27 março 2018

"Ecos da Ribalta": homenagem a Carmen Dolores


Carmen Dolores encarnando Isabella, na tragicomédia "Dente por Dente" ("Measure for Measure"), de William Shakespeare, numa versão de Luiz Francisco Rebello, levada à cena pelo Teatro Moderno de Lisboa, com encenação, cenários e figurinos de António Pedro, no Cinema Império, em 1964.
© José Marques / Museu Nacional do Teatro (MNT 248870) [MatrizNet]


O teatro para mim é, cada vez mais, uma verdade sem grandes artifícios, porque a magia está sempre lá, na comunhão que se estabelece, na ideia que corre célere e é apanhada, num relance, pelo espectador atento e disponível. O teatro é aquele pulsar de corações contentes. O teatro é aquele silêncio quase sufocante à espera do imprevisto. O teatro é feito de pedaços de vida, juntamente com pedaços de sonho.
É o gesto que hoje foi diferente, porque se soltou de mim, sem eu dar conta, e foi registado por aquele espectador que está ali para sentir, para vibrar connosco. É esta lágrima suspensa que eu não sei se hoje vai rolar pelo rosto congestionado de dor ou se permanece feita lago, nos olhos de expressão magoada. É estarmos ali «vivos», em comunhão uns com os outros. É esta aragem que junta no ar as nossas respirações e faz do espaço uma amálgama de sentimentos que se confundem entre si.
O teatro é o efémero que, através da nossa memória, pode acompanhar-nos a vida inteira.

CARMEN DOLORES (in "No Palco da Memória", Lisboa: Sextante Editora, 2013 – p. 99-100)


Meus queridos autores, que tanto me destes sem pedir nada em troca. Claro que nós, intérpretes, também damos tudo! Mas, em relação à poesia, ela é-me tão necessária, tão verdadeiramente vital para o meu equilíbrio, que nunca representará qualquer espécie de sacrifício, pelo contrário, ela é a minha evasão (e como eu gostava de transmitir esse sentimento aos outros que andam por aí perdidos, a aturdir-se por veredas sem saídas!), ela é a minha melhor companheira nos momentos bons e nos menos bons.

CARMEN DOLORES (in "No Palco da Memória", Lisboa: Sextante Editora, 2013 – p. 32)


A voz, ex-libris da identidade que a definiu, tornou-a referência na comunicação em língua portuguesa, ao serviço da grande literatura (sobretudo poesia), que tem divulgado encantatoriamente. No teatro, no cinema, na televisão, em recitais, em livros, em conferências, Carmen Dolores transformou a carreira pessoal numa obra de abertura aos outros, de acrescentamento dos outros, ajudando a despertar para a cultura várias gerações de nós, gerações que lhe são para sempre devedoras [...]. Carmen Dolores soube abandonar os palcos em apoteose — na peça Copenhaga, superiormente encenada por João Lourenço — mas não o público, que a esse continua ligada pela escrita (fascinantes as suas memórias), pelo convívio (é uma oradora notável), pela disponibilidade de subtilíssimas atenções. A busca da harmonia e da sabedoria, da solidariedade e da criatividade marcou-a indelevelmente, corajosamente veja-se a sua lucidez nos ímpares Comediantes de Lisboa e Teatro Moderno de Lisboa, por exemplo; veja-se a sua intensidade nas inigualáveis Espingardas da Mãe Carrar e Danças da Morte (as duas magníficas versões de Jorge Listopad), por exemplo. Maravilhosa Carmen Dolores!

FERNANDO DACOSTA (in "Vozes Dentro de Mim", de Carmen Dolores, Lisboa: Sextante Editora, 2017 – contracapa)


