "... a minha mãe não tem nada", e "boquinha de requeijão" rima com "... a minha mãe não tem pão.".
O Deus Menino tudo merece. Da contemplação deslumbrada por um postigo entreaberto, merecedor de uma cadeirinha de oiro, mas também de papa doce, sopinhas da panela e a mama da mãe (Maria), ausente no moinho enquanto o pai (José) ficou na cama.
As canções da Galiza remetem quase todas para o Ano Novo e Reis. A chegada a Belém e a busca de um abrigo para o parto situa o momento do nascimento nas Festinhas de Nadale, quando "... á medianoite en punto/ a Virgen parido habia./ Tanta era a súa pobreza/ que un pano ela non tiña.". Mas as Festas de Ano Novo e Reis têm muita dança, brincadeira e malícia, que "as forzas piden reparo,/ mollo ás gorxas e non d'auga!/ Chourizo e longaniza,/ uña de porco, fuciño,/ ou de xamón dúas tortillas/ con dous xarriños de viño.". E das damas, nada escapa no dito brejeiro que antecede o aguinaldo (ofertas em género) num crescendo que vai do cabelo, passando pelos peitos, barriga e "... iso que ti tapas con un delantal,/ ten dúas columnas, palacio real.".
Todas estas canções foram revestidas por arranjos instrumentais que de certo modo as transfiguram sem as descaracterizar. A sanfona é uma feliz opção que nos remete para as representações dos presépios populares esculpidos ou pintados. Todos os instrumentos utilizados criam uma moldura sonora em que melodia e textos são valorizados.
E que nada têm a ver com a lamechice do Natal dos 'Jingle Bells' nos centros comerciais e das seitas religiosas que não perdem uma oportunidade para nos culpabilizar e transformar em pecadores contribuintes.
[...]

Domingos Morais (IELT - Instituto de Estudos de Literatura e Tradição, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa)


"Do Natal aos Reis: Cantos da Galiza e Portugal", como refere o Prof. Domingos Morais, começou por ser, em 2017, um concerto itinerante focado na tradição musical da Galiza e de Portugal. Ciente de que seria importante ficar para a posteridade um registo fonográfico, a editora galega aCentral Folque lançou, em finais de 2019, o CD homónimo com gravações de estúdio da maioria dos cantares tradicionais que constituíram o espectáculo e ainda a peça instrumental "Ou da Casa!", de Angel Custodio Santabaya, e uma canção inédita, "Chove", com música de César Prata sobre quadras de Fernando Pessoa.
No primeiro dia de 2020, apresentámos neste blogue o tema "Entrada de Aninovo" [cf. Catarina Moura, Ariel Ninas e César Prata: "Entrada de Aninovo"], tendo-se então arreigado no nosso íntimo o desejo de revisitar este belíssimo álbum em vésperas do Natal seguinte. Esse momento chegou e, em jeito de prenda aos estimados leitores/visitantes, aqui ficam mais sete espécimes da nossa particular afeição: seis tradicionais e a referida canção sobre poesia pessoana.
Não seria bom que a Antena 1 também presenteasse os seus ouvintes com algumas cantigas do disco ora em destaque e, bem assim, com outras magníficas recriações do cancioneiro natalício que se gravaram entre nós, em lugar da tralha que atafulha a 'playlist'?



Eu Hei-de Ir ao Presépio



Letra e música: Tradicional (Portugal)
Arranjo: César Prata
Intérpretes: Catarina Moura, Ariel Ninas e César Prata* (in CD "Do Natal aos Reis: Cantos da Galiza e Portugal", aCentral Folque, 2019)




[instrumental]

Eu hei-de ir ao presépio
assentar-me num cantinho,
a ver como o Deus-Menino
nasceu lá tão pobrezinho.

Abra lá o seu postigo,
deixe estar um pouco aberto!
Quero ver o Deus-Menino
armadinho no presépio.

Eu hei-de dar ao Menino,
ao Menino hei-de dar
uma cadeirinha de oiro
para o Menino assentar.

Ó meu Menino Jesus,
ó meu rico fidalguinho,
hei-de dar-te papa doce,
hei-de ter-te mimosinho!

Ó meu Menino Jesus,
quem vos pudera valer
com sopinhas da panela
sem a vossa mãe saber!

Ó meu Menino Jesus,
quem vos há-de dar a mama?
Vossa mãe foi ao moinho,
vosso pai ficou na cama.