Carmen Dolores [resenha biográfica no site do >> Instituto Camões] é, indiscutivelmente, uma das mais notáveis actrizes portuguesas de sempre e não apenas do período que vai, sensivelmente, da II Guerra Mundial até 2005 (ano em que se retirou). Testemunham-no aqueles que a viram e ouviram ao vivo em palco ou em saraus de poesia e também os documentos áudio e audiovisuais que existem da sua arte na rádio, no disco, no cinema e na televisão. De entre todos estes meios, o que sempre mais a cativou foi a rádio, onde começou a dizer poesia, aos catorze anos de idade [na Rádio Sonora, de Lacombe Neves, à rua Morais Soares, em Lisboa], actividade que manteve pelos anos fora, a par do teatro radiofónico (peças e obras romanescas por episódios, vulgo folhetins). Uma paixão perpétua, como a própria actriz tem reafirmado em várias entrevistas, aproveitando para denunciar a lastimável ausência de teatro nas hodiernas ondas hertzianas e também a míngua de poesia dita por categorizados recitadores. Em ambos os campos Carmen Dolores deu cartas na rádio portuguesa, sendo de menção obrigatória os espaços "Tempo de Poesia" (de Carlos Queiroz), "Poesia, Música e Sonho" (de Miguel Trigueiros), "Teatro Radiofónico" (de Virgínia Victorino, usando o pseudónimo Maria João do Valle), "Rádio-Drama" (de Alice Ogando), "Teatro das Comédias" (de Álvaro Benamor), "Noite de Teatro", "Tempo de Teatro" (de Fernando Curado Ribeiro e Eduardo Street) e "Teatro Imaginário" (de Eduardo Street), sem esquecer os muitos folhetins, quer na Emissora Nacional quer no Rádio Clube Português, entre os quais "O Rosário" (de Florence Louisa Barclay), "Tristão e Isolda", "Retrato de uma Senhora" (de Henry James), "A Paixão de Raquel" (de Wilkie Collins), "Penélope, a Rainha Solitária" (de Claude Meillan), "Guerra e Paz" (de Lev Tolstói), "História da Rainha Santa", "Eurico, o Presbítero" (de Alexandre Herculano), "Esteiros" (de Soeiro Pereira Gomes) e "Barranco de Cegos" (de Alves Redol). São disso prova os mais de setecentos registos guardados no arquivo histórico.
Pelo relevante serviço que prestou à rádio pública, todas as acções que a mesma desenvolva em homenagem à emérita actriz serão sempre poucas. Nesta ordem de ideias, cumpre-me aplaudir o realizador João Pereira Bastos pelo ciclo, em quatro capítulos, que em boa hora consagrou a Carmen Dolores, no seu programa "Ecos da Ribalta" [>> RTP-Play]. Foi a oportunidade que muitos ouvintes tiveram de descobrir ou revisitar quatro magníficas peças de teatro e uma mão-cheia de poemas, uns retirados do arquivo histórico (programa "Poesia, Música e Sonho") e outros extraídos do CD "Poemas da Minha Vida" (Dito e Feito, 2003). No caso das peças, apenas uma – "A Súplica", de Fernando Dacosta – não era estranha aos meus ouvidos. As outras três – "A Gaivota", de Anton Tchekov; "Um Mês no Campo", de Ivan Turgueniev; e "Na Vida Como no Palco", de Clifford Odets – nunca as havia escutado, simplesmente porque foram produzidas/emitidas antes de eu ter nascido, sem que nunca mais tenham sido repostas por alguma das antenas nacionais da rádio estatal, Antena 1 ou Antena 2 (é possível que muitas tenham sido retransmitidas pela RDP-Internacional enquanto Eduardo Street lá permaneceu, em regime de quase 'emprateleirado', mas essas estavam fora do meu alcance auditivo). E muitas mais dezenas de peças interessantes haverá decerto no arquivo (com ou sem Carmen Dolores no elenco) que são desconhecidas ao escrevente destas linhas e, bem assim, aos ouvintes do mesmo escalão etário e mais novos. Por conseguinte, e sem prejuízo do resgate das mais bem conseguidas realizações, para o programa "Memória" ou para outro espaço a criar na grelha da Antena 2, importa que todo o acervo de teatro radiofónico seja disponibilizado na plataforma RTP-Arquivos, a fim de que possa ser fruído por todos quantos apreciam a nobre e difícil arte de representar só com a voz. Um espólio de tão elevado valor cultural não pode permanecer fora do alcance da comunidade: podendo aceder-lhe, os cidadãos de hoje têm a oportunidade de se enriquecerem intelectualmente e, por arrasto, de cultivarem a memória dos actores, "encenadores", realizadores e técnicos que deram o seu melhor para que as obras fossem audíveis e cativantes. Penso, aliás, que essa é a melhor forma de prestar tributo aos artistas e aos briosos profissionais do "teatro do imaginário" (e da arte de Talma, genericamente entendida). Vale mais do que mil estátuas ou nomes de ruas, praças e pracetas.
Aqui ficam as sinopses e os links relativos às quatro edições do programa "Ecos da Ribalta" consagradas à arte de Carmen Dolores:


ECOS DA RIBALTA | 20 Dez. 2017 [>> RTP-Play]
  1. Poema "Quase", de Mário de Sá-Carneiro, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  2. Poema "A Rainha de Kachmir", de Gomes Leal, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  3. Peça "A Súplica" (monólogo), um original de Fernando Dacosta
    Adaptação: Filipe La Féria
    Direcção: Filipe La Féria
    Intérprete: Carmen Dolores
    Realização: Eduardo Street, com Noel Cardoso e Fernando Pires [TEMPO DE TEATRO, 1985].

ECOS DA RIBALTA | 27 Dez. 2017 [>> RTP-Play]
  1. Peça "A Gaivota", de Anton Tchekov
    Tradução e adaptação: Alice Ogando
    Direcção: Alice Ogando
    Intérpretes (e personagens): Carmen Dolores (Nina), Rogério Paulo (Boris), Alice Ogando (Irina) Aura Abranches (Paulina), Alves da Costa (Pedro), Carlos Duarte (Constantino), Luís Filipe (Dr. Dorn), Maria Filomena (Masha), Luís Santos (Simão), Carlos Gonçalves (Ilia), Ivone de Moura (a criada)
    Assistência técnica: Francisco Vicente
    Produção: Castela Esteves
    Realização: Alice Ogando [RÁDIO-DRAMA, Nov. 1959].

ECOS DA RIBALTA | 21 Fev. 2018 [>> RTP-Play]
  1. Sete poemas de Rainer Maria Rilke, em tradução de Paulo Quintela (com versos de ligação da autoria de Miguel Trigueiros), recitados por Carmen Dolores e Manuel Lereno
    Assistência técnica: Manuel Sanches
    Realização: Manuel Cunha [POESIA, MÚSICA E SONHO, 1972].
  2. Poema "Os Atacadores", de Alexandre O'Neill, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  3. Poema "Se eu fosse...", de Irene Lisboa, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  4. Peça "Um Mês no Campo", de Ivan Turgueniev
    Tradução e adaptação: Ricardo Alberty
    Direcção e ensaio: Álvaro Benamor
    Intérpretes (e personagens): Carmen Dolores (Natalya Petrovna), Álvaro Benamor (Mikhail Alexandrovitch Rakitin), Brunilde Júdice (Anna Semionovna), Maria Emília Baptista (Lizaveta Bogdanovna), Carlos Fernando (Kolya), João Lourenço (Alexei Nikolaievitch), Santos Gomes (Matvei), Ivone de Moura (Vera Alexandrovna) e Assis Pacheco (Inácio Ilitch)
    Assistência técnica: Fernando Pires
    Montagem: Gomes Serra [TEATRO DAS COMÉDIAS, 1964].

ECOS DA RIBALTA | 28 Fev. 2018 [>> RTP-Play]
  1. Peça "Na Vida Como no Palco", de Clifford Odets
    Adaptação: Carlos de Évora-Monte (pseudónimo de Victor Veres)
    Direcção e ensaio: Álvaro Benamor
    Intérpretes (e personagens): Assis Pacheco (Frank Elgin, o actor), Carmen Dolores (Georgie Elgin, a mulher do actor), Álvaro Benamor (Bernie Dodd, o encenador), António Sarmento (Phil Cook, o empresário) e Gabriel Pais (Paul Unger, o autor)
    Captação: Teixeira Alves
    Registo de som: Mendes de Oliveira
    Montagem: Jorge Santos [TEATRO DAS COMÉDIAS].
  2. Poema "O Som de um Piano Antigo", de João José Cochofel, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  3. Poema "É preciso saber porque se é triste", de Manuel Alegre, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  4. Poema "Meio-Dia", de Sophia de Mello Breyner Andresen, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  5. Poema "Sugestão", de Carlos Queiroz, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  6. Poema "Vivam, apenas", de José Gomes Ferreira, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  7. Poema "Canção", de António Pedro, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  8. Poema "Dez Reis de Esperança", de António Gedeão, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  9. Poema "Lusitânia no Bairro Latino", de António Nobre, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).
  10. Poema "Voz nos Campos de Almada", de Mário Cesariny, recitado por Carmen Dolores (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003).