[instrumental]

Ó meu Menino Jesus,
ó meu rico fidalguinho,
hei-de dar-te papa doce,
hei-de ter-te mimosinho!

Ó meu Menino Jesus,
quem vos pudera valer
com sopinhas da panela
sem a vossa mãe saber!

Ó meu Menino Jesus,
quem vos há-de dar a mama?
Vossa mãe foi ao moinho,
vosso pai ficou na cama.



Ó Meu Menino Jesus



Letra e música: Tradicional (Beiras, Portugal)
Arranjo: Catarina Moura, César Prata e Anel Ninas
Intérpretes: Catarina Moura, Ariel Ninas e César Prata* (in CD "Do Natal aos Reis: Cantos da Galiza e Portugal", aCentral Folque, 2019)




[instrumental]

Ó meu Menino Jesus,
quem vos tirou do altar?
Foi o ministro de Cristo
para nos dar a beijar.

Ó meu Menino Jesus,
boquinha de marmelada,
dá-me da tua merenda
que a minha mãe não tem nada.

Ó meu Menino Jesus,
boquinha de requeijão,
dá-me da tua merenda
que a minha mãe não tem pão.

[instrumental]

Ó meu Menino Jesus,
ó meu Menino tão belo,
só vós vieste nascer
no rigor do caramelo.

Entrai, pastores, entrai
por esses portais adentro!
Vinde ver o Deus-Menino
no sagrado nascimento!

[instrumental]



Vestir o Menino



Letra e música: Tradicional (Trás-os-Montes e Alto Douro, Portugal)
Arranjo: Catarina Moura, César Prata e Anel Ninas
Intérpretes: Catarina Moura, Ariel Ninas e César Prata* (in CD "Do Natal aos Reis: Cantos da Galiza e Portugal", aCentral Folque, 2019)




[instrumental]

Menino Jesus,
tenho que vos dar
sapatinhos novos
para vos calçar.

Sapatos já tendes,
faltam-vos meiinhas:
eu vo-las darei,
de salvé-rainhas.

Meiinhas já tendes,
faltam-vos calções:
eu vo-los darei,
de mil orações.

Calções já os tendes,
falta-vos camisa:
eu vo-la darei,
de cambraia lisa.

[instrumental]

Camisa já tendes,
falta-vos colete:
eu vo-lo darei,
de pano de crepe.

Colete já tendes,
falta-vos casaco:
eu vo-lo darei,
de pano bem guapo.

Casaco já tendes,
falta-vos lencinho:
eu vo-lo darei,
de pano de linho.

Lencinho já tendes,
falta-vos chapéu:
eu vo-lo darei,
levai-me p'ró Céu.



Festas de Nadal



Letra e música: Tradicional (Carballo, Corunha, Galiza)
Arranjo: Catarina Moura, César Prata e Anel Ninas
Intérpretes: Catarina Moura, Ariel Ninas e César Prata* (in CD "Do Natal aos Reis: Cantos da Galiza e Portugal", aCentral Folque, 2019)




[instrumental]

As festiñas de Nadal
son festiñas de alegría.

Camiñando vai Xosé
e maila Virgen María.

Camiñaron a Belén
e a Belén chegou a guía.

Cuando a Belén chegaron
a medianoite sería.

– «Abre as portas, ó porteiro,
a Xosé e mais María!»

– «Como che as hei de abrir
se unha chave eu non tiña?»

– «Non as quero de ouro,
tampouco de prata fina.»

– «O que queria saber
é cuando a Virgen paría.»

– «Se pare esta noite
nen palabra que diría.»

E á medianoite en punto
a Virgen parido habia.

Tanta era a súa pobreza
que un pano ela non tiña.

Baixou un anxo do Ceo
que lindos panos traía:

Uns eran de holanda
e outros de holanda fina.

– «Se queres vir para o Ceo
rica cama te daria.»

– «É para o neno Jesús
que nos brazos o traía.»


Nota: «Panxola de Noiteboa».