Capa do livro "Retrato Inacabado", de Carmen Dolores (Lisboa: Edições 'O Jornal', 1984)



Capa do livro "No Palco da Memória", de Carmen Dolores (Lisboa: Sextante Editora, 2013)
Carmen Dolores encarnando Virginia Woolf, na peça "Virgínia", de Edna O'Brein, levada à cena no Teatro Nacional D. Maria II, em 1985, com encenação de Carlos Avilez, cenografia e figurinos de Ana Silva e Sousa.
Fotografia – Pedro Soares.
Design – Henrique Cayatte Design, com Susana Cruz.



Capa do livro "Vozes Dentro de Mim", de Carmen Dolores (Lisboa: Sextante Editora, 2017)
Carmen Dolores encarnando Helene Alving, na peça "Espectros", de Henrik Ibsen, levada à cena pelo Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia e figurinos de Ana Silva e Sousa, no Teatro Municipal Mirita Casimiro (Monte Estoril), em 1992.
Fotografia – Luísa Gomes.
Design – Manuel Pessoa.

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Artigos relacionados:
Eduardo Street: morreu o grande artesão do teatro radiofónico
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Porquê o fim da reposição do "Teatro Imaginário"?
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21 março 2018

Sebastião da Gama: "Louvor da Poesia", por José Nobre


Cascata da ribeira do Alcube, na Serra da Arrábida


Poucos terão sido os poetas, mormente os eruditos, que não versejaram a respeito da poesia ou, dito por outras palavras, que não fizeram da poesia (ou da arte poética, se se preferir) o objecto do poema. Entre eles, e com vários espécimes publicados, conta-se o poeta que chamava à Serra da Arrábida a sua Serra-Mãe: Sebastião da Gama. A nossa escolha, para este Dia Mundial da Poesia, recaiu naquele que dá pelo título de "Louvor da Poesia". É recitado pelo actor José Nobre, sobre lastro musical concebido e executado pelo (já desaparecido) pianista e compositor Rui Serôdio, e foi extraído do CD "Sebastião da Gama: Meu Caminho É por Mim Fora" [vide capa ao fundo], produzido pela Associação Cultural Sebastião da Gama e publicado em 2010, com chancela JGC.
António Cardoso Pinto, saudoso realizador de rádio, recitador e poeta [biografia e poemas no site Triplo V], manteve na Antena 1, durante sete anos (de 1996 a 2003) um memorável apontamento de poesia, primeiramente chamado "À Esquina da 1", depois "À Esquina do Século", e finalmente "À Esquina do Mundo". Esta última denominação prendia-se com o facto da fonte dos poemas ser a volumosa antologia "Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro" (Assírio & Alvim, 2001), organizada por Manuela Correia, sob a direcção editorial de Manuel Hermínio Monteiro. Nunca mais existiu no canal uma rubrica regular de poesia. Perguntamos: e porquê, se há tanto e bom material no arquivo, sem esquecer o disponível em discos? Uma coisa nada dispendiosa de se fazer e com a vantagem de dar à Antena 1 um toque de distinção no panorama das rádios de 'playlist'. Ou será que a direcção de programas entende que os ouvintes de hoje já não são merecedores desse "luxo cultural" que é a poesia?



LOUVOR DA POESIA



Poema de Sebastião da Gama (in "Campo Aberto", Lisboa: Portugália, 1951; Lisboa: Edições Ática, Colecção Poesia, 4.ª edição, 1983 – p. 45)
Recitado por José Nobre* (in CD "Sebastião da Gama: Meu Caminho É por Mim Fora", JGC, 2010)
Música: Rui Serôdio


Dá-se aos que têm sede,
não exige pureza.
Ah!, se fôssemos puros,
p'ra melhor merecê-la...

Sabe a terra, a montanhas,
caules tenros, raízes,
e no entanto desce
da floresta dos mitos.

Água tão generosa
como a que a gente bebe,
fuja dela Narciso
e quem não tenha sede.


* José Nobre – voz
Rui Serôdio – piano
Selecção de textos – João Reis Ribeiro e Maria Barroso
Produção – Associação Cultural Sebastião da Gama
Gravado no estúdio Sounds of Heaven, Lisboa, em Outubro de 2009
Gravação de vozes – David Neutel
Mistura e masterização – Jorge Calheiros



Capa do CD "Sebastião da Gama: Meu Caminho É por Mim Fora" (JGC, 2010)
Grafismo por Jorge Calheiros
O disco contém 26 poemas recitados por Fernando Guerreiro, Célia David, Maria Clementina, Maria Barroso e José Nobre.