Alta Vai a Lua Alta



Letra e música: Tradicional (Trás-os-Montes e Alto Douro, Portugal)
Arranjo: Catarina Moura, César Prata e Anel Ninas
Intérpretes: Catarina Moura, Ariel Ninas e César Prata* (in CD "Do Natal aos Reis: Cantos da Galiza e Portugal", aCentral Folque, 2019)




[instrumental]

Alta vai a Lua alta
como o Sol do meio-dia.
Mais alta ia a Senhora  | bis
quando para Belém ia.  |

São José ia atrás dela,
alcançá-la não podia.
Foi alcançá-la a Belém  | bis
onde ela estava parida. |

Tão grande era a sua pobreza
que nem um panal tenia.
Botou as mãos à cabeça,  | bis
a um véu que ela trazia.   |

Partiu-o em três bocados,
em três bocados o partia:
um era para de manhã,
outro para o meio-dia,

outro para a meia-noite
quando Jesus adormia.
Desceram os anjos do Céu
Cantando: avé, Maria!
Avé, Maria de graça, de graça avé, Maria! [bis]


Nota: «Cantada nas segadas, ao fim da tarde.»



Toca, Sino, Toca!



Letra e música: Tradicional (Portugal)
Arranjo: César Prata
Intérpretes: Catarina Moura, Ariel Ninas e César Prata* (in CD "Do Natal aos Reis: Cantos da Galiza e Portugal", aCentral Folque, 2019)




[instrumental]

Esta noite é noite santa.
Não é noite de dormir
que um lindo botão de rosa
à meia-noite há-de abrir.

Harpas de oiro, liras d'oiro,
anjos do Céu afinai.
Paz na Terra e nas Alturas,
Glória e louvor cantai.

[instrumental]

Esta noite é noite santa.
Outra mais santa não há
que um lindo botão de rosa
desabrochou em Judá.

Tangedores de viola,
de pandeiro e tamboril,
tomai vós a minha lira
e dai-me o vosso arrabil!

[instrumental]

Toca, sino, toca
tão badalão!
Toca, sino, toca
no meu coração!
[6x]

Toca, sino, toca!



Chove



Poema: Fernando Pessoa (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: César Prata
Intérpretes: Catarina Moura, Ariel Ninas e César Prata* (in CD "Do Natal aos Reis: Cantos da Galiza e Portugal", aCentral Folque, 2019)




[instrumental]

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal.
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

[instrumental]

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo inda outra quadra
Fico gelada dos pés.

[instrumental]

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal.
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal.
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.



Chove. É dia de Natal.

(Fernando Pessoa, in "Poesias de Fernando Pessoa", Col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. I, Lisboa: Edições Ática, 1942, 14.ª edição, Lisboa: Edições Ática, 1993 – p. 127)


Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal.
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

25-12-1930


* [Créditos gerais do disco:]
Catarina Moura – voz
Ariel Ninas – sanfona, sinos, harmónica, chocalhos, adufe e voz
César Prata – guitarras, dulcimer, adufe, harmónio, mbira, 'beat root' e voz

Gravado por César Prata, no estúdio RequeRec (Trancoso)
Misturas e masterização – César Prata
URL: http://artistas.folque.com/do-natal-aos-reis/



Capa do CD "Do Natal aos Reis: Cantos da Galiza e Portugal", de Catarina Moura, Ariel Ninas e César Prata (aCentral Folque, 2019)
Desenho e arte final – Mauro Sanin Leira

Alinhamento:
1. Eu Hei-de Ir ao Presépio (PT)
2. Entrada de Aninovo (GZ)
3. Janeiras (Alentejo, PT)
4. Cantar de ls Reis (Planalto Mirandês, Trás-os-Montes e Alto Douro, PT)
5. Ó Meu Menino Jesus (Beiras, PT)
6. Aguinaldo (Tomonde, Cerdedo, Pontevedra, GZ)
7. Vestir o Menino (Trás-os-Montes e Alto Douro, PT)
8. Reices das Mozas (Brates, Boimorto, Corunha, GZ)
9. Chove (Fernando Pessoa / César Prata, PT)
10. Festas de Nadal (Carballo, Corunha, GZ)
11. Beijai o Menino (Trás-os-Montes e Alto Douro, PT)
12. Bento Airoso (Trás-os-Montes e Alto Douro, PT)
13. Reices Vellos (Brates, Boimorto, Corunha, GZ)
14. Toca, Sino, Toca! (PT)
15. Alta Vai a Lua Alta (Trás-os-Montes e Alto Douro, PT)
16. Ou da Casa! (Angel Custodio Santabaya, GZ)

Contacto para encomendas:
maurocomunica@folque.com

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