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Outro artigo com poesia de Sebastião da Gama:
Sebastião da Gama: "Poesia", por Carmen Dolores

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Outros artigos com poesia dita/recitada:
Mário Viegas: 10 anos de saudade
Miguel Torga: "Natal"
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Arte e poesia
Poesia na rádio (II)
Jorge de Sena: "Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya", por Mário Viegas
João Villaret: centenário do nascimento
Camões recitado e cantado
Ser Poeta
Pedro Barroso: "Palavras Mal Ditas" ou "Palavras Malditas"?
Em memória de Guilherme de Melo (1931-2013)
Celebrando Natália Correia
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
Celebrando Vinicius de Moraes
Fernando Pessoa por João Villaret
Miguel Torga: "Ode à Poesia", por João Villaret
Celebrando Agostinho da Silva
Camões recitado e cantado (II)
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Al-Mu'tamid: "Evocação de Silves"
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
Celebrando Eugénio de Andrade
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Dois Excertos de Odes", por Mário Viegas
Cesário Verde: "De Tarde"
Cesário Verde por Mário Viegas
António Gedeão: "Dia de Natal", por Afonso Dias
Camilo Pessanha: "Singra o navio", por Mário Viegas
Miguel Torga: "Flor da Liberdade"
Camões recitado e cantado (III)

20 março 2018

Roda Pé: "Primavera Alentejana"


© Teresa Azevedo


Rafael Correia, durante as quase três décadas em que realizou, nos estúdios da RDP-Faro para a emissão nacional da Antena 1, o seu maravilhoso programa "Lugar ao Sul" [reedição >> RTP-Play], sempre teve o mui louvável cuidado de aguçar o apetite dos ouvintes para as saborosas e nutritivas iguarias sonoras que recolhia no Portugal profundo, com canções, poemas recitados e trechos instrumentais extraídos de edições discográficas. Enquanto fiel ouvinte, tive assim a oportunidade de descobrir muitos e magníficos espécimes do nosso património fonográfico que de outro modo me teriam passado ao lado. Aliás, dezenas e dezenas dessas gravações nunca mais as ouvi na Antena 1, nem em qualquer outra rádio. É o caso da canção "Primavera Alentejana", sobre poema de Hermínia Gaidão Costa, que o grupo eborense Roda Pé gravou no CD "Escarpados Caminhos", editado em 2004 pela editora conimbricense Public-Art. E que melhor dia para revisitá-la do que este em que começa a Primavera, e estando os campos alentejanos já cobertos de verdura depois da abundante chuva? Espero que a apreciem.
A talhe de foice, não posso deixar de, uma vez mais, apontar o dedo à direcção de programas da Antena 1 pela reiterada marginalização a que vem votando a música popular portuguesa, seja a tradicional seja a de autor tributária da matriz tradicional. Atente-se na 'playlist' que é um perfeito deserto de música tradicional e nos escassíssimos espaços a ela consagrados – "Cantos da Casa", de Armando Carvalhêda [rubrica >> RTP-Play / programa >> RTP-Play], e "O Povo Que Volta a Cantar", de Tiago Pereira [>> RTP-Play] – que estão em horários de sono e sem que sejam repetidos a horas de vigília.



Primavera Alentejana



Poema: Hermínia Gaidão Costa (em memória de Margarida Gaidão)
Música: Hermínia Gaidão Costa e Roda Pé
Arranjo: Roda Pé e João Bacelar
Intérprete: Roda Pé* com Joana Negrão e Celina da Piedade (in CD "Escarpados Caminhos", Public-Art, 2004)


[instrumental]

Rompe a aurora, nasce o dia
Iluminando o montado;
Como um hino à alegria
Ouve-se balir o gado.

Roxo, verde e amarelo –
Olho à volta – é o que vejo;
Não há nada assim tão belo,
Ó meu querido Alentejo!

Lindos campos verdejantes
Matizados de papoilas,
Já não são como eram antes
Mondados pelas moçoilas.

Já não são como eram antes
Mondados pelas moçoilas,
Lindos campos verdejantes
Matizados de papoilas.

[coros / instrumental]

Perfumados de poejo
Os campos de solidão:
É assim o Alentejo
Que trago no coração.

O melro canta no silvado,
O grilo num buraquinho;
E eu por ti apaixonada,
Alentejo, meu cantinho!

Lindos campos verdejantes
Matizados de papoilas,
Já não são como eram antes
Mondados pelas moçoilas.

Já não são como eram antes
Mondados pelas moçoilas,
Lindos campos verdejantes
Matizados de papoilas.

[coros / instrumental]


* Roda Pé:
Agostinho Teodoro – baixo eléctrico
Daniel Canelas – violino
Estêvão – guitarra acústica
Joaquim Manuel – acordeão
João Bacelar – percussão, bandola, berimbau de boca, reco-sapo, almofariz, programação e sampling
Participações especiais:
Joana Negrão – voz
Celina da Piedade – 2.ª voz

Produção – João Bacelar e Roda Pé
Gravado no Estúdio Quinta Dimensão, Azaruja-Évora, de Dezembro de 2003 a Abril de 2004
Misturas e masterização – João Bacelar
URL: http://www.roda-pe.com/



Capa do CD "Escarpados Caminhos", do grupo Roda Pé (Public-Art, 2004)
Concepção gráfica – Fernando Costa e Ricardo Costa

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Outro artigo com uma canção alusiva à Primavera:
Cantos d'Aurora: "Primavera"

16 março 2018

Ana Moura: "Creio" (Natália Correia)



Um dos mais belos poemas de Natália Correia e, por extensão, de toda a poesia de língua portuguesa é aquele que começa com o verso "Creio nos anjos que andam pelo mundo". Finda o livro "Sonetos Românticos", publicado em 1990 e que no ano seguinte seria galardoado com o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores.
A primeira versão cantada do soneto é de Janita Salomé, com música da sua autoria, que integra o CD "Raiano" (1994), a qual incluímos, em 2013, no artigo "Celebrando Natália Correia". Outros intérpretes vieram também a gravá-lo, tendo um deles sido a fadista Ana Moura, com música de Jorge Fernando, no álbum "Aconteceu" (2004). É essa versão que aqui apresentamos, em evocação da insigne poetisa, no dia em que se completa um quarteirão de anos sobre o seu desaparecimento.
Não podia a Antena 1 ter este poema cantado na respectiva 'playlist'? Podia e devia! Não só este como muitos outros saídos do punho de Natália Correia, alguns dos quais podem ser apreciados no artigo acima referido. E isso assume ainda mais pertinência se atentarmos na confrangedora pobreza da esmagadora maioria das canções que meteram na 'playlist'. Indigência essa – acrescente-se – que não se restringe à vertente poética: abrange igualmente as componentes da música e da interpretação (sem esquecer a qualidade genérica das vozes, que é de bradar aos céus).



Creio



Poema: Natália Correia ("Creio nos anjos que andam pelo mundo", poema IV do ciclo "Poesia: ó véspera de prodígio!", in "Sonetos Românticos", Col. Horas de Poesia, vol. 2, Lisboa: Edições 'O Jornal', 1990; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 392; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 616)
Música: Jorge Fernando
Intérprete: Ana Moura * (in 2CD "Aconteceu": CD 1 – "À Porta do Fado", Mercury/Universal Music, 2004)




Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.


* Ana Moura – voz
José Manuel Neto – guitarra portuguesa
Jorge Fernando – viola
Filipe Larsen – viola baixo
Produção e arranjos – Jorge Fernando
Co-produção – André Déquech
Gravado nos Estúdios MDL, Paço de Arcos, por Samuel Henriques
Gravações adicionais – Luís Delgado
Misturado e masterizado por Fernando Abrantes



Capa da 1.ª edição do livro "Sonetos Românticos", de Natália Correia (Col. Horas de Poesia, vol. 2, Lisboa: Edições 'O Jornal', 1990)



Sobrecapa do livro "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II", de Natália Correia (Lisboa: Círculo de Leitores, 1993)
Concepção – Clementina Cabral



Capa da 1.ª edição do livro "Poesia Completa", de Natália Correia (Col. Poesia do Século XX, Vol. 32, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999)



Capa do duplo CD "Aconteceu", de Ana Moura (Mercury/Universal Music, 2004)
Fotografia – Carlos Ramos.

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Outros artigos com poesia de Natália Correia:
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Poesia na rádio (II)
Ser Poeta
Celebrando Natália Correia